Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1917/07-1
Relator: CRUZ BUCHO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/29/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – Sustenta o recorrente, que os valores das retenções descriminadas na sentença foram considerados provados apenas com base nas contas correntes anexas aos autos e que tais contas correntes não provam que o contribuinte deve determinada quantia às Finanças, não fazem prova bastante dos valores concretos deduzidos e retidos sobre ordenados e rendas pagas.
II – No entanto, antes do mais importa frisar que conforme resulta da motivação da sentença, o tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nas declarações dos arguidos conjugadas com o depoimento da testemunha Inspector Tributário que realizou a acção inspectiva à sociedade arguida e com a documentação junta aos autos, e como salienta o Ministério Público junto do tribunal recorrido foi precisamente com base nos elementos que a sociedade arguida fez chegar à administração fiscal que foi possível determinar os valores do IRS em causa e que foram tomados bons pelo Fisco.
. III – E se é certo que o recorrente reconhece que os valores de IRS retidos e não pagos, categorias A e F “foram extraídos pela análise das fotocópias dos extractos de conta corrente divisionárias que evidenciavam saldos credores”, são esses elementos contabilísticos que pretende por em crise, alegando:
a) a conta corrente apenas regista movimentos contabilísticos a crédito e débito pelo que para se justificar os lançamentos contabilísticos, necessário se toma analisar os documentos que suportam a conta corrente, tais como entre outros, facturas, recibos, notas de débito, notas de crédito, os quais não constavam dos autos nem foram juntos pela Direcção de Finanças.
b) A empresa apresentava erros na contabilidade, conforme decorre da leitura do relatório de acção inspectiva pelo que existe a possibilidade de as conta correntes apresentarem erros de lançamento
c) Por força do princípio da presunção de inocência, incumbindo ao Ministério Público a prova dos factos constitutivos do crime, não compete aos arguidos carrearem quaisquer elementos que infirmassem a correcção dos valores apurados.
IV – Mas não se nos afigura que o recorrente tenha razão.
V – Na verdade, as verbas ali mencionadas foram inscritas pela sociedade arguida, de acordo com as regras da contabilidade pública, e cujo representante, ora recorrente, parece menosprezar, sendo certo que nos termos do artigo 75° da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Dec.-Lei n.o 398/98, de 17 de Dezembro “Presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na presente lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal.”
VI – É certo que entre nós vigora o princípio da presunção de inocência já que segundo o artigo 32°, nº 2 da Constituição da República, todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, pelo que, em face desta presunção compete à acusação a narração ainda que sintética, e a prova dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena em processo criminal.
VII – Simplesmente, o recorrente parece esquecer um outro prlncípio fundamental: o dever de colaboração ou de cooperação fiscal por parte dos contribuintes expresso v.g. no artigo 59°, nº 1 da citada Lei Geral Tributária (“Os órgãos da administração tributária e os contribuintes estão sujeitos a um dever de colaboração mútua”) e no artigo 48°, nº 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Dec.-Lei nº 433/99, de 26 de Outubro (“O contribuinte cooperará de boa fé na instrução do procedimento, esclarecendo de modo completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo os meios de prova a que tenha acesso”), colaboração que é no dizer de Salvator la Rosa “uma componente indispensável da determinação dos impostos” (apud Saldanha Sanches “Ónus da prova e deveres de cooperação”, in Fisco, nº 6, 15Mar 1989, págs. 25-26,) e não viola aquele princípio constitucional da presunção de inocência (como em Espanha o Supremo Tribunal já teve oportunidade de afirmar – cfr. Miguel Angel Montanés Pardo, La Presunción de Inocência, Aranzadi, 1999, pág. 136), embora entre um e outro, mais exactamente o direito ao silêncio ao silêncio do arguido no processo penal fiscal e o seu dever de cooperação, no processo administrativo de fiscalização, em certas áreas – que não as do caso em apreço - se estabeleça uma certa “tensão dialética” (na terminologia de Nuno Sã Gomes, Evasão Fiscal, Infracção Fiscal e Processo Penal Fiscal, cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, nº 177, 1997, págs. 371-314).
VIII – Assim, embora caiba à Administração fiscal a prova da existência do facto tributário (cfr. v.g. o artigo 74°, nº 1 da citada Lei Geral Tributária), o que no caso foi feito, como vimos, pelos elementos contabilísticos disponibilizados pela sociedade arguida, representada pelos arguidos, nomeadamente o recorrente, pretendendo o contribuinte impugnar aquele facto compete-lhe fornecer explicações plausíveis para ar disparidades assinaladas, em nome do princípio da cooperação.
IX – Por isso, como bem se salienta na sentença recorrida e corresponde à verdade, ao contrário do insinuado pelo recorrente, após a conclusão da acção inspectiva foi cumprido o dever de audição da sociedade arguida e nenhum reparo foi feito então quanto ao teor do relatório da inspecção no que concerne aos valores de IRS apurados como tendo sido retidos e não entregues.
X – Por outro lado, como bem salienta o Ministério Público junto do tribunal recorrido: «(…) que outras pessoas que não os arguidos (e entre eles o arguido recorrente) tinha ou tem à sua disposição todos os documentos contabilísticos que estão na base da inserção daqueles valores na sua contabilidade, como “entre outros, facturas, recibos, notas de débito, notas de crédito “?
(…) Se é certo que ao arguido não cabe qualquer ónus de prova sobre o que concretamente lhe é imputado, correponde-Ihe o correspectivo direito inequívoco e inalienável de defesa que, contudo, deverá ser feito de um modo sério, plausível, consistente e razoável sob pena de, não tendo tais qualidades, não ter qualquer virtualidade de toldar ou perturbar a convicção que resulta da prova carreada a favor dos factos que lhe são imputados.»
