Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6054/23.4T8VNF-A.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
INDEFERIMENTO LIMINAR
MORA DO CREDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Oferecida a prestação pelo devedor, a sua não aceitação pelo credor, assim como a não realização dos atos necessários à sua concretização, quando não exista motivo justificado, não implicam, em regra, a extinção do vínculo obrigacional. Podem, porém, levar a que não seja exigível a prestação do devedor, por o comportamento do credor permitir o afastamento da presunção de culpa daquele consagrada no art. 799 do Código Civil.
II – Existe motivo justificado para o credor recusar a prestação (ou a colaboração devida à sua realização) se o devedor já se encontrar em mora no momento em que a oferece.
III – Tendo, no entretanto, o credor instaurado a ação executiva destinada a exigir o cumprimento coercivo da obrigação, é manifestamente improcedente a oposição que o devedor apresente com aquele fundamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1). AA e BB intentaram, no dia 3 de outubro de 2023, ação executiva para prestação de facto contra EMP01..., SA, alegando, em síntese, que: por transação celebrada em ação declarativa que correu entre as partes, homologada por sentença de 27 de março de 2023, a executada obrigou-se a reparar, no prazo de 90 dias, os defeitos existentes num prédio que vendeu aos executados; decorrido o referido prazo, a executada não cumpriu a sua obrigação; nos termos previstos no art. 868/1 do CPC, os exequentes optam pela prestação de facto por outrem.
Citada, a executada apresentou oposição à execução, através de embargos de executado, alegando, também em síntese, que: por carta enviada aos exequentes a 17 de 0utubro de 2023, por eles recebida dois dias depois, comunicou que daria início à reparação dos defeitos no dia 30 de outubro de 2023; chegada esta data, fez comparecer os trabalhadores que contratou para realizarem os trabalhos de reparação no prédio; os exequentes não permitiram que tais trabalhos fossem iniciados; ofereceu, assim, aos exequentes “o cumprimento da obrigação constante do título executivo, antes do decurso do prazo de 20 dias para deduzir oposição, cumprimento que foi recusado pelos exequentes”, sem qualquer motivo justificativo. Concluiu que, com a procedência dos embargos, a execução deve ser declarada extinta.
Por despacho proferido no dia 16 de novembro de 2023, a petição de embargos foi liminarmente indeferida por o fundamento da oposição não se ajustar ao disposto nos artigos 729 a 731 do CPC.
***
2). Inconformada, a executada interpôs o presente recurso, cujas alegações concluiu nos seguintes termos (transcrição):

“1ª O recurso tem por objeto a douta decisão que indefere liminarmente a oposição à execução mediante embargos, deduzida ao abrigo do disposto no artº 868º, nº 2, CPC, com fundamento em que não se verifica “qualquer causa extintiva ou modificativa da obrigação de prestar fixada na sentença que justifique os embargos”.
2ª Como causa extintiva ou modificativa da obrigação invoca a executada: A Executada foi citada para a execução em 23.10.2023, terminando o prazo para deduzir oposição em 12.11.2023;
3ª Por comunicação rececionada pela exequente a 19.10.2023, informa que os trabalhos relativos à reparação dos defeitos são iniciados em 30.10.2023;
4ª No dia 30.10.2023, pelas 8,30 horas fez comparecer na moradia os trabalhadores das diversas especialidades, ao serviço de empresas terceiras, para iniciarem as obras de reparação;
5ª O exequente CC informou os presentes que não permitia o início das reparações.
6ª Conclui a Executada, no artigo 14º do requerimento de oposição que “ofereceu aos Exequentes o cumprimento da obrigação constante do título executivo, antes do decurso do prazo de 20 dias para deduzir oposição, cumprimento que foi recusado pelos Exequentes, pelo que e assim o credor, sem motivo justificativo, que não aceita a prestação que o devedor lhe oferece nos termos legais”
7ª Para conclusão formula o pedido, isto é a forma de tutela jurídica que pretende para a situação jurídica alegada: - requer a Vsa. Exa. a admissão dos presentes embargos, e que os mesmos sejam julgados provados e procedentes, extinguindo-se a execução.
