Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
224/15.6GBGMR.G1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: DESPACHO DE ARQUIVAMENTO
NULIDADE
INJÚRIA
RAI
ÂMBITO DA INTERVENÇÃO DO JIC
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I) Estando em causa uma nulidade por omissão de um acto do Mº Pº que não ordenou a notificação da assistente para os termos do artº 285º, do CPP, relativa exclusivamente ao ilícito de injúrias, só quanto aos factos relativos a este tipo de crime, cumpre declarar a nulidade do despacho de arquivamento, nos termos do disposto no artº 119º, b), do mesmo diploma legal, aproveitando-se o mesmo despacho quanto a tudo o mais nos termos do artº 122º, nº 3. do mesmo diploma.
II) Face à estrutura acusatória do processo penal português, estipula o nº 4, do artº 288º, do CPP, que o juiz não pode investigar autonomamente o caso submetido a instrução, estando vinculado factualmente aos elementos que lhe são trazidos no RAI de forma a poder decidir sobre a justeza ou acerto da decisão de acusação ou arquivamento.
III) O requerimento de abertura da instrução, constitui, assim, um elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz de instrução.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÂO DE GUIMARÃES:



I. RELATÓRIO

A –
Nos presentes autos de Instrução que, com o nº 224/15.6GBGMR, correm termos na Comarca de Braga, Guimarães - Instância Central - 2ª Secção de Instrução Criminal - Juiz 2, recorre a assistente S. D., da decisão instrutória proferida pelo Mmº Juiz titular dos presentes autos, que decidiu negar provimento ao requerimento de abertura da instrução e, em consequência, não pronunciou o arguido A. S. pela prática dos crimes que lhe vinham imputados no requerimento de abertura da instrução e, determinou o oportuno arquivamento dos autos.

Da motivação do recurso, a assistente/recorrente S. D., retira as seguintes conclusões (transcrição):

1. A douta decisão instrutória está viciada de nulidade por omissão de pronúncia e de insuficiência da instrução e padece, ainda, de erro notório na apreciação da respectiva prova e, finalmente, de inadequada aplicação do direito;
2. Salvo o devido respeito por distinto entendimento, a douta decisão instrutória enferma do vício de omissão de pronúncia, uma vez que no aresto em crise não se procedeu à apreciação da apontada nulidade do inquérito decorrente por falta da dedução de acusação pública pelo crime de ameaça agravada e da falta de notificação da Recorrente para, nos termos e prazos legalmente previstos, deduzir acusação particular quanto aos crimes de injúrias;
3. Sendo que, pese embora se possa concordar com uma determinada liberdade conferida ao Ministério Público em promover as diligências que entenda necessárias em face dos factos denunciados, a dedução da acusação pelos crimes de ameaça agravada e, sobretudo, a obrigação legal de notificar a Assistente, ora Recorrente, para deduzir acusação particular relativamente aos factos que assumam tal natureza são, como se refere na douta decisão recorrida, “actos de prática obrigatória e as exigências do princípio”;
4. Contudo, já não lhe é conferida qualquer discricionariedade quanto à dedução de acusação quanto aos apontados crimes de ameaça agravada e, sobretudo, quanto à notificação do assistente nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 285° do CPP;
5. Ora tratando-se de ato que a lei prescreve como obrigatórios, estamos perante uma nulidade de insuficiência do inquérito, legalmente prevista na alínea d) do n° 1 do artigo 120° do CPP e que foi alegada no requerimento de abertura de instrução e sobre a qual o Exmo. Tribunal a quo não se pronunciou, incorrendo, nesta parte a decisão a quo em omissão de pronúncia;
6. Vício que também é gerador de nulidade da decisão em causa - cfr. art° 379°, n° 1 al. c), do Cód. Proc. Penal;
7. Devendo, por força dos supra indicado vício de nulidade, ser a douta decisão instrutória substituída por outra decisão que declare a nulidade do inquérito, por insuficiência do mesmo, e, por via deste, a nulidade do despacho de arquivamento e dos demais atos processuais subsequentes, e, em consequência, ordenar a remessa dos presentes autos à fase de inquérito para ser prolatado despacho de acusação contra o arguido pela prática de dois crimes de ameaça agravada e ser determinada a notificação da Recorrente para, no prazo de dez dias, deduzir acusação particular quanto aos denunciados crimes de injúrias;
8. Mais acresce que, na douta decisão concluiu-se que “Vistos os factos tidos por suficientemente indiciados verifica-se que eventualmente se poderia considerar como preenchidos os elementos típicos objectivos e subjectivos de diferentes ilícitos penas, ainda que na forma tentada (ofensa à integridade física e/ou homicídio), pois que o arguido agiu de modo voluntário e querido teria tentando atingir a integridade física e/ou a vida da assistente”;
9. Salvo o devido por distinto entendimento, em face da conclusão que supra se transcreveu, devia ter o Douto Tribunal recorrido ordenada que, uma vez transitada a decisão em crise, se extraísse certidão dos presentes autos ou que se remete os presentes autos para o Ministério Público para que se prosseguisse com o inquérito para se apurar a responsabilidade do arguido quanto aos factos de tentativa de ofensa à integridade, na nossa respeitosa opinião, na forma grave ou qualificada, e/ou tentativa de homicídio, na forma simples ou qualificada;
10. Com efeito, tratando-se de ilícitos de natureza pública, cabe ao Ministério Público promover o respetivo inquérito — cfr. artigo 48° do CPP — não tendo isso sucedido e tratando-se da omissão de um ato legalmente prescrito e obrigatório, a douta decisão instrutória em apreço, por violação do disposto na al. d) do n° 1 do artigo 120º do CPP, ferida de nulidade;
11. Não obstante se concordar que poderá assistir uma certa liberdade ao Ministério Público na direção e condução do inquérito e no exercício da ação penal (por via do n° 1 do artigo 261° da CRP) o artigo 267° do CPP determina que o Ministério Público pratica os atos e assegura os meios de prova necessários à investigação sobre a existência de um crime, a determinação dos seus agentes e a descoberta e recolha das provas;
