Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
244/22.4T8VCT.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: CONTRATO DE DEPÓSITO
ENTREGA DE BRINCOS EM OURIVESARIA
RESTITUIÇÃO
INCUMPRIMENTO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DA AUTORA PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A entrega de um par de brincos para reparação num estabelecimento de ourivesaria, que sem justificação não são restituídos, consubstancia juridicamente um contrato de depósito (art. 1185.º do Código Civil), contrato pelo qual uma parte (depositante) entregou à oura (depositário) os brincos (bem móvel) para que os guardasse e restituísse no tempo próprio – com a finalidade convencionada da sua reparação.
II - Tal reparação, se viesse a concretizar-se, traduziria – então, sim – um contrato de empreitada (art. 1207.º do Código Civil), reportando-se a realização da obra à reparação dos brincos.
III - Porém, como a reparação não veio a ocorrer, não chegou a tomar corpo contratual a perspetivada empreitada, restringindo-se a relação estabelecida entre as partes ao contrato de depósito.
IV - Neste tipo de contrato, está em causa a natureza infungível do objeto, sendo um dos traços característicos do contrato de depósito o da obrigação de restituição da coisa recebida em depósito quando exigida pelo depositante.
V - Não o fazendo, presume-se culposo o seu incumprimento (art. 799.º, do Código Civil), incorrendo o depositário na obrigação de indemnizar o depositante.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

AA, veio instaurar a presente ação comum contra BB e CC, pedindo a condenação dos Réus a devolver-lhe um par de brincos em ouro, ou, na sua impossibilidade, a pagar-lhe a quantia de 13.000,00€ a título de indemnização, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
*
Para tanto, no essencial, alegou ter colocado um par de brincos em ouro amarelo no estabelecimento do Réu “EMP01...”, em 12-09-2016, para serem reparados, tendo sido atendida pela Ré. Por várias vezes se deslocou ao estabelecimento para saber dos brincos, continuando por fazer a reparação. O estabelecimento foi trespassado. A Autora por diversas vezes interpelou os Réus para reaver os brincos, tendo-lhe sempre sido dito que os brincos ainda não estavam prontos. A partir de 14 de Fevereiro de 2019 os Réus nunca mais atenderam as chamadas telefónicas da Autora. Nesta data a Autora continua privada da posse dos seus brincos, o que lhe causou e causa enorme desgosto. Adquiriu-os como sendo uma peça rara e chegou a receber propostas de compra pelo valor de € 10.000,00, sempre recusadas pela Autora.
*
O Réu apresentou contestação, defendeu-se por exceção, invocando a sua falta de legitimidade e a caducidade do direito da Autora. Impugnou a factualidade alegada, dizendo que desde o início do ano de 2016 deixou de ter qualquer ligação com o estabelecimento comercial, o qual passou a ser explorado exclusivamente pela Ré. O Réu não conhece a Autora e não lhe foram entregues quaisquer brincos.
*
A Ré foi citada editalmente.
*
A final foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente.
*
Inconformada com a sentença, a autora interpôs recurso, finalizando com as seguintes conclusões (transcrição):

