Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
230/21.1T8VPA-A.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: BENFEITORIAS
INDEMNIZAÇÃO
PROPRIETÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela e quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa (artigo 1273.º, do Código Civil).
II - A obrigação de indemnizar nascida das benfeitorias realizadas numa coisa, não configura uma obrigação real ou propter rem.
III - É que o respetivo sujeito passivo não é determinado pela titularidade do direito real, mas por quem no quadro do instituto do enriquecimento sem causa, detém a qualidade ou posição de enriquecido, ao tempo em que são introduzidos os melhoramentos e que releva, pois, para o nascimento da correspondente obrigação.
IV – Assim, o reembolso das benfeitorias tem por base a poupança da despesa ou o incremento do valor da coisa que vem posteriormente a enriquecer o seu proprietário; se a coisa é posteriormente alienada, quem se encontra enriquecido é o vendedor (que obtém mais por ela) e não o comprador.
V – Donde, o sujeito passivo da obrigação de reembolso das benfeitorias é o proprietário da coisa ao tempo em que estas são realizadas.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I- RELATÓRIO

AA e marido BB instauraram ação, na forma de processo comum, contra CC.

Invocaram que:
São proprietários do prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia ... sob o art. ...86 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n º ...09, por o terem comprado, por escritura pública de compra e venda, a DD, e terem adquirido o respetivo direito de propriedade por usucapião.
A R. ocupa, parcialmente, tal prédio.
Pediram que:
Se condenasse a R. a reconhecer que são proprietários do imóvel identificado no art. 1º, da p.i.
Se condenasse a R. a restituir o imóvel desocupado, livre de pessoas e bens, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da sentença;
Se condenasse a R. em € 5,00, por cada dia de atraso na entrega do imóvel.
A Ré contestou, impugnando parte da factualidade invocada pelos A.A., especialmente os atos de posse invocados, afirmando ser ela quem tem praticado atos de posse sobre o imóvel.
Deduziu reconvenção.

Invocou:
Ter realizado diversas obras no imóvel e ter pago algumas despesas de contribuição autárquica e de IMI do mesmo.
Pediu:
A condenação dos A.A. a indemnizarem-na no valor de € 51.600,00, correspondente ao valor das benfeitorias realizadas no imóvel e ainda, no pagamento dos IMI e contribuição autárquica que pagara desde 1997 e juros de mora contados desde a citação até integral pagamento.
Replicaram os A.A.
Impugnaram a generalidade da factualidade reconvencional.
A reconvenção foi admitida.
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Realizada a audiência prévia, foi proferido saneador sentença, com conhecimento parcial do pedido, tendo sido julgada a ação parcialmente procedente e a reconvenção parcialmente improcedente e, em consequência:

a) Condenou a R. a reconhecer que, os A.A. são proprietários do imóvel identificado no art. 1º, da p.i.;
b) Condenou a R. a restituir o imóvel aos A.A., desocupado, livre de pessoas e bens, no prazo de 10 dias após trânsito em julgado da presente decisão;
c) Absolveu a R. do demais peticionado;
d) Absolveu os A.A., parcialmente, do pedido reconvencional, na parte relativa à pretendida condenação dos mesmos no pagamento do montante de € 50.210,00 relativo a benfeitorias e ainda, na parte relativa à pretendida condenação dos A.A. no pagamento das quantias que a R. possa ter pago de IMI e contribuição autárquica até 27-11-2019 e, respetivos juros.
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Inconformada com a sentença, a Ré interpôs recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

2- O presente Recurso é de Apelação, nos termos do disposto nos artigos 639.º n.º 2 a) e b) do C. P. C., por violação do disposto nos artigos 481.º n.º 1 e 612.º n.º 1, 2.ª parte do CC.
3- Vem o mesmo da absolvição dos Autores do pedido reconvencional, na parte relativa à condenação no pagamento no valor de € 50.210 (que deverá ser peticionado ao ante proprietário, porque anterior à compra pelos Autores, por não ser uma obrigação propter ou ob rem) relativos a benfeitorias e a pagamento das quantias pagas pela Ré a título de IMI e contribuição autárquica até 27/11/2019, abrigo do Instituto do Enriquecimento Sem Causa.
4- A fundamentação da absolvição é que a obrigação de indemnizar o benfeitor é do proprietário do prédio, à data da realização das benfeitorias, porque foi ele o enriquecido. Vem tal Decisão sustentada Jurisprudencialmente em Douto Acórdão do STJ de 05/05/2015, e de Douto Acórdão da Relação de Coimbra, de 05/04/2022.
5- Em suma, refere que a obrigação de indemnização não é uma obrigação propter ou ob rem, pelo que o pedido da mesma deveria ser dirigido ao anterior proprietário.
6- Com todo o devido respeito, que é muito, a aqui Ré/ Recorrente discorda.
