Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
60/14.7GBVVD.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: ARGUIDO A TRABALHAR ESTRANGEIRO
SUJEITO A TIR
NOTIFICAÇÃO PESSOAL ACUSAÇÃO
ARTº 113º
NºS 6 E 10 E 277º
Nº 3
EX VI ARTº283º
Nº 5 DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. O processo penal está submetido ao primado do princípio da legalidade, de que emana o princípio da tipicidade dos trâmites legalmente cominados bem como das invalidades decorrentes da sua inobservância – que se afirma no numerus clausus das invalidades processuais e dos respectivos fundamentos –, e daí que a inobservância de tais trâmites só determine a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, acarretando, nos demais casos, a sua mera irregularidade (cfr. art. 118º do CPP).

II. A exigência de a notificação da acusação ser feita pessoalmente ao arguido, além de ao seu defensor, como expressamente prevê o n.º 10 do art. 113º do CPP – contendo os elementos previstos no artigo 277º, n.º 3, ex vi art. 283º, n.º 5, e devendo observar a forma prevista no n.º 6, deste último normativo, todos do mesmo Código – constitui uma genérica decorrência da subordinação do processo ao princípio do contraditório, facultando ao arguido a possibilidade de, ainda antes do julgamento, corrigir ou questionar tudo o que contra ele seja aduzido, assim lhe assegurando todas as garantias necessárias e adequadas a um eficaz exercício do direito de defesa, dada a função processual cometida à acusação e a posição eminentemente pessoal do mesmo perante os factos nela descritos, que delimitam o perímetro dentro do qual se desenha esse direito e se instalam as necessidades de defesa do acusado.

II. Porém, no caso vertente, o arguido prestou TIR, devidamente rubricado e por si assinado, e nele indicou uma morada para posteriores notificações, sem que, entretanto e até à data de notificação da acusação, tenha requerido a alteração dessa morada, pelo que a notificação da acusação podia ter sido feita por via postal simples, nos exactos termos em que o foi, em consonância com as obrigações decorrentes do TIR prestado, para além de que foi tentada a sua notificação pessoal através de Órgão de Polícia Criminal, que se frustrou por estar o mesmo «a trabalhar algures na Bélgica, desconhecendo-se a data do seu regresso».

III. E ainda que tivesse existido qualquer vício na notificação do arguido, o mesmo reconduzir-se-ia a uma mera irregularidade, com previsão no n.º 1 do art. 123º do CPP, que nunca poderia ser enquadrada no leque das nulidades insanáveis (art. 119º do CPP) ou, sequer, das nulidades relativas ou dependentes de arguição a que o art. 120º desse Código alude.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

No âmbito do processo comum singular n.º 60/14.7GBVVD do Juízo Local Criminal de Vila Verde, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, o arguido R. A., entre outros, foi julgado e condenado por sentença proferida em 10/01/2017, como autor de crime de furto qualificado, p. e p. nos artigos 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 1, f), um crime de furto qualificado, p. e p. nos artigos 202.º, d), 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, e), um crime de furto, p. e p. no artigo 203.º, n.º 1, e de um crime de dano, p. e p. no artigo 212.º, n.º 1, todos do C. Penal, nas penas de um ano, de três anos e seis meses, de dez meses, de oito meses e dez meses de prisão e, em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, na pena única de quatro anos e seis meses de prisão.