1. A Recorrente não concorda com o posicionamento adotado pelo Ilustre Tribunal relativamente aos factos dados como provados e não provados e a consequente improcedência dos pedidos, pelo que o presente recurso versa sobre matéria de facto e de direito e a sua respectiva apreciação.
2. Pelos motivos alegados supra em B), que aqui se dão por integralmente reproduzidos e pelas conclusões que se retiram dos depoimentos das testemunhas ali transcritos, o Tribunal deveria ter dado como provado os pontos 1, 2, 4, 5, 7, 8, 9, 15, 16, 17 e 18 dos factos não provados.
3. É contraditória a posição adoptada pelo Tribunal a quo: se, por um lado, afasta a força probatória do talão do conserto que foi entregue à recorrente, aquando da entrega dos brincos no estabelecimento de ourivesaria, para dar como não provado o facto de o Recorrido BB ser proprietário do estabelecimento; por outro, utiliza o mesmo documento para dar como provado que foi entregue à Autora um talão de conserto nº ...48, no qual estavam descritos o produto entregue e o seu peso – 1 par de brincos O.A 30 y11,6”.
4. Não se pode afastar a força probatória do documento única e exclusivamente com base na sua impugnação, devendo-se conjugar o mesmo com as demais provas carreadas aos autos.
5. Resulta do talão junto aos autos, datado de 12.09.2016, que o estabelecimento comercial aberto ao público ainda utilizava o nome “EMP01...”, associado ao número de contribuinte “...86”, pertencente ao Réu BB.
6. No caso concreto, é essencial toda a factualidade apurada no processo de inquérito que correu termos sob o número 193/19...., no Ministério Público – Procuradoria da República da Comarca de Viana do Castelo, DIAP, ... Secção de ..., do qual resultou que a Recorrida CC declarou que em 12.09.2016 trabalhava e era responsável pela EMP01... e que o Recorrido BB era na altura o seu proprietário.
7. Assim como resultou que a Recorrida CC foi confrontada com o mesmo talão de conserto, tendo a mesma confirmado a sua veracidade e reconhecido a sua letra.
8. Mais acresce que, tal documento foi reconhecido pela testemunha DD, actual dono do estabelecimento comercial.
9. E da conjugação do facto de o talão ter sido anteriormente reconhecido pela Recorrida CC com o depoimento da testemunha EE, contabilista de profissão, pode concluir-se que o estabelecimento comercial EMP01..., em 12.09.2016, laborava com o número de contribuinte do Recorrido BB, que era empresário em nome individual, e dono do estabelecimento comercial.
10. O artigo 567º, nº 1 do Código de Processo Civil estabelece que “se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor”.
11. A recorrida CC ao não contestar a presente acção aceitou que “no estabelecimento a Autora foi atendida pela Ré CC, que se apresentava como dona do referido estabelecimento e que recebeu da Autora os referidos brincos em ouro, com vista à reparação solicitada”.
12. O que é reforçado pelas suas declarações, prestadas em sede do inquérito supra mencionado, no qual afirmou que “no dia 12.09.2016 trabalhava e era responsável pela ourivesaria supra identificada” e que “na altura, o seu proprietário era BB.”
13. Da conjugação de tais declarações, bem como do talão junto aos autos, a única conclusão que se pode retirar é que o Recorrido BB se mantinha formalmente ligado ao estabelecimento comercial - que ainda utilizava o seu nome e seu número de identificação fiscal no exercício daquela actividade -, e que a Recorrida CC se mantinha no atendimento da clientela, apresentando-se também como dona, sendo por isso, ambos responsáveis pela gestão e laboração do estabelecimento.
14. Conclusão que é reforçada pelo facto de os Réus, apesar do divórcio “no papel”, continuarem a manter a sua relação nos mesmos moldes com que o faziam quando ainda eram casados, continuando a transparecer socialmente que ainda eram um casal, apesar do divórcio decretado em 2012; e que trabalhavam juntos e passando a imagem de que ambos eram donos do estabelecimento comercial.
15. Igualmente porque a Ré não contestou, deve ter-se por confessado que quando recebeu os brincos “comprometeu-se a contactar com a Autora através do número de telemóvel que, no momento, lhe solicitou, para a avisar quando os brincos estivessem consertados e aquela os pudesse levantar” e “a Autora aguardou pelo referido contacto, mas o certo é que o mesmo nunca veio a acontecer”.
16. Resulta de todos os elementos carreados aos autos, nomeadamente dos depoimentos prestados no processo crime, bem como dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento das testemunhas FF e DD, que
- Em data não concretamente apurada, os Réus trespassaram o estabelecimento de ourivesaria à empresa EMP02..., com sede em ..., na cidade ...”
- E “mais tarde, em 2018, a sócia-gerente da referida empresa FF, GG, cedeu as respectivas quotas a DD”.
Devendo esta ter sido a redação dada aos pontos 7 e 8 dos factos não provados.
17. Atenta a revelia da Ré e consequente confissão dos factos alegados pela Autora, o ponto 9 dos factos não provados deveria ter sido dado como provado com a seguinte redacção:
Sucede que a Autora, por diversas vezes, interpelou a R. CC no sentido de reaver as suas peças em ouro, ao que esta sempre respondia que os brincos ainda não estavam prontos, tendo esta criado sempre a expectativa de que os mesmos lhe seriam devolvidos devidamente reparados.
18. O Tribunal ao considerar não provado que “A tomada de consciência que jamais conseguirá reaver os brincos causou-lhe enorme desgosto, angústia e tristeza”. (Ponto 15 dos factos não provados), entra em contradição com os pontos 11 e 12 dos factos provados, pois considerou como provados – e bem - que “nesta data, a Autora ainda se encontra privada da posse dos seus brincos”, “privação esta que causa desgosto à Autora”.
Pelo que, o Ponto 15 dos factos não provados deve ser considerado como facto provado.