7- Argumenta com os seguintes elementos, específicos, do caso concreto:
8- É preciso ter em atenção que o valor patrimonial do urbano ...86, à data da compra e venda outorgada, era de € 10.270,00 – cfr. Certidão matricial, obtida via internet em 15/06/2021, com avaliação em 17/11/2019, junta com Douta PI;
9- Vejam Vossas Excelências que se trata de urbano com área total do terreno de 915m2, e área de implantação do edifício de 167m2;
10- Vejam Vossas Excelências facto provado 3, que confirma que, em 1996 (!) o anteproprietário DD terá pago pelo prédio 4.000.000$00;
11- Há ainda que ter em atenção que em facto provado 1.º, vem declarado que os aqui Autores compraram ao DD o prédio por € 3.000 (três mil euros).
12- Ou seja, o valor de compra é menos de metade do valor patrimonial do prédio, e menos de um quarto do valor que o anteproprietário DD pagou por ele.
13- Como se sabe, o valor patrimonial, em regra, é inferior ao valor real e de mercado.
14- O preço pago pelos Autores pela compra do urbano ...86, é significativamente inferior ao valor de mercado, e significativamente inferior ao valor de compra pelo anteproprietário.
15- Ou seja, os compradores, aqui Recorridos, enriqueceram com as benfeitorias (úteis e necessárias), sendo que não será justo nada pagarem por elas, quando não pagaram o preço que expressa o valor do prédio, acrescido das mais valias.
16- Aliás, é essa a justificação que subjaz ao disposto no artigo 612.º n.º 1, 2.ª parte do CC.: “se o acto for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé.”
17- Ou seja, precede a lógica de que o beneficário de acto que lhe deu ganho, sem contrapartida, não deverá ser protegido dos credores que tinham o prédio como garantia.
18- O mesmo espírito está presente no disposto no artigo 481.º n.º 1 do C. C.
19- Também se encontra salvaguarda jurisprudencial para este entendimento, nomeadamente em Douto Acórdão 1202/18.9T8CBR.C2 de 05/04/2022, do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, onde se refere: “Depois porque o Réu adquirente do prédio benfeitorizado em nada beneficiou com a introdução dos melhoramentos em que se consubstanciaram as benfeitorias, uma vez que pagou o preço fixado judicialmente para a correspondente venda, com referência ao contemporâneo valor de mercado do mesmo prédio, sendo certo que, necessariamente, foram tidas em conta benfeitorias introduzidas no mesmo, pelos AA, ou por terceiros…” – cfr. Ultima página, parágrafo 2.º.
20- Esta questão assume também particular relevância no âmbito do artigo 755.º do C. C., ““Tendo direito a indemnização, o comodatário goza do direito de retenção que lhe é conferido, especialmente, pela alínea e) do nº1 do artigo 755º” (cfr. Pires de Lima-A. Varela, Código Civil Anotado. V ol II, 4ª ed., p. 758).
A iliquidez do crédito não constitui obstáculo ao direito de retenção, pois que, como prescreve o nº 2 do art. 757º CC, não depende da liquidez do crédito do respectivo titular.”.
21- A aqui Ré/ Recorrente, expressamente invoca o Direito de Retenção do prédio, enquanto não estiver devidamente ressarcida.
Pugna a Recorrente pela procedência do recurso com a revogação da decisão recorrida.
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Os Recorridos apresentaram contra-alegações, concluindo que:

1. Não foram efetuadas quaisquer benfeitorias no imóvel dos autos, como concluiu a perícia realizada;
2. O estado do imóvel é de absoluta degradação e ameaça de ruína, face aos desmazelos e falta de cuidado da recorrente;
3. Que viveu no imóvel por empréstimo do seu irmão.
4. Mas, mesmo que as mesmas existissem, não poderiam ser assacadas aos recorridos, pelo menos as anteriores a 27/11/2019, data em que adquiriram o imóvel.
5. Baseando-se a presente ação no Instituo de Enriquecimento sem Causa, teriam que ter “enriquecido” de alguma forma os recorridos para lhe poder ser assacada a obrigação de pagar.
6. Ora, no caso dos autos os recorridos adquiriram o imóvel no estado em que se encontra, degradado e em ruína.
7. A obrigação inerente não é uma obrigação propter rem.
8. Nada é alegado quanto ao carácter das alegadas benfeitorias.
Pugnam, assim, pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos Recorrentes, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC).
No caso vertente, a única questão a decidir é a seguinte:
- Direito da ré a ser indemnizada pelos autores em razão das benfeitorias por si realizadas no imóvel antes do bem ser propriedade dos autores.
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III- FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
3.1.1.Factos Provados

Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
A - CC instaurou ação, contra DD, BB e esposa EE, que viria a correr seus termos sob o n º 173/20.....
B - Pediu que:
a) Fosse declarada a nulidade da escritura de justificação;
b) Fosse declarada a nulidade da escritura de compra e venda;
c) Fossem declarados nulos e de nenhum efeito todos os atos de inscrição e registo a ela relativos.