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Guimarães:

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I- Relatório
No processo comum singular nº 195/02.9IDBRG do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, por sentença de 21 de Abril de 2006, foi, para além do mais, decidido: (transcrição)
« a) Condenar os arguidos Agostinho M..., Domingos C... e D.C.A. . como co-autores de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punível pelo artigo 105º, nº 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, com referência aos artigos 30º, nº 2 e 79º do Código Penal, nas seguintes penas:
i) Os arguidos Agostinho e Domingos , numa pena de 200 (duzentos) dias de multa, à razão diária de € 4,50 (quatro euros e cinquenta cêntimos), num total de € 900,00 (novecentos euros);
ii) A arguida D.C.A. . numa pena de 380 (trezentos e oitenta) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 1.900,00 (mil e novecentos euros);»
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Inconformada com tal sentença, o arguido Agostinho M... dela interpôs recurso, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem:
«1º-Veio o recorrente acusado de, na qualidade de gerente de facto da sociedade DCA, não ter entregue nos cofres do Estado os valores deduzidos e retido de IRS, categoria A sobre os ordenados pagos aos trabalhadores e categoria F sobre rendas pagas, nos seguintes montantes:
-IJulho de 2000 -----------€1.411,55 de IRS-A e € 430,21 de IRS-F
Agosto de2000-----------€1.562,63 de IRS-A e € 430,21 de IRS-F
Setembro de 2000------- € 1.530, i 1 de IRS-A e € 430,21 de IRS-F
Outubro de 2000---------€ 1.231 ,88 de IRS-A e € 430,21 de IRS-F
Novembro de 2000------€1.316,53 de IRS-A e € 430,21 de IRS-F
Dezembro de 2000------€ 1.180,95 de IRS-A e € 662,15 de IRS-F
Janeiro de 2001----------€ 1.224,45 de IRS-A
Fevereiro de 2001------- €1.081 ,74 de IRS-A
2º - E, para além desses, em Dezembro de 2001, segundo a acusação, decidiram, de novo, os arguidos deixar de entregar nos cofres do Estado os valores deduzidos e retidos sobre os ordenados pagos aos trabalhadores da sociedade primeira arguida, a título de Imposto sobre os Rendimentos das Pessoas Singulares - Categoria A (IRS-A), no montante de €9.819,67."
3° - Contudo, apesar de tais factos terem sido dados como provados nos pontos v) e vi) da matéria de facto, entende o recorrente que ocorreu erro na apreciação da prova pois esses dois pontos de facto foram incorrectamente julgados.
4° - Em audiência de julgamento, quer o a aqui recorrente quer o co-arguido Domingos , não obstante terem confessado que não procederam ao pagamento dos impostos devidos de IRS, categorias A e F, não aceitaram os valores das prestações mensais dos impostos em falta contidos na douta acusação.
5° - Afirmaram os dois arguidos que os valores descritos na acusação apresentavam-se bastante exagerados, não correspondendo, por isso, com a realidade.
6° E, concretamente, os dois arguidos rejeitaram, veementemente, por incorrecto o valor em falta de 662,15 relativo ao mês de Dezembro de 2000 de IRS da categoria F, bem como, o valor de 9.819,67 euros relativo ao mês de Dezembro de 2001.
7° - Como explicaram em audiência de julgamento, na origem de tal rejeição estava o facto de, relativamente ao IRS sobre rendas pagas (categoria F), os arguidos não conseguirem perceber como é que o valor de Dezembro de 2000 era superior aos restantes meses tendo em conta que as rendas pagas eram iguais e constantes em todos os meses.
8° - Já quanto ao IRS sobre os ordenados pagos aos trabalhadores da sociedade arguida (categoria A), os dois arguidos não aceitaram os valores apresentados pelo facto de entenderem ser exagerados atendendo ao valor dos vencimentos atribuídos aos funcionários.
9° - Pelo que, também sobre este mesmo imposto, os arguidos não vislumbram qualquer fundamento quanto ao valor apresentado para um só mês de Dezembro de 2001 no valor de 9.819,67 euros.
10° - Chamada a testemunha arrolada na acusação José M... e ouvida sobre as questões levantadas, este nada conseguiu explicar.
11° - Tal testemunha em nada contribuiu para a descoberta da verdade uma vez que apenas teve conhecimento os factos por via do auto de denúncia de fls. 11 e nem sequer conseguiu explicar o que constava dos extractos de conferência juntos aos autos.
12° - A testemunha Abel F..., arrolada pelo recorrente, depôs no sentido pugnado pelos arguidos, ou seja, também ela entendeu que os valores apresentados na acusação não estariam correctos.
13° - Perante os depoimentos dos arguidos, da testemunha da acusação José M... e da testemunha de defesa Abel F..., o Meritíssimo Juiz, em audiência de julgamento, proferiu douto despacho em que, por entender útil à descoberta da verdade e boa decisão da causa: a) determinou a inquirição de José M..., Inspector Tributário a prestar serviço na Direcção de Finanças de Braga; b) ordenou fosse oficiada a Direcção de Finanças, solicitando o envio de cópia integral do relatório de inspecção tributária que originou o auto de notícia de fls. 11, solicitando ainda os elementos documentais que estejam anexos ao relatório que hajam servido de -comprovativos para o apuramento das retenções de IRS nos períodos em causa.
14° - Tal despacho foi motivado pelo facto de, certamente, no seu entendimento, não existir nos autos prova documental bastante que permitisse, com a necessária certeza, confirmar os referidos valores.
15° - O despacho do Tribunal a solicitar os elementos documentais anexos ao relatório que serviram de comprovativo para o apuramento das retenções de IRS só pode significar que os extractos de conferência ou conta correntes já existentes nos autos não serviam de comprovativos das retenções de IRS nos períodos em causa nem constavam dos autos quaisquer documentos que comprovassem as retenções de IRS nos períodos em causa.
16° - E são apenas esses extractos de conferência ou conta correntes que constituem a prova documental dos autos em que a acusação se baseou.
17° - Ou seja, para extrair os valores em falta, a douta acusação apoiou-se apenas e tão só nos EXTRACTOS DE CONTA DE CONFERÊNCIA obtidos da contabilidade da sociedade arguida.
18° - As prestações em falta reproduzidas na douta acusação resultam unicamente do que consta do AUTO DE NOTICIA E DOCUMENTOS ANEXOS QUE CONSTITUEM AS FLS.11 a 16.
19° - Ainda assim, cumprindo a 1 a parte do douto despacho proferido, foi ouvida a testemunha José M..., e esta, de relevante, apenas afirmou que se limitou a retirar os valores constantes das conta correntes existentes na contabi1idade da empresa.
20° - Quanto à questão de não surgir na acusação os meses de Março a Novembro de 2001, esta testemunha apenas explicou dizendo, "Penso eu que foi o somatório de todos os meses que faltavam, dos restantes meses. Penso eu.”
21° - A testemunha não teve a certeza nem a segurança necessária para se poder concluir ou dar como provado tal facto.
22° - Aliás, quanto à divergência de valor de IRS sobre as rendas, concretamente o valor de Dezembro de 2000, a testemunha apenas referiu
"Não sei. É o que estava lá. Limitei-me a ... Não tenho ideia nenhuma disso. Sei que estava lá esse valor ... "
23° - Não obstante a falta de prova segura, foi tal matéria considerado provado nos pontos de facto v) e vi).