19. Apesar de a dissolução do casamento dos Recorridos BB e CC ter ocorrido em 23.10.2012, resulta dos depoimentos de diversas testemunhas, designadamente do da testemunha EE, amigo do casal, que “Os Réus nunca deixaram de se apresentar como marido e mulher”, “Tomavam refeições juntos, iam a festas e a eventos juntos, mantendo exactamente o mesmo estilo e vida como quando eram casados” e “perante amigos, familiares, conhecidos e clientes continuavam a ser marido e mulher” – devendo, por isso, os pontos 16, 17 e 18 dos factos não provados serem dados como provados.
20. A alteração da matéria de facto anteriormente pugnada implica, necessariamente, a alteração da decisão relativamente à matéria de direito.
21. O Tribunal a quo deu como ponto assente que “da conjugação de todos os documentos apenas se pode concluir com a necessária segurança que a Autora entregou os brincos no estabelecimento EMP01... e que, até à presente data, se encontra privada da posse dos mesmos, desconhecendo-se o que aconteceu aos objectos em causa”, pelo que são dois os pontos a reter: a entrega dos brincos e a privação da posse, ou seja, a contratação e o prejuízo, respectivamente.
22. De forma contraditória, afirma que “resulta que cabia à Autora demonstrar que os Réus não lhe devolveram os brincos, assim como lhe cabia alegar e demonstrar a factualidade alegada e com base na qual lhes imputou a responsabilidade na devolução dos mesmos e, ainda, quais os concretos prejuízos sofridos em consequência de tal conduta, ónus que não satisfez”.
23. Ao entregar os brincos no estabelecimento EMP01..., estava a Recorrente a celebrar um contrato de prestação de serviços, no qual os seus responsáveis – no caso, os recorridos -, se obrigavam a reparar e a devolver os brincos à Recorrente, mediante o pagamento do serviço.
24. Os recorridos não podem beneficiar da possibilidade de empurrar a responsabilidade de um para o outro e vice-versa, porque, na sua esfera pessoal a sua vida enquanto casal se alterou, e, desse modo, a Autora ficar seriamente prejudicada – o que, salvo o devido respeito, é o que o Tribunal a quo está manifestamente a permitir.
25. Não cabe à Recorrente provar a culpa dos Recorridos, uma vez que na responsabilidade civil contratual a culpa é presumida, recaindo sobre os Recorridos o ónus de demonstrar factos que a afastem – o que não se verificou nos presentes autos.
26. Ainda que, o Tribunal a quo considere que a Recorrente não fez prova dos concretos prejuízos sofridos em consequência da conduta dos Recorridos - o certo é que ao dar como certo que a Recorrente se encontra privada dos brincos, está o prejuízo verificado.
27. Podendo com isso, o Tribunal lançar mão do estipulado no artigo 609º, nº 2 do CPC, que prevê que “se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida” - neste sentido o Acórdão do STJ, de 19.08.2018 – Proc. nº 4174/16.0T8LRS.L1.S1.
28. Estão, pois, preenchidos os requisitos para a liquidação em execução de sentença: os Recorridos efectivamente causaram danos à Recorrente ao não entregar os brincos, ainda que a Recorrente não tenha conseguido apurar, em concreto, o montante do dano.
29. Estão, pois, preenchidos todos os requisitos da responsabilidade civil contratual pelos motivos elencados supra a este título nas páginas 27 e 28 e que se dão por integralmente reproduzidos.
30. Cabia ao Tribunal recorrido tutelar a confiança que a Recorrente depositou no estabelecimento dos Réus e dar primazia à materialidade subjacente ao contrato de prestação de serviços que foi celebrado entre recorrente e recorridos.
31. António Menezes Cordeiro em “A Boa-fé nos finais do século XX”, refere que “procurando sob a diversidade dos institutos que se reclamam de boa fé, localizar grandes parâmetros ou princípios comuns, encontramos dois: o da tutela da confiança e do primazia da materialidade subjacente.
A tutela da confiança, na base de exigências éticas e sociais elementares, leva a dispensar uma certa protecção à pessoa, que, mercê de outra, seja levada a acreditar na manutenção dum certo estado de coisas. Exige-se tendencialmente, que a crença seja legítima, que, na sua base, o confiante tenha dispendido energias materiais e /ou pessoais e que tudo seja imputável a quem, depois, deva respeitar a situação criada.
A primazia da materialidade subjacente recorda que o Direito não se limita a actuações rituais: ele pretende, de facto, a prossecução de determinados valores materiais, que estão subjacentes às diversas normas. Assim, serão contrárias à boa fé as actuações que apenas respeitem à exterioridade formal do Direito, desprezando os seus valores mais profundos (negrito e sublinhado nosso).
No fundo, poderemos reconduzir a tutela da confiança à exigência da igualdade: a pessoa que se encontre imersa numa crença legítima e justificada não pode ser tratada como se tal não sucedesse, sob pena de se tratar, por igual, o que é diferente. (negrito e sublinhado nosso). Por seu turno, a primazia da materialidade subjacente permite fazer apelo a diversos princípios sistemáticos, que exigem a harmonia no funcionamento do ordenamento.
Estaremos assim, em condições de concluir que, pela boa-fé se torna viável introduzir, em cada decisão jurídica concreta, a possibilidade e a necessidade de, independentemente de mais concretas proposições, respeitar os dados básicos do sistema.” (negrito e sublinhado nosso).
32. A decisão recorrida defende a impunidade pelos danos causados, uma vez que reconhece que a Recorrente celebrou um contrato de prestação de serviços e que se encontra privada da posse dos seus brincos, mas ao mesmo tempo não imputa aos Recorridos enquanto donos do estabelecimento comercial qualquer responsabilidade, afastando por completo qualquer possibilidade de a Recorrente conseguir ver o seu prejuízo compensado – o que, salvo o devido respeito, não se aceita.

