Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1665/20.2T8CHV.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PRESUNÇÃO
REGISTO
POSSE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A ação de reivindicação traduz-se num meio repressivo de defesa da propriedade, previsto no artigo 1311.º do CC, onde se estatui que o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence (n.º 1).
II - O registo não faz presumir que os referidos prédios tenham a concreta composição, confrontações e área que constam das descrições prediais respetivas, nem a concreta área dos respetivos componentes, sendo que no caso a recorrente/ré questionou relevantemente nos autos a correspondência entre os concretos prédios rústicos de que a autora se arroga proprietária e a concreta parcela de terreno situada nas traseiras das casas de habitação da autora e da ré, que aquela ré, desde 2014, tem vindo a utilizar, à vista de todos.
III - Nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1 do CC, competia à autora/recorrida provar que a parcela de terreno situada nas traseiras das casas de habitação da autora e da ré, que aquela ré, desde 2014, tem vindo a utilizar, à vista de todos, faz parte integrante dos quatro prédios rústicos que adquiriu de AA por escritura pública outorgada a 10 de março de 2020, em relação aos quais se presume proprietária por terem sido inscritos a seu favor no registo predial, prova essa que não logrou fazer.
IV - Resultando definitivamente assente nos autos que a ré, desde 2014, tem utilizado o espaço referido em a) na convicção de ser sua titular, à vista de todos, sem encontrar oposição de quem quer que seja, à vista de todos, lavrando a terra, introduzindo as culturas, planando árvores, usando a água, substituindo o portão de acesso, e colhendo os respetivos frutos, tais atos correspondem objetivamente ao exercício de poderes de facto inerentes do direito de propriedade, e estando comprovado o elemento psicológico que permite qualificar a referida atuação, a recorrente, na qualidade de possuidora, goza da presunção da titularidade do direito prevista no artigo 1268.º, n.º 1 do CC.
V - Já a recorrida não pode beneficiar da presunção de propriedade resultante do registo, mesmo que mais recente, relativamente à concreta parcela de terreno que se demonstrou que a recorrente ocupa, atendendo aos factos definitivamente assentes.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

BB instaurou ação declarativa, sob a forma comum, contra CC, pedindo a condenação da ré a:
a) reconhecer que nenhum direito de propriedade tem sobre as parcelas em causa (artigos ...47..., ...48..., ...49... e ...50.º);
b) reconhecer que os artigos atrás referidos são propriedade da A DD;
c) Abster-se de, por qualquer meio, obstar à fruição e posse dos terrenos pela A;
d) desocupar o mesmo terreno, deixando-o livre e devoluto.
Para fundamentar as suas pretensões, a autora alegou, em síntese, que por escritura de compra e venda outorgada em 10-03-2020 adquiriu quatro prédios rústicos sitos em ... freguesia ..., concelho ...: - artigo 2347.º com a área de 240m2, que confronta a norte com a escola, nascente e sul EE e poente com caminho público; - artigo 2348.º com a área de 24 m2 a confrontar a norte e nascente com FF, sul com a escola e poente com caminho público; - artigo 2349.º com a área de 98 m2 que confronta a norte com ..., nascente EE, sul com casa de habitação de AA e poente com caminho público; - artigo 2350.º com a área de 46 m2 que confronta a norte com GG, nascente EE, sul FF e poente caminho público; que faziam parte da herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito de HH, falecido que foi a ../../2011 a que sucedeu como única e universal herdeira o seu cônjuge AA, encontrando-se os prédios atrás referidos registados na CRP ... a favor da A, pela AP ...34 de 11-03-2020; a autora reside em ... e deslocando-se poucas vezes a Portugal, numa dessas vindas apercebeu-se de que a ré começou a cultivar as parcelas referidas, concretamente plantando árvores e fazendo culturas agrícolas sazonais. Sendo chamada à atenção por estar a cultivar prédio que lhe não pertencia, a ré referiu que esse terreno lhe pertencia, uma vez que o tinha comprado a AA; estas parcelas são imediatamente nas traseiras das casas da autora e da ré, acedendo-se às mesmas por um portão a partir de um caminho público.
A ré contestou, excecionando a ineptidão da petição inicial e impugnando os factos alegados pela autora. Pugna pela improcedência da ação, sustentando que que os prédios que a autora reivindica se situam no lugar da ..., que dista da casa da ré cerca 500 metros, afirmando desconhecer os terrenos que a autora reivindica, os quais não estão na sua posse.
Mais alega a ré que, no dia 16 de abril de 2014, comprou a AA o prédio urbano inscrito na matriz da freguesia ... sob o art.º ...89.º, o qual é constituído por casa, cabanal, garagem/armazém com cerca de 41 m2 e uma parcela de terreno com cerca de 400 m2, tendo sido este conjunto que a referida AA vendeu à ré. A ré possui este prédio desde 2014 até ao presente, no seu conjunto, como coisa sua, de forma pública, pacifica, ininterrupta, de boa fé e na convicção de ser dona exclusiva do mesmo. Lavra a terra, introduz as culturas que quer, planta árvores, faz uso da água, substituiu o portão de acesso à terra, colhe os frutos; tudo sem prestar contas a ninguém e sempre na convicção de estar a exercer um direito próprio. Acresce que é no referido terreno que se situa a “fossa” séptica, sendo pelo mesmo que passam as condutas de água que permitem o abastecimento da casa e é no muro de vedação do terreno que está implantando o contador da água. Existem duas janelas da casa de habitação que deitam diretamente para o referido terreno. A autora bem sabe que nenhum direito lhe assiste sobre tal prédio.
Deduziu incidente de intervenção principal provocada de AA, uma vez que se a presente ação for procedente, entende ter um direito de regresso contra a mesma pois pretende anular, com base em erro, o contrato de compra e venda que outorgou.
Designada data para a realização de audiência prévia, foi proferido despacho julgando improcedente a exceção dilatória de nulidade de todo o processado por ineptidão da petição inicial e indeferindo o incidente de intervenção deduzido. Foi proferido despacho sobre os meios de prova apresentados e requeridos.
Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, julgando a ação procedente, a qual se transcreve na parte dispositiva:

«Por tudo quanto foi dito julgo a presente ação que BB instaurou contra CC procedente por provada e, em consequência:
A) reconheço a autora titular do direito de propriedade sobre os prédios descritos na escritura pública outorgada a 10 de março de 2020 em que foi vendedora AA:
a) Prédio rústico composto de terra de cultivo com a área de 290 m2, a confrontar do norte com Escola, nascente e sul com EE e poente com caminho público, inscrito na matriz sob o art. ...47º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 e o direito de propriedade inscrito a favor da autora pela Ap....34 de 2020/03/11.
b) Prédio rústico composto de horta com a área de 24 m2, a confrontar do norte e nascente com FF, sul com Escola, e poente com caminho público, inscrito na matriz sob o art. ...48º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 e o direito de propriedade inscrito a favor da autora pela Ap....34 de 2020/03/11.
c) Prédio rústico composto de terra de cultivo com a área de 98 m2, a confrontar do norte com ..., nascente com EE, sul com casa de habitação de AA e poente com caminho público, inscrito na matriz sob o art. ...49º, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 e o direito de propriedade inscrito a favor da autora pela Ap....34 de 2020/03/11.
d) Prédio rústico composto de horta com a área de 46 m2, a confrontar do norte com GG, nascente com EE, sul com FF e poente com caminho público, inscrito na matriz sob o art. ...50º, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 e o direito de propriedade inscrito a favor da autora pela Ap....34 de 2020/03/11.
