Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6/17.0GAVLP.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: ASSISTENTE
LEGITIMIDADE PARA ACUSAR
CRIME DE NATUREZA SEMI-PÚBLICA
NULIDADE INSANÁVEL
ARTºS 119º
B E 311º
DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - O assistente não tem legitimidade para deduzir acusação particular por crime de natureza pública ou semi-pública se estiver desacompanhado do Ministério Público, o que, a suceder, configura uma nulidade insanável

II – Ao sanear o processo, nos termos do disposto no Artº 311º do C.P.Penal, o tribunal não pode alterar a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Inquérito nº 6/17.0GAVLP, que corria termos na Procuradoria da República da Comarca de Vila Real, Procuradoria do Juízo de Competência Genérica da Valpaços, o assistente C. R. deduziu acusação particular contra a arguida Maria, imputando-lhe a prática de um crime de furto agravado, p. e p. pelo Artº 204º, nº 1, alíneas e) e f), do Código Penal.
*
2. Porém, o Ministério Público não acompanhou tal acusação, quer quanto à factualidade nela descrita, quer quanto à integração jurídica que da mesma consta, atendendo à manifesta escassez de indícios quanto à verificação dos factos neles vertidos (cfr. fls. 76).
*
3. Remetidos os autos para julgamento, pela Mmª Juíza a quo foi proferido despacho de rejeição da aludida acusação particular deduzida pelo assistente, aduzindo, em síntese, que estando em causa um crime de natureza pública, aquele não tem legitimidade para acusar, desacompanhado do Ministério Público.
*
4. Inconformado com essa decisão judicial, o assistente C. R. dela veio interpor o presente recurso (que consta de fls. 151/157), cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição):

1. No entendimento do assistente, não existe fundamento suficiente para a rejeição da acusação particular por ele deduzida.
2. Efectivamente, dispõe o artigo 311.º, n.º 3, do Código de Processo Penal que «…para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada a)quando não contenha a identificação do arguido b)quando não contenha a narração dos factos c)Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d)Se os factos não constituírem crime».
3. O que, salvo melhor opinião, não é o caso.
4. De facto, da acusação particular deduzida pelo assistente resulta, como nela se pode ler, o preenchimento de todas as alíneas que o n.º 3, do artigo 311.º, do Código de Processo Penal, contempla. Incluindo a indicação das disposições legais aplicáveis.
5. Pelo exposto, somos do parecer que o douto despacho recorrido violou o disposto no artigo 311º, nº 2 e nº 3, do Código de Processo Penal.
6. Devendo, pelo exposto, ser revogado por outro que receba a acusação particular deduzida pelo assistente seguindo-se os ulteriores termos processuais
7. Designadamente, uma alteração da qualificação jurídica dos factos - artigo 311.º, n.º 2, b), do Código de Processo Penal.
8. De facto, por tudo quanto se disse supra, bem como do teor de toda a acusação particular deduzida pelo assistente, apenas se conclui a existência de um erro sobre a qualificação do tipo legal de crime, e, nunca, a falta de indicação das disposições legais aplicáveis.
9. Ou seja, a violação do disposto no atrigo 311.º, n.º 3, c), do Código de Processo Penal.
10. De facto, como se retira da narração dos factos na acusação particular, a arguida teve intenção de se apropriar de bens móveis que se encontravam na posse do assistente.
11. Deve ser dado provimento ao presente recurso, e, consequentemente, revogar-se o douto despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que receba a acusação particular deduzida pelo assistente, seguindo-se demais tramitação legal.
FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA”.
*
5. Na resposta ao recurso, o Mº Público junto da 1ª instância pugna pela sua improcedência e pela manutenção, na íntegra, da decisão recorrida (cfr. fls. 161/162).
*
6. Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, pronunciando-se, também, pela improcedência do recurso (cfr. fls. 168/173).
6.1. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
*
7. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Como se sabe, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal (1)(2).