C - Alegou que:
(i) Em 27 de Novembro de 2019, foi outorgada no Cartório Notarial ..., escritura pública de Justificação e Compra e Venda, em que o Réu DD é representado pela Ré AA, assumindo o papel de justificante e vendedor, e os Réus AA e BB assumem o papel de compradores;
(ii) O vertido em tal escritura de justificação não corresponde à verdade, pois nunca o Réu DD praticou qualquer ato de posse no referido prédio;
(iii) Na verdade, é a aqui Autora quem vive no prédio desde 1997, com animus de efetiva proprietária.
D - Por decisão, proferida em 22-04-2021, transitada em julgado, foram considerados provados os seguintes factos:
1 - No dia 27.11.2019, no Cartório Notarial ..., lavrou-se escritura pública com a epígrafe “Justificação e Compra e Venda”, subscrita por EE na qualidade de procuradora de DD, como primeira outorgante, FF, GG e HH, como segundos outorgantes, e BB, como terceiro outorgante, consignando-se, designadamente, que:
“Justificação
Pela primeira outorgante, na indicada qualidade em que intervém, foi dito:
Que o seu representado é dono e legítimo possuidor, com exclusão de outrem, do prédio urbano sito na Rua ..., lugar de ..., freguesia ..., concelho ..., composto por casa de habitação e horta, com a superfície coberta de cento e sessenta e sete metros quadrados e descoberta de setecentos e quarenta e oito metros quadrados (…) inscrito na matriz em nome do justificante sob o artigo ...86 (…)
Que o seu representado não é detentor de qualquer título formal que legitime o domínio de tal prédio, que adveio à sua posse por volta do ano de mil novecentos e setenta e dois, por compra feita sob a forma meramente verbal a II, viúva (…)
Que, não obstante isso, tem usufruído tal prédio, cuidando do seu arranjo e manutenção, pagando os inerentes impostos, gozando de todas as utilidades por ele proporcionadas, habitando-o, lá guardando os seus haveres, com ânimo de quem exercita direito próprio, sendo reconhecido como seu dono por toda a gente (…)
Compra e Venda
Mais disse a primeira outorgante na indicada qualidade:
Que, livre de quaisquer ónus ou encargos, e pelo preço de três mil euros, que o seu representado já recebeu, vende ao terceiro outorgante o prédio urbano atrás identificado.
Disse o terceiro outorgante:
Que aceita a presente venda nos termos exarados (…)”
2. Pela ap. ...65 de 2020/01/09, afigura-se registada a aquisição a favor de BB, casado com EE no regime de comunhão de adquiridos, do prédio urbano sito em ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...09 e inscrito na matriz sob o artgo 286, por compra a DD.
3. Em 23.8.1996 II, II , JJ, KK, LL, MM, NN, OO, LL, PP, QQ. como promitentes vendedores, e RR, como procurador de DD, como promitente comprador, subscreveram um escrito com a epígrafe “Contrato de Promessa de Compra e Venda”, no âmbito do qual os promitentes vendedores declararam ter contratado vender ao referido DD, pelo preço de quatro milhões de escudos, uma casa de habitação com quintal a anexos, situada na Rua ..., no lugar de ..., com o artigo 286, e declararam ter recebido o antedito preço.
4. No circunstancialismo mencionado em 3), os sobreditos promitentes-vendedores entregaram a chave da antedita habitação ao Réu DD.
5. Na sequência do enunciado em 3) e 4) e desde a sobredita data, o Réu DD tem pago a eletricidade e a contribuição/autárquica do mencionado prédio.
6. Em 2001, o Réu DD declarou autorizar que a sua mãe passasse a residir na predita habitação e que a Autora CC ali residisse para cuidar da mesma.
7. Há mais de dez anos, o Réu DD declarou autorizar que os Réus AA e SS utilizassem o lagar sito no rés-do-chão do sobredito prédio, colocassem uma mobília de sala constituída por mesa e cadeiras na entrada a norte do ... andar, construíssem um galinheiro e guardassem os seus animais no logradouro do prédio e cultivassem o quintal.
8. O Réu DD efetuou o descrito em 5) a 7) à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de ninguém, com a convicção de exercer um direito de propriedade do antedito prédio e ignorando lesar direito de terceiros.
9. No dia 28.1.2021, no Cartório Notarial ..., lavrou-se escritura pública de “Retificação” da escritura indicada em 1), no âmbito da qual EE na qualidade de procuradora de DD, declarou que retificação no sentido de ficar a constar que o referido prédio adveio à posse do seu representado por volta do ano de 1986, por compra verbal a II, II , JJ, KK, LL, MM, NN, OO, LL, PP, QQ.