12. Deste modo, a atuação do Ministério deve pautar-se de acordo com a observância do princípio da legalidade, não lhe sendo lícito escolher os meios de prova que deve ou não produzir, cabendo-lhes praticar todos atos e produzir todos os meios de prova que cumpram as finalidades a que se alude no n° 1 do artigo 262° do CPC;
13. Assim sendo, como respeitosamente se entende ser, a inquirição das testemunhas F. P. e M. P., reputando-se como essenciais para a descoberta da verdade, trata-se de diligências impostas por lei e cuja omissão determina, por violação do disposto na al. b), do n° do artigo 120º do CPP, por insuficiência do inquérito, a nulidade do despacho de arquivamento prolatado nos autos;
14. Nulidade esta, que oportunamente se arguiu e que, também, nesta sede, se renova, com todas as legais consequências dela decorrentes;
15. Acresce, ainda que, o douto despacho de arquivamento omitiu e, por essa via, não considerou, para além da prova produzida nos autos após o pedido de reabertura do inquérito, o depoimento prestado pela filha da Recorrente, a testemunha M. D., que, ainda que parcialmente, corroborou as declarações prestadas pela Assistente e duas testemunhas.
16. Sendo que, no nosso respeitoso entendimento, a não consideração do depoimento da testemunha M. D. pelo douto despacho de arquivamento e a sua não conjugação com os demais meios de prova também determina a sua nulidade e dos demais ulteriores termos, com todas as legais consequências;
17. O Exmo. Tribunal a quo não efetuou, no que se refere ao crime pelo qual o arguido não foi pronunciado, uma criteriosa e cuidada apreciação da prova produzida nos autos, sendo que — se tal sucedesse — a prova referida no ponto III.D supra, no que à Recorrente diz respeito, somente poderia (como deveria e ainda deve) ser julgada como indiciada;
18. Salvo o devido respeito por diferente entendimento, em sede de instrução, encontra-se suficientemente indiciada a prática, pelo Recorrido, de um crime de violência doméstica, pois aquele submeteu, repetidamente, a Recorrente a maus tratos, físicos e psicológicos, tendo, para além da forma grave e reiterada, ofendido a integridade física da Recorrente, injuriado, ameaçado e ofendeu-a moral e psicologicamente, assim como violou a sua liberdade pessoal;
19. Sendo que, na nossa respeitosa opinião, o douto despacho recorrido padece quer de um erro de raciocínio, quer de fundamentação, de facto e direito, porquanto:
20. Atendendo à prova testemunhal produzida nos autos, cumpre sublinhar que a versão trazida aos autos pela Assistente somente é parcialmente corroborada pela sua filha, a testemunha M. D., cujo depoimento, contrariamente ao referido na decisão recorrida, não se pode assumir como “naturalmente comprometido”;
21. Parece-nos desrazoável que a indicada relação de parentesco e de proximidade seja suficiente para afastar o depoimento da testemunha M. D., pois de acordo com as regras da experiência, é possível afirmar que o crime de violência doméstica é, frequentemente, um crime praticado no recato do lar é normal e aceitável que apenas a identificada testemunha M. D., que coabitava com a assistente e o arguido, tivesse assistido aos factos por si relatados nos autos e o que fez, na nossa perspetiva, de forma isenta e credível;
22. Depoimento este que, conjugado com a demais prova testemunha, nomeadamente as declarações da Recorrente e os depoimentos de M. G., M. V., E. C., C. M., S. D. e P. C., permite-se concluir pela recolha dos indícios suficientes da prática do crime de violência doméstica;
23. Assim sendo, como respeitosamente se entende ser, atenta a prova testemunhal produzida nos autos, conjugada com as declarações da Assistente, ora Recorrente, o Exmo. Tribunal a quo deveria ter julgado como totalmente indiciada a matéria de facto indicada nos pontos 1°, 2°, 3°, 4°, 5°, 6°, 7°, 8°, 9°, 10°, 11°, 12°, 13°, 14°, 15°, 16°, 17°, 18°, 19°, 20°, 21°, 22°, 23°, 24°, 25°, 26°, 27°, 28°, 29 e 30° da matéria de facto não indiciada;
24. No âmbito do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152° do Código Penal, a citada norma jurídica visa proteger um “bem jurídico (...) plural e complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana” e que, obviamente, “não são todas as ofensas entre os cônjuges que cabem na previsão legal”;
25. A punição do crime de violência doméstica, visa, essencialmente, salvaguardar a vida e integridade física e a liberdade e dignidade da pessoa humana, querendo deste modo prevenir consequências mais gravosas que, irremediavelmente, irão surgir e afetarão o desenvolvimento harmonioso da personalidade da vítima;
26. Discordamos, todavia, do Exmo. Tribunal a quo - mesmo no caso de não considerar como indiciada a matéria de facto supra referida, o que se não concede - no facto de no caso vertido nos autos não estamos perante um mero “conflito ocasional” e que os factos aqui em apreço assumem uma gravidade bastante que permite a sua individualização e autonomização relativamente aos ilícitos que integram os comportamentos individualmente considerados;
27. Com os seus atos, o Arguido/Recorrido, demonstrou um comportamento agressivo, cruel e insensível, tendo tomou várias atitudes controladoras que puseram em causa a vida, a integridade física e a liberdade da Recorrente, com uma manifesta vontade de subjugar a vítima aos seus desejos e vontades, no, ilegítimo, intuito de tornar a assistente totalmente depende de si e impedir o são desenvolvimento da sua personalidade e da convivência com outras pessoas — cfr. pontos 5º, 6°, 7º, 8°, 9°, 10°, 11º e 12° da matéria julgada como indiciada pelo Exmo. Tribunal a quo, os quais têm uma gravidade tal que afetaram de forma irreparável a saúde física e psíquica da Recorrente;
27- Por de tudo supra exposto, deveria ter o Exmo. Tribunal a quo pronunciado, como ainda se deve pronunciar, o arguido pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo pelo artigo 152°, nºs. 1, alínea a), e 2, do Código Penal.