B) Condeno a ré a desocupar e a entregar os identificados prédios à autora, livre e devolutos, bem como a abster-se de praticar qualquer ato que afete ou perturbe o exercício do direito de propriedade da autora.
Custas a cargo da ré – cfr. art. 527º, do Cód. Proc. Civil.
Registe e notifique.
(…)».

Inconformada com esta decisão, a ré interpôs recurso de apelação, pugnando no sentido da revogação da decisão e sua substituição por outra que julgue a ação improcedente, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1- A Recorrente/Apelante entende que a douta sentença é injusta e não realiza uma avaliação, correcta e ponderada, da prova produzida e atendível.
2- A douta sentença recorrida enferma de nulidade por omissão de pronúncia e, ainda, por falta de fundamentação,
3- Designadamente, quando é totalmente omissa quanto à localização dos imóveis e ao local da “...” que lhe está associado,
4- E quando nada menciona quanto à declaração emitida pela Junta de Freguesia e que situa a “...” a quinhentos metros das casas da Recorrente e da Recorrida,
5- A douta sentença recorrida enferma, ainda, do vício de falta de fundamentação quanto refere a existência de quatro parcelas de terreno, quando as descreve, quando refere as suas áreas e quando define as suas confrontações,
6- A Recorrente, sempre, afirmou que só existe (e só possui) uma parcela de terreno,
7- Nenhuma das testemunhas foi inquirida quanto a essa matéria; pelo que o Tribunal não tem como julgar tal(ais) questão(ões),      
8- Verifica-se, ainda, ser impossível de “encaixar” (qual puzzle) as quatro parcelas umas nas outras, em função dessas confrontações,    
9- A admitir-se que a confrontação com a Escola, respeita a uma, antiga, escola que funcionava numa das casas (fosse na casa da testemunha AA, fosse na casa da Autora), como é que uma das parcelas confronta pelo norte com a Escola (a que corresponde ao artigo matricial ...47º.) e outra confronta a sul, também, com a Escola (a que é identificada com o artigo matricial ...48º.) ? E, na presença do “desenho” apresentado pela Recorrida como é que todas confrontam pelo poente com o caminho público?
10- Desde logo, quando todas confrontam pelo poente com o caminho público e quando duas confrontam em lugares opostos com a Escola!!!     
11- É, assim, manifesto que o Tribunal “a quo” não realizou uma correcta apreciação da prova produzida e que ocorre, de forma notória e evidente, erro (e contradições, manifestas) na apreciação da prova,    
12- Entende a Recorrente/Apelante que, nos termos do disposto no artigo 640º. Do C.P.Civil, a prova produzida (e as regras atinentes ao ónus da prova) impunha resposta diversa à matéria de facto dada como provada;
13- E que, de acordo com a prova produzida, os pontos 1 (no que se refere às descrições, áreas e confrontações), 6 e 7 dos factos dados como provados estão incorretamente julgados, devendo ser considerados como não provados.
14- Enquanto que o ponto a) dos factos não provados resultou provado e demonstrado, pelo que deve ser incluído nos factos provados.
15- Defende, ainda, nos termos do disposto no artigo 639º do C.P.Civil, que a factualidade que deveria ter sido dada como provada, impunha a subsunção a normas jurídicas diversas das que foram aplicadas in casu ou, no menos, a uma outra interpretação das mesmas e, em consequência, à improcedência da acção.
16- O depoimento prestado pela vendedora - a testemunha AA - é pouco consistente e pouco credível; em todo o caso, não identifica o local, em questão, como “...”, nunca refere a existência de quatro parcelas de terreno, em 2014 julgava que o terreno fazia parte da casa que vendeu à Recorrente, que “vendeu” a terra, mais, tarde, por vingança à Recorrida e que não recebeu qualquer preço…
17- A mera presunção do registo - em que parece sustentar-se a douta decisão recorrida - é inócua quanto à descrição, áreas e confrontações dos imóveis,
18- O artº. 1268º., nº. 1 CC, refere que “o possuidor goza da presunção da titularidade do direito excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.   
19- Ora, como se constata, à saciedade, em 2014 (data em que a Recorrente iniciou os actos de posse) a “vendedora” AA não tinha o(s) terreno(s) registado(s) (aliás, foi às Finanças e verificou que “não tinha nome, nem número…) e, em 2014, estava convicta de que a terra fazia parte da casa; pelo que a Recorrente, na qualidade de possuidora, é que goza da presunção da titularidade do direito.
20- A douta decisão recorrida viola ou interpreta de forma errada o principio da livre apreciação da prova (previsto no artº. 607º., nº. 5 CPC), os artigos 444º. e ss, 615º., nº. 1, al.s be d) todos do CPC, 1268º. e 1311º. e ss. CC.
Nestes termos, e nos melhores de direito aplicável, deverá ser dado provimento ao presente recurso, e, em consequência, revogada a douta sentença recorrida e esta substituída por douto Acórdão que realize uma correcta apreciação da prova produzida e, em consequência, julgue a acção improcedente.
Assim se fará, cremos, equilibrada e sã
JUSTIÇA!».

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Tribunal recorrido proferiu o despacho previsto nos artigos 617.º, n.º 1, 641.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), entendendo não se verificar a nulidade invocada.
O recurso foi então admitido como apelação, com subida imediata e efeito meramente devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, tendo o recurso sido admitido nos mesmos termos.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações do recorrente, e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - cf. artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) - o objeto da apelação circunscreve-se às seguintes questões:

A) se a sentença recorrida padece das nulidades que lhe são imputadas pela recorrente;
B) impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
C) reapreciação de direito em função da pretendida modificação da matéria de facto.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos
1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra, relevando ainda os seguintes factos considerados provados pela 1.ª Instância na decisão recorrida:
1. Por escritura pública datada de 10 de março de 2020, AA vendeu a BB os seguintes prédios:
UM - Prédio rústico composto de terra de cultivo com a área de 290 m2, a confrontar do norte com Escola, nascente e sul com EE e poente com caminho público, não descrito na Conservatória do Registo Predial ... e inscrito na matriz sob o art.º ...47.º;
DOIS - Prédio rústico composto de horta com a área de 24 m2, a confrontar do norte e nascente com FF, sul com Escola, e poente com caminho público, não descrito na Conservatória do Registo Predial ... e inscrito na matriz sob o art.º ...48.º;
TRÊS - Prédio rústico composto de terra de cultivo com a área de 98 m2, a confrontar do norte com ..., nascente com EE, sul com casa de habitação de AA e poente com caminho público, não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., e inscrito na matriz sob o art.º ...49.º;
QUATRO - Prédio rústico composto de horta com a área de 46 m2, a confrontar do norte com GG, nascente com EE, sul com FF e poente com caminho público, não descrito na Conservatória do Registo Predial ... e inscrito na matriz sob o art.º ...50.º.
2. O prédio inscrito na matriz sob o art.º ...47.º encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 e o direito de propriedade inscrito a favor da autora pela Ap....34 de 2020/03/11.
3. O prédio inscrito na matriz sob o art.º ...48.º encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 e o direito de propriedade inscrito a favor da autora pela Ap....34 de 2020/03/11.