Pugna a recorrente pela revogação da sentença recorrida que deve ser substituída por outra que julgue a ação procedente e determine que os prejuízos causados à Autora sejam a liquidar em execução e sentença.
*
O recorrido BB apresentou contra-alegações defendendo a improcedência do recurso e a manutenção do decidido.
*
Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir.
*
II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

São as seguintes as questões jurídicas a apreciar:
- A impugnação da decisão da matéria de facto;
- O mérito da sentença.
*
III- FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
3.1.1. Factos Provados

Foram dados como assentes na primeira instância os seguintes factos:
1- Existia um estabelecimento comercial denominado “EMP01...”, situado na Rua ..., na cidade ... e que se dedicava, de forma habitual e com fins lucrativos, à atividade de comércio de joias, bem como a reparação de peças em ouro, prata e relógios;
2- A Autora com o objetivo de reparar um par de brincos em ouro amarelo, no formato de folha, - sua propriedade - que tinha uma pedra partida, dirigiu-se ao referido estabelecimento comercial, no dia 12 de Setembro de 2016, acompanhada da sua sobrinha HH;
3- No estabelecimento, a Autora foi atendida pela Ré CC, que recebeu da Autora os referidos brincos em ouro, com vista à reparação solicitada;
4- A Ré CC entregou à Autora um talão de conserto, com o número ...48, no qual estavam descritos o produto entregue e o seu peso: “1 par de brincos o.A y11,6.” – fls. 11 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
5- A Autora deslocou-se ao referido estabelecimento comercial para saber dos seus brincos, em datas não concretamente apuradas;
6- Sempre que a Autora se deslocava ao estabelecimento quem a atendia era a Ré;
7- A partir de data não concretamente apurada do ano de 2018, a Autora passou a ser atendida por DD;
8- Perante o pedido da Autora da entrega dos brincos que ali tinham sido entregues para conserto, o referido DD informou-a que outros clientes também reclamavam que a Ré não havia procedido à devolução de peças entregues para reparação;
9- A Autora apresentou queixa contra a aqui Ré CC e a queixa deu origem ao processo de inquérito nº 193/19....;
10- Foi proferido despacho final de arquivamento, nos termos constantes de fls. 12 a 14 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
11- Nesta data, a Autora ainda se encontra privada da posse dos seus brincos;
12- Privação essa que causa desgosto à Autora;
13- BB e CC casaram civilmente no dia 3 de Março de 2000;
14- O casamento foi dissolvido por divórcio, por decisão de ../../2012, transitada em julgado, proferida na Conservatória do Registo Civil ...;
15- A partir de data não concretamente apurada após o ano de 2015, o Réu BB foi viver para ....
*
3.1.2. Factos Não Provados

Ao invés, foram dados como não provados os seguintes factos:

1-O Réu BB era legítimo dono e possuidor do estabelecimento comercial “EMP01...”.
2- Os brincos foram feitos à mão.
3- A Ré apresentava-se como dona do referido estabelecimento.
4- De seguida aquela CC comprometeu-se a contactar com a Autora, através do número de telemóvel que, no momento, lhe solicitou, para a avisar quando os brincos estivessem consertados e aquela os pudesse levantar.
5- A Autora aguardou pelo referido contacto, mas o certo é que o mesmo nunca veio a acontecer.
6- Quando a Autora se deslocava ao estabelecimento tanto a Ré, como o Réu, dependendo de quem estava no atendimento, lhe respondiam que “o conserto era muito difícil” “que eram uns brincos fora do comum” e que por esse motivo “o conserto estava atrasado”.
7- Sucede que a partir de Julho do ano de 2017, a Autora, os Réus trespassaram o estabelecimento de ourivesaria à empresa EMP02..., com sede em ..., na cidade ....
8- E mais tarde, mais concretamente em Julho de 2018, a sócia gerente da referida empresa EMP02..., GG, cedeu as respectivas quotas a DD.
9- Sucede que a Autora, por diversas vezes, interpelou os Réus no sentido de reaver as suas peças em ouro, ao que estes sempre responderam que os brincos ainda não estavam prontos, tendo esta criado sempre a expectativa de que os mesmos lhe seriam devolvidos devidamente reparados.
10- Contudo, a partir de 14.02.2019, os Réus nunca mais atenderam as chamadas telefónicas da Autora, tão-pouco entraram em contacto com ela para a informarem sobre o paradeiro das joias.
11- Na verdade, eram a sua joia preferida sempre que tinha eventos festivos, como casamentos, baptizados e outros.
12- Adquiriu-os como sendo peça rara, pois em todo o território nacional português só havia um outro par igual.
13- Tratava-se de um par de brincos com design único, diferente e ímpar.
14- Dadas essas características singulares, chegou a receber propostas de compra pelo valor de 10.000,00€ (dez mil euros), o que a Autora sempre recusou.
15- A tomada de consciência que jamais conseguirá reaver os brincos causou-lhe enorme desgosto, angústia e tristeza.
16- Os Réus nunca deixaram de se apresentar como marido e mulher.
17- Tomavam refeições juntos, iam a festas e a eventos juntos, mantendo exactamente o mesmo estilo e vida como quando eram casados.
18- Perante amigos, familiares, conhecidos e clientes continuavam a ser marido e mulher.
*
3.2. O Direito
3.2.1. Da impugnação da matéria de facto

Existem requisitos específicos para a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, os quais, se não observados conduzem à sua rejeição.

Assim, o artigo 640º, CPC impõe ao recorrente o ónus de:
a) especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Impõe-se que nas conclusões o recorrente indique concretamente os pontos da matéria de facto que impugna e o que entende que deve ser assente, apresentando a sua pretensão de forma inequívoca, de forma a que se possa, com clareza, separar a mera exposição da sua apreciação sobre a prova da reivindicação da alteração da matéria de facto, e saber claramente em que sentido pretende que a matéria de facto provada seja alterada.