8ª A questão que se coloca ao tribunal consiste em saber se a executada pode realizar voluntariamente a prestação a que está obrigada até ao termo do prazo de 20 dias para deduzir oposição, uma vez que em tempo anterior à citação para a execução notificou os exequentes de que iria iniciar as reparações dos defeitos construtivos.
9ª A decisão incorre em erro de julgamento ao considerar que é lícito aos exequentes “recusar o oferecimento da prestação que apenas veio a ocorrer em outubro, tanto mais que apenas surge depois de instaurada a execução e tendo os exequentes manifestado pretender a execução por terceiros”.
10ª O regime processual da ação executiva para prestação de facto está definido no artº 868º a 877º, CPC.
11ª Quanto à admissibilidade da oposição mediante embargos, no caso dos autos, rege o artº 868º, nº 2. O artº 868º, nº 2, com pequeno ajuste de estilo, mantém no essencial a base de redação do artº 933º, nº 2, do Código de Processo Civil de 1961, aprovado pelo Decreto-Lei nº 44.129, de 28.12.1961.
12ª Na execução para prestação de facto, o devedor deve deduzir oposição à execução mediante embargos, consistindo o fundamento da oposição, ainda que a execução se funde em sentença, no cumprimento posterior da obrigação, provado por qualquer meio –cf. por todos Ac. de 29-09-2022, proc. nº 3788/19.....
13ª Ora, até quando pode o devedor deduzir oposição mediante embargos, com fundamento, ainda que a oposição à execução se funde em sentença, no cumprimento posterior da obrigação, por qualquer meio? Justamente dento do prazo de 20 dias para o qual foi citado.
14ª Os factos alegados, que constituem a causa extintiva ou modificativa da obrigação de prestar, são todos os ocorridos desde a sentença até ao termo do prazo para dedução da oposição!
TERMOS EM QUE deve ser concedido provimento ao presente recurso, proferindo-se douto acórdão revogatória da decisão impugnada, que admita liminarmente a oposição à execução mediante embargos.”
Os executados não apresentaram resposta.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado neste Tribunal ad quem.
Foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
***
II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, a questão que se coloca no presente recurso consiste em saber se a decisão recorrida incorreu em erro de direito ao concluir que os fundamentos da oposição não se ajustam ao previsto nos arts. 729 a 731 do CPC.
***
III.
1) Na resposta à questão enunciada, há que considerar os factos descritos no Relatório que constitui a Parte I. deste Acórdão.

Há também que considerar os seguintes factos:
a) Como título executivo, os exequentes apresentaram a sentença homologatória da transação que celebraram com a executada na ação que correu termos sob o n.º 5979/22...., sentença essa que foi proferida no dia 24 de março de 2023 e transitou em julgado.
b) Essa transação é composta pelas seguintes cláusulas: “6.1. Pretendendo os autores e a ré findar, por transação, o processo n.º 5979/22.... (Juízo Local Cível ...-J...), ambas as partes acordam no seguinte, tendo por objeto processual a ação agora identificada: 6.1) A ré reconhece a totalidade dos defeitos mencionados no art.º 13.º da petição inicial apresentada, obrigando-se a mesma a repará-los/eliminá-los, no prazo de 90 (noventa) dias, contado desde a data em que vier a ser homologada a transação; 6.2) A ré obriga-se a reparar/eliminar todos os defeitos que venham a surgir no decurso do prazo de vigência da garantia da obra, obra esta que foi entregue aos autores no dia 07/05/2021; 6.3) Os autores desistem dos demais pedidos da ação n.º 5979/22....”, tudo cf. certidão judicial apresentada com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
***
2).1. De acordo com a definição de J. P. Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, Coimbra: Almedina, 2000, pp. 149-150, “[o]s embargos de executado são ações declarativas, estruturalmente autónomas, porém instrumental e funcionalmente ligadas às ações executivas – nelas correndo por apenso –, pelas quais o executado pretende impedir a produção dos efeitos do título executivo.” Consistem, pois, no meio de defesa facultado ao executado contra uma execução ilegalmente instaurada contra si, o qual tanto se pode fundar em vícios processuais (oposição de forma) como em vícios substanciais (oposição de mérito). Assumem-se como uma verdadeira ação do executado em relação à ação executiva que lhe foi movida pelo exequente, através deles se restabelecendo o contraditório e a possibilidade de o executado sindicar a atuação do exequente, por entender que a execução contra si instaurada se encontra substancial ou processualmente viciada. Estando as duas ações, a declarativa de embargos e a executiva, intimamente ligadas, o desfecho da primeira marcará o da segunda, posto que o seu objeto consiste, precisamente, na análise dos vícios desta.