Inconformado com a referida decisão, o arguido R. A. interpôs recurso, invocando a nulidade de todo o processado após prolação da acusação, nos termos do disposto na alínea c) do art. 119º do CPP e arts. 18º, n.º 1 e 32º, ambos da CRP, formulando na sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«1. O recorrente impugna a sentença, de que se recorre, por considerar que o iter até ela percorrido, desde a notificação da acusação, ao ora recorrente, padece de nulidade insanável.
2. Pois que o arguido nunca foi notificado da acusação, ficando assim, irremediavelmente prejudicado, o seu fundamental direito ao contraditório e defesa.
3. No seguimento do interrogatório realizado ao arguido no dia 28/04/2014, o mesmo prestou TIR, dele constando a seguinte morada: Rua … Braga – fls. 134 do processo principal.
4. Sendo o único local, neste e em qualquer outro processo, onde essa morada se encontra associada ao arguido.
5. Não constando da dita página 1/2 do TIR, qualquer assinatura ou rubrica do arguido.
6. Não tendo o arguido, pese embora de forma negligente, por com certeza não ter lido e confiado que a morada que ali constava era a que efectivamente tinha indicado, se inteirado da morada que na dita página constava.
7. Ou seja, “assinou de cruz”.
8. Pois nela nunca residiu nem nunca a indicou como morada para posteriores notificações ao abrigo do disposto no artigo 196.º do CPPenal.
9. Só podendo resultar a constância dessa morada em tal documento do, hoje-em-dia “vulgar”, lapso do copy/paste.
10. Uma vez que o arguido indicou, como sempre o fez para todos os documentos oficiais, a sua efetiva morada, a Rua … Espinho (BRG).
11. Morada essa, indicada nos TIR prestados nos processos 1494/15.5PBBRG – apenso A - e 687/14.8TABRG – apenso B.
12. Aliás, tal morada consta de fls. 410, 412,416, 419 e 424, referentes aos pedidos de renovação do BI/CC do arguido, 595, 596, 597, 598, 599, 600, 601, 602 e 604, referentes ao CRC do arguido.
13. Se dúvidas ainda subsistissem ao Ministério Público no que diz respeito à real morada do arguido, as mesmas teriam que ficar dissipadas após a tentativa de notificação da acusação para a morada constante de fls. 134.
14. Pese embora o distribuidor postal tenha depositado a carta para notificação da acusação ao arguido na morada constante de fls. 134.
15. Certo é que, depois de efectuado o depósito, a dita carta para notificação da acusação ao arguido, foi devolvida ao Tribunal com as seguintes anotações: no rosto, “DEPOIS DE DEVIDAMENTE ENTREGUE VOLTOU AO CIRCUITO DOS CORREIOS” - no verso, como nota de incidente: “NUNCA RESIDIU NESTA MORADA” – vd. fls. 519 verso dos autos principais.
16. Assim, na sequência desta devolução, o DIAP de Vila Verde, diligentemente e bem, tentou a notificação da acusação ao arguido com a expedição de mandado de notificação à PSP de Braga – vd. fls. 521 dos autos principais.
17. Que foi devolvido acompanhado de certidão com o seguinte teor: (…) “Certifico e dou fé, que para o cumprimento do mandado de notificação que antecede, NÃO NOTIFIQUEI, R. A., em virtude de não residir nas moradas indicadas. Das diligências efectuadas apurou-se que o referenciado consta estar trabalhar algures na Bélgica, desconhecendo-se a data do seu regresso. (…) – vd. fls. 521 a 524 dos autos principais.
18. Também no relatório social para determinação da medida da pena, junto a fls. 720 e ss., é referido que o arguido não reside na Rua … Braga.
19. Morada que, diga-se, é integrante de um condomínio fechado, de nível médio/alto, com piscina privada, nada condicente com as condições socioeconómicas do arguido.
20. Consolidando aquilo que já era por demais evidente. O arguido não residia, não reside nem nunca residiu na Rua … Braga.
21. E que a constância de tal morada no documento de fls. 34, só pôde resultar, como acima já se referiu, do hoje-em-dia “vulgar”, lapso do copy/paste.
22. Importa agora saber se, ao ser apenas notificado por via postal simples para a morada constante do TIR, foi, no caso concreto, regular a realização da audiência na ausência do arguido.
23. A notificação da acusação deve ser feita pessoalmente ao arguido, além do defensor, como expressamente refere o n.º 9 do art. 113.º do CPP.
24. Esta exigência constitui um pressuposto do exercício efectivo do direito de defesa, dada a função processual do acto de acusação e da posição eminentemente pessoal do arguido perante os factos da acusação, como delimitação do perímetro dentro do qual se desenha o direito e se impõem as necessidades de defesa da pessoa acusada.
25. Face ao plasmado no art.113.º, n.º10 do C.P.P., é pacífico que a acusação tem de ser notificada quer ao arguido, quer ao seu Defensor. A acusação tem de ser obrigatoriamente notificada não só ao Defensor, como também ao arguido.
26. Já não existe a mesma unanimidade quanto à idoneidade da notificação da acusação por carta remetida por via postal simples para a morada indicada no TIR, quando a carta é devolvida.
27. A notificação não pode considerar-se validamente efetuada, numa situação em que tendo o arguido prestado TIR e sido expedida carta (para notificação da data designada para julgamento) por via postal simples, para a morada que indicou, esta veio devolvida.
28. Será idónea para o efeito da referida notificação, qualquer morada indicada pelo arguido, nos termos do artigo 196.º, n.º2, do Código de Processo Penal, desde que a mesma não seja devolvida, como foi a dos presentes autos, pois, neste caso, comprovando-se essa devolução (fls. 519 e 519 verso) e, independentemente de se considerar o arguido notificado ou não, o certo é que legalmente não se mostra notificado.
29. Sendo um arguido apenas notificado por via postal simples para a morada constante do TIR, ali incluída sem indícios de culpa sua, e havendo nos autos outras moradas do arguido e bem assim três números de telefone, há que tentar todos os meios para se lhe dar conhecimento da acusação e facultar-lhe a respectiva defesa.
30. Quando no artº 196º, nº 2 do C.P. Penal se diz que para o efeito de ser notificado mediante via posta simples, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 113.º, o arguido indica a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha quis o legislador facilitar as tarefas das notificações, pelo que caberia a quem de direito alcançar o sentido e finalidades da lei, nomeadamente tendo em conta a gravidade do acto a realizar e das suas consequências.
31. E a consequência da falta cometida só pode ser a da nulidade absoluta, tendo que se efectuar a notificação da acusação e seguir, depois, os demais trâmites, pois, de facto, estamos perante um vício capital, a qualificar como nulidade insanável, a prevista no artº 119º, al. c) do citado Código, tanto mais que, como se sabe, a falta de notificação da acusação implica a impossibilidade do mais elementar direito dos arguidos, o de defesa, com consagração constitucional.
32. Com efeito, há violações da lei processual muito mais graves que as nulidades insanáveis, quais são aquelas que constituem uma omissão de fundo constitucional e que, por isso, mais que nulas, são afetadas de inconstitucionalidade.
33. Esses vícios não estão - nem poderiam estar - incluídos no elenco das nulidades (insanáveis ou dependentes de arguição) e das irregularidades, pois são vícios maiores, que dizem respeito à própria substância dos direitos constitucionais.
34. Aliás, nem fazia sentido que fosse possível arguir-se, e demonstrar- se, uma violação de natureza constitucional, vindo o ato (ou a omissão) a ser como tal declarado e anulado, se pela via dos vícios processuais apenas se descobrisse uma nulidade relativa ou uma mera irregularidade.
35. Ou, por outras palavras, um vício que é considerado como ferido de inconstitucionalidade passaria a ser considerado, pelas regras do processo penal, como uma nulidade sanável ou como um vício menor!
36. Assim, a não notificação da acusação ao arguido, quando possível, e sobretudo quando tal falta lhe não seja imputável, tem que ser entendida como ferida de nulidade insanável.
37. Importa saber se, ao ser apenas notificado por via postal simples para a morada constante do TIR, foi, no caso concreto, regular a realização da audiência na ausência do arguido.
38. Ao arguido foi tomado TIR pela PSP, indicando-se ali a residência na Rua …, Braga;
39. Atente-se que, na simulação da concessão de apoio judiciário o arguido indica como casa de morada de família a residência do pai, vd. fls. 138 dos autos principais;
40. Estando a morada de tal residência – Rua … Braga - identificada nos autos por várias vezes e em diversos documentos;
41. A fls. 497, foi a acusação enviada ao arguido, por via postal simples, para a morada indicada no TIR;
42. A fls. veio a ser enviado ao arguido o despacho que designava datas para julgamento, também pela via postal simples e para a mesma residência do TIR;
43.Uma vez que a carta para notificação ao arguido foi devolvida - fls. 519 - ao circuito postal após o depósito), o Ministério Público promoveu que se considerasse que o arguido foi notificado e assim veio a ser decidido (fls. 534);
44. Em 28-10-16, verificando-se a ausência do arguido, foi dado início ao julgamento com a produção de prova, entendendo a Mm.ª Juiz a quo que, atenta a matéria em discussão no processo, a presença do arguido desde o início da audiência, não era imprescindível para a descoberta da verdade material, ;
45. O pedido de notificação da sentença foi efectuado à PSP, primeiro para a morada do TIR, que veio devolvido por cumprir, vd. fls. 828 do processo principal.
46. Sendo depois dado vista ao D.M. do M.º Público que promoveu diligências tendentes à localização do paradeiro do arguido, vd. fls. 830 do processo principal.
47. Negligência, houve-a, isso sim, da parte de outras pessoas, pois a sucessão e natureza dos factos relativos às tentativas de notificação deveriam, no mínimo, levar a uma mais atenta consulta dos autos.
48. Note-se, por exemplo, que não é vulgar a devolução das cartas enviadas pela via postal simples e que a de fls. 519, que foi reenviada ao circuito postal após o depósito, trazia legível indicação disso mesmo, o que deveria alertar para qualquer facto anómalo.
49. De seguida, mais um facto estranho veio aos autos, como resulta da certidão negativa de fls. 524, da qual se pode extrair com bastante segurança que, de facto, o arguido era desconhecido na dita morada.
50. Precipitando a realização do julgamento, como o tribunal a quo fez, violou-se um direito consagrado do arguido, a quem, repete-se, não há indícios para imputação de culpas.
51. E a consequência das faltas cometidas só pode ser a da nulidade absoluta, tendo que se efectuar a notificação da acusação e seguir, depois, os demais trâmites.
52. Isto porque, a falta de notificação da acusação implica a impossibilidade do mais elementar direito dos arguidos, o de defesa, com consagração constitucional, no artº 32º da C.R.P.
53. Por outras palavras, como é possível considerar-se não fundamental, ou seja, sanável, aquilo que a lei ordinária diz obrigatório e a Lei Fundamental estabelece, inequivocamente, como fundamental.
54. Como se sabe, nos termos do artº 18º, nº 1 da Constituição, os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente (sublinhado nosso) aplicáveis e o nº 2 estabelece que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
55. Isto é, para além delas, existe um sem número de situações em que os actos ou omissões processuais podem ser nulos, e assim acontece, em especial, quando são afetados direitos e garantias constitucionalmente consagrados.
56. Como é o caso dos autos.
57. Assim, e sabendo-se da maior gravidade da ausência dos arguidos, face à necessidade de maior protecção de direitos, tem todo o sentido que a sua ausência por razões que se lhe não possam imputar seja cominada com nulidade mais severa.
58. Está então bom de ver, até por maioria de razão, que a não notificação da acusação ao arguido, quando possível, e sobretudo quando tal falta lhe não é imputável, também tem que ser entendida como ferida de nulidade insanável.
59. Pelo que, deverá ser anulado todo o processado posterior à dedução da acusação, a qual deve ser legalmente notificada ao arguido e seguindo- se depois os demais trâmites.