E - Em termos de direito, decidiu-se o seguinte:
1) Da invalidade/ineficácia das escrituras públicas de justificação notarial outorgada pelo Réu, do direito de propriedade do Réu e da nulidade do contrato de compra e venda outorgada pelos Réus
Positivando-se, desde logo, a densificação normativa do direito de propriedade, enuncia-se, que, em congruência com o plasmado no art.º 1302.º, do Código Civil, só as coisas corpóreas e incorpóreas podem ser objecto do direito de propriedade regulado no referido código.
Concomitantemente, em conformidade com o estatuído no art.º 1305.º, do Código Civil, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e de disposição.
O direito de propriedade configura, assim, um jus in re omnes alios, i.e, o aproveitamento maximalista e exclusivo de uma coisa corpórea, móvel ou imóvel, reconduzido à tríade ius utendi, ius fruendi e ius abutendi, ou seja, os poderes de uso, fruição, transformação, reivindicação, demarcação, e exclusão de terceiros relativamente ao gozo da coisa, e a faculdade de disposição da coisa, incluindo o poder de alienação e o poder de oneração (vd. José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, p. 661 e seguintes, José Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 5.ª edição, Coimbra Editora, p. 210 e seguintes, Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4.ª edição, Quid Juris, p. 315 e seguintes e Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, tomo III, 2.ª edição, Coimbra Editora, p. 84 e seguintes).
O aproveitamento da coisa pelo titular do direito de propriedade é consubstanciado pelo tipo legal plasmado, estribado em situações jurídicas activas ou conteúdo positivo e situações jurídicas passivas ou conteúdo negativo, enfatizando-se que o direito de propriedade não é um direito ilimitado, adstringindo-se a uma delimitação negativa fundada em limitações de interesse público, a expropriação, a requisição, as servidões administrativas e o jus aedificandi, e limitações de interesse privado, designadamente, em sede de relações de vizinhança constitutivas de deveres de abstenção, obrigações de pati, deveres de diligência ou deveres de colaboração (vd. José Alberto Vieira, op. cit., p. 325 e seguintes, e Luís Carvalho Fernandes, op. cit., p. 200 e seguintes).
O direito de propriedade, como direito real de gozo matricial, é, assim, um direito absoluto e inerente a uma coisa, corpórea ou incorpórea, dotado de poder de sequela, ou seja, o direito de propriedade é exercido sobre uma coisa, onde quer que a mesma encontre, acompanhando-a nas suas vicissitudes, designadamente a posse ou detenção de outrem (vd. Luís Carvalho Fernandes, op. cit., p. 55 e seguintes).
Acresce que, o regime jurídico-civilístico do direito de propriedade é entretecido pelos seguintes princípios normativos: (i) o princípio da tipicidade ou do numerus clausus, i.e., não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei, dimensões crismadas pela doutrina alemã por typenzwang ou escolha do tipo e typenfixierung ou modificação do tipo (art.º 1306.º/1, do CC); (ii) princípio da inerência, o qual se caracteriza pela inseparabilidade do direito real relativamente à coisa sobre que incide, sendo que, se a mesma perecer, o direito extingue-se; (iii) princípio da especialidade, ou seja, o direito real incide sobre uma coisa certa, determinada e individualizada; (iv) o princípio da absolutidade, i.e., os direitos reais são oponíveis erga omnes; (v) o princípio da consensualidade, nos termos do qual o Código Civil adoptou o sistema do título, i.e., a celebração do contrato translativo opera a transferência do direito real, sem dependência da entrega da coisa ou do se registo, rejeitando o sistema do modo (que exige a consignação de um negócio jurídico real e a subsequente traditio da coisa ou o seu registo); (vi) princípio da causalidade, o qual consagra que a aquisição derivada do direito real pressupõe a validade do negócio jurídico translativo, excluindo-se o princípio posse vale título; (vii) o princípio da boa fé, como dever-ser ético jurídico sustentado nos princípios da confiança e da primazia da materialidade subjacente (vd. José Alberto .
No que se refere ao âmbito de protecção constitucional da propriedade, em consonância com o preceituado no art.º 62.º/1, da Constituição da República Portuguesa, a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
Sublinhe-se que a tutela constitucional do direito de propriedade é mais lata que a tutela estritamente civilística, englobando a propriedade de coisas móveis e imóveis, a propriedade científica, literária ou artística, os direitos de autor, os direitos de crédito, as partes sociais, reconduzindo-se quer a uma garantia institucional, quer a um direito fundamental (vd. Gomes Canotilho/Vital Moreira, CRP Anotada, vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, p. 800 e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, p. 1239 e ss).
Ademais, os segmentos fundamentais do âmbito de protecção constitucional da propriedade são: (i) a liberdade de adquirir bens, ressalvando-se o estatuto específico do domínio público; (ii) liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; (iii) liberdade de transmissão inter vivos ou mortis causa dos bens; (iv) o direito de não ser privado deles (idem).
O direito de propriedade afigura-se, assim, em algumas das suas dimensões, como um direito de defesa, possuindo natureza análoga aos direitos, liberdades ou garantias, compartilhando, assim, do regime específico restritivo preceituado no art.º 17.º, da C.R.P.