4. O prédio inscrito na matriz sob o art.º ...49.º encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 e o direito de propriedade inscrito a favor da autora pela Ap....34 de 2020/03/11.
5. O prédio inscrito na matriz sob o art.º ...50.º encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 e o direito de propriedade inscrito a favor da autora pela Ap....34 de 2020/03/11.
6. A ré cultiva as parcelas referidas em 1, as quais se situam nas traseiras das casas de habitação da autora e da ré.
7. Os prédios descritos em 1, pertenciam ao casal HH e AA que desde sempre os cultivaram e trataram como sendo seus, retirando os frutos à vista de toda a gente, de forma pacifica e de boa fé.
8. Por escritura celebrada no dia 16 de abril de 2014, AA vendeu à ré CC, com reserva de usufruto vitalício para a vendedora, quanto ao prédio identificado sob o número UM os prédios sitos na freguesia ..., concelho ...:
UM - Prédio urbano situado em ..., composto de edifício de ... e primeiro, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...30 e inscrito na matriz predial sob o art. ...89º;
DOIS - Três quartas partes indivisas do prédio rústico, situado em ..., composto de ..., pastagem e monte com pinhal, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...23 e inscrito na matriz sob o art. ...86º.
9. Os prédios descritos em 8 encontram-se registados a favor da vendedora pela Ap. ...34 de 20/12/2012.
10. Mais declarou a vendedora que «no prédio identificado sob o número dois existe um poço, cuja água é utilizada no prédio urbano retro identificado sob o número um e ainda uma casa dos herdeiros de II.»
11. O prédio urbano descrito em 8 encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial como tendo uma área total de 110m2 (que coincide com a superfície coberta), composto por edifício de ... e ... andar, a confrontar do norte com proprietário, do nascente com EE, do sul com proprietário e de poente com Padre JJ.
12. O direito de propriedade sobre o prédio urbano descrito em 8 encontra-se inscrito a favor da ré pela Ap....50 de 2014/04/16.
13. A ré, desde 2014, que tem utilizado o espaço referido em a) na convicção de ser sua titular, à vista de todos, sem encontrar oposição de quem quer que seja, à vista de todos, lavrando a terra, introduzindo as culturas, planando árvores, usando a água, substituiu o portão de acesso, e colhe os respetivos frutos.
1.2. Factos considerados não provados pela 1.ª instância na sentença recorrida:
a) O prédio urbano descrito em 8 é constituído por: casa, cabanal, garagem/armazém com 41 m2 e uma parcela de terreno com 400 m2.

2. Apreciação sobre o objeto do recurso
2.1. Da nulidade da decisão recorrida
A recorrente sustenta que a sentença recorrida enferma de nulidade por omissão de pronúncia - por ser totalmente omissa quanto à localização dos imóveis e ao local da “...”, que lhe está associado, e nada menciona quanto à declaração emitida pela Junta de Freguesia e que situa a “...” a quinhentos metros das casas da recorrente e da recorrida - e, ainda, por falta de fundamentação - quando refere a existência de quatro parcelas de terreno, quando as descreve, quando refere as suas áreas e quando define as suas confrontações.
Segundo alega, sempre afirmou que só existe (e só possui) uma parcela de terreno, nenhuma das testemunhas foi inquirida quanto a essa matéria, pelo que o Tribunal não tem como julgar tal(ais) questão(ões), verificando-se, ainda, ser impossível de “encaixar” (qual puzzle) as quatro parcelas umas nas outras, em função dessas confrontações. A admitir-se que a confrontação com a escola, respeita a uma, antiga, escola que funcionava numa das casas (fosse na casa da testemunha AA, fosse na casa da autora), como é que uma das parcelas confronta pelo norte com a escola (a que corresponde ao artigo matricial ...47.º e outra confronta a sul, também, com a escola (a que é identificada com o artigo matricial ...48.º) e, na presença do “desenho” apresentado pela recorrida, como é que todas confrontam pelo poente com o caminho público, desde logo quando todas confrontam pelo poente com o caminho público e quando duas confrontam em lugares opostos com a escola.
Apreciando as nulidades suscitadas, importa considerar que as causas de nulidade da sentença encontram-se previstas no n.º 1 do artigo 615.º do CPC, nos termos do qual, é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

A nulidade prevista na citada al. b), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC está diretamente relacionada com a violação do preceituado no artigo 154.º do CPC, que impõe ao juiz o dever de fundamentar as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo (n.º 1), sendo que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade (n.º 2).
O aludido artigo 154.º do CPC está em consonância com o artigo 205.º, n. º1 da Constituição da República Portuguesa, o qual prevê que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Também o artigo 607.º, n.º 3 do CPC, relativo à sentença, impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que julga provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Por último, e conforme dispõe o n.º 4 do citado artigo 607.º do CPC, na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
Neste contexto, a generalidade da doutrina e da jurisprudência vem sustentando que só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de indicação dos fundamentos de facto ou de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do citado artigo 615.º do CPC, não se verificando perante uma fundamentação meramente deficiente, incompleta, não convincente[1].
Por outro lado, referem ainda Lebre de Freitas-Isabel Alexandre[2]: «[f]ace ao actual código, que integra na sentença tanto a decisão sobre a matéria de facto como a fundamentação desta decisão (art. 607, n.os 3 e 4), deve considerar-se que a nulidade consagrada na alínea b) do n.º1 (falta de especificação dos fundamentos que justificam a decisão) apenas se reporta à primeira, sendo à segunda, diversamente, aplicável o regime do art. 662, n.º s 2-d e 3, alíneas b) e d)».
Revertendo ao caso em apreciação, logo se observa que foram devidamente discriminados na decisão recorrida todos os factos relevantes que o Tribunal a quo considerou provados e não provados, em conformidade com o preceituado no artigo 607.º, n.º 3 do CPC conforme decorre da própria alegação da recorrente que alude aos factos enunciados pelo Tribunal recorrido.
Mais se verifica que a sentença recorrida, no segmento com a epígrafe «Fundamentação», apresenta os fundamentos em que se baseou a decisão sobre a matéria de facto, sendo aí mencionados os meios de prova concretamente valorados e os critérios determinativos de tal decisão.
Por último, tal como também decorre da sentença recorrida, a Mma. Juíza a quo indicou, interpretou e aplicou as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
Do exposto resulta que da fundamentação da sentença constam os elementos, de facto e de direito, que permitem suficientemente alcançar os fundamentos em que se alicerça, conforme decorre da própria alegação da recorrente que alude aos factos enunciados na decisão recorrida, impugnando a decisão quanto à matéria de facto e ao direito.
Por conseguinte, não se verifica a invocada nulidade da sentença por falta de fundamentação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.
O fundamento da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, deriva do incumprimento do disposto no artigo 608.º, n.º 2 do mesmo Código, do qual consta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Densificando o âmbito da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, referem Lebre de Freitas-Isabel Alexandre[3]: «[d]evendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado (…)».
Nas palavras de Alberto dos Reis[4], «[s]ão, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão».
A par da doutrina, também a jurisprudência que entendemos de sufragar tem vindo a considerar que a referida nulidade só se verifica quando determinada questão colocada ao tribunal - e relevante para a decisão do litígio por se integrar na causa de pedir ou em alguma exceção invocada - não é objeto de apreciação, não já quando tão só ocorre mera ausência de discussão das “razões” ou dos “argumentos" invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas[5].