28. Caso assim se não entenda, o que se não concede e por dever de patrocínio se acautela, em alternativa deveria ter sido proferido despacho de pronúncia relativamente à prática pelo arguido de três crimes de ameaça agravada;
29. Conforme resulta do despacho de não pronúncia, existem indícios suficientes que o Arguido se dirigiu à assistente dizendo “eu mato-te” e “empunhando uma ferramenta de jardinagem vulgarmente designada por “gadanho”, correu atrás da assistente, tendo-se esta escondido e trancado na cave da residência”;
30. Salvo o devido respeito pelo douto entendimento plasmada no aresto recorrido, quer os factos vertidos nos pontos 9°, 10° e 11° e, ainda, nos pontos 17°, 18°, 22° e 24°, constituem a verbalização de várias ameaças à vida, à integridade física e à liberdade pessoal da Recorrente e consubstanciam a concretização, não de um mal iminente, mas futuro;
31. Sendo que tal não obsta o facto de Recorrente ter fugido do Recorrido, pois, como se alega no requerimento de abertura de instrução, tais ameaças projetaram-se no futuro, pois a mesma vive com o “receio que a passou a atormentar e, ainda, atormenta relativamente à possibilidade de o denunciado levar a cabo as ameaças proferidas”;
32. Pelo que deveria ter sido pronunciar, como ainda deve ser pronunciado o arguido pela prática de três crimes de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo pelo artigo 155°, n° 1 al. a), tendo por referência o disposto no n° 1 do artigo 153°, ambos do Código Penal;
33. Assim sendo, como respeitosamente se entende ser, a douta Decisão recorrida, entre outros, violou os artigos 48°; 50°; 119°, alínea d); 120°; n° 2 alínea d); 262°, n°1, 267°, 283°, n°1; 285°, n° 1, e 379°, n° 1 alínea c), todos do Código de Processo Penal; 131°; 132°, n° 2 alínea b); 143°; 144, alínea a); 145°; 152°; nºs 1 alínea a) e 2; 153°, n° 1, estes do Código de Processo Penal e artigo 219°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos e nos mais e melhores de direitos, que V. Exas. - mui douta e sabiamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência:
a)- Ser a douta decisão recorrida declarada nula:
a.1)- Por omissão de pronúncia e aquela ser substituída por outra que declare a nulidade do inquérito, por insuficiência do mesmo, e, por via deste, a nulidade do despacho de arquivamento e dos demais atos processuais subsequentes;
a.2)- Por falta de determinação da remessa dos autos a inquérito e se ordene a remessa dos presentes autos para inquérito para se promoverem os respetivos trâmites legais até final pelos crimes de tentativa de ofensa à integridade física, grave ou qualificada, e tentativa de homicídio, simples ou qualificado;
b)- E ser revogada a douta decisão recorrida e, em seu lugar, ser proferida outra que:
b.1)- Julgue procedentes, por provadas, as alegadas nulidades do inquérito e do despacho de instrução, ou, em alternativa,
b.2)- Pronuncie o Arguido pela prática do crime de violência doméstica ou, subsidiariamente de três crimes de ameaça agravada,
c)- Tudo com todas as legais consequências e como é de, inteira e sã Justiça.

Notificado o Ministério Público nos termos do disposto no artigo 411º, nº 6, do Código de Processo Penal, para os efeitos do disposto no artigo 413º, nº 1, do mesmo diploma legal, veio apresentar resposta ao recurso interposto, concluindo por seu turno (transcrição):
1. A assistente alegou que não foram inquiridas as testemunhas F. P. e M. P. e que a omissão da inquirição destas testemunhas constitui nulidade prevista nos termos do disposto no art. 119º-1 ou 120º-2 do CPP.
2. Posto isto, dispõe o art. 119º-d) do CPP que constitui nulidade insanável a falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.
3. A causa de nulidade do inquérito é privativa do processo comum e exige a falta absoluta de actos de inquérito – “vide” José da Costa Pimenta “in” CPP Anotado, p. 380.
4. “Assim, só se verifica esta nulidade quando se omita acto que a lei prescreve como obrigatório e desde que para essa omissão a lei não disponha de forma diversa.
A omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência exclusiva do MP” (vide Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, Vol. II, p. 84).
5. Ora no caso sub judice dúvidas não temos que o facto de não terem sido inquiridas as testemunhas atrás identificadas não constitui nulidade insanável uma vez que as mesmas não foram localizadas em Portugal e não possuem morada no nosso país, desconhecendo-se quando as mesmas virão a Portugal (cfr. fls. 230).
6. Importa ainda referir que com base nos elementos indicados pela ofendida não seria nunca possível notificar estas testemunhas uma vez que é desconhecido o seu paradeiro e não existe a possibilidade de as contactar por qualquer forma.
7. Assim sendo, estas diligências não eram obrigatórias, nem essenciais para a descoberta da verdade material, pelo que não se verificam as nulidades previstas nos arts. 119º-d) e 120º-2-d) do CPP.
8. Não é verdade que o MP no seu despacho de arquivamento não tenha tido em consideração o depoimento da testemunha M. D. e não o tenha conjugado com os demais meios de prova.
9. Assim, no despacho de arquivamento o MP pronunciou-se acerca do depoimento de Maria Bispo, tendo referido a este propósito que a versão da ofendida apenas foi em parte corroborada por aquela, e diverge da versão dos acontecimentos apresentada pelo arguido e pelas sete testemunhas inquiridas (cfr. fls. 134, 135, 146 a 149, 199 a 202, 214 e 215).
10. Além do mais o MP entendeu que a proximidade desta testemunha com a mãe comprometeu o seu depoimento, não tendo sido recolhida outra prova que permitisse confirmar a versão da ofendida em detrimento da apresentada pelo arguido (cfr. fls. 93 e 231).
11. E com base na prova recolhida na fase de inquérito dúvidas não temos que não foram recolhidos indícios suficientes da verificação do crime de violência doméstica.
12. A assistente referiu ainda que o inquérito é nulo por falta de dedução de acusação pública quanto ao crime de ameaças.
13. Ora esta afirmação não é verdadeira uma vez que no despacho de arquivamento proferido em 4.03.2016 o MP pronunciou-se sobre o crime de ameaça, afirmando o seguinte:
“As diversas testemunhas inquiridas admitiram, em suma, terem assistido ou pelo menos ouvido diversas discussões entre o casal que culminaram na sua separação, contudo deram conta de nunca terem presenciado a prática de maus tratos (ameaças, ofensas, injúrias) de um dos cônjuges em relação ao outro” (cfr. fls. 231).
14. No que concerne ao crime de injúria e apesar de a ora recorrente no âmbito do inquérito ter afirmado que pretendia procedimento criminal contra o arguido o que é certo, é que o MP não a notificou para no prazo de 10 dias, querendo, se constituir assistente, pagar a taxa de justiça devida e se fazer representar por advogado, sob pena, de não o fazendo, o processo ser arquivado por inadmissibilidade legal do procedimento, conforme resulta do disposto nos arts. 48º, 49º-1, 50º-1, 68º, 70º-1, 277º-1 e 519º-1, todos do CPP.
15. A omissão destas formalidades acarreta a nulidade insanável prevista no art. 119º-b) do CPP, a qual é do conhecimento oficioso.
Neste sentido, vide Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22.04.2015, processo nº 43/13.4TASBG-B.C1, relator Luís Teixeira, in “www.dgsi.pt”.
16. A nulidade insanável prevista no art. 119º-b) do CPP dever ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento e tem os efeitos fixados no art. 122º do mesmo Código.
17. Assim sendo, o Mmº JIC devia ter conhecido da nulidade do inquérito arguida pela assistente.
18. Face ao exposto, deverá ser declarado nulo o despacho de arquivamento e todos os actos praticados a partir deste despacho, conforme resulta do disposto no art. 122º-1 do CPP.
Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal, julgando parcialmente procedente o recurso e, em consequência revogando o despacho proferido pelo Mmº JIC e substituindo-o por outro que declare nulo o despacho de encerramento do inquérito e todos os actos praticados a partir deste despacho V. Exas. farão, como sempre, a costumada Justiça.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso interposto, conforme melhor resulta do seu parecer de fls. 404 e 408, dos autos.
Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, tendo a assistente apresentado resposta, pugnando nos precisos termos do recurso interposto.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -
O despacho de não pronúncia, ora recorrido encontra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição):
- Da nulidade do inquérito.
No requerimento de abertura da instrução que agora se aprecia invocou a assistente, para além do mais, a nulidade do inquérito, porquanto entende não terem sido efectuadas todas as diligências pertinentes tendo em vista a descoberta da verdade, nomeadamente a inquirição de testemunhas que indicou.
Entende, assim, a assistente que este circunstancialismo constitui a nulidade prevista no artigo 119º, alínea d), do Código de Processo Penal, ou em alternativa a prevista no artigo 120º, nº 2, alínea d), do mesmo diploma legal.
Cumpre apreciar e decidir.
A questão que agora é suscitada pelo arguido não é nova, antes pelo contrário, e encontra-se perfeitamente discutida e esclarecida na nossa Doutrina e Jurisprudência.
O que está em causa é o seguinte: entende a assistente que testemunhas há, que não foram inquiridas em fase de inquérito e cujo depoimento seria (será) imprescindível para a descoberta da verdade.
Certamente por ter entendido que tal inquirição de testemunhas não relevaria para a descoberta da verdade, o Ministério Público não procedeu à mesma.