(ibidem).
Em convergência com o prescrito no art.º 1316.º, do Código Civil, o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei.
Consagra-se, neste preceito, uma tipologia aberta de factos jurídicos com eficácia real ou quoad effectum, conglobando a aquisição originária e a aquisição derivada de direitos reais.
Na verdade, atentando-se que o direito de propriedade é um estrito direito patrimonial, vincula-se ao princípio de livre transmissibilidade inter vivos e mortis causa.
No que tange à aquisição derivada, os contratos assumem desde logo uma eficácia constitutiva e translativa (art.º 408.º/1, do CC), sendo que a sucessão por morte objectiva uma eficácia translativa do direito de propriedade (artigos 2024.º e 2025.º do CC).
No que concerne à aquisição originária, esta reconduz-se à usucapião, a título de facto jurídico constitutivo que se traduz na aquisição do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, com fundamento na posse mantida por certo lapso de tempo, nos termos do art.º 1287.º, do Código Civil.
A usucapião retrotrai os seus efeitos à data do início da posse (art.º 1228.º do CC), aproveita a todos os que podem adquirir, i.e., a todos os detentores de personalidade jurídica/capacidade jurídica de gozo (art.º 1289.º do CC).
A usucapião só permite a aquisição de direitos reais de gozo, exceptuando-se as servidões prediais não aparentes e os direitos de uso e habitação (art.º 1293.º, do CC).
Em convergência com o plasmado no art.º 92.º, do Código do Notariado, a justificação notarial é legalmente admitida para fins de registo predial: a) para obter a primeira inscrição, ou seja, para estabelecimento do trato sucessivo relativamente a prédios ainda não descritos ou, quando objeto já de descrição, sobre eles não incida inscrição de aquisição ou equivalente;
b) para reatamento do trato sucessivo, quando a sequência das aquisições derivadas (transmissões intermédias) se não interrompe desde o proprietário inscrito até ao atual proprietário (justificante), acontecendo porém que, relativamente a alguma ou algumas dessas transmissões, os interessados não dispõem do respetivo documento que as permita comprovar, apesar de terem sido tituladas de conformidade com a lei (ou porque o documento se extraviou ou foi destruído num incêndio ou por outro qualquer motivo atendível, designadamente porque não foi possível localizar o cartório onde ele foi lavrado); c) para estabelecimento de novo trato sucessivo, contemplando então aquelas situações em que se verifique uma quebra na cadeia das aquisições derivadas por abandono do proprietário (quer o inscrito quer outro subsequente a ele), tornando por outro subsequente a ele), tornando por isso necessário que o justificante invoque a posse conducente à usucapião, enquanto causa originária da aquisição.
Relativamente á primeira inscrição, a justificação consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais, devendo, quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, ser mencionadas expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.
No que concerne ao reatamento do trato sucessivo, a justificação tem por objeto a dedução do trato sucessivo a partir do titular da última inscrição, por meio de declarações prestadas pelo justificante, devendo na escritura reconstituir-se as sucessivas transmissões, com especificação das suas causas e identificação dos respetivos sujeitos, e indicar-se ainda, relativamente àquelas a respeito das quais o interessado afirme ser-lhe impossível obter o título, as razões de que resulte essa impossibilidade.
No que tange ao estabelecimento de novo trato sucessivo, a justificação consiste na afirmação, feita pelo interessado, das circunstâncias em que se baseia a aquisição originária, com dedução das transmissões que a tenham antecedido e das subsequentes, devendo na escritura reconstituir-se as sucessivas transmissões, com especificação das suas causas e identificação dos respetivos sujeitos, e indicar-se ainda, relativamente àquelas a respeito das quais o interessado afirme ser-lhe impossível obter o título, as razões de que resulte essa impossibilidade e as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.
In casu, sopesando-se o descrito em 3) a 8), o elenco fáctico consubstancia a efetivação pelo Réu DD de concludentes e sustentados atos materiais de domínio do referenciado prédio, praticando típicos atos que se subsumem no corpus possessório, publicitando a sua atuação.
Infere-se, assim, que o sobredito Réu positivou atos materiais constitutivos do controlo fáctico do citado prédio, de forma reiterada e duradoura e pública, i.e, permitindo a sua cognoscibilidade pelos interessados.
Noutro plano, o todo complexivo inerente à atuação do Réu consubstanciou o exercício de uma situação jurídica em nome próprio, agindo, assim, com animus sibi habendi ou intenção de ter a coisa para si e animus possidendi ou intenção de ser possuidor.
Acresce que, a situação possessória é uma posse civil, titulada, de boa fé, porquanto, sob o crivo do homem-médio, desconheciam diligentemente que lesavam o direito de outrem, pacífica, pois que não usaram de coação física ou moram e pública (artigos 1259.ºa 1260.º do CC).