Ora, no caso vertente, da leitura e análise da conclusões apresentadas pelo recorrente, são duas as questões que importa decidir, a saber:

- Se enferma de nulidade a acusação deduzida pelo assistente, por falta de legitimidade deste para acusar a arguida pela prática do crime que lhe imputou, nos termos em que a acusação foi deduzida;
- Se o tribunal a quo, ao sanear o processo, nos termos previstos no Artº 311º do C.P.Penal, deveria ter alterado a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação particular, de modo a que fosse imputada à arguida a prática de um crime de furto simples, e não de furto qualificado.
*
2. Porém, antes de mais, há que atentar nas seguintes incidências processuais, que se reputam de relevantes para a ponderação e apreciação das aludidas questões.

Com efeito:

2.1. Em 16/06/2017, a Digna Magistrada do Ministério Público proferiu o seguinte despacho, que consta de fls. 63 (transcrição):

Notifique o assistente e o defensor nomeado para, querendo, em 10 dias e nos termos do disposto no artigo 285º, nº 1 do Código de Processo Penal, virem aos autos deduzir acusação particular contra a arguida pelos factos denunciados como configuradores, em abstracto, da prática de crime de furto, relativamente ao qual, ao abrigo do n.º 2 do sobredito preceito legal, se consigna que, em nosso entender, não se recolheram indícios suficientes da sua prática.”.

2.2. Nessa sequência, veio o assistente deduzir contra a arguida Maria, para julgamento em tribunal singular, a acusação particular que consta de fls. 71/72, nos seguintes termos (transcrição considerada relevante):


no dia .., pela manhã, a arguida dirigiu-se às proximidades da residência do assistente acompanhada do seu actual companheiro, num veículo ligeiro de mercadorias de cor branca.

Uma vez ali, a arguida e o seu acompanhante, depois de saírem do veículo onde se fizeram transportar, introduziram-se no interior dos anexos da casa do assistente de onde retiraram, entre outros, os seguintes objectos, de cuja falta o assistente se apercebeu, de Imediato:

a) Uma máquina de costura antiga de marca Singer, no valor de 150,00€;
b) Um televisor usado no valor de 50.00 €;
c) Vários acessórios de pesca, no valor de 250,00 €;
d) Uma messa e 3 cadeiras, no valor de 100,00€;
e) Bem assim outros objectos, no valor de 100,00€.

Os objectos retirados dos anexos da casa do assistente eram da sua exclusiva propriedade.

A arguida levou tais objectos contra a vontade do assistente e com o firme propósito de os fazer seus, como fez.

Para além do assistente só a arguida tem as chaves dos anexos da residência do assistente.

A arguida e o seu companheiro foram vistos no local e nessa hora, pelo assistente.

A conduta da arguida visava apoderar-se dos objectos existentes nos anexos da residência do assistente, só não levando mais objectos por, entretanto, ter sido surpreendida pelo assistente.

A arguida agiu de forma voluntária, livre e consciente.
10º
Bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
11º
Não se coibindo, todavia, de ter a conduta que teve.
12º
Com a sua conduta cometeu a arguida um crime de furto agravado p. p. pelo artigo 204º, nº 1, alíneas e) e f), do Código Penal.”.

2.3. Após a dedução dessa acusação, a Digna Magistrada do Ministério Público preferiu o seguinte despacho, que consta de fls. 76, a que já supra aludimos (transcrição):

“Nos termos do disposto no artigo 285º, nº 3 do Código de Processo Penal, o Ministério Público não acompanha a acusação particular deduzida nos autos, quer quanto à factualidade nela descrita, quer quanto à integração jurídica que da mesma consta, atendendo à manifesta escassez de indícios quanto à verificação dos factos nela vertidos.”.
2.4. Remetidos os autos à distribuição, a Mmª Juíza a quo proferiu o seguinte despacho, que consta de fls. 102/102 Vº (transcrição na parte que ora interessa considerar):

“O assistente C. R. deduziu acusação particular contra a arguida Maria pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 1, al. e) e f) do Código Penal.

O Ministério Público declarou não acompanhar a acusação particular deduzida pelo assistente (fls. 76).

Ora, a este propósito dispõe o artigo 207.º do Código Penal que:

“No caso do artigo 203.º e do n.º 1 do artigo 205.º, o procedimento criminal depende de acusação particular se:

a) O agente for cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2.º grau da vítima, ou com ela viver em condições análogas às dos cônjuges; ou
b) A coisa ou o animal furtados ou ilegitimamente apropriados forem de valor diminuto e destinados a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou de outra pessoa mencionada na alínea a).”