24° - Relativamente aos documentos solicitados à Direcção de Finanças de Braga e, segundo o douto despacho, necessários para comprovar as retenções, aquela veio aos autos juntar a cópia integral do Relatório da Acção Inspectiva efectuada à empresa assim como extractos de Conta de Conferência anexos ao referido relatório, conforme consta de fls. 319 a 339.
25° - Desse relatório resulta que os valores das retenções discriminadas na douta acusação foram apontados apenas e tão só pela análise dos conta correntes anexos, precisamente os mesmos que já se encontravam nos autos, sendo que nada de novo a Direcção de Finanças veio acrescentar.
26° - Ora, entendemos que os ditos conta correntes não fazem prova bastante dos valores concretos deduzidos e retidos sobre ordenados e rendas pagas.
27° - A conta corrente apenas regista movimentos contabilísticos, a crédito e a dedito, sendo que para se justificar os lançamentos contabilísticos, necessário se torna analisar os documentos que suportam o conta corrente, tais como, entre outros, facturas, recibos, notas de débito, notas de crédito.
28° - E não constam dos autos, nem a Direcção de Finanças veio juntar, quaisquer elementos documentais que suportem e comprovem as retenções de IRS nos períodos em causa.
29° - In casu, necessário para prova dos valores do IRS retido e não entregue seriam os recibos de vencimento dos trabalhadores e os concretos impressos ou modelos mensais dirigidos às Finanças de onde constam as retenções efectuadas a título de IRS, já que são estes documentos que suportam as conta correntes existentes nos autos.
30° - O apuramento das retenções através da análise tão só dos conta correntes é método extremamente falível atendendo a que a empresa poderá, erradamente, fazer lançamentos que não correspondem à realidade.
31° - E da leitura do relatório de acção inspectiva junto pela Direcção deFinanças de Braga ressalta que a empresa apresentava erros na sua contabilidade.
32° - Assim, inexiste prova suficiente para se dar como provado todos os valores apresentados na acusação.
33° - Foram dados como provados factos que não têm apoio bastante na prova produzida em audiência de julgamento.
34° - A prova produzida em audiência de julgamento não confere a força e certeza necessária para extrair as conclusões que se reproduziram nos factos dados como provados.
35° - E, em matéria criminal, é necessária uma prova objectiva, concreta, segura, rigorosa dos factos que preenchem o tipo objectivo e subjectivo do crime em análise.
36° - As testemunhas ouvidas não foram nem seguras nem convincentes quanto à justificação que deram para se dar como provado que o valor de €9.819,67 diz respeito ao somatório dos meses de Março a Dezembro de 2001.
37° - Nem existem nos autos documentos que façam prova bastante e segura das prestações em falta às Finanças.
38° - Não existem nos autos DOCUMENTOS que demonstrem, sem margem de dúvida, quer os valores de todos os meses quer que o valor de €9.819,67 diz respeito ao somatório dos meses de Março a Dezembro de 2001.
39° - Mais, a justificação de que o valor de 9.819,67 diz respeito ao somatório dos meses de Março a Dezembro de 2001 é totalmente descabida pois dividindo aquele valor pelo número de meses, tendo em conta que no mês de Agosto e no mês Dezembro, para além do ordenado do trabalhador, este recebe subsídio de férias e subsídio de natal, obtemos uma média de 818,30 euros mensais de IRS, categoria A.
40° - Valor este que não corresponde com a média dos montantes do imposto a pagar em idênticos meses no ano de 2000.
41° - E ficou também por explicar a razão da divergência de valor de IRS sobre as rendas, concretamente o valor de Dezembro de 2000 relativamente aos restantes meses, pelo que, inexistindo qualquer prova, não podia tal facto ter sido dado como provado.
42º- A douta sentença recorrida violou o artigo 127º do CPP e 105º, n.º1 do Regime Geral das Infracções Fiscais, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.
Termina pedindo que, concedendo provimento ao recurso e revogando a douta sentença recorrida, seja proferido acórdão absolvendo o recorrente.

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O recurso foi admitido, para o Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho constante de fls. 425.
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O Ministério Público junto do tribunal pugnou pela manutenção do julgado.
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Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer pronunciando-se igualmente no sentido de o recurso não merecer provimento.
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Cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP, após resposta do recorrente, foram colhidos os vistos legais.
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com o formalismo aplicável.
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II- Fundamentação
1. É a seguinte a factualidade apurada no tribunal a quo:
A) Factos provados (transcrição)
i) A sociedade primeira arguida é uma sociedade comercial por quotas, com sede na Rua de S. Gonçalo, nº 1126, R/C, em S. Paio, Guimarães, matriculada na Conservatória do Registo Comercial desta cidade sob o nº 5529/970430, que, desde 1997, exerceu a actividade de compra e venda, importação e exportação de malhas, tecidos e outros artigos de têxteis lar.
ii) Os arguidos Agostinho e Domingos foram gerentes da sociedade primeira arguida desde 1997 e até à presente data, actividade que exerceram de facto.
iii) Para o exercício da sua actividade, tinha a sociedade primeira arguida vários trabalhadores ao seu serviço, que ali prestavam trabalho sob as suas ordens e direcção, por intermédio dos respectivos gerentes, a quem eram pagas mensalmente as respectivas remunerações.
iv) A sociedade primeira arguida vinha também procedendo ao pagamento a terceiros de rendimentos prediais, relativos a rendas de imóveis de que aquela era arrendatária.
v) A partir de Julho de 2000 e em cada um dos meses subsequentes, até Dezembro de 2001, decidiram os arguidos Agostinho e Domingos não entregar nos cofres do Estado os valores deduzidos e retidos sobre os ordenados pagos aos trabalhadores da sociedade primeira arguida, a título de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares – Categoria A (IRS-A) e sobre as rendas pagas, a título de Imposto sobre os Rendimentos das Pessoas Singulares – Categoria F (IRS-F).
vi) Nos meses que a seguir se indicam, a sociedade arguida deduziu e reteve sobre os ordenados e rendas pagas, a título de IRS das categorias A e F, os seguintes montantes:
Período
Trabalho dependente
Rendas Prediais
Julho 2000
€ 1.411,55
€ 430,21
Agosto 2000
€ 1.562,63
€ 430,21
Setembro 2000
€ 1.530,11
€ 430,21
Outubro 2000
€ 1.231,88
€ 430,21
Novembro 2000
€ 1.316,53
€ 430,21
Dezembro 2000
€ 1.180,95
€ 662,15
Janeiro 2001
€ 1.224,45
Fevereiro 2001
€ 1.081,74
Março a Dezembro 2001
€ 9.819,67
vii) No entanto, em execução daqueles desígnios apropriativos, os arguidos Agostinho e Domingos não remeteram nem fizeram remeter aos competentes serviços da administração fiscal qualquer das prestações assim deduzidas e retidas pela sociedade arguida, nem até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos noventa dias seguintes ao termo de tal prazo, nem até à presente data.