No caso, considera a recorrente que deveriam ser dados como provados os factos 1, 2, 4, 5, 7, 8, 9, 15, 16, 17 e 18 dos factos não provados.
Defende que da prova produzida resultou a responsabilidade dos réus pela não devolução dos brincos, pois que se assumiam como marido e mulher, trabalhavam juntos e passavam a imagem de que ambos eram donos do estabelecimento comercial.
Podemos desde já avançar que, em grande parte, assiste razão à impugnante.
A autora dirigiu-se a um estabelecimento comercial, ourivesaria, aberto ao publico, tendo sido atendida pela ré que lhe entregou um talão comprovativo do recebimento dos brincos para reparação, constando do referido talão o nome “EMP01..., BB.”, associado ao número de contribuinte “...86”, pertencente ao Réu BB.
Resultou cabalmente da prova produzida que, à data, o estabelecimento comercial era explorado pelos os réus, pertencendo o mesmo formalmente ao réu (“EMP01..., BB”) estando a ré, por sua vez, no atendimento ao balcão.
Os réus foram casados e após o divórcio, mantiveram-se a explorar o estabelecimento nos termos em que antes o faziam.
Dúvidas não restam que os brincos foram entregues no estabelecimento, tendo sido recebidos pela ré que entregou à autora um talão de conserto, documento especifico do estabelecimento onde constava a denominação do estabelecimento, e foi pela ré preenchido quanto à quantidade, designação e características do artigo entregue e aposto o contacto da cliente (autora).
Resultou claro que o estabelecimento que gira sob a denominação EMP01..., é uma ourivesaria, aberta ao público, atuando os réus perante o público em geral e os clientes em particular, como os responsáveis pela exploração comercial do mesmo.
A questão que, todavia, se coloca é se tal quadro factual é bastante para dar como demonstradas a titularidade do estabelecimento e a consequente responsabilidade dos réus perante os clientes da ourivesaria.
A multiplicidade de situações em que ocorre uma dificuldade de prova direta dos factos constitutivos de um direito, remete o julgador quase inevitavelmente para o recurso a técnicas de facilitação probatória, ou seja, técnicas que alteram, em benefício daquele que está sujeito ao ónus da prova, a forma de valorar esta.
A mais conhecida e utilizada dessas técnicas é, sem dúvida, a presunção judicial que se funda em regras práticas da experiência, nos ensinamentos retirados da observação empírica dos factos, que representa processos mentais de dedução (baseada em juízos de probabilidade) do julgador[1].
Como decorre do art. 349.º do Código Civil, as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
A presunção judicial é um meio de prova que se insere no âmbito da prova indireta.
A presunção judicial está sujeita à livre apreciação e a sua força persuasiva pode ser afastada por simples contraprova, critério que a distingue da presunção legal, cuja ilisão depende da prova em contrário (art. 350º, nº 2, do Código Civil).
Ora, a contraprova não é a prova do contrário, pois com ela apenas se cria a dúvida ou a incerteza acerca da verdade dos factos, devendo, em tais circunstâncias, o tribunal decidir contra a parte onerada com a prova[2].
É assim que o art. 346.º, do Código Civil prescreve que à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.
No acórdão desta Relação de 12.03.2020[3], referem-se outras técnicas de facilitação probatória, para além do recurso às presunções judiciais.
Destaca-se no aresto, a prova da primeira aparência, definindo-a como um mecanismo de aligeiramento do ónus probatório que extrai de elementos que apresentam uma força de convencimento inferior ao da prova direta de um facto, um valor cognoscitivo semelhante ao desta porque, provados aqueles elementos, aceita-se em primeira aparência demonstrado o facto controvertido.
Com apoio em doutrina avalizada escreve-se que:
«O ponto de partida da prova prima facie, mais do que no facto conhecido, como sucede na presunção, reside na máxima da experiência em si. O facto fixa-se (provisoriamente e, sucumbindo a prova a que nos referiremos de seguida – de infirmação do juízo de probabilidade –, de forma definitiva) com uma prova que se contenta com a probabilidade.” (Luís Pires de Sousa, in Prova por Presunção, pág. 74).
A contraparte poderá, no entanto, destruir este esboço de imagem de realidade construído num primeiro momento, se provar a verificação de factos que tornem inverosímil aquele raciocínio lógico-conclusivo, pondo a nu o incumprimento do ónus que, a todo o momento, recaiu sobre o demandante”, pelo que o referido instrumento atua, também ele, ao nível da valoração da prova e não da distribuição do ónus probatório (cfr. Rute Teixeira Pedro, obra e local citados).