Ora, o crime imputado pelo assistente à arguida não tem natureza particular, uma vez que de acordo com o disposto no transcrito artigo 207.º, apenas é possível deduzir acusação particular nos casos de furto simples e não de furto qualificado, como ocorreu nos presentes autos.

Assim, relativamente ao crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 1, al. e) e f) do Código Penal, conclui-se que o assistente não tem legitimidade para acusar, na medida em que só o Ministério Público pode deduzir acusação por esse crime, não o tendo feito.

Não tendo havido acusação pública, carece o assistente de legitimidade para acusar por factos que consubstanciem a prática de um crime público.

Desta forma, relativamente ao crime de furto qualificado, o qual tem natureza pública, existe falta de promoção do processo pelo Ministério Público, o que consubstancia a nulidade insanável prevista na al. b) do n.º 1 do art. 119.º do CPP, a qual deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento (neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26-02-2013, processo n.º 143/09.5T3GDL-A.E1, disponível em www.dgsi.pt).

Cumpre, assim, declarar essa nulidade e rejeitar a acusação particular no seu todo.

Decisão:

Pelo exposto, e ao abrigo das disposições legais citadas, declaro a nulidade insanável da acusação particular, nos termos previstos no artigo 119.º, al. b), do CPP, relativamente ao crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 1, al. e) e f) do Código Penal, imputado à arguida Maria e, em consequência, rejeito a acusação particular formulada pelo assistente no seu todo.
Notifique.
*
Custas pelo assistente, sem prejuízo do apoio judiciário (artigo 515.º, n.º 1, al. f) do CPP).”.

2.5. C. R., ora assistente / recorrente, e Maria, ora arguida, contraíram casamento civil um com o outro no dia ../../…, na Conservatória do Registo Civil …, casamento esse que se encontrava em vigor no dia 26/01/2017 (cfr. assento de casamento de fls. 18).
*
3. Isto posto, analisemos as questões suscitadas pelo assistente/recorrente.
*
3.1. Da nulidade da acusação deduzida pelo assistente (por falta de legitimidade para acusar a arguida pela prática do crime que lhe imputou, nos termos em que a acusação foi deduzida)

Como se viu anteriormente, o Ministério Público, por despacho de 16/06/2017, ao abrigo do disposto no Artº 285º, nº 1, do C.P.Penal, determinou a notificação do assistente e do defensor nomeado para, querendo, em 10 dias, deduzirem acusação particular contra a arguida pelos factos denunciados como configuradores, em abstracto, da prática de crime de furto, desde logo declarando, nos termos do nº 2 daquele preceito legal, que em seu entender não se recolheram indícios suficientes da sua prática.

E, na sequência dessa notificação, veio o assistente deduzir acusação particular, alegando factos constitutivos de um crime de furto qualificado-público (estando, pois, dependente de queixa), e com o crime de furto a que aludem os Artºs. 203º e 207º, do Código Penal, que tem a natureza de crime particular (dependendo, pois, de acusação particular), o crime de furto p. e p. pelo Artº 204º assume a natureza de crime público, no sentido de que o Ministério Público promove oficiosamente e por sua própria incitativa o processo penal e decide com plena autonomia – embora estritamente ligado por um princípio de legalidade – da submissão ou não-submissão de uma infracção a julgamento (cfr., neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Primeiro Volume, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 120).

Por outro lado, há que notar que a titularidade da acção penal, condicionada ou não à prévia dedução de queixa, sob pena de ilegitimidade, pertence exclusivamente ao Ministério Público – cfr. Artºs. 219º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, 1º, do Estatuto do Ministério Público (aprovado pela Lei nº 47/86, de 15 de Outubro) e 48º do C.P.Penal.

E que, nos termos das disposições conjugadas dos Artºs. 48º, 49º e 50º do C.P.Penal, é ao Ministério Público que cabe deduzir acusação, excepto naqueles casos em que o procedimento depende de acusação particular.