viii) E ao invés de cumprirem essa obrigação legal, à medida que iam deduzindo e retendo os referidos montantes, foram decidindo os arguidos utilizá-los em benefício da sociedade primeira arguida, integrando-os nas disponibilidades financeiras daquela por forma a pagarem os salários dos trabalhadores que tinham ao seu serviço, as rendas e outros encargos resultantes da actividade da aludida empresa.
ix) Os arguidos Agostinho e Domingos sabiam que tais montantes não lhes pertenciam, nem à sociedade sua representada, e que eram pertença da Fazenda nacional, bem como que deviam entregá-los nos termos e prazos legais, mas não se abstiveram de agir do modo descrito, o que quiseram e fizeram.
x) Os arguidos Agostinho e Domingos agiram em representação e no interesse da sociedade primeira arguida, o que fizeram de modo livre e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade das suas condutas.
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Provou-se ainda que:
xi) O arguido Agostinho é casado.
xii) Trabalha como vendedor, por conta própria, não tendo rendimentos certos.
xiii) A sua esposa trabalha como motorista, auferindo o salário mínimo nacional.
xiv) Tem a seu cargo um filho com 19 anos de idade, estudante.
xv) Possui o 11º de escolaridade como habilitações literárias.
xvi) O arguido Domingos é divorciado.
xvii) Trabalha como controlador de qualidade, auferindo o vencimento mensal de € 720,00.
xviii) Tem uma filha com 23 anos de idade, que está a cargo da mãe.
xix) Vive com uma companheira que trabalha como empregada doméstica.
xx) Possui o 9º ano de escolaridade como habilitações literárias.
xxi) Os arguidos não têm antecedentes criminais e prestaram em audiência declarações relevantes para a descoberta da verdade.
xxii) A sociedade arguida encontra-se presentemente sem qualquer actividade.

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B) Factos não provados (transcrição)

xxiii) A decisão tomada pelos arguidos em Julho de 2000, no sentido de deixarem de entregar nos cofres do Estado os valores deduzidos e retidos sobre ordenados pagos e sobre as rendas prediais, persistiu como uma só até Fevereiro de 2001.
xxiv) Em Dezembro de 2001 decidiram, de novo, os arguidos deixar de entregar nos cofres do Estado tais valores.

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C) Convicção (transcrição)
No que concerne aos factos provados, assentou a convicção do tribunal, desde logo, nas declarações prestadas em audiência de julgamento pelos arguidos Agostinho e Domingos .
Com efeito, admitiram estes serem os gerentes de facto da sociedade arguida nos períodos em questão (sendo que essa qualidade jurídica se extrai também da certidão da matrícula dessa mesma sociedade, junta a fls. 22 e seguintes dos autos). Referiram também que a partir de inícios de 2000 a empresa começou a ter dificuldades financeiras, resultantes da falta de cobrança de débitos de clientes e consequente falta de crédito na banca, o que determinou, segundo admitiram também, que a partir de dada altura, no ano de 2000, tivessem deixado de pagar os impostos devidos ao Estado, nestes se incluindo as quantias devidas a título de IRS retido.
Na verdade, os arguidos confessaram, no essencial, a matéria vertida no libelo. Afirmaram, contudo, estranharem os valores constantes da acusação, reputando-os de excessivos, e, em particular, o quantitativo respeitante ao mês de Dezembro de 2001, dado que, segundo disseram, a empresa deixou de laborar em Fevereiro ou Março desse ano.
Todavia, quanto aos valores de IRS retidos e não entregues nos períodos em referência, cremos ter sido cabalmente esclarecedor o depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha José M..., o Inspector Tributário que realizou a acção inspectiva à sociedade arguida e que viria a dar origem a este procedimento criminal (cujo relatório se mostra junto a fls. 345 e seguintes dos autos). Afirmou essa testemunha que os quantitativos apurados o foram com base nos elementos da contabilidade da própria empresa (como aliás se extrai do aludido relatório), designadamente através dos extractos da conta corrente onde eram lançados os valores de rendimentos de trabalho dependente e de rendimentos prediais pagos. Disse também essa testemunha que nada o fez suspeitar que essa contabilidade não estivesse correctamente efectuada – e, na realidade, nada nos autos permite extrair conclusão inversa; nem os arguidos carrearam para os autos quaisquer elementos que infirmassem a correcção dos valores apurados na aludida acção inspectiva, os quais, como se disse, assentaram na análise de dados contabilísticos da própria sociedade sua representada. De resto, como se extrai de fls. 338, após a conclusão da acção inspectiva foi cumprido o dever de audição da sociedade arguida -certamente através dos seus legais representantes, os arguidos – e nenhum reparo fizeram então quanto ao teor do relatório da inspecção no que concerne aos valores de IRS apurados como tendo sido retidos e não entregues.
Assim, com base no depoimento da aludida testemunha e nos dados documentais juntos aos autos, não ficaram no espírito do julgador quaisquer dúvidas no que tange à correcção dos valores referidos no libelo. E esclarecido ficou também, a nosso ver, face ao depoimento da aludida testemunha, a circunstância de formalmente haver um hiato entre os meses de Fevereiro de 2001 e Dezembro de 2001, à primeira vista inexplicável. Como elucidou essa testemunha, tal facto ter-se-á ficado a dever à circunstância de no mês de Dezembro ter sido levado à contabilidade o somatório de todas as prestações retidas nos meses anteriores, dado ser esse o mês em que se fechavam as contas do exercício. E daí resulta a explicação de surgir nesse mês um valor substancialmente superior ao indicado nos restantes períodos. De qualquer modo, também aqui, como afirmou essa testemunha, e resulta dos dados documentais juntos ao processo, esse valor foi apurado com base na análise dos elementos da contabilidade da própria empresa (cfr. designadamente fls. 16).
E foi também por força desta clarificação que se teve como demonstrado, contrariamente ao referido no libelo, que as resoluções criminosas dos arguidos se terão renovando em cada um dos meses em referência – o que se afigura mais consentâneo com as regras da experiência comum e a normalidade do acontecer em situações similares à dos autos - e não que tenha havido uma única resolução criminosa tomada em Junho de 2000 que permaneceu, a mesma, até Fevereiro de 2001, e que se renovou somente em Dezembro deste mesmo ano.
Por isso também que a factualidade discriminada sob os pontos xiii) e xiv) se teve como não provada.