A prova prima facie não é, pois, tal como o não são as presunções judiciais, um mecanismo da inversão do ónus da prova, não dispensa o demandante da atividade probatória, não faz recair sobre o demandado a prova do contrário, exigindo apenas, para o seu afastamento, a produção de contraprova. (…)
Em suma, a prova de primeira aparência só baixa o grau de prova normalmente exigido para a prova de um facto.
Assim, “logo que a parte contrária efetue a contraprova pertinente, renasce o ónus da prova pleno a cargo do autor” (Luís Pires, obra citada, pág. 76).»
Em face do que se expõe, concordamos que o cliente comum, mero consumidor, ao dirigir-se a um estabelecimento contactando com alguém que se apresenta e comporta como dono do mesmo, se convença desse facto.
Ademais, a autora forneceu ao tribunal elementos probatórios coadjuvantes que permitem formular um juízo de verosimilhança relativamente a esse facto.
Além do documento que juntou – talão de conserto -, o qual foi reconhecido pela ré CC quando ouvida no processo crime, também o depoimento da testemunha EE, contabilista, que confirmou que o estabelecimento comercial EMP01..., em 12.09.2016, laborava com o número de contribuinte de BB, que era empresário em nome individual, e dono do estabelecimento comercial.
A questão consiste agora em saber se à prova produzida pela autora, os réus opuseram contraprova bastante para tornar duvidosos os factos que incumbia à autora demonstrar.
Ressalvado o devido respeito, a impugnação genérica do documento feita pelo réu, mostra-se inconsequente e infundada, para mais quando o mesmo não nega, que à data, o estabelecimento lhe pertencia. E a contraprova do que se vem de enunciar estava facilmente ao seu alcance. Bem analisada a defesa do réu, este limitou-se a direcionar a responsabilidade para ré CC, sua ex-mulher, e a dizer que nenhuma ligação mantinha, à data, com o estabelecimento (ficando por explicar a razão porque os documentos mantêm o seu nome) que era explorado unicamente por aquela. Não basta. É, aliás, para fazer face a situações similares que se recorre na dogmática jurídica à figura da desconsideração da personalidade coletiva, por forma a combater situações abusivas de atuação que ponham em causa a boa fé negocial, pondo em risco a harmonia e credibilidade do sistema.
Não foram, assim, apuradas circunstâncias que levassem ao afastamento da prova de primeira aparência, pois que não logrou o réu infirmar o juízo de probabilidade bastante conseguido pela autora.
Resultou, pois, segura a vinculação do réu ao estabelecimento comercial, demonstrada através do recibo de conserto nº ...48, no qual constava o timbre com a designação comercial “EMP01...; o nome do seu responsável “BB” e o seu número de contribuinte, e confirmada pela ré CC e pelo contabilista EE.
Ou seja, reafirma-se, resultou claro e seguro que o estabelecimento que gira sob a denominação EMP01..., é uma ourivesaria, aberta ao público, atuando os réus perante o público em geral e os clientes em particular, como os responsáveis pela exploração comercial do mesmo.
Por outro lado, quer das declarações de parte, quer do depoimento da testemunha HH que no momento da entrega dos brincos acompanhava a autora, sua tia, e do depoimento de AA resultou que a ré CC ficou de contactar a autora, através do número de telemóvel que, no momento, lhe solicitou, para a avisar quando os brincos estivessem consertados e aquela os pudesse levantar. Tal não veio a suceder, tendo a autora se deslocado por diversas vezes ao estabelecimento para indagar do conserto, tendo-lhe sido referido pela ré que o conserto estava atrasado. A partir de determinada data deixou de conseguir ter contacto com a ré ou outro responsável, vindo a saber que o estabelecimento havia sido trespassado.
Assim, impõe-se considerar como provados os factos 1., 3., 4., 5., 6. e 9 (excluindo o réu).
Por outro lado, do depoimento das testemunhas GG e DD, resultou confirmado que os réus trespassaram o estabelecimento de ourivesaria à empresa EMP02..., com sede em ..., ... e mais tarde, GG, cedeu as respetivas quotas a DD.
Donde, com exceção das datas, os factos não provados 7. e 8. deverão considerar-se provados.
Quanto ao valor dos brincos, e suas características singulares não se fez prova idónea, pelo que se mantém como não provados os factos 12., 13. e 14. Todavia, que a sua privação e possibilidade de não lhe serem restituídos causou sofrimento e desgosto à autora, resultou do depoimento das testemunhas indicadas, suas familiares.
As relações pessoais dos réus, sobretudo após o seu divórcio, apesar de aflorado por algumas testemunhas não foi bastante para se considerar, com segurança, demonstrada a factualidade inserta no facto 17. que como tal deverá manter-se inalterado, tendo, no entanto ficado demonstrado que perante os clientes os réus continuavam a apresentar-se como marido e mulher.
Procede, assim, parcialmente a impugnação da decisão da matéria de facto.