O que significa que, naquelas situações em que no inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime, e de quem foi o seu agente, e os mesmos disserem respeito a um crime público ou semi-público, é ao Ministério Público que cabe deduzir a respectiva acusação, podendo apenas o assistente, até 10 dias após a notificação da acusação do Ministério Público, deduzir também acusação pelos factos por aquele acusados, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial dos primeiros – cfr. Artºs. 283º, nº 1 e 284º, nº 1, do C.P.Penal.

Porém, caso se trate de crime particular, então a iniciativa de acusar cabe ao assistente, após a notificação a que alude o Artº 285º, nº 1 do C.P.Penal, podendo o Ministério Público, nos 5 dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles – Artº 285º, nº 4, do C.P.Penal.

Acresce que, se o assistente - na sequência da notificação efectuada pelo Ministério Público ao abrigo do citado Artº 285º - entender que dos autos resultam indícios da prática de um crime público ou semi-público, o caminho que deverá seguir é o de requerer a abertura de instrução, nos termos do Artº 287º, nº 1, al. b), do C.P.Penal.

O que não pode fazer é substituir-se ao Ministério Público e deduzir ele próprio a acusação, pois que tal atribuição está conferida em exclusivo por lei, como se viu, ao Ministério Público.

E se o assistente o fizer, ou seja, se o assistente deduzir acusação estando em causa um crime de natureza pública ou semi-pública, está a praticar um acto que só seria possível nos termos do Artº 284º do C.P.Penal, ou seja, depois da notificação da acusação previamente deduzida pelo Ministério Público e, assim, também sem a necessária e prévia promoção processual penal, a que alude o Artº 48º do C.P.Penal.

Ora, no caso vertente, constata-se que, tendo o assistente sido notificado, nos termos do disposto no Artº 285º, nº 1, do C.P.Penal, para, querendo, em 10 dias, deduzir acusação particular contra a arguida pelos factos denunciados como configuradores, em abstracto, da prática de crime de furto (de natureza particular, nos termos das disposições conjugadas dos Artºs. 203º e 207º, nº 1, al. a), do Código Penal, dado que era cônjuge da arguida), em vez de apresentar uma acusação nesses moldes o assistente deduziu uma acusação na qual descreve factos e imputa à assistente a prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo Artº 204º, nº 1, als. e) e f), do Código Penal, ilícito esse de natureza assumidamente pública.

Estamos, pois, como bem se decidiu no despacho recorrido, perante uma situação de ilegitimidade da assistente, por falta de promoção do Ministério Público, o que configura nulidade insanável, nos termos expressamente previstos no Artº 119º, al. b), primeira parte, do C.P.Penal, a qual deve ser conhecida oficiosamente e declarada em qualquer fase do procedimento, com as consequências determinadas no Artº 122º do C.P.Penal (cfr., neste sentido, o acórdão de uniformização de jurisprudência do S.T.J. nº 1/2000, de 16/12/1999, in DR Iª Série A, nº 4, de 06/01/2000, bem como o Acórdão da Relação de Évora, de 26/02/2013, proferido no âmbito do Proc. nº 143/09.5T3GDL-A.E1, in www.dgsi.it, aliás citado na decisão recorrida) (3).

Nessas circunstâncias, nada há a apontar ao despacho recorrido, quando declarou a mencionada nulidade processual e, em consequência, rejeitou a acusação deduzida pelo assistente.

Soçobrando, pois, o recurso, nessa parte.
*
3.2. Da alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação particular pelo Tribunal a quo, ao sanear o processo, nos termos previstos no Artº 311º do C.P.Penal, de modo a que fosse imputado à arguida a prática de um crime de furto simples, e não de furto qualificado.

Efectivamente, como bem nota o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, depreende-se das conclusões do assistente que o mesmo defende que o Tribunal a quo, ao sanear o processo, nos termos previstos no Artº 311º do C.P.Penal, deveria ter alterado a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação particular, de modo a que fosse imputado à arguida a prática de um crime de furto simples, e não de furto qualificado. Sustentando que essa qualificação (de crime de furto qualificado) apenas se ficou a dever a um erro (de qualificação), e pugnando no sentido de o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que proceda a essa alteração, com o recebimento da acusação particular deduzida pelo assistente.