Sem prejuízo do que deixaremos escrito, cumpre referir que a existir alguma nulidade sempre haveria de se tratar da nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Penal, e nunca a prevista na d) do artigo 119º do referido diploma, uma vez que esta diz respeito à total ausência de inquérito (o que claramente não sucedeu no caso em apreço).
Importa referir que perante a formulação legislativa constante do citado artigo 120º, nº 2, alínea d), do Código Processo Penal, tem a jurisprudência questionado se a insuficiência do inquérito respeita apenas à omissão de actos obrigatórios, ou a esses e ainda a quaisquer outros actos de investigação e de recolha de prova necessários à descoberta da verdade.
A solução maioritariamente seguida, partindo daquilo que vemos como uma correcta ponderação da estrutura acusatória do processo penal (artigo 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa), dos princípios do contraditório e da oficialidade, entende que só se verifica esta nulidade quando ocorra ausência absoluta ou total de inquérito (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/10/99, Colectânea de Jurisprudência, Ano XXIV, Tomo 4, pág. 158), e/ou se omita acto que a lei prescreve como obrigatório. Ancora-se esta solução no entendimento de que a titularidade do inquérito, bem como a sua direcção, pertencem ao Ministério Público (artigos 262.º e 263.º, do Código Processo Penal), sendo este livre – dentro do quadro legal e estatutário em que se move e a que deve estrita obediência (artigos 53º e 267º, do Código Processo Penal) – de promover as diligências que entender necessárias ou convenientes com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar, com excepção dos actos de prática obrigatória no decurso do inquérito, como sejam os actos de interrogatório do arguido, salvo se não for possível notificá-lo, de notificação ao arguido, ao assistente com a faculdade de se constituir assistente e às partes civis do despacho de encerramento do inquérito e no que respeita a certos crimes, actos investigatórios imprescindíveis para se aferir dos elementos de certos tipos de crimes, nomeadamente os exames periciais nos termos do artigo 151º do Código de Processo Penal [médicos, no caso de crimes contra a integridade física; autópsia, no caso de morte violenta (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa citado e Acórdão do Tribunal Constitucional nº 395/04, de 2/06/2004, D.R. II série, de 9/10/2004, pág. 14975)].
Na decisão desta problemática olvida-se não raramente o modelo de autonomia que em sede de exercício da acção penal o legislador no actual Código Processo Penal desenhou para a actividade do Ministério Público (pertence ao Estado o dever de administração da justiça – artigo 202º, da Constituição da República Portuguesa – através de uma entidade pública que é o Ministério Público – artigo 219º, da Constituição e artigo 48.º, do Código Processo Penal. O Ministério Público promove o processo penal depois de adquirir a notícia do crime – artigo 241º, do Código Processo Penal. A investigação decorre naquilo que se chama a fase de inquérito – artigo 262º, sob a direcção do Ministério Público).
Como se refere no Acórdão nº 581/00 do Tribunal Constitucional, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa, ao Ministério Público compete exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade.
Esse exercício é regulado pela lei e, como decorre da remissão contida neste preceito para o número seguinte, acarreta um estatuto próprio do Ministério Público e a sua autonomia.
Do nº 1 do artigo 219º, da Constituição da República Portuguesa, pode retirar-se que o exercício da acção penal pelo Ministério Público comporta a direcção e a realização do inquérito por esta magistratura, não se cingindo esse exercício à sustentação da acusação em juízo [Figueiredo Dias, "Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal", Jornadas de Direito Processual Penal (O Novo Código de Processo Penal), 1988, pág. 8-9].
No mesmo sentido se pronuncia Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, pág. 91), sustentado que a insuficiência de inquérito é uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um acto que a lei prescreva como obrigatório e desde que para essa omissão a lei não disponha de forma diversa e que a omissão de diligências de investigação não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois a apreciação da necessidade de actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público.
Voltando ao caso dos autos verifica-se que o Ministério Público não procedeu à inquirição das testemunhas referidas pela assistente.
Desconhece-se, ao certo, qual o conhecimento que as testemunhas em causa teriam dos factos objecto dos presentes autos.
O certo é que, e conforme resulta claro do exposto, só a ausência absoluta de inquérito ou a omissão de diligências impostas por lei determinam nulidade do inquérito por insuficiência do mesmo (artigo 120º, nº 2, alínea d), do Código Processo Penal); assim a omissão de diligências não impostas por lei não determina uma tal nulidade, pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público. O Ministério Público é livre, salvaguardados os actos de prática obrigatória e as exigências decorrentes do princípio da legalidade, de levar a cabo ou de promover as diligências que entender necessárias, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito e não determina a nulidade do inquérito por insuficiência a omissão de diligências de investigação não impostas por lei (cfr. citado Acórdão do Tribunal Constitucional de 2/6/2004).
Improcedem, assim, os argumentos invocados pela assistente, não vislumbrando o Tribunal o cometimento das invocadas nulidades.
- Da nulidade do despacho de arquivamento.
Refere ainda a assistente que a desconsideração do seu depoimento no despacho de arquivamento e a sua não conjugação com os depoimentos de todas as testemunhas inquiridas, que a ter acontecido somente podia ter conduzido à imputação ao arguido da prática do crime de violência doméstica em apreço nos autos ou, subsidiariamente, dos crimes de ameaça agravada e de injúrias, enferma o despacho de arquivamento de nulidade.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, não vislumbramos qualquer fundamento legal para a argumentação expandida pela assistente, nem tão pouco esta se digna invocá-la.