***
2).2. Ao contrário do que sucede na ação declarativa comum, na ação declarativa de embargos de executado há sempre lugar a despacho liminar: art. 732 do CPC.[1]
O despacho liminar deve ser de indeferimento se: os embargos tiverem sido deduzidos fora do prazo (art. 732/1, a)); for invocado fundamento para além dos admitidos pelos arts. 739 a 731 (art. 732/2, b)); for manifesta a improcedência da oposição do executado (art. 732-2, c)).
Centrando a atenção no segundo dos referidos fundamentos de indeferimento liminar, começamos por notar que o legislador distingue, nos arts. 729 a 731, em função da natureza do título executivo, os diversos fundamentos que o executado pode invocar em sede de oposição à execução.
Assim, fundando-se a execução em sentença, ainda que meramente homologatória de transação, como sucede no caso, há que atender ao disposto no art. 729, onde é feita uma enumeração taxativa (como resulta do uso do advérbio “só”) dos fundamentos de oposição, o que é justificado pelo facto de o direito exequendo estar já reconhecido judicialmente. Na ação em que foi proferida a sentença, o executado teve a possibilidade de apresentar a sua defesa na contestação (art. 573/1), de forma ampla, sem limitações. Se não o fez, tem de se conformar com os limites temporais do caso julgado e com as preclusões que deste resultam.

Diz o preceito em causa [art. 729] que a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes:

a) Inexistência ou inexequibilidade do título;
b) Falsidade do processo ou do traslado ou infidelidade deste, quando uma ou outra influa nos termos da execução;
c) Falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento;
d) Falta de intervenção do réu no processo de declaração, verificando-se alguma das situações previstas na alínea e) do artigo 696.º;
e) Incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução;
f) Caso julgado anterior à sentença que se executa;
g) Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento; a prescrição do direito ou da obrigação pode ser provada por qualquer meio;
h) Contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos;
i) Tratando-se de sentença homologatória de confissão ou transação, qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses atos.”

Como se constata, da alínea g) resulta que os factos modificativos ou extintivos da obrigação só podem, em princípio, ser provados através de documento, o qual deve ser junto, de imediato, com a petição de embargos. De acordo com Miguel Teixeira de Sousa (A Ação Executiva Singular, Lisboa: Lex, 1997, p. 179), a exigência dessa prova documental só pode ser entendida quando diga respeito a situações em que é a própria lei que impõe esse meio de prova ou quando a mesma seja usual no comércio jurídico Em RL 02.07.2015 (477-11.9TMLSB-2), entendeu-se que, apesar da exigência legal da prova documental, “nas circunstâncias apontadas no n.º 2 do art. 364 do Código Civil, poderá o documento ser substituído por confissão – mesmo sem possuir o documento, poderá o opoente deduzir a oposição perspetivando no seu decurso, obter a confissão do exequente”. Conforme se decidiu em STJ de 02.12.2008 (3355/08), “[a]referida exigência de prova documental nada tem de inconstitucional, designadamente, não viola o art. 20 da CRP. Na verdade, o preceito não retira nem limita o direito de acesso ao direito e aos tribunais, apenas condiciona a prova do facto extintivo ou modificativo, que terá de ser feita documentalmente e só em sede de embargos opostos a execução fundada em sentença, tudo em ordem a evitar que o processo executivo seja utilizado para destruir o caso julgado formado na acção declarativa.”  Esta solução legal, prevista para a execução para pagamento de quantia certa, encontra um importante desvio na execução para prestação de facto. Nesta, por força do disposto no art. 868/2, o cumprimento posterior da obrigação pode ser provado por qualquer meio. A natureza própria da prestação de facto explica este desvio que se constitui como uma limitação do alcance geral da norma do art. 395 do Código Civil (que proíbe, entre as partes, a prova do cumprimento por testemunhas).