Salvo o devido respeito, desde já se adianta não ter base legal a pretensão do recorrente.

Como se sabe, o nosso processo penal tem estrutura acusatória, consagrada no Artº 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, o que significa que é pela acusação que se define o objecto do processo [thema decidendum].

Ora, segundo o princípio da acusação, a actividade cognitória e decisória do tribunal está estritamente limitada pelo objecto da acusação.

Efectivamente, como bem sublinha Figueiredo Dias (in “Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, págs. 144/145), uma das consequências da estrutura acusatória do processo criminal consiste naquilo a que apelida de vinculação temática do tribunal, segundo a qual os factos descritos na acusação (normativamente entendidos) definem o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado.

E os valores e interesses subjacentes a esta vinculação temática do tribunal, implicada no princípio da acusação, constitui a pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido – sem o qual o fim do processo penal é inalcançável –, que assim se vê protegido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitória e decisória e assegura os seus direitos de contraditoriedade e audiência.

Do exposto decorre, pois, ser indispensável e necessário que o arguido saiba com pormenor do que se encontra acusado, de molde a que possa apresentar os seus argumentos e os seus meios de defesa.

E, como se afigura evidente, a indicação da norma incriminadora, obrigatoriamente constante da acusação (cfr. Artº 283º, nº 3, al. c), do C.P.Penal), atribui o desvalor jurídico-penal aos eventos materiais e integra igualmente o objecto do processo.

Por isso, admitir a possibilidade de poder ser alterada a qualificação jurídica no despacho a que alude o Artº 311º do C.P.Penal seria postergar a possibilidade de o arguido requerer a abertura de instrução sobre a matéria relevante para o novo enquadramento jurídico.

É certo que as preocupações de justiça subjacentes ao processo penal fazem com que a estrutura acusatória não tenha sido consagrada de forma absoluta.

Efectivamente, como decorre do disposto nos Artºs. 124º e 339º, nº 4, do C.P.Penal, em julgamento devem ser apresentados todos os factos invocados pela acusação, pela defesa, e pelo demandante civil, quando o haja, e bem assim produzidas e examinadas todas as provas e esgrimidos todos os argumentos de molde a que o Tribunal possa alcançar a verdade material e decidir o pleito com justiça.

Porém, relativamente ao thema decidendum, o legislador não colocou o julgador na total dependência dos sujeitos processuais, surgindo neste âmbito as possibilidades consagradas nos Artºs. 358º e 359º do C.P.Penal, de “alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia” e de “alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”, respectivamente.

Ora, tais institutos visam precisamente assegurar as garantias de defesa do arguido, pois que a lei não pretendente que aquele venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acuado ou pronunciado, por factos que não lhe foram dados a conhecer oportunamente.

Veja-se, aliás, que o Supremo Tribunal de Justiça, em consonância com tal filosofia, no Acórdão nº 11/2013, de 12 de Junho de 2013, publicado do Diário da República, 1ª Série, nº 138, de 19 de Julho de 2013, fixou a seguinte jurisprudência:

“A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358º n.ºs 1 e 3 do C.P.P.”.

De resto, nesse douto aresto o Supremo Tribunal de Justiça expressou o entendimento de que os institutos da alteração não substancial dos factos (358º, nº 1) e da alteração da qualificação jurídica (358º, n.º 3, ambos do Código do Processo Penal) apenas se aplicam, como do texto da primeira daquelas disposições expressamente decorre, se, no decurso da audiência, se verificar uma dessas alterações, pelo que a qualificação jurídica dos factos feita pela acusação apenas pode ser discutida na audiência de julgamento.

E na parte final desse acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça subscreveu as seguintes considerações do Exmo. Magistrado do Ministério Público junto daquele Alto Tribunal nas suas doutas alegações, nos seguintes termos:

“De resto, se a indicação das disposições legais não integrasse a parte substantiva da acusação, certamente que o legislador não teria atribuído à sua omissão uma consequência tão grave como a rejeição.

É verdade que o despacho judicial que procedeu à alteração da qualificação, não se fundamentou em diferente apreciação da prova, antes decidindo perante o próprio texto da acusação.