Em face do exposto, procede-se à reformulação a matéria de facto da seguinte forma:

Factos Provados:

1- Existia um estabelecimento comercial denominado “EMP01...”, situado na Rua ..., na cidade ... e que se dedicava, de forma habitual e com fins lucrativos, à atividade de comércio de joias, bem como a reparação de peças em ouro, prata e relógios;
2- O Réu BB era legítimo dono e possuidor do estabelecimento comercial “EMP01...”.
3- A Ré apresentava-se também como dona do referido estabelecimento.
4- A Autora com o objetivo de reparar um par de brincos em ouro amarelo, no formato de folha, - sua propriedade - que tinha uma pedra partida, dirigiu-se ao referido estabelecimento comercial, no dia 12 de Setembro de 2016, acompanhada da sua sobrinha HH;
5- No estabelecimento, a Autora foi atendida pela Ré CC, que recebeu da Autora os referidos brincos em ouro, com vista à reparação solicitada;
6- A Ré CC entregou à Autora um talão de conserto, com o número ...48, no qual estavam descritos o produto entregue e o seu peso: “1 par de brincos o.A y11,6.” – fls. 11 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
7- De seguida aquela CC comprometeu-se a contactar com a Autora, através do número de telemóvel que, no momento, lhe solicitou, para a avisar quando os brincos estivessem consertados e aquela os pudesse levantar.
8- A Autora aguardou pelo referido contacto, mas o certo é que o mesmo nunca veio a acontecer.
9- A Autora deslocou-se ao referido estabelecimento comercial para saber dos seus brincos, em datas não concretamente apuradas;
10- Sempre que a Autora se deslocava ao estabelecimento quem a atendia era a Ré;
11- Os Réus trespassaram o estabelecimento de ourivesaria à empresa EMP02..., com sede em ..., na cidade ....
12- E mais tarde, a sócia gerente da referida empresa EMP02..., GG, cedeu as respectivas quotas a DD.
13- Sucede que a Autora, por diversas vezes, interpelou a Ré no sentido de reaver as suas peças em ouro, ao que esta sempre respondeu que os brincos ainda não estavam prontos, tendo esta criado sempre a expectativa de que os mesmos lhe seriam devolvidos devidamente reparados.
14- Contudo, a partir de 14.02.2019, os Réus nunca mais atenderam as chamadas telefónicas da Autora, tão-pouco entraram em contacto com ela para a informarem sobre o paradeiro das joias.
15- A partir de data não concretamente apurada do ano de 2018, a Autora passou a ser atendida por DD;
16- Perante o pedido da Autora da entrega dos brincos que ali tinham sido entregues para conserto, o referido DD informou-a que outros clientes também reclamavam que a Ré não havia procedido à devolução de peças entregues para reparação;
17- A Autora apresentou queixa contra a aqui Ré CC e a queixa deu origem ao processo de inquérito nº 193/19....;
18- Foi proferido despacho final de arquivamento, nos termos constantes de fls. 12 a 14 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
19- Nesta data, a Autora ainda se encontra privada da posse dos seus brincos;
20- Privação essa que causa desgosto à Autora;
21- A tomada de consciência que jamais conseguirá reaver os brincos causou-lhe enorme desgosto, angústia e tristeza.
22- BB e CC casaram civilmente no dia 3 de Março de 2000;
23- O casamento foi dissolvido por divórcio, por decisão de ../../2012, transitada em julgado, proferida na Conservatória do Registo Civil ...;
24- A partir de data não concretamente apurada após o ano de 2015, o Réu BB foi viver para ....
25- Perante os clientes os réus continuavam a apresentar-se como marido e mulher.
*
3.1.2. Factos Não Provados

Ao invés, foram dados como não provados os seguintes factos:
1- Os brincos foram feitos à mão.
12- A autora adquiriu-os como sendo peça rara, pois em todo o território nacional português só havia um outro par igual.
13- Tratava-se de um par de brincos com design único, diferente e ímpar.
14- Dadas essas características singulares, chegou a receber propostas de compra pelo valor de 10.000,00€ (dez mil euros), o que a Autora sempre recusou.
16- Os Réus tomavam refeições juntos, iam a festas e a eventos juntos, mantendo exactamente o mesmo estilo e vida como quando eram casados.
*
3.2.2. Subsunção jurídica dos factos ao direito