II – MEDIDA DA PENA

60. Sem prescindir, e por mera cautela de patrocínio, o arguido recorre também da medida da pena.
61. Ao ver-se julgado na ausência e sem poder exercer o seu direito de defesa, foi o arguido condenado debaixo de pressupostos errados e que o tribunal a quo não podia ter dado como verdadeiros.
62. Na fundamentação aduzida pelo Tribunal a quo para a determinação da medida concreta da pena, é dito o seguinte: (…) No caso concreto, e no que toca aos crimes de furto, as necessidades de prevenção geral são elevadas, uma vez que este tipo de crime atinge de forma alarmante as zonas mais rurais dos pais. O mesmo se diga em relação aos crimes de condução sem habilitação legal, um dos crimes mais frequentes nesta comarca.

Em relação às necessidades de prevenção especial, elas assumem igual relevo, atendendo por um lado aos antecedentes criminais dos arguidos e, por outro, à sua falta de inserção social.

Por outro lado a culpa dos arguidos apresenta também um nível elevado, tendo estes agido com dolo direto. Para a determinação da medida concreta da pena ter-se-á em conta, dentro dos limites abstratos definidos na lei, todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra os arguidos, fixando-se o limite máximo da pena concreta a aplicar de acordo coma culpa manifestada pelos arguidos; o limite mínimo, de acordo com as exigências de prevenção geral; e a pena efetiva, dentro da moldura penal assim conseguida, de acordo com as exigências de prevenção especial - artigo 71.º do Código Penal.