Em consonância com este entendimento, pronunciou-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3-10-2017[6], com o seguinte sumário: « (…) II - A nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objecto do recurso, em directa conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608.º e 609.º do CPC, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada. III - A expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia».
Deste modo, «as questões que integram o objeto do recurso e que devem ser objeto de necessária apreciação por parte do tribunal ad quem não se confundem com meras considerações, argumentos, motivos ou juízos de valor. Ao tribunal ad quem cumpre apreciar as questões suscitadas, sob pena de omissão de pronúncia, mas não tem o dever de responder, ponto por ponto, a cada argumento que seja apresentado para a sua sustentação. “Argumentos” não são “questões”, e é a estas que essencialmente se deve dirigir a atividade judicativa»[7].
 Por outro lado, importa ainda sublinhar que o conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição direta sobre ela, ou resultar de ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou exclui[8].
De resto, o regime previsto no artigo 615.º CPC não se aplica, sem mais, à parte da sentença relativa à decisão sobre a matéria de facto, porque, conforme esclarecem Lebre de Freitas-Isabel Alexandre[9], «a invocação de vários dos vícios que a esta dizem respeito é feita nos termos do art. 640 e porque a consequência desses vícios não é necessariamente a anulação do ato (cf. os n.ºs 2 e 3 do art. 662)».
Como tal, «o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC»[10].
No caso, o Tribunal a quo apreciou todas as questões relevantes que lhe foram colocadas, o que não se confunde com a análise de todos os argumentos, motivos ou juízos de valor em que as partes fundam a sua posição na controvérsia, ainda que em sede de valoração de determinados meios de prova.
Perante o exposto, importa concluir que a arguição da nulidade suscitada pela recorrente não permite consubstanciar o vício invocado, antes traduzindo a respetiva discordância quanto ao mérito da decisão proferida.
Pelo exposto, não enferma a decisão recorrida de qualquer nulidade que cumpra verificar ou declarar.
Improcede, assim, a suscitada nulidade da decisão recorrida.
2.2. Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
A apelante/ré impugna a decisão relativa à matéria de facto incluída na sentença recorrida, sustentando que, em face da prova produzida, os pontos 1 (no que se refere às descrições, áreas e confrontações), 6 e 7 dos factos dados como provados, estão incorretamente julgados, devendo ser considerados como não provados, e a alínea a) dos factos não provados resulta provada e demonstrada, pelo que deve ser incluída nos factos provados.
Tal como resulta da análise conjugada do disposto nos artigos 639.º e 640.º do CPC, os recursos para a Relação tanto podem envolver matéria de direito como de facto, sendo este último o meio adequado e específico legalmente imposto ao recorrente que pretenda manifestar divergências quanto a concretas questões de facto decididas em sede de sentença final pelo Tribunal de 1.ª instância que realizou o julgamento, o que implica o ónus de suscitar a revisão da correspondente decisão.
Deste modo, a impugnação da decisão de facto feita perante a Relação não se destina a que este Tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em 1.ª instância, razão pela qual se impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objeto do recurso e à respetiva fundamentação[11].
No que respeita aos pontos da matéria de facto impugnados, observa-se que a apelante indica expressamente os concretos pontos que consideram incorretamente julgados, mais especificando suficientemente a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os factos impugnados.
Por outro lado, afigura-se-nos que a recorrente enuncia de forma percetível os concretos meios probatórios que, no seu entender, determinam uma decisão diversa da proferida, indicando os elementos que permitem minimamente a sua identificação, com indicação das passagens da gravação em que fundam o recurso, quanto aos meios de prova gravados.
Deste modo, consideram-se preenchidos os pressupostos de ordem formal atinentes à impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Resulta do disposto no artigo 662.º, n.º 1 do CPC, com a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Tal como ressalta do preceito agora citado, a reapreciação da decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto deve ter a mesma amplitude que o julgamento efetuado em 1.ª instância, dispondo para tal a Relação de autonomia decisória de forma a assegurar o duplo grau de jurisdição.
A este propósito, refere Abrantes Geraldes[12]: «(…) sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art. 640º, quando estejam em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos à livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência».
Quanto ao âmbito probatório da impugnação deduzida, a recorrente insurge-se contra o relevo probatório atribuído na sentença ao depoimento da testemunha AA (a “vendedora” dos prédios rústicos, em questão), sustentando que o respetivo depoimento, cuja reapreciação requer, é confuso, atabalhoado, pouco consistente e pouco credível, apresentando contradições, nem sequer sabendo se os terrenos lhe pertencem, não os localizando nem individualizando, mais referindo que só “mais tarde” (relativamente à escritura de compra e venda que havia celebrado com a recorrente/ré, em 2014) tomou conhecimento de que os terrenos não faziam parte da casa e que, só depois de o “advogado” ter andado a ver é que descobriu; nunca refere a existência de quatro parcelas de terreno; em 2014 julgava que o terreno fazia parte da casa que vendeu à recorrente, ao mesmo tempo que referiu que mais tarde “vendeu” a terra à recorrida, por vingança, não recebendo qualquer preço.
Em todo o caso, segundo alega a apelante, a testemunha AA não identificou o local em questão como “...”, mas como “KK” ou “II” e da declaração emitida pela Junta de Freguesia, que foi junta aos autos sem impugnação, a “...” localiza-se a cerca de quinhentos metros das casas da recorrente e da recorrida, que são contíguas. Acresce que nenhuma das testemunhas inquiridas conseguiu individualizar/identificar, descrever, indicar as áreas ou as confrontações de uma única parcela de terreno, não explicando o Tribunal recorrido como conseguiu individualizar, identificar, descrever, definir áreas e estabelecer confrontações, tanto mais que no local só existe um “terreno” e a mera presunção do registo - em que parece sustentar-se a douta decisão recorrida - é inócua quanto à descrição, áreas e confrontações dos imóveis, não sendo suficiente para estabelecer a localização dos imóveis, a sua descrição, áreas e confrontações. Não obstante, as confrontações que constam da decisão recorrida e das certidões matriciais e prediais relativamente às quatro terras não permitem, sequer, concluir pela sua confinância, salientando que as mesmas revelam uma impossibilidade, pois, mesmo entendendo que a confrontação com a Escola pretende referir-se à antiga Escola, que funcionou na casa de uma das partes litigantes, nunca podem existir duas parcelas de terreno que confrontam, uma, pelo lado norte, e outra pelo lado sul (cf. as confrontações dos artigos matriciais ...47... e ...48.º.) com Escola, também não podendo confrontar, todas, pelo poente, com o caminho público (nem a recorrida o demonstra no “desenho” que juntou com a petição inicial.
Tal como resulta da fundamentação da decisão de facto constante da decisão recorrida, o depoimento prestado pela testemunha AA foi decisivo para a convicção formulada pelo Tribunal a quo a propósito da matéria de facto em referência.
Assim, tal depoimento foi ponderado em conjunto com as declarações dos outorgantes na escritura pública celebrada no dia 16 de abril de 2014, na parte em que se reportam à área e descrição do prédio nela identificado sob o n.º 1 e com a presunção resultante da descrição constante do registo predial referente ao mesmo prédio, o que decorre designadamente dos seguintes segmentos da sentença impugnada:
«(…)
Deste modo o primeiro depoimento a que se tem de fazer referência, é ao da interveniente como vendedora nas duas escrituras de compra e venda outorgadas - AA.