Aquilo que se nos afigura é que a assistente discorda da avaliação crítica feita pelo Ministério Público da prova produzida durante a fase do inquérito.
Porém, tal circunstancialismo não se afigura gerador de qualquer nulidade, mas antes de fundamento para a abertura da instrução.
Improcede, pois e de igual forma, a invocada nulidade.
Não há assim quaisquer nulidades, ilegitimidades, excepções, questões prévias ou incidentais que importe conhecer e que obstem a uma decisão de mérito.
Relatório.
Finda a fase do inquérito e na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público a fls. 93 e 231 veio a assistente S. D. requerer a abertura da instrução no sentido de a final ser o arguido A. S. pronunciado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2 do Código Penal, ou, em alternativa, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de três crimes de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo pelo artigo 155º, nº 1, alínea a), tendo por referência o disposto no nº 1 do artigo 153º, ambos do Código Penal.
Alega, para tanto e em síntese, a assistente que durante o tempo em que esteve casada com o arguido foi vítima dos maus tratos que descreve, consubstanciadores no seu entendimento dos aludidos crimes.
Termina concluindo pela procedência do requerimento de abertura da instrução e consequente pronúncia do arguido.
Não se tendo vislumbrado qualquer acto instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, nem tendo sido requerida a realização de algum, efectuou-se o debate instrutório, que decorreu em conformidade com o disposto nos artigos 298º, 301º e 302º, todos do Código de Processo Penal.
Cumpre agora, nos termos do artigo 308º do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória.
Do âmbito e objectivo da fase da instrução.
Importa, antes de mais, começar por delimitar o âmbito e objectivo desta fase da Instrução.
A Instrução visa, segundo o que nos diz o artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal, «a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento». Configura-se assim como fase processual sempre facultativa – cfr. nº 2 do mesmo dispositivo – destinada a questionar a decisão de arquivamento ou de acusação deduzida.
Como facilmente se depreende do citado dispositivo legal, a instrução configura-se no Código de Processo Penal como actividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e que tendencialmente se destina a um apuramento mais aprofundado dos factos, da sua imputação ao agente e do respectivo enquadramento jurídico-penal.
Com efeito, realizadas as diligências tidas por convenientes em ordem ao apuramento da verdade material, conforme dispõe do artigo 308º, nº 1, do Código de Processo Penal, «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.».
Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.
Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como deixamos dito, na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação.
Depois, no nº 2 deste mesmo dispositivo legal, remete-se, entre outros, para o nº 2 do artigo 283º, nos termos do qual «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».
Isto posto, para que surja uma decisão de pronúncia a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes se basta com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final. Trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento.
Todavia, como a simples sujeição de alguém a julgamento não é um acto em si mesmo neutro, acarretando sempre, além dos incómodos e independentemente de a decisão final ser de absolvição, consequências, quer do ponto de vista moral, quer do ponto de vista jurídico, entendeu o legislador que tal só deveria ocorrer quando existissem indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado.
Assim sendo, para fundar uma decisão de pronúncia não é necessária uma certeza da infracção, mas serem bastantes os factos indiciários, por forma a, que, da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal.
Os indícios são, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Neste sentido, veja-se Castanheira Neves, onde aquele professor perfilha a tese segundo a qual na suficiência de indícios está contida «a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final», apenas com a limitação inerente à fase instrutória, no âmbito da qual não são naturalmente mobilizados «os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação».
Da fundamentação de facto.
Conforme referimos supra, na sequência do arquivamento dos autos veio a assistente requerer a abertura da instrução, imputando ao arguido a prática dos seguintes factos:
«1º A Autora e Réu celebraram, no dia 10 de Junho de 2009, casamento civil, que foi dissolvido por decisão prolatada e transitada em 14 de Janeiro de 2011 – Assento de Casamento, cuja certidão, como doc. Nº 01, se junta e aqui se dá por integrada para todos os legais efeitos.
2º Tendo contraído, novamente, matrimónio dia 08 de Agosto de 2013 – cfr. Assento de Casamento, cuja certidão, como doc. Nº 02, também se junta e aqui dá por reproduzida.
3º Sendo que o aludido casal residiu desde meados do mês de Fevereiro do ano de 2012, conjuntamente com a filha então menor da assistente, M. D., até ao dia 12 de Abril de 2016, na Estrada Nacional 105, Nº 4280,…, da freguesia de…, no conselho de Guimarães.
4º Data em que o arguido abandonou a casa de morada de família de ambos.
5º Pouco tempo após o casamento, por força do carácter egoísta e violento do arguido, a harmonia do lar foi-se degradando, acentuada e irremediavelmente, designadamente pelas constantes discussões que o arguido iniciava, injustificadamente, e que, normalmente, derivavam do comportamento ciumento e agressivo do mesmo.
6º Durante todo o período em que coabitaram em comunhão de mesa, cama e habitação, o arguido submeteu, repetidamente, a assistente a diversos maus tratos, físicos e psicológicos.
7º Pois, sem qualquer razão que o justificasse, a não ser o seu egoísmo, qualquer pretexto servia ao arguido para altear a voz e, ainda, para desencadear uma discussão com a assistente.