***
2).3. No caso vertente, a Recorrente procurou ajustar a sua oposição ao fundamento da citada alínea g), na qual estão em causa questões substanciais relacionadas com a ocorrência de factos extintivos ou modificativos da obrigação exequenda, necessariamente em momento ulterior ao encerramento da discussão na ação declarativa, particularidade que nos permite afirmar que a previsão da norma se conjuga, no que ao requisito temporal concerne, com a do art. 611/1. É duvidoso se só releva a superveniência objetiva ou se basta a subjetiva. A letra da norma indica no primeiro sentido, conforme é entendimento de José Alberto dos Reis (Processo de Execução, II, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 29) e de Marco Carvalho Gonçalves (Lições de Processo Executivo, Lições de Processo Civil Executivo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 274). Já Miguel Teixeira de Sousa (A Ação Executiva Singular cit., pp. 169-170) entende que se a superveniência subjetiva é fundamento de recurso de revisão (art. 696/1, c)), bem como de oposição superveniente à execução (art. 728/2), então também pode ser fundamento de oposição à execução deduzida no prazo estabelecido pelo art. 728/1.
Factos modificativos da obrigação são aqueles que alteram os contornos do direito do exequente, como, por exemplo, a concessão de uma moratória ao executado ou a alteração das garantias do cumprimento. Factos extintivos são aqueles que não se limitam a alterar os contornos do direito do exequente; vão mais além, provocando mesmo a sua extinção, como sucede com o pagamento, o perdão, a renúncia, a dação em cumprimento (arts. 837 e ss. do Código Civil), a consignação em depósito (arts. 841 e ss. do Código Civil), a novação (arts. 857 e ss. do Código Civil), a remissão (arts. 863 e ss. do Código Civil), a confusão (arts. 868 e ss. do Código Civil) e a prescrição (arts. 300 e ss. do Código Civil). Não obstante a norma não referir os factos impeditivos, deve entender-se que estão sujeitos ao mesmo regime aqueles que integrem exceções em sentido próprio, como sucede, por exemplo, em caso de anulabilidade, quando a cessação do vício que lhe serve de fundamento - e que é pressuposto do exercício do direito (art. 287/1 do Código Civil) – ocorra depois do encerramento da discussão na ação declarativa. A propósito, Miguel Teixeira de Sousa (A Ação Executiva Singular cit., p. 172) e Lebre de Freitas (A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª ed., Coimbra: Geslegal, 2017, p. 203, nota 21-A).
***
2).4. Tudo está, portanto, em saber se a Recorrente alegou, necessariamente de forma substanciada, factos dos quais possa resultar, em abstrato, a modificação ou a extinção da obrigação exequenda e, mais concretamente, à luz das Conclusões da pretensão recursiva, o cumprimento da obrigação exequenda – que, como se sabe, é a primeira das causas de extinção das obrigações ou, no dizer de Cunha de Sá (“Modos de extinção das obrigações”, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, I, Coimbra: almedina, 2002, p. 172), o “facto extintivo por excelência.” É, na realidade, o cumprimento que satisfaz o interesse do credor adrede delimitado, nos termos do art. 398 do Código Civil.