Referiu a testemunha que vendeu à ré a casa e uma parte de um terreno que tinha um poço que corresponde a duas sortes de castanheiros. De modo perentório afirmou que no lugar em que se encontra a casa só vendeu a casa à ré.
Por sua vez, vendeu à autora os terrenos que pegam com a casa.
Notou-se no depoimento da testemunha, uma certa amargura com a ré, fundada, segundo a testemunha pela circunstância de a mesma não a ter deixado entrar na casa que lhe vendeu, passando a viver no lar.
Ora, ficou o tribunal convencido que, efetivamente a testemunha AA não tem acesso à casa de habitação, o que contraria o teor da escritura, uma vez, que, pela mesma foi reservado para si o usufruto vitalício, pelo que, até à data dispõe do poder de usar e fruir desse imóvel.
(…)
Da prova produzida nos autos, afigura-se claro que o negócio outorgado com a ré no ano de 2014 não abrangeu os prédios rústico que se situam atrás do prédio urbano.
Desde logo porque o documento público que o titula - escritura pública de compra e venda de 16 de abril de 2014 não lhe faz qualquer referência, descrevendo apenas um prédio urbano composto de edifício de ... e primeiro anda, não mencionado nenhuma parte de terreno.
Acresce que a descrição predial refere a área total de 110 m2, não identificando qualquer área descoberta.
Assim, e tendo em consideração o princípio da segurança jurídica que se encontra na base da publicidade registral, há que, partir do princípio que o que dele consta corresponde à realidade, o que aliás, é reforçado pelas presunções regitrais previstas no art. 7º, do Cód. do Registo Predial.
A vendedora - AA - por sua vez, afirmou repetidamente que apenas vendeu à ré a casa, excluindo os terrenos.
Não se poe em causa que a ré tenha efetivamente ocupado e trabalhado o terreno, desde 2014. Porém, inexiste título para o efeito, não podendo a ré desconhecer, de forma desculpável esse facto.
A “ideia” que a casa abrange um terreno com cerca de 400 m2, não tem deste modo qualquer cabimento legal.
No que se refere à escritura outorgada pela autora, a mesma abrange 4 prédios, que a vendedora AA, identificou como sendo situados atrás das casas.
Note-se que a circunstância de visualmente o terreno se apresentar como um único prédio não é impeditivo de que o mesmo seja constituído por 4 prédios autónomos e distintos do ponto de vista jurídico.
Aliás, é recorrente que, em prédios do mesmo proprietário tal suceda, sendo os mesmos trabalhados de forma unitária.
Independentemente do teor da escritura de compra e venda outorgada com a autora, o certo é que no negócio outorgado com a ré não se abrange os referidos prédios.
Mesmo dando de barato que a ré tenha ocupado o terreno e o cultivado como se fosse seu, à vista de todos e sem encontrar qualquer oposição, apenas o faz desde o ano de 2014, pelo que, não estaria cumprido o prazo para usucapir a que se refere o art. 1296º, do Cód. Civil».
Procedemos à reapreciação dos elementos probatórios invocados pela recorrente, designadamente, à ponderação da invocada presunção do registo predial, nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial[13], o que nos remete para os documentos juntos aos autos, especificamente para as certidões da Conservatória do Registo Predial ... referentes aos prédios descritos sob os n.ºs ...11, ...11, ...11, ...11, e ...20, as certidões matriciais referentes aos artigos ...47..., ...48..., ...49... e ...50.º, da freguesia de ..., as escrituras de compra e venda datadas de 16 de abril de 2014 e de 10 de março de 2020, a declaração da Junta de Freguesia ..., de 27 de junho de 2020, a fotografia de satélite junta como doc. ... da petição inicial e para o depoimento da testemunha AA, compreendendo como tal o âmbito material dos depoimentos contidos nas concretas passagens da gravação em que a apelante fundamenta o recurso nesta vertente.
Foram ainda revistos e analisados todos os restantes meios probatórios produzidos em sede de audiência final (o que envolve a globalidade dos depoimentos testemunhais e das declarações de parte nela produzidos), tudo no intuito de evitar conclusões descontextualizadas sobre a matéria impugnada e permitir a completa perceção da facticidade impugnada.
Ainda que as certidões, enquanto meio de prova, tenham a força probatória dos originais, nos termos previstos no artigo 383.º do Código Civil (CC), certo é que, conforme vem sendo entendido de forma unânime pela jurisprudência dos Tribunal Superiores, «a presunção da titularidade do direito de propriedade constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial não abrange a área, limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo, pois o registo predial não é constitutivo e não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio.
(…) a descrição predial de um prédio - assim como as descrições matricial ou notarial - pesem embora constituam elementos enunciativos importantes de identificação, não servem, exclusivamente, para a exata determinação física ou da real situação do prédio, enquanto unidade fundiária contínua.
(…)
A presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial, na parte em que se refere ao objeto, só faz presumir que o facto inscrito incide sobre a coisa identificada na descrição, mas já não as respetivas características. Ou seja, a presunção do registo não se estende à verdade material das confrontações do prédio»[14].
Tal como refere ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-03-2010[15], «a presunção do art. 7º do CRP não abrange os elementos de identificação ou a composição (áreas) dos prédios, porque tal depende da declaração dos titulares e não é verificado pelo Conservador».
Neste enquadramento, também as declarações dos outorgantes nas escrituras públicas acerca das confrontações e/ou áreas dos imóveis constituem meros elementos identificadores do prédio, para efeitos de escritura, não gozando da força probatória plena dos documentos autênticos[16].
Com efeito, os correspondentes documentos apenas fazem prova plena dos factos que nele são referidos como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas perceções da entidade documentadora, sendo que os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador (artigo 371.º, n.º 1 CC).
Deste modo, as aludidas escrituras públicas fazem prova plena do facto de que as declarações delas constantes foram efetuadas, não abrangendo tal força probatória a realidade material do declarado, também não abrangendo as confrontações e delimitações do(s) prédio(s) nela declarado(s) comprar e vender[17], vigorando assim o princípio da livre apreciação das provas quanto aos respetivos segmentos dos documentos em referência.
Por outro lado, no que se reporta às matrizes prediais, «tendo efeitos meramente fiscais, não constituem garantia suficiente das áreas e delimitações delas constantes, até porque podem ser resultado de declarações dos próprios interessados e estão sujeitas a factores de desactualização por decomposição ou por agregação pelos mais variados motivos, designadamente, endireitamento de estremas, acessão, emparcelamento, divisão, desanexação, venda, troca verbal», devendo concluir-se que «[a]s inscrições matriciais não fazem prova plena da localização, da área, da composição, dos limites e das confrontações dos prédios a que se referem, pois que nenhum desses elementos concernentes à identificação física destes é atestado pela autoridade ou funcionários competentes com base nas suas percepções»[18].
Ora, nos presentes autos foi relevantemente questionada a correspondência entre os concretos prédios rústicos de que a autora se arroga proprietária e a concreta parcela de terreno que a ré, desde 2014, tem vindo a utilizar, à vista de todos, sem encontrar oposição de quem quer que seja, à vista de todos.