No que tange aos factos respeitantes às condições sócio-económicas dos arguidos valoraram-se as declarações que os mesmos prestaram a esse propósito e que aqueles não têm passado criminal é o que resulta do teor dos certificados do registo criminal juntos ao processo.
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2. Conforme é sabido, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (artigos 402º, 403º, 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal e, v.g., Ac. do STJ de 19-6-1996, BMJ n.º 458, pág. 98)
Neste recurso, a única questão a apreciar consiste em saber se houve ou não erro na apreciação da prova relativamente aos pontos v) e vi) da matéria de facto provada respeitante aos diversos valores de IRS que a sentença recorrida considerou terem sido retidos e não entregues ao Fisco por haverem sido utilizados pelos arguidos em benefício da sociedade também arguida.
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§1. Dado que no caso houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva transcrição integral, pode o tribunal de recurso reapreciá-la na perspectiva ampla prevista no art. 431º do C. P. Penal.
Com efeito, estatui o citado preceito que “Sem prejuízo do disposto no art. 410°, a decisão do tribunal de 1ª instância pode ser modificada (…): b) Se, havendo documentação da prova produzida em audiência, esta tiver sido impugnada, nos termos do art. 412, n.º3 (…)”.
No entanto, ao contrário do que por vezes se pensa, o recurso não tem por finalidade nem pode ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico.
Como já em diversos lugares salientou o Prof. Germano Marques da Silva, presidente da Comissão para a Reforma do Código de Processo Penal que justamente introduziu o recurso também em matéria de facto nos crimes julgados perante tribunal colectivo:
- “E o recurso não é tudo, é um remédio para os erros, não é novo julgamento” (conferência parlamentar sobre a revisão do Código de Processo Penal, in Assembleia da República, Código de Processo Penal, vol.II, tomo II, Lisboa 1999, pág. 65);
- “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” (Forum Justitiae, Maio/99);
- “Recorde-se que o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Por isso também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e sobretudo que tenha de indicar expressamente os vícios da decisão recorrida.” (Registo da prova em Processo Penal. Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol I, Coimbra 2001)- no mesmo sentido cfr. José Manuel Damião da Cunha, A Estrutura dos Recursos na proposta de Revisão do CPP-Algumas Considerações, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8º, fasc. 2, Abril/Junho 1998, págs. 259-260 onde salienta a exigência formulada ao recorrente para apresentar os pontos de facto que mereçam a censura de “incorrectamente decididos”; Id., O Caso Julgado Parcial, Porto, 2002, especialmente a págs. 516, 527, 529 e 567,
Por conseguinte, o recurso em matéria de facto, destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados. Tem como finalidade a reapreciação de “questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” (cfr. designadamente o art. 410º, n.º l do CPP).
Daí que o legislador tenha estabelecido um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria - cfr. artigo 412º, n.º 1, 3 e 4 do CPP.
Dever esse que não se basta com a remissão mais ou menos genérica para os depoimentos prestados em audiência, devendo especificar, ponto por ponto, não só os pontos que se reputam de indevidamente decididos, como ainda quais as provas que deveriam levar a decisão diversa, por referência aos suportes técnicos, no caso de ter havido gravação e transcrição.
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§2. Como é sabido, o Código de Processo Penal normativizou cuidadosamente a matéria atinente à prova, quer em termos genéricos quer de forma específica relativamente às diversas fases processuais em que se opera a recolha e valoração da prova", de onde ressalta "a preocupação de acatamento dos imperativos constitucionais relativos à dignidade pessoal e integridade do cidadão e intimidade da vida privada e familiar que ‘é legítimo esperar de um processo penal no quadro de um Estado de Direito Democrático e Social’ em que a justiça seja alcançada exclusivamente por meios processualmente válidos e efectivamente controláveis” - Marques Ferreira, Meios de Prova, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, págs. 221-222.
No entanto, salvas as referidas limitações em que a apreciação da prova é normativizada, vigora como princípio geral, no âmbito da apreciação das provas, o princípio fundamental da livre apreciação das provas, acolhido, de forma expressa, no art. 127º do CPP, princípio esse que, como refere o mesmo Marques Ferreira, "entre nós tem sido unanimemente aceite a partir da primeira metade do Séc. XIX com as reformas judiciárias saídas da Revolução Liberal" (op, cit, pág.227)
Nesta matéria, apesar da minuciosa regulamentação das provas, continua assim a vigorar o princípio fundamental de que na "questão de facto", a decisão do tribunal assenta na livre convicção do julgador, ainda que devidamente fundamentada, devendo aparecer como conclusão lógica e aceitável à luz dos critérios do art. 127° do Cód. Proc. Penal.
Não deixa porém de se assinalar, como resulta mais uma vez do preâmbulo do CPP, que "o código aposta confiadamente na qualidade da justiça realizada a nível de 1 a instância" (n.º7).
Como já Cavaleiro Ferreira sublinhara, "(…) A livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais exteriores.” “(...) o julgador, em vez de se encontrar ligado por normas prefixadas e abstractas sobre a apreciação de prova, tem apenas de se subordinar à lógica, à psicologia, e às máximas da experiência" - Curso de Processo Penal, reimp. Lisboa, 1981, vol. II, p. 298.
Do princípio da livre apreciação da prova, resulta que a decisão não consiste numa operação matemática, ou meramente formal, devendo o julgador apreciar as provas, analisando-as dialecticamente e procurando harmonizá-las entre si e de acordo com os princípios da experiência comum, sem que o julgador esteja limitado por critérios formais de avaliação.
A reconstituição processual da realidade histórica de certo facto humano não é ou dificilmente poderá ser a expressão precisa e acabada de um qualquer meio de prova e particularmente da prova testemunhal, dadas as naturais dificuldades em se reproduzir fiel e pormenorizadamente o que foi percepcionado ou vivenciado, geralmente de forma passageira e ocasional, muito antes da audiência de discussão e julgamento, local privilegiado para a produção e discussão das provas. Muito menos podem os vários depoimentos ser entendidos isoladamente, retirando-os do respectivo contexto, apenas com base em frases transcritas num mero suporte documental e em certas imprecisões de algum dos testemunhos - por vezes justificáveis desde logo pelas circunstâncias dialécticas em que são produzidos, durante o interrogatório cruzado, formal, surgindo sempre um novo elemento em cada questão suscitada por cada um dos sujeitos processuais.
Não se trata - na avaliação da prova - de uma mera operação voluntarista, mas de conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Envolve a apreciação da credibilidade que merecem os meios de prova, onde intervêm elementos não racionalmente explicáveis, v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova em detrimento de outro - tem essencial relevo a imediação.