O cumprimento consiste na realização voluntária, plena, diligente e de acordo com a boa-fé da obrigação a que se vinculou o devedor (art. 762 do Código Civil). Neste sentido, podemos afirmar, citando Brandão Proença (Lições de Cumprimento e Não Cumprimentos das Obrigações, 3.ª ed., Porto: UCE, 2019, pp. 26-27), que “[a] partir do momento em que uma obrigação simples seja cumprida espontaneamente e segundo o convencionado, pode dizer-se que o devedor cumpre precisamente aquilo a que se obrigou (…). É o que sucede se o empreiteiro cumprir a obra (sem defeitos) no prazo convencionado, se o depositário restituir a coisa depositada, se o inquilino pagar a renda ao senhorio, se o arquiteto elaborar o projeto da moradia a construir.”
Esta simples definição do ato de cumprimento de uma obrigação permite-nos refutar a tese da Recorrente.
Com efeito, sendo inequívoco que a Recorrente está obrigada, por força do contrato de transação celebrado com os Recorridos, a realizar uma obra (no sentido previsto nos arts. 1207 e 1208 do Código Civil), por conta destes, o interesse dos credores apenas fica satisfeito com a prestação do correspondente facto e do seu resultado final. Ora, na petição de embargos apenas foi alegado o oferecimento da prestação de facto, que corresponde à primeira das etapas do ato de cumprimento, sendo assim demasiado pouco para podermos concluir que o ato de cumprimento ocorreu.
***
2).5. Não podemos, porém, ignorar que a Recorrente não cingiu a sua alegação ao oferecimento da prestação; acrescentou que esta foi recusada pelos credores, concluindo, assim, que existe mora por parte destes, com a consequente extinção do vínculo obrigacional.
Sendo certo que o cumprimento da obrigação não deve ser confundido com a sua modificação (lato sensu) nem com a extinção ou cessação do vínculo obrigacional, a operar unilateral (por exemplo, por resolução e denúncia do contrato), com fundamento legal, contratual ou de forma desmotivada, ou bilateralmente (revogação por acordo), importa que apreciemos se os factos alegados podem conduzir ao resultado pretendido pela Recorrente.
A resposta, adiantamos já, é manifestamente negativa.
Expliquemos.
A oferta da prestação pelo devedor é, conforme escrevemos, a primeira face do cumprimento da obrigação; a outra, dependente daquela, é a aceitação da prestação pelo credor. Se a oferta constitui um dever, a aceitação é geralmente apontada como um ónus do credor, cuja inobservância, sem motivo justificado, tem as consequências previstas nos arts. 813 a 816 do Código Civil. O pensamento dominante na doutrina é, na verdade, no sentido de que, em regra, o credor não está obrigado a aceitar a prestação ou, dito de outra forma, que o devedor não tem um direito subjetivo ao cumprimento. A propósito, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 1997, p. 162; Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, pp. 314-315; Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, II, 2.ª ed., Porto, 1987-88, p. 478; Luís Manuel de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, 12.ª ed., Coimbra: Almedina, 2018, pp. 244 a 246; Rita Lynce de Faria, A Mora do Credor, Lisboa: Lex, 2000, pp. 12, 56 e 68 e ss.. Para Brandão Proença (Lições cit., pp. 265-266), apesar de o credor estar adstrito a uma série de deveres laterais (não dificultar o cumprimento, proteger a pessoa e o património do devedor, cooperar com o devedor na fase de prestação do resultado devido), a chave para a compreensão do regime encontra-se no princípio da autorresponsabilidade: a não aceitação da prestação ou a falta de colaboração do credor, sem motivo justificado, enquanto condutas necessárias ao cumprimento por parte do devedor, tem como consequência que aquele deve suportar as desvantagens decorrentes da violação livre dos seus interesses. Em sentido diverso, Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, IX, Direito das Obrigações, Coimbra, 2014, pp. 250 e ss.) considera que o credor está obrigado a cooperar com o devedor, desde logo segundo os ditames da boa-fé, cometendo, caso assim não proceda, um ato ilícito e culposo, pela sua “atuação axiologicamente negativa” e por violar não um direito subjetivo do devedor, mas “disposições legais que tutelam os interesses do devedor.” Cunha de Sá (“Direito ao cumprimento e direito a cumprir”, Revista de direito e Estudos Sociais, ano XX, 1-2-3-4, 1973, pp. 205 e ss.) vai ainda mais longe ao defender que o credor tem o dever jurídico de aceitar a prestação ou cooperar com o devedor, vendo na recusa “sem motivo justificado” a violação de um dever, cujo cumprimento visaria a satisfação dos interesses do credor e do devedor.