Por isso, a prova testemunhal assume particular relevo na ponderação dos factos essenciais atinentes aos prédios que foram reivindicados na presente ação e restantes características alegadas pelas partes nos articulados, incluindo no que concerne à respetiva localização, ao tipo de aproveitamento e aos atos praticados ao longo dos anos, devendo aquela ser valorada em conjunto com os documentos juntos aos autos, entre os quais a declaração da Junta de Freguesia ... de 27 de junho de 2020, todos eles sujeitos à livre apreciação do Tribunal.
Reapreciado atentamente e de forma crítica o depoimento da testemunha AA em conjunto com os elementos que resultam das descrições prediais, das matrizes prediais e das declarações exaradas em escritura pública, reportados aos prédios referenciados na matéria de facto objeto de impugnação, entendemos que tais meios de prova não revelam as virtualidades probatórias enunciadas pelo Tribunal a quo na motivação da decisão da matéria de facto, nem os mesmos se revelam idóneos para fundamentar um juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança que permita dar como provados os pontos 1 (no que se refere às descrições, áreas e confrontações dos prédios que nele são descritos), 6 e 7 dos factos dados como provados.
Assim, na valoração da credibilidade do depoimento da testemunha AA, não podemos deixar de valorar a patente hostilidade revelada para com a ré, sua sobrinha, referindo estar zangada com a mesma, a quem acusa de lhe ter feito muito mal (“Muita muita queixa para ela”; “pôs-me na rua com as portas fechadas”), chegando ao ponto de afirmar que vendeu o terreno à autora por ela (ré) “ser tão má para mim”, ao mesmo tempo que referiu não ter recebido dinheiro por essa venda, que referiu ter sido feita “por boca”.
Neste contexto, a testemunha AA foi confrontada com a existência de «uma escritura e está assinada por si em março de 2020 e a senhora diz que já recebeu o dinheiro D. AA. Então em que é que ficamos? Olhe, que diz aqui nem diz por 2.000,00€ diz por 500,00€ e diz que a senhora que já recebeu em dinheiro, em notas que vendeu então as terras à Conceição», ao que respondeu: «Não recebi porque não aceitei, porque não sabia se aquilo era meu se não era».
No essencial, o depoimento em referência revela-se manifestamente inconsistente e repleto de contradições, desconhecendo circunstâncias de que seria normal ter conhecimento à luz da razão de ciência invocada, nem sequer sabendo se os terrenos lhe pertencem, tanto assim que afirmou nada ter ainda recebido a título de contraprestação pela venda que referiu ter sido feita “por boca”, também não logrando explicitar as concretas características de tais prédios nem o(s) específico(s) contexto(s) em que os adquiriu.
Em conclusão, nunca um juízo rigoroso sobre a (in)verificação da concreta matéria de facto impugnada poderá ser feito tendo por base tal depoimento.
Deste modo, subsistem sérias e inultrapassáveis dúvidas quanto à localização dos prédios descritos sob os n.ºs ...11, ...11, ...11, ...11, e ...20 (a que correspondem os artigos matriciais ...47..., ...48..., ...49... e ...50.º, da freguesia de ...), atendendo ainda à declaração da Junta de Freguesia ..., de 27 de junho de 2020, da qual consta, entre o mais, que, o local da ... dista da habitação da ora ré aproximadamente quinhentos metros, o que impede que se estabeleça a necessária correspondência entre os concretos prédios rústicos de que a autora se arroga proprietária e a concreta parcela de terreno situada nas traseiras das casas de habitação da autora e da ré, que a ré, desde 2014, tem vindo a utilizar, à vista de todos, sem encontrar oposição de quem quer que seja, à vista de todos.
Ademais, analisados todos os restantes depoimentos prestados em sede de audiência final, nos quais se incluem as declarações prestadas por todas as testemunhas indicadas por ambas as partes, constata-se de forma clara que nenhuma das testemunhas ouvidas soube esclarecer de forma circunstanciada e consistente os aspetos que permanecem controvertidos relativamente aos elementos ou componentes essenciais da realidade dos prédios enunciados em 1., 6., 7., assim como à concreta conformação da realidade predial descrita em a) dos factos não provados, assim como das escrituras de compra e venda datadas de 16 de abril de 2014 e de 10 de março de 2020, não decorrendo da respetiva análise um juízo de suficiente probabilidade da verificação dos correspondentes factos, pelo que cumpre julgá-los não provados.
Tal constatação impõe se mantenha como não provado, igualmente, o facto enunciado na al. a) dos factos não provados.
Em conformidade com a ponderação antes efetuada, resta julgar parcialmente procedente a impugnação da decisão de facto, em consequência do que se decide:
i) dar como não provado o ponto 1 dos factos provados, no que se refere às descrições, áreas e confrontações dos prédios que nele são descritos, passando a ter a redação seguinte: 1. Por escritura pública datada de 10 de março de 2020, AA vendeu a BB os seguintes prédios: UM - Prédio rústico composto de terra de cultivo, inscrito na matriz sob o art.º ...47.º; DOIS - Prédio rústico composto de horta, inscrito na matriz sob o art.º ...48.º; TRÊS - Prédio rústico inscrito composto de terra de cultivo, inscrito na matriz sob o art.º ...49.º; QUATRO - Prédio rústico composto de horta, inscrito na matriz sob o art.º ...50.º;
ii) julgar não provada a matéria vertida nos pontos 6., e 7., dos factos provados, que passarão a integrar os factos não provados, mantendo-se, em tudo o mais, o elenco dos factos provados e não provados constante da sentença recorrida.

2.3. Da reapreciação do mérito da decisão de direito
A sentença recorrida fez o enquadramento das questões de natureza jurídica relevantes para o objeto da presente ação, começando por enunciar que a presente ação configura uma típica ação de reivindicação, qualificação que se acompanha à luz do objeto da ação em referência.
A ação de reivindicação traduz-se num meio repressivo de defesa da propriedade, previsto no artigo 1311.º do CC, onde se estatui que o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence (n.º 1).
Deste modo, o pedido de reconhecimento do direito de propriedade e a restituição da coisa integram e caracterizam a ação de reivindicação, recaindo sobre o reivindicante o ónus de provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do réu[19].
Em consequência, «a causa de pedir na lide reivindicatória é complexa consistindo no facto jurídico de que deriva o direito de propriedade, que deve consistir na alegação de uma das formas originárias de adquirir, (podendo contudo bastar-se com a existência de uma presunção registral) exigindo-se alegação e prova da ocupação abusiva e da coincidência entre a coisa reivindicada e a detida pelo demandado[20]».
Nos termos do disposto no artigo 1316.º do CC, o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei.
Tal como anota Elsa Sequeira Santos[21], «a prova da titularidade do direito do reivindicante não depende apenas da prova de ter existido um meio apto à aquisição de propriedade: é ainda necessário, se a aquisição foi derivada, demonstrar a titularidade do transmitente. A qual, por sua vez, dependerá da titularidade do direito daquele a quem este tiver adquirido, e assim sucessivamente. Pensando no exemplo de a coisa ser transmitida mediante contratos de compra e venda, a titularidade de quem agora se apresenta como proprietário depende da demonstração da titularidade a favor de todos os elementos da cadeia de transmissões, até se encontrar uma aquisição originária».