Mas ainda deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, aspecto que já não depende substancialmente da imediação, mas deve basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, da experiência e nos conhecimentos científicos.
Mas a livre convicção ou apreciação não pode confundir-se com apreciação arbitrária da prova produzida nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador, como já sublinhara cavaleiro de Ferreira.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias " Se a a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta discricionaridade (como … a tem toda a discricionaridade jurídica) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova, é, no fundo uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada «verdade material» - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios de objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo".
Por isso a livre ou intima convicção não poderá ser " uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável” “Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser , é certo, uma convicção pessoal (…) mas em todos o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de se impor aos outros” a qual “(…) existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer--se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável " (Direito Processual Penal, vol. 1º,Coimbra, 1974, págs. 202-203).
Por isso o CPP instituiu sistemas de motivação e controle em sede de apreciação da prova salientando o carácter racional desta.
De entre esses sistemas destaca-se a consagração de um sistema que obriga a uma correcta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objecto do processo, de modo a permitir-se um efectivo controle da sua motivação.
Esse sistema, regulado no n.º2 do artigo 374º do CPP consiste na exigência de “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”
Como bem salienta o Consº Marques Ferreira “Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de forma determinada os diversos meios de prova apresentados em audiência (op. cit, págs. 229-230)
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§3. Este sistema de fundamentação fáctica não constituiu verdadeiramente uma qualquer limitação ao funcionamento da princípio da livre apreciação da prova antes pelo contrário, “teve em vista garantir maior credibilidade ao princípio em causa e à Justiça em última análise”(Marques Ferreira, op. cit., pág.229).
A fundamentação ou motivação permite o controle por parte do tribunal superior, pela via do recurso, do exame do processo lógico ou racional que subjaz à decisão.
Mas, o recurso em matéria de facto não constitui, como acima referimos, um segundo julgamento, mas um remédio, uma solução para obviar à manutenção de decisões arbitrárias e ilegais
O juízo de censura que a este respeito há-de formular-se não pode fundamentar-se na simples discordância com a convicção do legislador.
É que assim não fosse, como bem salienta o Prof. Damião da Cunha, o tribunal de recurso transformar-se ia “num ‘substitutivo do sistema de provas legais (por tal forma que o tribunal de recurso fizesse ele próprio, uma valoração da prova, acabando, ao invés de censurar a decisão, por proceder a um juízo, mas com inversão das regras de julgamento) ou, então, numa espécie de juízos por parâmetros” (O Caso julgado Parcial, cit. págs. 566-567).
Por isso, conclui aquele ilustre processualista penal:
“Aquilo que o tribunal de recurso pode essencialmente censurar, é a violação de todo o conjunto de princípios que estão subtraídos à livre apreciação da prova (que limitam o ‘arbítrio’ na sua apreciação), exactamente: as regras da experiência comum, o princípio in dubio pro reo, o princípio da presunção de inocência e, em especial, aquele que está directamente ligado à afirmação de uma culpabilidade pelo facto, isenta de qualquer referência a características pessoais do arguido. Deverá ainda ter-se em conta este aspecto: o de que a convicção só é verdadeiramente livre, quando se realiza numa audiência regida pelos princípios da publicidade, da imediação e da contraditoriedade na produção da prova, bem como da concentração na apreciação complexa de todos os argumentos apresentados pelos sujeitos processuais” (pág. 567).
É este também, como não podia deixar de ser, o entendimento desta Relação de Guimarães, como emerge dos seguintes arestos:
Acórdão de 20-3-2006 (proc.º n.º 245/06-1, rel. Fernando Monterroso);
Acórdão de 4-4-2005 (proc.º n.º 1477/04-1, rel. Nazaré Saraiva);
Acórdão de 28-6-2004 (proc.º n.º 575/04-1, rel. Heitor Gonçalves);
Acórdão de 31-5-2004 (proc.º n.º 2415/03, rel. Heitor Gonçalves);
Acórdão de 29-11-2004 (proc.º n.º 1883/04-1, rel. Francisco Marcolino);
Acórdão de 27-10-2003 (proc.º n.º 1445/03, rel. Miguez Garcia);
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§4. É sobre este pano de fundo que a questão suscitada pelo recorrente deve ser apreciada e decidida.
Sustenta o recorrente, que os valores das retenções descriminadas na sentença foram considerados provados apenas com base nas contas correntes anexas aos autos e que tais contas correntes não provam que o contribuinte deve determinada quantia às Finanças, não fazem prova bastante dos valores concretos deduzidos e retidos sobre ordenados e rendas pagas.
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§5. Antes do mais importa frisar que conforme resulta da motivação da sentença acima transcrita o tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nas declarações dos arguidos conjugadas com o depoimento da testemunha José M..., Inspector Tributário que realizou a acção inspectiva à sociedade arguida e com a documentação junta aos autos e que ali se menciona.
Efectivamente, como ali bem se salienta na sentença recorrida e é confirmado pela leitura do anexo de transcrição da prova gravada (cfr. fls. 1 a 11 e 12 a 20), os arguidos admitiram que a partir de dada altura, no ano de 2000, tivessem deixado de pagar os impostos devidos ao Estado, nestes se incluindo as quantias devidas a título de IRS retido, embora tenham estranhado os valores constantes da acusação, reputando-os de excessivos, e, em particular, o quantitativo respeitante ao mês de Dezembro de 2001, dado que, segundo disseram, a empresa deixou de laborar em Fevereiro ou Março desse ano.
Quanto aos concretos valores de IRS retidos e não entregues nos períodos em referência, o tribunal recorrido, de forma cuidadosa refere que foi:
“esclarecedor o depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha José M..., o Inspector Tributário que realizou a acção inspectiva à sociedade arguida e que viria a dar origem a este procedimento criminal (cujo relatório se mostra junto a fls. 345 e seguintes dos autos). Afirmou essa testemunha que os quantitativos apurados o foram com base nos elementos da contabilidade da própria empresa (como aliás se extrai do aludido relatório), designadamente através dos extractos da conta corrente onde eram lançados os valores de rendimentos de trabalho dependente e de rendimentos prediais pagos. Disse também essa testemunha que nada o fez suspeitar que essa contabilidade não estivesse correctamente efectuada – e, na realidade, nada nos autos permite extrair conclusão inversa; nem os arguidos carrearam para os autos quaisquer elementos que infirmassem a correcção dos valores apurados na aludida acção inspectiva, os quais, como se disse, assentaram na análise de dados contabilísticos da própria sociedade sua representada. De resto, como se extrai de fls. 338, após a conclusão da acção inspectiva foi cumprido o dever de audição da sociedade arguida -certamente através dos seus legais representantes, os arguidos – e nenhum reparo fizeram então quanto ao teor do relatório da inspecção no que concerne aos valores de IRS apurados como tendo sido retidos e não entregues.