8º Sendo que, o arguido sempre tentou, como efectivamente conseguiu, controlar todas as actividades da assistente, adoptando os mais diversos comportamentos, que impedissem que a mesma pudesse ter autonomia, nomeadamente, afectiva, social e, ainda, financeira.
9º Por um lado, o arguido nunca permitiu que a Autora estabelecesse relações de amizade, de alguma proximidade ou sequer que tivesse contacto com outras pessoas, para além daquele e da sua família.
10º Assim como, desde que contraíram o primeiro casamento, em 10/07/2009, o arguido apenas autorizou que a assistente trabalhasse, a partir da casa de morada de família para a empresa …, Lda., da qual aquele é sócio gerente e o tivesse ajudado na criação e no desenvolvimento da empresa …, com sede em ….
11º Sendo que, até ao momento da separação, ocorrida no dia 12/04/2015, a assistente nunca recebeu qualquer remuneração pelo trabalho prestado às empresas do arguido, assim como não permitiu que a mesma fosse titular de qualquer conta bancária.
12º Por regra, o arguido acompanhava a assistente nas deslocações para efectuar as compras de alimentação, vestuário, higiene e saúde desta e do seu agregado familiar e fazia os correspondentes pagamentos.
13º Sendo que, quando não pudesse acompanhar a assistente, o arguido entregava-lhe o dinheiro, em numerário, estritamente essencial para efectuar os pagamentos necessários, sendo que todas as despesas por aquela suportadas tinham, obrigatoriamente, de estar devidamente documentadas e comprovadas através dos competentes recibos.
14º Por outro lado, o arguido, por inúmeras vezes, agrediu psicologicamente a assistente, dirigindo-se a ela, em tom agressivo, em voz alta e em frente da sua filha menor, chamando-a de “vagabunda”, “puta” e “filha da puta”.
15º O arguido também sempre pressionou psicologicamente a assistente, pois impunha que a mesma utilizasse vestuário sem decotes, saias e casacos compridos.
16º Mais acresce que, se a assistente fosse a um salão de cabeleireiro, o arguido acompanhava-a e não permitia que fosse atendida por funcionário do sexo masculino.
17º Caso não a pudesse acompanhar, o arguido ligava-lhe, constantemente, para confirmar o local onde a mesma estava, bem como exigia o respectivo recibo para saber quem a tinha atendido ou deslocava-se ao salão em causa para verificar se a assistente lhe estava a dizer a verdade.
18º Acresce, ainda, que, em cada deslocação que a mesma fazia na viatura que o mesmo lhe tinha oferecido, o arguido procedia ao controlo do número de quilómetros percorridos, assim como verificava se o veículo continha sinais de a assistente ter estado acompanhada com outras pessoas, nomeadamente se o banco estava ou não mais deitado ou se tinha sido remexido.
19º Acresce, também, que, caso se deslocassem a um restaurante, o arguido colocava a assistente de costas para as demais pessoas presentes e, se estivessem acompanhados por um casal, aquela tinha de se sentar em frente à outra senhora.
20º O arguido também violou a liberdade sexual da assistente, pois, obrigou-a, por diversas vezes e contra a sua vontade, a manter relações sexuais.
21º Em data não concretamente apurada, mas entre finais do ano de 2014 e o início do ano de 2015, quando a assistente regressava, conjuntamente com a sua filha menor e duas pessoas amigas, E. C. e C. M., de uma aula de zumba, o arguido, sem que nada o fizesse prever ou o justificasse, para além do mais, dirigiu-se à Assistente e, em voz alta e em tom agressivo, proferiu os seguintes impropérios “filha da puta, aqui você não entra” junto ao portão.
22º Quando a assistente e a sua filha entraram na residência através da porta da cozinha, constataram que o mesmo estava munido de uma chave de fendas empunhada na mão e com esta levantada na direcção da assistente.
23º Sendo que a assistente, temendo, quer pela sua integridade física, quer da sua filha, limitou-se a ordenar que a filha saísse dali.
24º No dia 07 de Fevereiro de 2015, por a assistente se ter recusado a ter relações sexuais com outras mulheres, o arguido insultou-a, apelidando-a de “puta velha batida”.
25º No dia 04 de Abril de 2015, ao início da tarde, no jardim da residência de ambos, o arguido, tendo desencadeado uma nova discussão com a assistente, dirigiu-se à mesma, dizendo “cala-te filha da puta ou eu mato-te”,
26º E, empunhando uma ferramenta de jardinagem vulgarmente designada por “gadanho”, o arguido correu atrás da assistente, tendo-se esta escondido e trancado na cave da residência.
27º No dia 05 de Abril de 2015, pelas 18.00 horas, quando se encontravam na residência de um dos irmãos do arguido, quando a assistente se deslocava à casa de banho, o mesmo seguiu-a e, injustificada e intencionalmente, empurrou-a contra a parede com ambas as mãos e apelidou-a de “filha da puta”.
28º No dia 12 de Abril de 2015, antes da hora de jantar, o arguido desencadeou uma nova discussão com a assistente, quando tomou conhecimento de que a filha desta tinha ido almoçar na casa de uma amiga e ainda não tinha voltado, tendo ameaçado repetidamente que não iria permitir a entrada da filha da assistente.
29º Entretanto, no decurso da discussão, o arguido agarrou a assistente pelos cabelos e empurrou-a contra a parede do corredor, fazendo com que a mesma tivesse batido com a face e o tórax na esquina da parede.