Assim, relevará a confissão que o arguido J. fez dos factos que lhe foram imputados, não obstante o seu parco valor atenuativo, dado o flagrante delito.

Pelo exposto considero adequadas as seguintes penas:

- Seis meses de prisão para o arguido J.;
- Para o arguido M.: cinco meses de prisão pelo crime de condução ilegal, dez meses de prisão pelo crime de furto qualificado previsto no artigo 204º n.° 1 f) do Código Penal e três anos de prisão pelo crime de furto qualificado previsto no artigo 204º n.° 2 e) do Código Penal;
- Para o arguido R. A.: oito meses de prisão pela prática do crime de dano previsto no artigo 212.0 n° 1 do Código Penal, um ano de prisão pela prática do crime de furto qualificado previsto no artigo 204.0 n.° 1 f) do Código Penal, três anos e seis meses de prisão pela prática do crime de furto qualificado previsto no artigo 204.0 n.° 2 e) do Código Penal e dez meses de prisão pela prática do crime de furto previsto no artigo 203º n° 1 do Código Penal.

Consigna-se que a graduação das penas concretas tem por base os diferentes antecedentes criminais registados dos arguidos, designadamente o facto de terem sido anteriormente à prática dos factos condenados por idênticos crimes.(…)
63. É de salientar o tempo que já decorreu desde a prática dos factos, que ocorreram em 29 de janeiro de 2014, cerca de 3 anos.
64. O arguido teve uma adolescência, início de idade adulta, pautada pelo alcoolismo da sua mãe que, quando o arguido tinha seis anos, abandonou a residência deixando-o entregue aos cuidados do pai.
65. O pai deficiente físico com elevada incapacidade, institucionalizou o arguido quando este tinha apenas seis anos.
66. Aos catorze anos, abandonou a instituição onde se encontrava acolhido, tendo de aí em diante iniciado um percurso errático, tendo residido cerca de dois anos com a mãe - que ainda mantinha problemas de alcoolismo.
67. Dado o problema de alcoolismo da mãe, o arguido foi viver com família de acolhimento, até à maioridade.
68. Acolhimento esse que nunca correu bem, tendo o arguido “fugido” de casa várias vezes por se incompatibilizar com a senhora com quem residida.
69. Tanto que, atingida a maioridade, o arguido regressou de imediato a Braga, onde passou a residir com o seu pai.
70. Tendo, daí em diante vivido de forma errática, em constante conflito com o pai e com a sociedade atuando de forma contrária ao direito.
71. Potenciados pela dependência do álcool de que padeceu até que, num lapso de lucidez, decidiu internar-se no Hospital de … e tratar dessa maleita de que padecia e lhe entorpecia a vida.
72. Atente-se no seu iter criminis, plasmado no seu CRC, onde se encontra registada a prática do seu último ilícito, 21 de maio de 2014.
73. Assim o fez em junho de 2014, há cerca de quatro anos, o arguido desintoxicou-se do álcool – doc. 1.
74. Conseguiu libertar-se dos hábitos anteriores pautados por consumos excessivos de álcool que o faziam enveredar pela vida desinteressada e contrária ao direito.
75. Atualmente, o arguido tem uma vida laboral, social e emocional estável.
76. Em termos profissionais, o arguido celebrou contratos de trabalho a termo, mantendo relações laborais estáveis desde o ano de 2015 – doc. 2.
77. Tendo emigrado em 2016, por forma a afastar-se das más companhias, e está a recompor a sua vida, resolvendo todos os seus problemas judiciais.
78. A nível social e emocional o arguido está estável.
79. Mantém contactos com o núcleo da sua família – com os seus irmãos -, mais regularmente com a sua irmã C..
80. Reside, por força da localização das obras onde presta o seu trabalho, em instalações fornecidas pela entidade patronal.
81. Quando em Portugal, reside na casa da sua companheira, A. P., com quem vive maritalmente e planeia casar e constituir família.
82. Estranhando-se, por tudo o acima dito, o relatório social elaborado pela DGRSP – no que diz respeito às atuais condições socioeconómicas do arguido -, uma vez que o mesmo não reflete a realidade.
83. Pelo que, o arguido mudou, mudou a sua vida, os seus hábitos.
84. Uma prisão efetiva ia afetar a sua reintegração na sociedade, o arguido ia sentir que não está apoiado pelo sistema.
85. Com a prisão efetiva o arguido vai perder o seu contrato de trabalho.
86. Face a todo este circunstancialismo, entendemos, salvo o devido respeito, que dando-se-lhe mais uma oportunidade, quiçá a derradeira, para em liberdade poder refletir sobre o seu passado.
87.E continuar este novo processo de vida adequado à sua reinserção na coletividade, estarão asseguradas as necessidades de prevenção geral e especial, e realizadas de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
88. Neste sentido, entendemos existirem sérias razões para crer que a suspensão da pena de prisão aplicada, resultará vantajosa para a reinserção social do ora Recorrente.
89. Como circunstância posterior ao facto, verificamos um esforço, com sucesso, de reintegração social e profissional por parte do arguido, o que demonstra um verdadeiro arrependimento do agente, conforme acima dito.
90. “O critério material para decidir sobre a suspensão ou não da pena aplicada é exclusivamente preventivo, isto é, o tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentam a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma ou estão irremediavelmente prejudicadas em virtude da conduta posterior do condenado”. (Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, a luz da CRP e da CEDH, 2ª edição atualizada, p.236).
91. “O referido juízo preventivo reporta-se ao momento em que o tribunal aprecia a situação e não ao momento em que o agente cometeu o crime, devendo por isso ser tido em conta o tempo entretanto recorrido entre este momento e a data da audiência do tribunal.” (Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13/11/2008, in CJ, XXXIII, 5, 135).
92. Assim, é de pressupor com toda a certeza que a suspensão de execução da pena aplicada, irá propiciar ao jovem o afastamento do crime e a sua aceitação pela sociedade, bem como a benevolência de tal medida de clemência será bem aceite e compreendida por todos, pois que é necessário ser duro, mas sem jamais perder a ternura.
93. Pelo que não podemos esquecer que “(…) quando caracterizamos o sistema sancionatório português (…) há uma revelação clara de um princípio da humanidade.” (Cf. Maria João Antunes, As consequências jurídicas do crime, p. 18).
94. Deve assim, optar-se pela suspensão da execução da pena aplicada, pelo que é mais benéfico.
95. Face a tudo que ficou referido face ao trajeto do arguido, cabe referir que o legislador pretere a pena de prisão.
96. Pelo que se estamos perante a possibilidade da aplicação da pena substitutiva, esta deve aplicar-se in casu.»