Destarte, constatando-se que estão objetivados os pressupostos estatuídos no art.º 1287.º, do Código Civil, conclui-se que o Réu DD adquiriu o descrito imóvel por usucapião, em consonância com o preceituado nos artigos 1251.º, 1256.º/1, 1260.º/1, 1261.º/1, 1262.º, 1263.º, al. b), 1266.º, 1287.º, 1288.º, 1289.º/1 e 1296.º, todos do Código Civil, pelo que a escritura de justificação é eficaz e o contrato de compra e venda afigura-se consequentemente válido.
Destarte, postula-se a improcedência dos pedidos formulados nas als. a) e b) do petitório.
2) Da validade do registo de aquisição do prédio a favor do Réu
Em convergência com o plasmado no art.º 8.º, do Código de Registo Predial (CRP), a impugnação judicial de factos registados faz presumir o pedido de cancelamento do respetivo registo.
Ao abrigo do consignado no art.º 13.º, do referido diploma, os registos são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos, em execução de decisão administrativa, nos casos previstos na lei, ou de decisão judicial transitada em julgado.
Na verdade, a função do registo predial é dar publicidade à situação dos prédios, visando a segurança do comércio jurídico imobiliário (art.º 1.º, do CRP).
Em concatenação com o referenciado, o registo predial concerne a atos jurídicos que produzem efeitos relativamente a bens imóveis, formalizando-se mediante a respetiva inscrição (art.º 91.º, do CRP), e estribando-se nos seguintes princípios: (i) princípio da legitimação: os factos não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito (art.º 9.º/1, do CRP); (ii) princípio do trato sucessivo, o qual assegura um nexo ininterrupto de inscrições de alienações ou onerações referentes a certa coisa (art.º 34.º, do CRP); (iii) princípio da prioridade, i.e., prevalece o direito primeiramente inscrito sobre os que, em relação aos mesmos bens, lhe seguirem (art.º 6.º/1, do CRP); (iv) princípio da tipicidade: apenas os atos previstos na lei devem ser submetidos a registo.
O registo é enunciativo, quando se limita a dar publicidade e notícia dos factos registados, consolidativo, quando confirma a posição jurídica de quem registou a sua aquisição, constitutivo, quando prefigura um pressuposto da produção dos efeitos aquisitivos de um facto jurídico (art.º 4.º/2, do CRP) e aquisitivo, nas situações de proteção de aquisição de um direito a non domino ou aquisição tabular (vd. José Oliveira Ascensão, ob. cit.).
In casu, ante a eficácia da escritura de justificação e a validade da compra e venda, impõe-se , o decaimento da pretensão de invalidade do registo aquisitivo.
F - Foi proferida a seguinte decisão:
Pelo supra exposto, julga-se a ação totalmente improcedente e, consequentemente, decide-se: absolver os Réus DD, BB e EE do peticionado.
G - A R. ocupa parte do prédio em causa.
H - Dos trabalhos e materiais que a R. possa ter realizado/colocado no prédio em causa, os efetuados após 27-11-2019 ascenderão a um valor não superior a € 1.390,00.
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3.2. O Direito
3.2.1. Direito da ré a ser indemnizada pelos autores em razão das benfeitorias por si realizadas no imóvel antes do bem ser propriedade destes.

A ré, aqui recorrente, pediu a condenação dos autores a pagar-lhe o valor das benfeitorias que realizou no imóvel desde 1997.
Considerou a sentença recorrida que mesmo que assista à ré o direito a ser indemnizada pelas benfeitorias que tenha realizado no imóvel a sua pretensão terá de improceder relativamente àquelas benfeitorias que tenha feito quando os autores ainda não eram proprietários do imóvel.
É contra este entendimento que se insurge a recorrente.
 Considera que o preço pago pelos autores pela compra do imóvel é significativamente inferior ao valor de mercado e ao valor de compra pelo anteproprietário, o que permite a conclusão de que os compradores, aqui Recorridos, enriqueceram com as benfeitorias (úteis e necessárias), sendo que não será justo nada pagarem por elas, quando não pagaram o preço que expressa o valor do prédio, acrescido das mais valias.
Vejamos de que lado está a razão.

Entende-se por benfeitorias «todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa», podendo as benfeitorias ser necessárias, quando «têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa»; úteis, «as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor»; ou voluptuárias, «as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante» -  art. 216.º, n.º 1 e 2, do Código Civil.
A recorrente arrogava-se a qualidade de proprietária do prédio, qualidade que não lhe foi reconhecida.
Todavia, decorre do art. 1273.º, do Código Civil que, «tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela» (n.º 1); e quando, «para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa» (n.º 2).