Daí que, tratando-se de ação real, cuja causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito de propriedade só a aquisição originária se pode impor de maneira absoluta a todo o possuidor, posto que a presunção de propriedade gerada face ao artigo 7.º do Código de Registo Predial pelo registo definitivo do direito, é meramente juris tantum, ilidível pois pela prova de uma posse mais antiga[22].
 Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-11-2021[23]: «Para a procedência desse tipo de ação torna-se necessário a comprovação, por um lado, de um requisito subjetivo, que consiste em ser o autor o proprietário da coisa reivindicada, e, por outro, de um requisito objetivo, ou seja, a identidade entre a coisa reivindicada e a possuída pelo réu, cujo ónus de prova incumbe (em regra) ao autor, por serem factos constitutivos do seu direito (artº. 342º, nº. 1)».
 No caso em análise, a autora arroga-se proprietária de dos prédios rústicos que reivindica, alegando que os adquiriu de AA, por escritura pública de compra e venda datada de 10 de março de 2020, invocando, como tal, uma forma derivada de aquisição de direitos.
Apesar de não vir alegada, nem ter sido demonstrada, a aquisição originária do direito de propriedade sobre os aludidos prédios, por si ou por algum dos seus antepossuidores, a autora invocou a presunção derivada do registo, prevista no citado artigo 7.º do Código do Registo Predial[24].
Contudo, a recorrente/ré questionou na presente ação a correspondência entre os concretos prédios rústicos de que a autora se arroga proprietária e a concreta parcela de terreno situada nas traseiras das casas de habitação da autora e da ré, que aquela ré, desde 2014, tem vindo a utilizar, à vista de todos, sem encontrar oposição de quem quer que seja, assim invocando, quanto a esta parcela de terreno, a presunção legal fundada na posse, tal como prevista no artigo 1268.º, n.º 1 do CC, ao estatuir que o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.
 No âmbito da sentença recorrida o Tribunal a quo concluiu pela total procedência da ação, reconhecendo a autora titular do direito de propriedade sobre os prédios descritos na escritura pública outorgada a 10 de março de 2020 em que foi vendedora AA, mais condenando a ré a desocupar e a entregar os identificados prédios à autora, livre e devolutos, bem como a abster-se de praticar qualquer ato que afete ou perturbe o exercício do direito de propriedade da autora.
Para o efeito, enunciou, no essencial, os seguintes fundamentos:
«(…)
Ficou demonstrado que por escritura pública datada de 10 de março de 2020, a autora adquiriu os prédios que aqui reclama.
Estando em causa bens imóveis o contrato de compra e venda está sujeito a forma legal nos termos do art. 875º, do Cód. Civil, tendo de ser outorgado por escritura pública ou por documento particular autenticado.
Tendo sido celebrado com respeito pela forma legal, nos termos do art. 408º, do Cód. Civil o direito de propriedade sobre os bens imóveis, transferiu-se da vendedora para a compradora - aqui autora, no momento em que o contrato foi celebrado - cfr. art. 1317º, al. a), do Cód. Civil.
Em face do exposto, a autora adquiriu o direito de propriedade sobre os referidos prédios.
Aliás, tais prédios encontram-se inscritos no registo a favor da autora, pelo que, de acordo com o disposto no art. 7º, do Cód. do Registo Predial, se presume que o mesmo existe, nos termos em que o registo o define, a favor do titular inscrito.
Cabia à ré ilidir essa presunção, porém, não o logrou fazer.
É certo que a ré, desde o ano de 2014 - data em que celebrou com AA a já referida escritura de compra e venda - ocupou tais prédios, cultivando-os, o que fez à vista de todos, sem oposição e na convicção de se encontrar a exercer um direito próprio.
E, em face de tal comportamento, a ré reveste a qualidade de possuidora dos referidos bens imóveis – cfr. art. 1251º, do Cód. Civil.

A posse, como é consabido, é uma forma de aquisição originária de direitos reais, designadamente do direito de propriedade que implica:
- a posse pública e pacifica;
- o decurso de um certo lapso de tempo;
- a invocação dessa aquisição através do instituto da usucapião.
Assumindo que a posse da ré é pública e pacifica - cfr. arts. 1261º e 1262º, do Cód. Civil - não titulada e de boa fé - cfr. arts. 1259º e 1260º, do Cód. Civil - seria necessário o decurso do prazo de 15 anos previsto no art. 1296º, do mesmo diploma, para que estivessem reunidos os requisitos que permitiram a aquisição do correspondente direito - o direito de propriedade – sobre os prédios em causa.
Tendo decorrido cerca de 6 anos e meio desde a data da celebração da escritura por parte da ré até à instauração da presente ação, a mesma não pode adquirir por usucapião o direito de propriedade sobre os prédios em causa.
Logo, há que reconhecer à autora o direito de propriedade sobre os prédios que reivindica.
(…)».
Constata-se, porém, que o quadro fáctico que releva para a subsunção jurídica é sensivelmente diferente daquele que serviu de base à prolação da sentença recorrida, por força das alterações agora decididas em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, em especial tendo presente que a matéria vertida pelo Tribunal a quo nos pontos 6., e 7., dos factos provados não pode ter-se como demonstrada com base na prova produzida.
Resulta da fundamentação da sentença recorrida que o Tribunal a quo se socorreu do facto de os quatro prédios rústicos que vêm reclamados pela autora na presente ação se encontrarem descritos na correspondente Conservatória do Registo Predial, em nome desta, desde ../../2020.
No entanto, como antes já vimos, é indiscutível que a presunção consagrada no citado artigo 7.º do Código do Registo Predial não abrange fatores descritivos, como as áreas, limites ou confrontações dos prédios, cingindo-se apenas à existência do direito e à sua pertença às pessoas em cujo nome se encontra inscrito.
Deste modo, o registo não faz presumir que os referidos prédios tenham a concreta composição, confrontações e área que constam das descrições prediais respetivas nem a concreta área dos respetivos componentes, sendo que no caso a recorrente/ré questionou relevantemente nos autos a correspondência entre os concretos prédios rústicos de que a autora se arroga proprietária e a concreta parcela de terreno situada nas traseiras das casas de habitação da autora e da ré, que aquela ré, desde 2014, tem vindo a utilizar, à vista de todos.
Nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1 do CC, competia à autora/recorrida provar que a parcela de terreno situada nas traseiras das casas de habitação da autora e da ré, que aquela ré, desde 2014, tem vindo a utilizar, à vista de todos, faz parte integrante dos quatro prédios rústicos que adquiriu de AA por escritura pública outorgada a 10 de março de 2020, em relação aos quais se presume proprietária por terem sido inscritos a seu favor no registo predial, prova essa que não logrou fazer, tal como resulta da resposta negativa que mereceram os enunciados pontos 6., e 7., do elenco dos factos provados que constava da sentença recorrida, o que só por si leva à alteração do segmento A) do dispositivo da sentença recorrida, em conformidade com os factos que resultaram provados e à revogação do correspondente segmento B), que condenou a ré a desocupar e a entregar os identificados prédios à autora, livre e devolutos, bem como a abster-se de praticar qualquer ato que afete ou perturbe o exercício do direito de propriedade da autora.
Aliás, resulta definitivamente assente nos autos que a ré, desde 2014, tem utilizado o espaço referido em a) na convicção de ser sua titular, à vista de todos, sem encontrar oposição de quem quer que seja, à vista de todos, lavrando a terra, introduzindo as culturas, plantando árvores, usando a água, substituindo o portão de acesso, e colhendo os respetivos frutos - cf. o ponto 13 dos factos provados.