Como quer que seja, a mora do credor não conduz à extinção da obrigação do devedor. A sua única consequência consiste na produção dos efeitos, favoráveis ao devedor, previstos nos arts. 814 a 816: atenuação da responsabilidade do devedor, inversão do risco e obrigação de indemnização pelo credor. A ideia subjacente é a de que, não havendo extinção da obrigação, o devedor não deve ser prejudicado pela situação de mora do credor. Neste sentido, na jurisprudência, STJ 27.05.2021 (101/19.1T8ANS-A.C1.S1), relatado pelo Juiz Conselheiro Fernando Baptista de Oliveira
Por outro lado, a lei não regula a extinção (ou cessação) da mora do credor. Esta verifica-se logo que o credor manifeste disposição para aceitar a prestação ou para praticar os atos de cooperação necessários, devendo então o devedor encontrar-se em condições de realizar a prestação, sob pena de ocorrer uma inversão da mora (Mónica Duque, “Art. 813.º”, AAVV, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, reimpressão, Lisboa: UCE, 2018, p. 1180). Nas obrigações de dare, o devedor pode exonerar-se através da consignação em depósito, regulada nos arts. 841 e ss. do Código Civil, o que consiste numa outra forma de extinção da obrigação. Nas obrigações de prestação de facto, a solução, para evitar que o devedor se mantenha vinculado indeterminadamente à realização da prestação será a aplicação analógica do disposto no art. 808 do Código Civil. Menezes Cordeiro e Cunha de Sá justificam esta solução, em coerência com a sua tese, como sendo o corolário do dever que recai sobre o credor de aceitar a prestação ou praticar os atos necessários à sua realização. Já Brandão Proença – que, como vimos, refuta a existência daquele dever – justifica a solução com a natureza da prestação em causa e “uma razoável necessidade clarificadora da posição debitória.” A interpelação admonitória prevista na norma será dispensável quando a mora do credor determine a impossibilidade definitiva da realização da prestação de facto e, bem assim, quando o credor tenha manifestado de forma terminante e inequívoca que não aceitará a prestação.[2]
***
2).6. As considerações feitas no ponto anterior permitem-nos afirmar que a não aceitação da prestação pelo credor, assim como a não realização dos atos necessários à sua concretização, quando não justificada, não implica a extinção do vínculo obrigacional. Pode, porém, levar a que não seja exigível a prestação da Recorrente, por afastar a presunção de culpa prevista no art. 799 do Código Civil. Neste sentido, RL 20.04.2010 (254/10.4YRLSB-7), onde se entendeu que nos casos em que o empreiteiro se encontra obrigado a proceder a uma determinada reparação no domicílio do credor e este se recusa a permitir o acesso à mesma, inviabilizando, dessa forma, a realização voluntária da prestação, o executado pode invocar, em sede de oposição à execução, a mora do credor, na medida em que a mesma justifique a situação de não cumprimento em que o devedor se encontra quanto à prestação. Na doutrina, Marco Carvalho Gonçalves (Lições de Processo Executivo cit., pp. 599-600).
Mas para que assim suceda é pressuposto que tais comportamentos do credor não estejam a coberto de um motivo justificado.