Como se refere no Ac. desta Relação de Guimarães de 19.01.2023, consagra-se, assim, uma solução de equilíbrio dos interesses dos intervenientes: as benfeitorias necessárias, dada a sua indispensabilidade, integram-se definitivamente na coisa onde se incorporaram, devendo o adquirente indemnizar porque delas beneficiou; e quanto às benfeitorias úteis, se não seria justo que o possuidor forçasse o adquirente a gastos que não queria ou não podia fazer, justo é porém que, para evitar o injusto locupletamento deste, se permita ao benfeitorizante que as levante ou, a não ser isto possível sem detrimento, que receba indemnização calculada segundo as regras do enriquecimento se causa[i].
Assente a obrigação de indemnizar as benfeitorias que não sejam passíveis de levantamento sem detrimento da coisa onde foram realizadas, os termos da indemnização ocorrem segundo as regras do enriquecimento sem causa.
Com efeito, não obstante a utilização do termo «indemnização», em causa não está uma situação de reparação de um dano em decorrência de um ato gerador de responsabilidade civil, antes uma situação em que se visa obviar a um locupletamento injusto.
A este propósito, esclarece Antunes Varela[ii] que não está em causa a reparação do dano, essa reparação seria a finalidade própria da responsabilidade civil, mas sim “suprimir ou eliminar o enriquecimento de alguém à custa de outrem”. Ou seja, está-se perante um caso de enriquecimento sem causa resultante de despesas efetuadas por outrem (incremento de valor de coisas alheias), que dá origem a uma obrigação de restituir[iii].
Por essa razão, o objeto da obrigação de restituir situa-se entre dois limites: por um lado, o beneficiado deve entregar, ao empobrecido, na medida do respetivo locupletamento, isto é, atendendo-se ao seu enriquecimento patrimonial ou efetivo; por outro, o beneficiário nunca entregará mais do que o quantitativo do empobrecimento do lesado, caso este se mostre inferior ao seu locupletamento.
O enriquecimento assim delimitado corresponderá à diferença entre a situação real e atual do beneficiado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria, se não fosse a deslocação patrimonial operada[iv].
Em suma, como se escreveu no Ac. STJ, de 22.03.2018, na «determinação do valor indemnizatório, a calcular segundo as regras do enriquecimento sem causa, nos termos do artigo 479., n.º 1, por força do artigo 1273.º, n.º 2, do CC, a medida de restituição deve ser estabelecida na base de dois limites: o custo da benfeitoria, correspondente ao empobrecimento de quem a suportou e o enriquecimento do titular da coisa benfeitorizada, correspondente à valorização incorporada. Tal não significa que a medida de enriquecimento não possa equivaler ao custo da das benfeitorias; mas pode ser inferior, nunca podendo ser superior a esse custo»[v].
O cerne da questão reside em saber quem figura no binómio empobrecido/enriquecido, como tendo beneficiado com as benfeitorias.

Ou seja, saber se o beneficiário é quem ao tempo em que foram efetuadas as benfeitorias era proprietário ou o proprietário atual?

A solução terá de ser encontrada na natureza da obrigação.
Caso a obrigação tenha natureza real ela seguirá a coisa, independentemente do seu proprietário (são por regra ambulatórias); se a não tiver ela não se transmite.
Um direito real, além de atribuir ao respetivo titular poderes sobre uma coisa, sujeita-o também, com frequência, a deveres de conteúdo positivo. Alguns destes deveres são impostos por normas de direito público e para satisfação de interesses de ordem pública. Outros são impostos por normas de direito privado (ou criados por negócio jurídico, quando a lei o permite) e para satisfação de interesses particulares. É a respeito destes últimos deveres, que originam verdadeiras relações de natureza obrigacional, que deve falar-se de obrigações reais[vi].
A obrigação diz-se real quando é imposta em atenção a certa coisa, a quem for titular dela, porque dada a conexão funcional existente entre a obrigação e o direito real, a pessoa do obrigado é determinada através da titularidade da coisa. A obrigação existe por causa da res, sendo obrigado quem for titular do direito real, havendo assim uma sucessão do débito fora dos termos normais da transmissão das obrigações[vii].
Para Menezes Cordeiro, na categoria das obrigações reais, não interessa a identidade da pessoa obrigada, apenas se deve considerar a causa da obrigação e a titularidade do direito real onerado. Nestes termos, define a obrigação propter rem como sendo aquela cujo sujeito passivo (o devedor) é determinado não pessoalmente (intuito personae), mas realmente, isto é, é determinado por ser titular de um qualquer direito real sobre a coisa[viii].
Henrique Mesquita define as obrigações propter rem como “vínculos jurídicos por virtude dos quais uma pessoa, na qualidade de titular de um direito real, fica adstrita para com outra (titular ou não, por sua vez, de um ius in re) à realização de uma prestação de dare ou de facere”.[ix]
Por isso, como enfatiza o autor, as obrigações propter rem compreendem apenas os casos em que ao titular de um “iuris in re” sejam exigíveis comportamentos de conteúdo positivo (prestações de dare ou de facere) que se integrem numa relação obrigacional[x].