O artigo 1251.º do CC define posse como o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
Ora, os atos praticados pela ré o espaço referido em a), correspondem objetivamente ao exercício de poderes de facto inerentes do direito de propriedade, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 1251.º, 1252.º, 1257.º do CC, estando comprovado o elemento psicológico que permite qualificar a referida atuação, pelo que a recorrente, na qualidade de possuidora, goza da presunção da titularidade do direito prevista no artigo 1268.º, n.º 1 do CC, sendo que, à luz dos factos definitivamente assentes, a recorrida não pode beneficiar da presunção de propriedade resultante do registo, mesmo que mais recente, relativamente à concreta parcela de terreno que se demonstrou que a recorrente ocupa.
Procede, assim, integralmente a apelação com a consequente revogação da sentença recorrida.
Tal como resulta da regra enunciada no artigo 527.º, n.º 1 do CPC, a responsabilidade por custas assenta num critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo. Neste domínio, esclarece o n.º 2 do citado preceito, entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso em apreciação, como a apelação foi julgada totalmente procedente, as custas da ação e da apelação são integralmente da responsabilidade da recorrida/autora, atento o seu decaimento.
*
IV. Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a presente apelação, assim revogando a sentença recorrida, que se substitui por decisão a julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência, altera-se o dispositivo da sentença recorrida, passando o mesmo a ter a seguinte redação:

«(…)
Pelo exposto, julga-se a ação parcialmente procedente e, em consequência:
- declara-se que a autora é dona e legítima proprietária dos seguintes prédios: prédio rústico composto de terra de cultivo, inscrito na matriz sob o art.º ...47.º, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11; prédio rústico composto de horta, inscrito na matriz sob o art.º ...48.º descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11; prédio rústico inscrito composto de terra de cultivo, inscrito na matriz sob o art.º ...49.º descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11; prédio rústico composto de horta, inscrito na matriz sob o art.º ...50.º descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11;
- absolve-se a ré do demais peticionado pela autora».
Custas da ação e da apelação pela ré/apelada.
Guimarães, 07 de março de 2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (Juiz Desembargador - relator)
Raquel Baptista Tavares (Juíza Desembargadora - 1.º adjunto)
Eva Almeida (Juíza Desembargadora - 2.º adjunto)



[1] Neste sentido, cf. Alberto dos Reis, Ob. cit., 1984, p. 140; Antunes Varela, M. Bezerra e S. e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed. Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p. 687; Lebre de Freitas-Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, p. 736. Na Jurisprudência cf. por todos, o Ac. STJ de 02-06-2016 (relator: Fernanda Isabel Pereira), proferido na revista n.º 781/11.6TBMTJ.L1. S1 - 7.ª Secção, acessível em www.dgsi.pt.
[2] Cf. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre - Obra citada - p. 736.
[3] Cf. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre - Obra citada -, p. 737.
[4] Cf. Alberto dos Reis - Obra citada -, p. 143.
[5] Cf. por todos, os Acs. do STJ de 8-11-2016 (relator: Nuno Cameira) - revista n.º 2192/13.0TVLSB.L1. S1-  6.ª Secção; de 21-12-2005 (relator: Pereira da Silva), revista n.º 05B2287; ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Ac. do STJ de 3-10-2017 (relator: Alexandre Reis), revista n.º 2200/10.6TVLSB.P1. S1 - 1.ª Secção, Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Secções Cíveis, p. 1, www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/Civel_2017_10.pdf.
[7] Cf. António Santos Abrantes Geraldes - Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018, 5.ª edição- pg. 116.
[8] Cf. o Ac. do STJ de 6-06-2000 (relator: Ferreira Ramos), revista n.º 00A251, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Obra citada, p. 734.
[10] Cf. o Ac. do STJ de 23-03-2017 (relator: Tomé Gomes), revista n.º 7095/10.7TBMTS.P1. S1 - 2.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Cf. o Ac. do STJ de 19-05-2015 (relatora: Maria dos Prazeres Beleza), revista n.º 405/09.1TMCBR.C1. S1 - 7.ª Secção - disponível em www.dgsi.pt.
[12] Cf. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2013, p. 224.
[13] Artigo 7.º
Presunções derivadas do registo
O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
[14] Cf., o Ac. do STJ de 12-01-2021 (relator: Pedro de Lima Gonçalves), p. 2999/08.0TBLLE.E2. S1; em sentido idêntico, cf., ainda, entre muitos outros, os Acs. do STJ de 11-02-2016 (relator: Lopes do Rego), p. 6500/07.4TBBRG.G2. S3; de 10-08-2009 (relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), p. 839/04.8TBGRD.C1. S1; de 12-02-2008 (relator: Sebastião Póvoas), p. 08A055; e os Acs. TRG de 30-05-2018 (relatora: Helena Melo), p. 8250/15.9T8VNF.G1; TRP de 23-01-2017 (relator: Jorge Seabra), p. 611/13.4TBFLG.P1; TRL de 07-02-2013 (relatora: Teresa Prazeres Pais), p. 6289/08.0TBCSC.L1-8; TRP de 24-09-2012 (relatora: Ana Paula Amorim), p. 174/09.5TBMDB.P1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[15] Relator Oliveira Rocha, p. 186/1999.P1. S1, disponível em www.dgsi.pt.
[16] Trata-se de documento exarado no respetivo livro de notas, com as formalidades legais, por notário dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído, conforme decorre da respetiva certidão, devendo, por isso, ser qualificado como documento autêntico, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 35.º, n.ºs 1 e 2, 67.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do Código do Notariado (CNot), 363.º, n.ºs 1 e 2, e 2205.º CC.
[17] A este propósito, cf., por todos, o Ac. TRP de 14-01-2014 (relator: Vieira e Cunha), p. 4514/12.1TBVFR.P1 - disponível em www.dgsi.pt.
[18] Cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-2019 (relatora: Graça Amaral), p. 1808/03.0TBLLE.E1. S1, disponível em www.dgsi.pt.
[19] Cf. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª edição revista e atualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, pgs. 113 e 116.
[20] Cf. o Ac. do STJ de 24-10-2006 (relator: Sebastião Póvoas), p. 06A3284, disponível em www.dgsi.pt.
[21] Cf. Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, Volume II, Coimbra, Almedina, 2017, p. 109.
[22] Cf. o Ac. do STJ de 06-06-2002 (relator: Oliveira Barros), p. 02B1320, disponível em www.dgsi.pt.
[23] Relator Isaías Pádua, p. 2534/17.9T8STR.E2. S1, disponível em www.dgsi.pt.
[24] Estando devidamente comprovado nos autos que: o prédio inscrito na matriz sob o art. ...47º encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 e o direito de propriedade inscrito a favor da autora pela Ap....34 de 2020/03/11; o prédio inscrito na matriz sob o art. ...48º encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 e o direito de propriedade inscrito a favor da autora pela Ap....34 de 2020/03/11; o prédio inscrito na matriz sob o art. ...49º encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 e o direito de propriedade inscrito a favor da autora pela Ap....34 de 2020/03/11; o prédio inscrito na matriz sob o art. ...50º encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 e o direito de propriedade inscrito a favor da autora pela Ap....34 de 2020/03/11.