Antunes Varela (Das Obrigações em Geral cit., p. 162), Inocêncio Galvão Telles (Direito das Obrigações cit., p. 314) e Menezes Leitão (Direito das Obrigações cit., pp. 243-244) consideram que existe motivo justificado quando o credor recusa a prestação ou omite a colaboração com base em razões objetivas atinentes ao objeto, ao conteúdo, ao tempo ou ao lugar da prestação, designadamente, se se tratar de prestação parcial, de prestação defeituosa, de prestação antes do vencimento (com prazo a favor do credor), de prestação a ser realizada em lugar diferente do acordado, de prestação infungível a ser realizada por terceiro, ou seja de uma prestação que apresente desconformidade em relação às regras legais em matéria de cumprimento. Não constituirão, assim, motivo justificado, fazendo o devedor incorrer em mora, as situações de doença, acidente ou outras circunstâncias, pessoais ou familiares, inesperadas, graves e incapacitantes. Já o caso fortuito ou de força maior será de considerar motivo justificado. Para Baptista Machado (“Risco contratual e mora do credor”, Obra Dispersa, I, Braga, 1991, pp. 315 e ss.), há que distinguir a mora do credor sem motivo justificado ou imputável, para a qual devem valer os efeitos jurídicos previstos nos arts. 814 a 816 que tutelam o devedor impedido de cumprir, da mora do credor com motivo justificado, em relação à qual devem ser aplicadas as consequências descritas no n.º 2 do art. 814 e no art. 816, mas não as reguladas pelo n.º 1 do art. 814 e pelo art. 815, nos estritos termos aí fixados, de modo a garantir equilíbrio e proteção adequada aos interesses do credor. A mora do credor com motivo justificado demanda um regime mitigado que permita ponderar a situação de impedimento ou grave dificuldade que conduz à não aceitação ou à omissão de cooperação pelo credor. No mesmo sentido, Brandão Proença (Lições cit., p. 262) escreve que “[n]a medida em que o credor está, física ou psicologicamente, impedido de receber a prestação, parece sensato demarcar estes casos (que justificam mas não excluem a mora) daqueles em que o credor, sem qualquer justificação válida e por conduta livre ou responsável, não quer colaborar com o seu devedor.” Num ponto existe, porém, consenso: a eficácia jurídica da omissão do credor pressupõe que o devedor não esteja já em mora no cumprimento da sua obrigação ou que o credor não lhe possa imputar um prévio cumprimento defeituoso (Brandão Proença, Lições cit., p. 258).
É precisamente neste ponto que soçobra in totum a alegação da Recorrente: no momento em que esta alega ter oferecido a prestação a que estava obrigada (19 de outubro de 2023) havia já mora da sua parte.
Na verdade, no contrato de transação de que resulta a constituição da obrigação exequenda foi expressamente previsto um prazo de noventa dias para a realização da obra. Esse prazo tinha como termo a quo a data da prolação da sentença homologatória. Estando esta datada de 24 de março de 2023, o termo final do prazo ocorreu no dia 22 de junho de 2023. Chegada esta data a Recorrente ficou constituída em mora: art. 805/1, a), do Código Civil.
Com a constituição da Recorrente (devedora) em mora, ficou aberto o caminho para os Recorridos (credores) lançarem mão da ação executiva, destinada a exigir o cumprimento da obrigação (art. 817 do Código Civil).
Por esta razão, ainda que se admitisse que o fundamento invocado pela Recorrente se ajusta à previsão da alínea g) do art. 729, conjugado com o art. 868/2, ambos do CPP, sempre se teria de concluir pela sua manifesta improcedência, causa do indeferimento liminar corporizado no despacho recorrido.
Ao escrever isto não ignoramos que a Recorrente sustenta que, não obstante a situação de mora em que incorreu, ainda lhe deve ser permitido realizar voluntariamente a prestação. Simplesmente, essa possibilidade, para quem a admita, como sucede com Lebre de Freitas (A Ação Executiva cit., p. 460), deve ser colocada à apreciação do juiz, por via incidental, na própria execução que, em caso de deferimento, ficará suspensa. A sua concretização pressupõe, portanto, a subsistência da execução que, naturalmente, apenas ficará extinta, pelo cumprimento da obrigação, quando a prestação de facto for integralmente realizada.
Por tudo quanto antecede, improcedem as alegações da Recorrente, justificando-se a confirmação do despacho recorrido.
***
3). Vencida, a Recorrente deve suportar as custas do recurso: art. 527/1 e 2 do CPC.
***
IV.
Nestes termos, acordam os Juízes que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar o presente recurso de apelação improcedente e confirmar o despacho recorrido.