No entanto, ao enquadrar os factos da acusação numa determinada qualificação jurídica, está a formular um juízo acerca do conteúdo substantivo da referida acusação.

Em conclusão, recebida a acusação e designado dia para julgamento, a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público, merecedora ou não da concordância do juiz, traduz-se na posição que o Ministério Público assume no processo, como órgão de justiça, que goza de estatuto próprio e de autonomia movendo-se exclusivamente por critérios de legalidade e de objectividade.

Questão bem diferente é a da acusação conter um manifesto lapso ou erro, passível de correcção, o que não se confunde com a divergência do juiz sobre a subsunção jurídica dos factos.

Por último, saliente-se que a tese do acórdão recorrido conduz a uma solução, a nosso ver, inadmissível, pois a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público seria mero exercício anódino. O juiz, previamente ao julgamento do mérito, passaria a poder ingerir-se em competências alheias, estruturando substancialmente a acusação, elegendo e impondo aos sujeitos do processo a qualificação correcta, que nenhum previamente (na fase própria) contestara.

Daí que, sob pena de subversão do processo, de se criar a desordem, a incerteza, cada autoridade judiciária terá que actuar no momento processual que lhe compete. E sendo indiscutível que o Tribunal é totalmente livre de qualificar os factos pelos quais condena o arguido, certo é que o momento próprio para o fazer ocorre após haver produção de prova, isto é, quando está a julgar o mérito do caso concreto.".

No mesmo sentido pronuncia-se o Cons. Oliveira Mendes, in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2016, 2ª Edição Revista, págs. 989/990), em anotação ao Artº 311º do C.P.Penal, quando afirma que se estabelece neste artigo “as regras a observar após o recebimento do processo em juízo, impondo-se ao juiz verifique se o processo está em condições de passar para a fase do julgamento (...). Mandando “a lei que o juiz examine o processo e se certifique da inexistência de motivo impeditivo do conhecimento do seu objecto, para o que deverá pronunciar-se sobre a ocorrência de qualquer nulidade ou outra questão prévia ou incidental que obste à apreciação do mérito da causa”. Devendo “verificar, pois, da eventual ocorrência de qualquer circunstância , seja de natureza substantiva, seja de natureza adjectiva, que impeça o conhecimento da questão de fundo”.

Acrescentando, mais à frente:

“Não ocorrendo qualquer circunstância impeditiva da apreciação do mérito da causa, cumpre ao juiz verificar se houve ou não instrução.

Caso tenha havido instrução, caberá ao juiz proferir, sem mais, despacho designando dia para a audiência, como prevê o nº 1 do artigo 312º. Caso contrário, competirá ao juiz pronunciar-se sobre a acusação, sem possibilidade de alterar a qualificação jurídica dos factos (alteração só admissível na audiência de discussão e julgamento), rejeitando-a se a considerar manifestamente infundada e não a aceitando na parte em que represente uma alteração substancial dos factos, nos termos do nº 1 do artigo 284º e do nº 4 do artigo 285º, ou seja, na parte em que, sendo a acusação do assistente, este acuse por factos novos que alterem substancialmente a acusação do Ministério Público, sendo a acusação do Ministério Público, este acuse por factos novos que alterem substancialmente a acusação do assistente” (sublinhado nosso).

Sendo também essa a posição de Paulo Pinto de Albuquerque, no seu “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica, 2011, pág. 825, quando a esse propósito escreve:

“A solução da imodificabilidade da qualificação jurídica no momento do saneamento dos autos é a única consentânea com a proibição da sindicância do uso pelo Ministério Público da faculdade do artigo 16º, nº 3. O controlo da qualificação jurídica pelo tribunal permitiria a fraude ao artigo 16º, nº 3, por via da sindicância da imputação penal feita na acusação”.