O recurso foi regularmente admitido por despacho proferido a fls. 1166.

O Ministério Público respondeu ao recurso defendendo que o mesmo deve ser julgado improcedente por não ter sido cometida qualquer nulidade, uma vez que o arguido foi notificado da acusação para a morada constante do TIR, tendo sido observados os normativos legais atinentes a esta matéria, designadamente o disposto no art. 283.º, n.º 5, do C. P. Penal, aduzindo, ainda, que a pena única fixada não deve ser suspensa na sua execução, atendendo ao passado criminal do arguido, marcado por condenações em penas de multa, penas de prisão substituídas por multa e penas de prisão suspensas na sua execução, pela prática de crimes de condução ilegal, roubo, furto, extorsão e detenção ilegal de arma, não se encontrando o mesmo socialmente inserido, por ser associado a comportamentos delinquentes.
E, neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer secundando a argumentação do Colega de primeira instância.
Cumprido o disposto no n.º 2, do art. 417º do CPP, feito o exame preliminar e colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
*
II – Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 403º e 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, suscitam-se neste recurso as questões de saber se: (i) a notificação da acusação ao arguido para a morada que este havia indicado no TIR para o efeito não foi validamente efectuada e se, assim sendo, tal vício configura uma nulidade insanável prevista na alínea c) do art. 119º do CPP ou apenas uma mera irregularidade; (ii) a pena única aplicada ao arguido deve ser suspensa na sua execução.

Importa apreciar as enunciadas questões e decidir para o que são pertinentes: os factos e as ocorrências que se extraem da tramitação dos autos:

1) Em 28/4/2014, no âmbito do inquérito, o arguido prestou termo de identidade e residência, indicando como sua morada a Rua …, Braga (fls. 134 e 183).
2) Em 23/3/2016, o Ministério Público declarou encerrado o inquérito e deduziu acusação contra, entre outros, o arguido R. A., imputando-lhe a prática de um crime de furto simples e de dois crimes de furto qualificado.
3) Em 1/4/2016, foi expedida carta por via postal simples com prova de depósito, tendo em vista a notificação da acusação ao arguido, para a morada constante do TIR, o mesmo sucedendo em relação à sua defensora oficiosa nos termos do n.º 5 do art. 283º do CPP (fls. 497, 500 501 e 504).
4) Foi ainda tentada a notificação do arguido através dos órgãos de polícia criminal (fls. 522 a 524).
5) Em 16/5/2016, o Ministério Público considerou o arguido devidamente notificado da acusação pública por este ter prestado TIR e não ter até esse momento procedido à alteração da morada dele constante e ter sido depositada a notificação da acusação na referida morada.
6) Na mesma data os autos foram remetidos à distribuição para julgamento.
7) Em 21/6/2016, foi proferido despacho recebendo a acusação e designando datas para julgamento, que foi notificado ao arguido por via postal simples com prova de depósito, tendo a carta de notificação sido devolvida com a menção “depois de devidamente entregue voltou ao circuito dos correios, nunca residiu nesta morada” (fls. 534, 519, 567, 568).
8) O arguido apresentou contestação nos autos, oferecendo o merecimento dos autos (fls. 563).
9) Em 28/10/2016, realizou-se a audiência de julgamento, na ausência do arguido, tendo-se considerado não ser imprescindível a presença do mesmo.
*
III- O Direito.

1. A notificação da acusação.

O arguido, nas suas extensas conclusões de recurso, vem colocar em causa a notificação que lhe foi endereçada pelos serviços do Ministério Público, sustentando que não se pode ter como validamente notificado, uma vez que a morada constante do TIR por si prestado se ficou a dever a um lapso na elaboração de tal documento devido a um “vulgar copy/paste”.
Ora, independentemente de tal asserção poder ter ou não correspondência com a realidade plasmada no TIR, o certo é que, neste momento, não é essa a questão que urge solucionar, mas sim, a de saber se o procedimento adoptado pelo Ministério Público é o conforme à lei.
Como é sabido, a notificação da acusação deve ser feita pessoalmente ao arguido, além de ao seu defensor, como expressamente prevê o n.º 10 do art. 113º do CPP. Esta exigência constitui um pressuposto do exercício efectivo do direito de defesa, dada a função processual cometida à acusação e a posição eminentemente pessoal do arguido perante os factos nela descritos, que delimitam o perímetro dentro do qual se desenha o direito e se instalam as necessidades de defesa do acusado (1).
Trata-se duma genérica decorrência da subordinação do processo ao princípio do contraditório, facultando ao arguido – a este por maioria de razão – a possibilidade de, ainda antes do julgamento, corrigir ou questionar tudo o que contra ele seja aduzido, assim lhe assegurando todas as garantias necessárias e adequadas a um eficaz exercício do direito de defesa.
E deve conter os elementos previstos no artigo 277º, n.º 3, ex vi art. 283º, n.º 5, devendo observar a forma prevista no n.º 6, deste último normativo, todos do C. P. Penal.
Tal comunicação é efectuada «mediante contacto pessoal ou por via postal registada, excepto se o arguido (…) tiver indicado um local determinado para efeitos de notificação por via postal simples, nos termos dos nºs 5 e 6 do art. 145, do nº 2 e da alínea c) do nº 3 do artigo 196º, caso em que são notificados mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 113º