Assim, com base no depoimento da aludida testemunha e nos dados documentais juntos aos autos, não ficaram no espírito do julgador quaisquer dúvidas no que tange à correcção dos valores referidos no libelo. E esclarecido ficou também, a nosso ver, face ao depoimento da aludida testemunha, a circunstância de formalmente haver um hiato entre os meses de Fevereiro de 2001 e Dezembro de 2001, à primeira vista inexplicável. Como elucidou essa testemunha, tal facto ter-se-á ficado a dever à circunstância de no mês de Dezembro ter sido levado à contabilidade o somatório de todas as prestações retidas nos meses anteriores, dado ser esse o mês em que se fechavam as contas do exercício. E daí resulta a explicação de surgir nesse mês um valor substancialmente superior ao indicado nos restantes períodos. De qualquer modo, também aqui, como afirmou essa testemunha, e resulta dos dados documentais juntos ao processo, esse valor foi apurado com base na análise dos elementos da contabilidade da própria empresa (cfr. designadamente fls. 16).”
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§6. Quanto ao depoimento da testemunha José M..., inspector tributário que procedeu à acção de fiscalização que esteve na origem dos presentes autos, conforme afirmado na sentença e confirmado pela leitura do apenso de documentação da prova, aquele mostrou-se perfeitamente seguro e claro quanto à sua razão de ciência ao contrário do que o trecho descontextualizado inserido na conclusão 20ª, cirurgicamente recortado pelo recorrente, deixa supor, numa técnica conhecida mas reconhecidamente ineficaz, que se limita a “fazer vista grossa e a varrer para debaixo do tapete aquilo que não lhe interessa” (Ac. da Rel. do Porto de 13-7-2005, proc.º n.º 0540595, rel. António Gama, in www.dgsi.pt).
Com efeito, como bem salienta o Exmo PGA no seu parecer, compulsado a transcrição daquele depoimento que ocupa dezanove páginas (págs. 42-61), constata-se que, para além do mais, o Mmo Juiz a quo inquiriu a testemunha quer quanto ao valor da retenção predial do mês de Dezembro de 2000, quer quanto à ausência de menção das retenções mensais relativas a IRS. no período compreendido entre Março e Novembro de 2001, tendo-o também feito os representantes da acusação pública e da defesas. Assim a fls. 45 do referido apenso, refere a testemunha que « as contas correntes evidenciavam esses valores » confirmando perante o tribunal que o que fez constar do relatório e inspecção por si elaborado, foi retirado da contabilidade da própria empresa. Igualmente questionado pelo MP sobre se o valor inscrito no mês Dezembro de 2001 se teria ficado a dever a se ter procedido ao somatório de todos os meses que faltavam - fls. 48 - a testemunha respondeu que « eles somam tudo e puseram tudo em Dezembro»- fls. 49- e de seguida «A explicação é esta. É de certeza absoluta» -fls. 50.
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§7. Como bem salienta o Ministério Público junto do tribunal recorrido nas suas muito cuidadas e brilhantes contra-alegações, foi precisamente com base nos elementos que a sociedade arguida fez chegar à administração fiscal que foi possível determinar os valores do IRS em causa e que foram tomados bons pelo Fisco.
O recorrente reconhece que os valores de IRS retidos e não pagos, categorias A e F “foram extraídos pela análise das fotocópias dos extractos de conta corrente divisionárias que evidenciavam saldos credores”
São esses elementos contabilísticos fornecidos pela sociedade arguida, extractos de conta corrente, que o recorrente pretende por em crise, alegando
a) a conta corrente apenas regista movimentos contabilísticos a crédito e débito pelo que para se justificar os lançamentos contabilísticos, necessário se torna analisar os documentos que suportam a conta corrente, tais como entre outros , facturas, recibos, notas de débito, notas de crédito, os quais não constavam dos autos nem foram juntos pela Direcção de Finanças.
b) A empresa apresentava erros na contabilidade, conforme decorre da leitura do relatório de acção inspectiva pelo que existe a possibilidade de as conta correntes apresentarem erros de lançamento
c) Por força do princípio da presunção de inocência, incumbindo ao Ministério Público a prova dos factos constitutivos do crime, não compete aos arguidos carrearem quaisquer elementos que infirmassem a correcção dos valores apurados.
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§8. Não se nos afigura, porém, que o recorrente tenha razão.
Sem dúvida que uma conta-corrente regista movimentos contabilísticos a crédito e débito.
Mas esta não é uma vulgar conta-corrente.
Trata-se de contas correntes da contas divisionárias de impostos sobre os rendimento - retenções , nomeadamente, as relativas ao trabalho dependente e prediais.
Tais extractos evidenciam saldos credores em aberto, reveladores da não entrega do imposto retido ao Estado, nos termos do artigos 99º (rendimentos de categoria A de rendimentos) e 101º (categoria F de rendimentos), ambos do Código de IRS.
As verbas ali mencionadas, repete-se, foram inscritas pela sociedade arguida, de acordo com as regras da contabilidade pública, mencionadas pelo Ministério Público junto do tribunal recorrido e cujo representante, ora recorrente, parece menosprezar, sendo certo que nos termos do artigo 75º da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Dec.-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro “Presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na presente lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal.” Por isso que o recorrente não tenha razão quando afirma que era necessário para prova dos valores do IRS retido e não entregue os recibos de vencimentos dos trabalhadores e os concretos impressos ou modelos mensais dirigidos às Finanças de onde constam as retenções efectuadas a título de IRS. Por isso também que nada tivesse de estranho a circunstância de a testemunha José M... não ter examinado os documentos que suportavam os extractos de conta corrente e de ter referido que tinha que inferir que a contabilidade estava bem feita.
É que não compete às Finanças a elaboração da contabilidade das firmas…
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§8. É certo que entre nós vigora o princípio da presunção de inocência já que segundo o artigo 32º, n.º 2 da Constituição da República, todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória.
Face a esta presunção compete à acusação a narração ainda que sintética, e a prova dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena em processo criminal.