Pois, “se o juiz singular pudesse no despacho de recebimento e saneamento dos autos sindicar a qualificação jurídica feita na acusação do MP, ele poderia desse modo subverter o juízo do MP de determinação concreta da competência do tribunal singular, qualificando os factos mais gravemente e, em consequência, determinando a competência do tribunal colectivo. Por isso, o legislador consagrou a regra da irrecorribilidade do despacho de recebimento da acusação / pronúncia e designação de data para a audiência (artigo 313º, nº 4). Por isso também, o legislador reservou explicitamente para a audiência de julgamento a discussão sobre as várias soluções de direito aplicáveis ao caso, “independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou da pronúncia” (artigo 339º, nº 4). Em síntese, o legislador quis que a qualificação jurídica dos factos feita pela acusação (pública ou particular) ou, havendo instrução, pela pronúncia fosse discutida na audiência de julgamento e só nesse momento (...), podendo então os sujeitos processuais proceder a essa discussão jurídica sem quaisquer restrições ou vinculações à qualificação feita em momento anterior (...).”.

Concordando inteiramente com a posição destes Autores (4), consentânea com os aludidos princípios estruturantes do processo penal, e voltando ao caso sub-judice, não se vislumbra que à Mmª Juíza a quo, no despacho recorrido, fosse lícito proceder à (re)qualificação jurídica dos factos constantes da acusação particular deduzida pelo assistente, nos termos por este preconizados no seu recurso, não se vislumbrando, pois, que tenha sido violada a norma legal que invoca, nem qualquer outra.

Improcedendo, também, o recurso nesse segmento.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente C. R., confirmando, consequentemente, a decisão recorrida.

Custas pelo assistente/recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia - Artº 515º, nº 1, al. b), do C.P.Penal, e Artºs. 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo.

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
*
Guimarães, 14 de Janeiro de 2019

(António Teixeira)
(Nazaré Saraiva)

1. Ao qual se reportam todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
2. Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 3ª Edição, pág. 347, e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação obrigatória que ainda hoje mantém actualidade.
3. No citado o acórdão de uniformização de jurisprudência do S.T.J. nº 1/2000, de 16/12/1999 diz-se, a propósito desta matéria: "é hoje entendimento pacífico na jurisprudência e na doutrina que a titularidade da acção penal pertence exclusivamente ao Ministério Público, como imperativa e inequivocamente estabelecem os acima transcritos artigo 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, artigo 1.º do Estatuto do Ministério Público (Lei 60/98, de 27 de Agosto), artigo 48.º do Código de Processo Penal e artigo 2.º, n.º 2, alíneas 7) e 11), da Lei 43/86, de 26 de Setembro (lei de autorização legislativa), e vem afirmado na fundamentação do Assento deste Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Outubro de 1997, n.º 8/99, in Diário da República, 1.ª série-A, n.º 185, de 10 de Agosto de 1999";(…) "Assente, por conseguinte, a competência exclusiva do Ministério Público para promover o processo penal e a subordinação estrita da intervenção processual dos assistentes, salvo nos crimes particulares e semipúblicos, à actuação do Ministério Público, temos que, excepto quando o procedimento criminal depender de acusação particular - o que não é aqui o caso -, é ao Ministério Público que compete, em especial, deduzir a acusação (artigos 50.º e seguintes) (...) e «só após a notificação da acusação do Ministério Público, o assistente pode também deduzir acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles», enquanto, «quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público [findo o inquérito] notifica o assistente para que este deduza [...], querendo, acusação particular» (artigo 285.º, n.º 1), podendo o Ministério Público, posteriormente à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles (artigo 285.º, n.º 3).(...).O que está vedado ao assistente, quer por falta de legitimidade para tal, quer por violação da tempestividade do processamento, é deduzir ele mesmo a acusação pelo crime público ou semipúblico" ( sublinhado nosso).
4. Que tem eco em decisões uniformes dos tribunais superiores, de que são exemplo os dois arestos citados pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto (acórdão da Relação do Porto, de 09/09/2015, proferido no âmbito do Proc. nº 9671/12.4TDPRT-A.P1, e acórdão desta Relação de Guimarães, de 22/06/2015, proferido no âmbito do Proc. nº 541/13.0.GBGMR-A.G1), bem como o acórdão da Relação de Coimbra, de 24/08/2011, proferido no âmbito do Proc. nº 413/07.7TACBR.C1, e o acórdão da Relação de Lisboa, de 16/03/2017, proferido no âmbito do Proc. nº 9507/12.6TDLSB-9, todos disponíveis in www.dgsi.pt.