Por sua vez, o art. 196º, do CPP, sobre a epígrafe “Termo de identidade e residência”, prescreve: «1 - A autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal sujeitam a termo de identidade e residência lavrado no processo todo aquele que for constituído arguido, ainda que já tenha sido identificado nos termos do artigo 250.º
2 - Para o efeito de ser notificado mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 113.º, o arguido indica a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.»

Ora, no caso vertente, o arguido prestou TIR, devidamente rubricado e por si assinado, e nele indicou uma morada para posteriores notificações, sem que, entretanto e até à data de notificação da acusação, tenha requerido a alteração dessa morada.
Por conseguinte, a notificação da acusação podia ter sido feita por via postal simples, nos exactos termos em que o foi, em consonância com as obrigações decorrentes do TIR prestado, pelo que reiteramos plenamente o entendimento expresso pelo Órgão que a efectuou de foi integralmente cumprido o disposto no art. 113º do CPP.
Não existindo, pois, qualquer incorrecção na notificação da acusação ao arguido, a argumentação por ele avançada no recurso não se coaduna com qualquer lapso, tanto mais que conforme resulta dos processos apensos a estes autos, o arguido prestou outros TIR`s com moradas diferentes e nunca foi encontrado em tais locais.
Ainda mais relevantemente, e como o próprio arguido reconhece, foi tentada a sua notificação pessoal através de Órgão de Polícia Criminal, que expressamente consignou estar o mesmo «a trabalhar algures na Bélgica, desconhecendo-se a data do seu regresso» (fls. 521 a 524).
Por isso, como bem salienta o Ministério Público na resposta ao recurso, «[o] que releva para efeitos processuais é que a notificação da acusação foi endereçada exatamente para a morada que consta do TIR do arguido, não se cuidando aqui de averiguar se o mesmo alguma vez aí morou efetivamente ou não, razão pela qual se considerou o arguido regularmente notificado do despacho de acusação (cf. fls. 525, com referência a fls. 504)».
Mas, ainda que, contra o argumentado, tivesse existido qualquer vício na notificação, o mesmo reconduzir-se-ia a uma mera irregularidade, com previsão no n.º 1 do art. 123º do CPP (2), que nunca poderia ser enquadrada no leque das nulidades insanáveis ou, sequer, das nulidades relativas ou dependentes de arguição a que o art. 120º do CPP alude.
E daí que, por maioria de razão, não colhe a evocação pelo recorrente da nulidade insanável prevista na alínea c) do art. 119º do CPP, porque, segundo aduz, estaríamos perante uma situação que configuraria o vício capital da falta de notificação da acusação, que teria implicado a impossibilidade do seu mais elementar direito de defesa, com consagração constitucional.
Realmente, como é sabido, o processo penal está submetido ao primado do princípio da legalidade e deste emana o princípio da tipicidade dos trâmites legalmente cominados, bem como das invalidades decorrentes da sua inobservância, que se afirma no numerus clausus das invalidades processuais e dos respectivos fundamentos e daí que a inobservância de tais trâmites só determine a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, acarretando, nos demais casos, a sua mera irregularidade (cfr. art. 118º do CPP).
Desse princípio da tipicidade/legalidade em matéria de nulidades, resulta que a inobservância de trâmites processuais impostos que não seja expressamente acoimada na lei com tal vício constitui uma mera irregularidade (n.º 2 do mesmo artigo).
E entre as nulidades a lei distingue as que são insanáveis e as que são dependentes de arguição. Quanto às primeiras, «que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento», são apenas as que vêm previstas nas diversas alíneas do art. 119º e todas as demais «que como tal forem cominadas em outras disposições legais».

Dispõe o art. 119º do C. P. Penal:

«Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição;
b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48°, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência;
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;
d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade;
e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n° 2 do artigo 32.°;
f) O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.»

Da simples leitura deste normativo logo se extrai que a notificação da acusação a um arguido nos moldes alegados pelo recorrente não integraria qualquer uma das nulidades ali expressamente previstas, mormente a da alínea c) (3).
É certo que o art. 119º, alínea c) do CPP comina de nulidade insanável «a ausência do arguido ou do seu defensor nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência».
Todavia, conforme se afirma no acórdão da RP de 11-04-2018 (4), «diversamente do que ocorre, por exemplo, nos casos em que a audiência de julgamento figura como uma das situações em que é obrigatória a comparência do arguido (cfr. 332º nº 1 e 64º nº 3 a), ambos do CPP), já no que respeita ao acto de notificação da acusação o mesmo, para ser válido, não exige a presença ou comparência do arguido. Dito de outra forma: a validade do acto de notificação da acusação não depende da, nem pressupõe, a presença do arguido».