Custas pela Recorrente.
Notifique.
*
Guimarães, 29 de fevereiro de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães (Relator)
José Alberto Martins Moreira Dias (1.º Adjunto)
Alexandra Viana Parente Lopes (2.ª Adjunta)


[1] Pertencem ao Código de Processo Civil vigente as disposições legais indicadas sem menção expressa da respetiva proveniência.
 [2]Não há, no nosso direito positivo, qualquer norma a propósito da declaração de não cumprimento e dos efeitos dela. Os contributos doutrinais debruçam-se, sobretudo, sobre a desnecessidade de interpelação do devedor que declarou não querer cumprir para operar a constituição em mora. Vaz Serra (Mora do Devedor, BMJ, n.º 48, pp. 60 e ss.), aborda o tema, referindo em especial o art. 1219.°/2 do Código Civil italiano, que dispensa a intimação quando o devedor declare por escrito não querer cumprir a obrigação, e a prática jurisprudencial francesa, no sentido de tornar dispensá­vel a interpelação quando o devedor tome a iniciativa de “fazer conhecer ao credor a sua recusa de cumprir”. O mesmo Autor (Impossibilidade Superveniente / Cumprimento Imperfeito Imputável ao Devedor, BMJ, n.º 47, p. 97), propõe uma solu­ção de tipo italiano, exigindo que, por escrito, o devedor manifeste “clara e definitivamente que não fará a prestação devida.” Na literatura subsequente ao Código Civil vigente, Pessoa Jorge (Lições de Direito das obrigações, I, 1967, pp. 296-298) toma uma posição cla­ramente contrária. A solução do vencimento imediato da obriga­ção, perante uma declaração do devedor de não querer cumprir, teria um espe­cial interesse nas obrigações sujeitas a prazo: porém, ela não seria, de modo algum, aceitável quanto a estas: “Na verdade, numa obrigação sujeita a prazo, o credor tem o seu interesse satisfeito se o devedor cumprir no prazo; se, antes deste, o devedor declara não cum­prir mas depois se arrepende e se apresenta a cumprir no momento inicialmente fixado, o credor não terá de se queixar, porquanto tem a prestação devida na altura prevista.”Além disso, segundo este Autor, as causas de exigibilidade antecipada estão fixadas na lei (805) e têm natureza excecional, pelo que a eficácia da declaração antecipada de incumprimento apenas é admissível se ocorrer uma reação, confluente, do credor. Almeida Costa (Direito das Obrigações, 9.ª ed., Coimbra, 2005, p. 980) e Ribeiro de Faria (Direito das Obrigações 2 (1988), p. 447) associam à declaração séria e ine­quívoca de não cumprir, feita pelo devedor, o vencimento antecipado ou a des­necessidade de interpelação. No direito alemão, como dá conta Menezes Cordeiro (A Declaração de não-cumprimento da obrigação, em O Direito, ano 138.º (2006), t. 1, pp. 28 e ss.), o tema tem sido aprofundado e mereceu mesmo um expresso tratamento legislativo, aquando reforma do BGB de 2001/2002. A consagração legal é fruto de uma evolução doutrinal e jurisprudencial que sempre sublinhou a necessidade de uma declaração de não-cumprimento “séria, honesta, precisa e definitiva”, de tal modo que não haveria recusa “eficaz” nos seguintes casos: um pedido de moratória por falta de dinheiro; uma (mera) declaração de não poder cumprir a tempo; uma manifestação de dúvidas jurídicas; divergência de opiniões sobre o conteúdo da prestação; recusa de cumprimento e simultânea disponibilidade para querer cumprir; oferta de prestação parcial; declaração de já ter cumprido. A doutrina alemã, refere Menezes Cordeiro (A Declaração…, p. 34), é muito clara ao explicar que se mantêm as estritas exigên­cias jurisprudenciais e doutrinárias, fixadas pelo Direito anterior. Deve estar em causa uma pura e simples declaração de não-cumprimento, sem qualquer justificação e que traduza a última palavra do devedor.