Consubstancia uma verdadeira relação creditória incrustada no estatuto do direito real, figurando como elemento do seu conteúdo.[xi]
Assente que a obrigação propter rem é a obrigação que decorre do estatuto de um direito real, e que as relações jurídicas que constituem a sua matriz são as que conferem a uma pessoa determinado domínio ou soberania sobre uma coisa, estamos em condições de afirmar que a obrigação de indemnizar nascida das benfeitorias realizadas numa coisa, não configura uma obrigação propter rem.
É que o respetivo sujeito passivo não é determinado pela titularidade do direito real, mas por quem no quadro do instituto do enriquecimento sem causa, detém a qualidade ou posição de enriquecido, ao tempo em que são introduzidos os melhoramentos e que releva, pois, para o nascimento da correspondente obrigação.
A este propósito afirma Menezes Leitão que “… o reembolso das benfeitorias previstas no art. 1273.º tem por base a poupança da despesa ou o incremento do valor da coisa que vem posteriormente a enriquecer o seu proprietário. Se a coisa é posteriormente alienada, quem se encontra enriquecido é o vendedor (que obtém mais por ela) e não o comprador (que, em principio, a adquire pelo seu presente valor de mercado). (…) O sujeito passivo da obrigação de reembolso das benfeitorias é assim o proprietário da coisa ao tempo em que estas são realizadas[xii].
O que impõe que tenha de se considerar que tal obrigação não se transmite com a transmissão do direito de propriedade incidente sobre a coisa enriquecida.
Foi neste sentido que se decidiu nos Acs do STJ de 5/5/2015[xiii] e da Relação de Coimbra de 5/4/2022[xiv], reforçando o argumento de que o adquirente do prédio benfeitorizado em nada beneficia com a introdução dos melhoramentos em que se consubstanciaram as benfeitorias, uma vez que pagou o preço com referência ao contemporâneo valor de mercado do prédio, em que foram tidas em conta as benfeitorias introduzidas no mesmo.
Em suma, A obrigação de indemnizar o possuidor pelas benfeitorias que haja feita na coisa possuída não é uma obrigação “propter” ou “ob rem”. Tal obrigação impende sobre quem – no binómio enriquecimento/empobrecimento que integra a figura do enriquecimento sem causa – era o titular do direito de propriedade sobre o prédio, à data da realização das benfeitorias.
Por outo lado, de nada relava a argumentação desenvolvida pela recorrente no sentido de que o preço pago pelos autores pela compra do imóvel é inferior ao valor de mercado, circunstância que a verificar-se é privativa da relação contratual (e seus termos) entre comprador e vendedor.
Improcede, pois, a apelação.
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - Tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela e quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa (artigo 1273.º, do Código Civil).
II - A obrigação de indemnizar nascida das benfeitorias realizadas numa coisa, não configura uma obrigação real ou propter rem.
III - É que o respetivo sujeito passivo não é determinado pela titularidade do direito real, mas por quem no quadro do instituto do enriquecimento sem causa, detém a qualidade ou posição de enriquecido, ao tempo em que são introduzidos os melhoramentos e que releva, pois, para o nascimento da correspondente obrigação.
IV – Assim, o reembolso das benfeitorias tem por base a poupança da despesa ou o incremento do valor da coisa que vem posteriormente a enriquecer o seu proprietário; se a coisa é posteriormente alienada, quem se encontra enriquecido é o vendedor (que obtém mais por ela) e não o comprador.
 V – Donde, o sujeito passivo da obrigação de reembolso das benfeitorias é o proprietário da coisa ao tempo em que estas são realizadas.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 9 de Novembro de 2023

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Margarida Pinto Gomes
2º Adj. - Des. Maria Amália Santos


[i] Acórdão proferido no processo nº 2553/21.0T8GMR.G3, em que foi relatora Maria João Matos e disponível em www.dgsi.pt.
[ii] In Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª edição., pág. 515.
[iii] Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Vol. I, 4ª edição, pág. 414.
[iv] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª edição, Coimbra, pág 466.
[v] Acórdão proferido no processo nº 336/13.0TBTVD.L1.S1, relator Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt.
[vi] Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Coimbra, Almedina, Resumo.
[vii]Antunes Varela, Direito das Obrigações, vol. I, pág. 200.
[viii] In Direitos Reais, Lisboa, pág. 367.
[ix] In Obrigações Reais e Ónus Reais, pág. 100.
[x] Ob. Cit, pág. 265.
[xi] Neste sentido, Henrique Mesquita, in R.D.E.S., XXIII, pág. 153.
[xii] In O enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, Almedina, pág. 801, nota 2164.
[xiii] Proferido no âmbito da Revista n.º 78/11.1TBMDB.P1.S1, Relator Fernandes do Vale e disponível em www.dgsi.pt.
[xiv] Proferido no Processo n.º 1202/18.9T8CBR.C2, Relator Moreira do Carmo, disponível em www.dgsi.pt.