Efectivamente, não se tratando de uma situação similar a qualquer outra que exija a comparência do arguido, partilhamos inteiramente do entendimento expedido no citado acórdão:

«A propósito desta questão e, ainda antes da revisão do Código de Processo Penal de 1998, pronunciou-se, além do mais, o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 17 de Janeiro de 1995 (in CJ, ano XX, tomo I, pág. 155 e 156), no sentido de que a falta de notificação da acusação ao arguido não constitui uma nulidade, mas uma mera irregularidade, com argumentos que, pela relevância, merecem, ainda hoje, a sua transcrição: «O Supremo Tribunal de Justiça já havia claramente assumido que (…) “é manifesto que a falta de notificação da acusação para constituir nulidade insanável deveria ser designada como tal por disposição expressa (cf. artigo 119º, do C.P.P), já que neste preceito, designadamente, na sua alínea d) o que é dado como nulo é a falta de inquérito, ou da instrução, nos casos em que a lei determina a sua obrigatoriedade, sendo que não se alega que o inquérito não tivesse sido realizado e a instrução é facultativa, como resulta do artigo 286º, n º2, do Código de Processo Penal”. (Ac. de 05/06/91, C.J., Tomo III, 26).
É que “a violação ou inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”. E, “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular” (Art. 118º, nºs 1 e 2).
Ora, as “nulidades insanáveis” são as que taxativamente estão indicadas no artigo 119º, do Código de Processo Penal.
Aquele juízo é, pois, incontornável: a omissão de notificação, para ser integrada na categoria das nulidades insanáveis, sempre teria que ser assimilável a “falta de instrução” imposta por lei (o que não é compatível, desde logo, com o elemento literal daquela disposição).
As coisas só assim não seriam se se entendesse que a preclusão do direito à fase da “instrução” que é consequência natural daquele entendimento – punha em causa as “garantias do processo criminal”, consagradas no artigo 32º, da Constituição da República.
Há que ponderar, na verdade, que “a existência de uma fase de instrução subordinada ao princípio do contraditório é, decerto, uma garantia de defesa, na medida em que permite ao arguido, ainda antes do julgamento, corrigir, questionar e até contrariar a prova indiciária que fundamentou a acusação, e evitar assim que haja de ser sujeito a um julgamento por factos que não praticou. Ora, segundo o nº1, do artigo 32º, da Lei Fundamental, o processo penal tem de assegurar todas as garantias de defesa.
Todavia, esta disposição constitucional, como tantas outras em matéria processual penal, tem de ser interpretada à luz do princípio da proporcionalidade. Assim, quando se fala em “garantias de defesa” há-de se entender as garantias necessárias e adequadas a um eficaz exercício do direito de defesa (…) (Ac. T. C de 02/04/92).
Por outro lado, “a Constituição não estabelece qualquer direito aos cidadãos a não serem submetidos a julgamento sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação de existência de razões que indiciem a sua presumível condenação, pelo que o simples factos de se ser submetido a julgamento não pode constituir, só por si, no nosso ordenamento jurídico, um atentado de bom nome e reputação” (Ac. T. C, de 28/06/94).
Esta posição do Tribunal Constitucional – expostas, embora, para situações diferentes – inculcam que a solução antes encontrada é conforme a Constituição.
E assim – afastada a aplicação, ao caso dos autos, do regime de nulidades insanáveis – reverte-se à categoria das nulidades e irregularidades, “dependentes de arguição” - artigo 120º e seguintes do C.P.Penal»
No mesmo sentido, e após a revisão do Código de Processo Penal de 1998, pronunciou-se, entre outros, o Acórdão da RP de 31/1/2007 (5) «A falta de notificação da acusação ao arguido constitui mera irregularidade, a ser tratada nos termos do nº 1 do artº 123º do CPP».
Assim, improcede o recurso neste conspecto.

2. A suspensão da execução da pena.

O arguido também não se conforma com a não suspensão da execução da pena única de prisão que lhe foi aplicada, alegando, em suma, que o prazo já decorrido desde a data da prática dos factos, as suas condições pessoais e o esforço que entretanto empreendeu para fazer uma mudança de vida são factores que reclamam a adopção de tal medida. O que nos remete para a averiguação sobre se o sentido pedagógico e ressocializador ínsito ao direito penal se atinge com a substituição da pena imposta pelo mesmo defendida.
Não está, pois, em causa a opção pela aplicação de penas principais de prisão, perante as penas abstractas compósitas alternativas de alguns dos ilícitos praticados, nem tão pouco a determinação da sua medida.
O arguido foi condenado como autor de um crime de furto simples, cada um de dois crimes de furto qualificado e um crime de dano nas penas de dez meses, doze meses, três anos e seis meses e oito meses de prisão, respectivamente, e, em cúmulo jurídico dessas penas parcelares, na pena única de quatro anos e seis meses de prisão.

Conforme impõe o art. 50º do CP, a questão da suspensão (ou não) dessa pena, dado que aplicada em medida não superior a cinco anos, tem que ser obrigatoriamente abordada, importando averiguar se a prognose de ressocialização é favorável: a execução da pena de prisão aplicada deve ser suspensa se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste o tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Considerando essa norma a possibilidade de suspensão de execução da pena impõe-se averiguar se é possível, ou não, fazer um prognóstico favorável. A prognose de ressocialização tem por parâmetros a ideia de que, por um lado, a reclusão constitui a última ratio da política criminal, mas, por outro, a de que a comunidade persegue a garantia, a protecção e a promoção dos direitos das pessoas, sem o sentido de missão socializadora através de métodos de coacção próprios do controlo social.
O que, tudo conjugado, significa que apenas deve negar-se a possibilidade de suspensão se os factos provados justificarem sérias dúvidas sobre a capacidade de o condenado compreender a oportunidade de reinserção que a sociedade lhe oferece, ou seja, se o juiz não estiver convicto desse prognóstico (favorável) (6).
Como se vê do exposto, a pena de prisão apenas se justifica nos casos em que é de todo inviável a sua substituição por uma pena não detentiva. Por isso, a regra da substituição da prisão só deve ser arredada se se puder asseverar que a personalidade do arguido contra-indica a suspensão e que os factos e demais elementos fornecidos pelos autos apontam para que o seu envolvimento no presente processo tenha tido, realmente, repercussões negativas nas suas interacções sociais e, por isso, não permitem fundear o vaticínio de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição nem fundam a esperança no êxito do processo de reinserção social do arguido em liberdade.