Simplesmente, o recorrente parece esquecer um outro princípio fundamental: o dever de colaboração ou de cooperação fiscal por parte dos contribuintes expresso v.g. no artigo 59º, n.º 1 da citada Lei Geral Tributária (“Os órgãos da administração tributária e os contribuintes estão sujeitos a um dever de colaboração mútua”) e no artigo 48º, n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro (“O contribuinte cooperará de boa fé na instrução do procedimento, esclarecendo de modo completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo os meios de prova a que tenha acesso”), colaboração que é no dizer de Salvator la Rosa “uma componente indispensável da determinação dos impostos” (apud Saldanha Sanches “Ónus da prova e deveres de cooperação”, in Fisco, n.º6, 15Mar 1989, págs. 25-26,) e não viola aquele princípio constitucional da presunção de inocência (como em Espanha o Supremo Tribunal já teve oportunidade de afirmar - cfr. Miguel Angel Montanés Pardo , La Presunción de Inocência, Aranzadi, 1999, pág. 136), embora entre um e outro, mais exactamente o direito ao silêncio do arguido no processo penal fiscal e o seu dever de cooperação, no processo administrativo de fiscalização, em certas áreas - que não as do caso em apreço- se estabeleça uma certa “tensão dialética”(na terminologia de Nuno Sá Gomes, Evasão Fiscal, Infracção Fiscal e Processo Penal Fiscal, cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º177, 1997, págs. 371-314).
Assim, embora caiba à Administração fiscal a prova da existência do facto tributário (cfr. v.g. o artigo 74º, n.º 1 da citada Lei Geral Tributária), o que no caso foi feito, como vimos, pelos elementos contabilísticos disponibilizados pela sociedade arguida, representada pelos arguidos nomeadamente o recorrente – extractos de contas correntes da contas divisionárias de impostos sobre os rendimento - retenções , nomeadamente, as relativas ao trabalho dependente e prediais – pretendendo o contribuinte impugnar aquele facto compete-lhe fornecer explicações plausíveis para as disparidades assinaladas, em nome do princípio da cooperação.
No caso presente tendo os valores em questão sido por si apresentados pelos arguidos na administração fiscal e tendo sido por esta tomados por bons na acção inspectiva levada a cabo, competia aos arguidos fazer uso dos instrumentos que lhe são conferidos para correcção ou substituição se os mesmos se revelassem inexactos (por omissão ou exagero), fornecendo os necessários meios de prova que possibilitassem infirmar o valor atribuído aos elementos contabilísticos por eles fornecidos (cfr. artigo 59º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, e 98º, n.º4 do Código do IRS, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro), como de resto acabaram por fazer relativamente ao IVA.
Quanto ao IRS nada fizeram.
Por isso, como bem se salienta na sentença recorrida e corresponde à verdade ao contrário do insinuado pelo recorrente, como se extrai de fls. 338 [“o contribuinte não manifestou a s/concordância ou discordância s/ o projecto de relatório, apenas nos enviou via fax, fotocópias das declarações de substituição modelo C do IVA e respectivos registos relativos aos meses de Outubro e Novembro de 1998, com a inclusão do valor das aquisições intracomunitárias, que tinham sido incluídas por erro imputável ao contribuinte, em aquisições de outros mercados”], após a conclusão da acção inspectiva foi cumprido o dever de audição da sociedade arguida -certamente através dos seus legais representantes, os arguidos – e nenhum reparo fizeram então quanto ao teor do relatório da inspecção no que concerne aos valores de IRS apurados como tendo sido retidos e não entregues.
Por outro lado, como bem salienta o Ministério Público junto do tribunal recorrido
«(…) que outras pessoas que não os arguidos (e entre eles o arguido recorrente) tinha ou tem à sua disposição todos os documentos contabilísticos que estão na base da inserção daqueles valores na sua contabilidade, como "entre outros, facturas. recibos, notas de débito, notas de crédito "?
Que outras pessoas que não os arguidos (e ente eles o arguido recorrente) tinha ou tem à sua disposição os elementos - documentais ou outros - que permitissem explicar por que é que durante dez meses não surge qualquer movimento no Extracto de conta de conferência de fls. 16 dos autos e faz surgir no último dia do mês de Dezembro aquele valor que lá consta?
Se é certo que ao arguido não cabe qualquer ónus de prova sobre o que concretamente lhe é imputado, corresponde-Ihe o correspectivo direito inequívoco e inalienável de defesa que, contudo, deverá ser feito de um modo sério, plausível, consistente e razoável sob pena de, não tendo tais qualidades, não ter qualquer virtualidade de toldar ou perturbar a convicção que resulta da prova carreada a favor dos factos que lhe são imputados.»
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§9. Refere o assistente que “existe a possibilidade de as conta correntes apresentarem erros de lançamento”.
Embora sem o mencionar está a fazer apelo ao apelo ao princípio in dubio pro reo, segundo o qual «a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido» (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, pág 215).
Mas, como já resulta desde logo daquela citação doutrinal e o ora relator já teve oportunidade de explicitar em outro lugar (Notas sobre o princípio in dubio pro reo, 1998, CEJ, pág. 6 e 11-17), a dúvida (entendida como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”(Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615) que está imanente ao princípio in dubio pro reo “não é a dúvida teórica, abstracta, ou meramente hipotética, mas antes a dúvida concreta, real, positiva, que se apoia em factos concretos”.
Por isso a dúvida meramente possível, meramente hipotética, a dúvida que se baseia em puras conjecturas ou suposições não faz desencadear a aplicação daquele princípio que pressupõe, pelo contrário, uma dúvida argumentada, que se possa justificar objectivamente, “que se comunique e imponha aos outros” (Castanheira Neves) coerente, razoável, “a reasonable doubt”.
E, em momento algum resulta da sentença ou da transcrição da gravação, que o tribunal tivesse tido qualquer dúvida sobre factos relevantes e tenha decidido contra o arguido/recorrente.
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Conclui-se, deste modo, que o julgador, perante o acervo probatório disponível considerou provados os factos constantes da acusação pública.
Mas fê-lo de forma devidamente fundamentada, expondo de forma clara e segura os elementos de facto que fundamentam a sua decisão, o processo lógico que lhe subjaz, optando por uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, suportada pelas provas invocadas na fundamentação da sentença conforme também se colhe da leitura da declarações produzidas em audiência de julgamento, não se detectando nenhum erro patente de julgamento, nem tendo sido utilizados meios de prova proibidos.
Por isso que tal decisão seja inatacável, porque proferida de acordo com a sua livre convicção (artigo 127º do Código de Processo Penal).
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E terminam-se estas considerações com a seguinte síntese conclusiva constante do Ac. T.C. 198/2004 de 24-03-2004 (DR, II Série, de 2-6-2004), que não podemos deixar de subscrever:
"A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode, consequentemente, assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão" (itálico nosso).
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III- Dispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a douta decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, com 5 UC de taxa de justiça.

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Guimarães, 29 de Janeiro de 2007