Em face da factualidade dada como provada, importa começar por enquadrar devidamente a questão, a fim de operar a sua correta qualificação jurídica.
A autora entregou no estabelecimento comercial explorado pelos réus um par de brincos, com vista à sua reparação. Os réus não procederam à devolução dos brincos.
Pretende a autora a sua devolução ou uma indemnização pelo valor correspondente, acrescida da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos.
É inquestionável que estamos no domínio da responsabilidade contratual.
Mais concretamente, entre as partes foi celebrado um contrato de depósito e perspetivado um contrato de empreitada, sendo aquele instrumental deste.
Com efeito, a entrega do par de brincos consubstancia um contrato de depósito (art. 1185.º do Código Civil), contrato pelo qual a autora (depositante) entregou aos réus (depositários) os brincos (bem móvel) para que os guardassem e restituíssem no tempo próprio – com a finalidade convencionada da sua reparação.
Tal reparação, se viesse a concretizar-se, traduziria – então, sim – um contrato de empreitada (art. 1207.º do Código Civil), reportando-se a realização da obra à reparação dos brincos[4].
Porém, como a reparação não veio a ocorrer (ou pelo menos, disso não foi dado conhecimento à autora), não chegou a tomar corpo contratual a perspetivada empreitada. Porque assim, afastado fica tudo quanto diga respeito a esta prestação de serviços.
O mesmo é dizer que improcedem as questões suscitadas pelo réu em sede de contestação, relacionadas com o contrato de empreitada, na medida em a matéria da ação se situa exclusivamente na relação de depósito estabelecida, não se chegando a corporizar aqueloutro contrato.
Restringidos ao contrato de depósito não cumpriram os réus, enquanto depositários, a finalidade de restituição do bem.
O depositário está obrigado a guardar a coisa depositada, a avisar imediatamente o depositante quando saiba que algum perigo ameaça a coisa em que terceiro se arroga direitos em relação a ela, desde que tal facto seja desconhecido do depositante e a restituir a coisa com os seus frutos (art. 1187º do Código Civil).
Neste tipo de contrato, está em causa a natureza infungível do objeto, sendo um dos traços característicos do contrato de depósito o da obrigação da restituição da coisa recebida em depósito quando exigida pelo depositante.
A autora procedeu à realização de todas as diligências que estavam ao seu alcance com vista à recuperação dos brincos, quer junto da ré, quer das autoridades a quem participou criminalmente a não restituição.
Os réus não procederam à restituição dos brincos à autora.
Ora, no contrato de depósito o depositário obriga-se a restituir a coisa quando lhe for exigida. Não o fazendo, presume-se culposo o seu incumprimento (art. 799.º, do Código Civil).
A não restituição da coisa, já exigida pela autora sua dona, traduz, objetivamente, inobservância de obrigação contratual dos réus depositários, sem que estes demonstrem causa justificativa da sua conduta omissiva.
Não tendo os depositários ilidido a presunção de culpa no incumprimento, constituíram-se na obrigação de indemnizar a depositante não só restituindo o bem ou, na sua impossibilidade, o valor correspondente, como ressarcindo-a dos danos não patrimoniais sofridos.
Assim, deverão os réus proceder de imediato à restituição dos brincos a que estão obrigados.
Quanto aos danos de natureza não patrimonial.
Segundo o artigo 496.º, nº 1 do Código Civil, na fixação da indemnização devem atender-se os danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Os danos não patrimoniais são aqueles que não atingem os bens materiais do lesado ou que, de qualquer modo, não alteram a sua situação pa­trimonial - formulação negativa -, ou seja, aqueles danos que têm por objeto um bem ou interesse sem conteúdo patrimonial, insuscetível, em rigor, de avaliação pecuniária.
Neste caso, a indemnização não visa propriamente ressarcir ou tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido.[5]
O montante da in­demnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpa do lesante, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso - artigos 496º, nº 3 e 494º do Código Civil - e também os padrões de indemnização geralmente adotados na jurisprudência.
Na execução desta operação devem tomar-se em conta todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida[6].
Tendo por base o que o quadro fáctico nos apresenta, e ponderadas adequadamente as circunstâncias do caso e os critérios que devem ser seguidos na concretização do juízo de equidade, afigura-se justa e adequada a indemnização de 750,00 € (setecentos e cinquenta euros), a atribuir à autora.

Nestes termos, procede parcialmente a apelação devendo os réus restituir à autora os brincos que lhe foram entregues, e pagar a indemnização pelos danos morais sofridos no valor de 750,00 € (setecentos e cinquenta euros).
*
SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - A entrega de um par de brincos para reparação num estabelecimento de ourivesaria, que sem justificação não são restituídos, consubstancia juridicamente um contrato de depósito (art. 1185.º do Código Civil), contrato pelo qual uma parte (depositante) entregou à oura (depositário) os brincos (bem móvel) para que os guardasse e restituísse no tempo próprio – com a finalidade convencionada da sua reparação.
II - Tal reparação, se viesse a concretizar-se, traduziria – então, sim – um contrato de empreitada (art. 1207.º do Código Civil), reportando-se a realização da obra à reparação dos brincos.
III - Porém, como a reparação não veio a ocorrer, não chegou a tomar corpo contratual a perspetivada empreitada, restringindo-se a relação estabelecida entre as partes ao contrato de depósito.
IV - Neste tipo de contrato, está em causa a natureza infungível do objeto, sendo um dos traços característicos do contrato de depósito o da obrigação de restituição da coisa recebida em depósito quando exigida pelo depositante.
V - Não o fazendo, presume-se culposo o seu incumprimento (art. 799.º, do Código Civil), incorrendo o depositário na obrigação de indemnizar o depositante.
*
IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, assim condenando os réus a restituir à autora os brincos que lhe foram entregues, mais se condenando os réus a pagar à autora, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de 750,00 € (setecentos e cinquenta euros).

Custas da ação e do recurso por autora e réus na proporção do decaimento.
Guimarães, 4 de Abril de 2024.

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Maria Amália Santos (que não assina por não se encontrar presente, tendo dado voto de conformidade)
2º Adj. - Des. José Manuel Flores


[1] Cfr. Ac. Relação de Guimarães de 12.03.2023, proferido no processo n.º 564/18.2T8FAF.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, p. 310.
[3] Proferido no processo n.º 564/18.2T8FAF.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, Acórdão da Relação de Coimbra de 20/06/2017, Relator: Vitor Amaral, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, Antunes Varela, Das Obriga­ções em Geral, 4ª edição, pag. 560.
[6] P. de Lima e A. Varela, C. C. Anot., 4ª edição, Vol. I, pág. 501.