No caso em apreço, conforme decorre do texto da decisão recorrida, o Tribunal, como se lhe impunha, conheceu da questão da escolha da pena, que fundamentou com o entendimento explícito de que a substituição da pena de prisão não satisfaria as exigências de prevenção geral e especial, tendo asseverado: «no caso do arguido R. A., os elementos de que o Tribunal dispõe não viabilizam a formulação de um juízo de prognose favorável, por forma a que possa concluir que a ameaça da aplicação de pena privativa da liberdade seria suficiente para o afastar da prática de novos ilícitos. O arguido ostenta um passado criminal marcado por várias condenações, designadamente crimes de condução ilegal, roubo, furto, extorsão e detenção ilegal de arma. Por outro lado, conforme resulta do relatório social, o arguido não beneficia de inserção social, não lhe é conhecida atividade profissional, sendo antes associado a comportamentos delinquentes. Pelo que cumpre concluir que ao arguido deverá ser aplicada uma pena efetiva de prisão».
O Ministério Público, na resposta ao recurso, também perfilha o mesmo entendimento, justificando a sua posição pelo facto de, a despeito de o arguido já ter sido condenado em penas de multa, em penas de prisão substituídas por multa e em penas de prisão suspensas na sua execução, tais condenações não terem logrado afastá-lo da criminalidade e apelando, ainda, ao que vem sendo decidido pela nossa jurisprudência quando afirma que a suspensão da pena é uma medida penal de conteúdo pedagógico e reeducativo que pressupõe uma relação de confiança entre o tribunal e o arguido, que tem por base um juízo de prognose social favorável ao condenado (7), assente no risco prudencial entre a reinserção e a protecção dos bens jurídicos violados, que advenha da reflexão sobre a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta ante et post crimen e sobre todo o circunstancialismo envolvente da infracção.
Mostram-se inteiramente válidas as considerações expendidas pelo Ministério Público, tanto nessa vertente, bem como quando propõe a não ponderação dos factos invocados pelo recorrente nos subsequentes 71 pontos, por não constarem da matéria factual tida por assente na decisão recorrida.

Realmente, reportando-nos estritamente aos factos contemplados na decisão recorrida, não podemos deixar de concordar com a não suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado: para além de não se poder abstrair da gravidade da conduta do arguido nem, sobretudo, da ponderosa circunstância de o mesmo, a par de outros relevantes antecedentes criminais, ter sido já anteriormente condenado em penas de prisão suspensas na sua execução – o que revela ou impõe, necessariamente, a ilação de que as várias sanções que lhe foram aplicadas não surtiram o almejado efeito dissuasor –, o certo é que ele se alheou por completo dos vários inquéritos que contra si pendiam e que deram origem a esta condenação, tudo fazendo para retardar o seu andamento, atitude que a defesa apresentada no recurso igualmente reflecte.

Em suma, os elementos fornecidos pelos autos não viabilizam a formulação de um prognóstico sobre o comportamento futuro do arguido favorável à sua ressocialização em liberdade, ou seja, não permitem fundear a esperança de que o mesmo será capaz de se autodeterminar em função dos valores ético jurídicos que violou através da mera censura do facto e da ameaça da prisão e de que estas, por isso, realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição
Como tal, não pode a pena de prisão ser suspensa na sua execução.

Decisão:

Pelo exposto acordam os juízes desta Relação em julgar o recurso improcedente e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC´s.

Guimarães, 28/10/2019

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado
1 Acórdão do STJ de 10-10-2007, proc. 07P2301, relatado por Henriques Gaspar.
2 Neste sentido, cfr. o acórdão do TRE, de 14,04.2009, in CJ XXXI, tomo II. pag. 294
3 Em sentido contrário, o acórdão desta Relação de 18-09-2006, proc. 1055/06-1.
4 Proc. nº 96/17.6SGPRT.P1.
5 Proc. 0417372 e acórdão da RL de 25-07-2018, proc. 123/16.4PGOER.L1-3.
6 Como realça F. Dias (Direito Penal Português, as consequências jurídicas do crime, p. 344), o que está em causa não é qualquer certeza, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, devendo o tribunal estar disposto a correr um certo risco fundado e calculado – sobre a manutenção do agente em liberdade. Só havendo sérias razões para duvidar da capacidade do arguido de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, é que o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada.
Também entendeu o Acórdão da Relação do Porto de 25/10/2006 (proferido no P nº 623/05.1PBMTS), «impõe-se averiguar se é possível, ou não, fazer um prognóstico favorável. Só o prognóstico favorável permite a suspensão da execução da pena de prisão. Não estando quanto a ele convicto o julgador falhará uma exigência legal devendo negar-se a possibilidade de suspensão. Esse é o caso das situações de non liquet.».
7 Acórdão do STJ de 9/1/2002 - Recurso n.º 3026/01-3.ª