30º Tendo, posteriormente, se dirigido à cozinha, voltou em direcção à assistente com uma faca empunhada, dizendo, em tom alto e agressivo, “Hoje eu mato-te hoje”, “Hoje esfaqueio-te toda”.
31º Sendo que a assistente apenas teve oportunidade de fugir e de se esconder no quarto, com a porta trancada, no qual o arguido desferiu vários pontapés com o intuito de forçar a sua entrada.
32º Ao ouvir as palavras que lhe são dirigidas pelo arguido, a assistente ficou, como ainda está, receosa, temendo que ele venha, num futuro próximo, atentar contra a sua vida ou integridade física e, bem assim, da sua filha, M. D..
33º Sabe o arguido que as expressões que proferiu são idóneas de causar na assistente, como efectivamente causaram, receio pela sua vida e integridade física.
34º Com o supra descrito comportamento, o arguido pretendeu e efectivamente conseguiu ofender, moral e psicologicamente, injuriar, agredir, humilhar e ameaçar a assistente, mostrando-se indiferente pelo estado em que a deixava.
35º Sendo que, com as supra descritas ofensas e ameaças o denunciado, ilegitimamente, provocou medo e inquietação e, bem assim, prejudicou a liberdade de determinação da assistente.
36º A qual, inclusivamente, tanto era, como ainda é, o receio que a passou a atormentar e, ainda, atormenta, relativamente à possibilidade de o denunciado levar a cabo as ameaças proferidas, viu agravar-se profundamente o seu estado depressivo.
37º Apesar de saber que tal conduta não lhe era permitida, o arguido não e coibiu mesmo assim de actuar.
38º O arguido agiu de forma livre, deliberada, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida por lei e que os factos por si praticados constituem crime.».
Para fundamentar a imputação desta matéria de facto a assistente socorre-se, para além do seu próprio depoimento, da prova testemunhal produzida durante a fase do inquérito (tanto mais que em sede de instrução nenhuma prova foi produzida).
Conforme referido pelo Ministério Público aquando do primeiro despacho de arquivamento constante de fls. 93 e seguintes e reafirmado no segundo despacho de arquivamento de fls. 231 analisados os comportamentos denunciados cremos que os autos não reúnem indícios suficientes da prática da generalidade dos comportamentos imputados pela assistente ao arguido.
A verdade é que a versão da assistente apenas em parte é corroborada pela filha desta e pela testemunha M. G. (cfr. fls. 134), divergindo claramente da versão do arguido e das demais testemunhas inquiridas nos autos.
Tal como referido pelo Ministério Público, quer a assistente quer o arguido deram conhecimento nos autos de discussões aparentemente geradas por problemas financeiros e por um temperamento ciumento do arguido, muito frequentes nos últimos anos e que levaram ao fim da relação em Abril de 2015 e durante as quais um imputa ao outro a prática de “empurrões” e insultos.
Além dos depoimentos dos próprios e da filha da assistente, que atenta a proximidade que tem com a mãe assume-se naturalmente comprometido, nenhuma outra prova de relevo se recolheu que permitisse confirmar uma versão em detrimento da outra (pelo menos quanto à gravidade e/ou reiteração dos comportamentos).
Acresce que não foram recolhidos elementos clínicos, por inexistência constatação de lesões.
Um único comportamento tido por relevante aparece suficientemente comprovado por força do depoimento da testemunha M. G. (cfr. fls. 134) e prende-se com alegadamente ocorrido no dia 04/04/2015, por altura da Páscoa desse ano, em que o arguido, empunhando uma ferramenta de jardinagem vulgarmente designada por “gadanho”, terá corrido atrás da assistente dizendo «eu mato-te», tendo-se esta escondido e trancado na cave da residência.
Em síntese, com excepção deste episódio e tal como referido pelo anteriormente pelo Ministério Público, afigura-se-nos que o essencial da prova se resume às declarações prestadas por cada um dos ex-cônjuges (assistente e arguido), em que cada um imputa ao outro a prática de crimes negando a versão que contra si foi apresentada pelo outro.
Ora, desta forma resultam duas versões dos acontecimentos contraditórias, não possuindo o Tribunal, atendendo aos demais meios de prova que foi possível recolher, elementos que nos permitam optar por uma em detrimento da outra (com excepção daquele acontecimento supra devidamente explicitado).
Por conseguinte, subsiste a dúvida sobre o que exactamente aconteceu na conturbada relação conjugal e sobre qual das versões apresentadas se apresenta mais próximo da verdade, sendo relevante referir que, com excepção da testemunha supra referida e da filha da assistente, nenhuma outra testemunha afirmou ter presenciado factos relevantes para se concluir num ou noutro sentido.
Em última instância sempre diremos que sendo duas as versões em confronto e não adquirindo qualquer uma delas sustentação superior em relação à outra ficará sempre no limite a dúvida. E tal dúvida há-de ter como consequência o funcionamento em favor dos arguidos do princípio da presunção da inocência, na modalidade in dubio pro reu.
Com efeito, atingindo-se em sede de prova um tal non liquet este tem de ser resolvido em benefício do arguido, tanto quanto é certo que os factos imputados têm de ser estabelecidos para além de qualquer dúvida razoável, pois caso tal não se verifique, ou melhor, quando factos relevantes para a decisão não ultrapassem aquela dúvida, como cremos que, pelo menos no limite, sucede no caso em apreço, e na ausência de elementos de prova suficientemente seguros, terão de ser valorados em benefício do arguido, em obediência ao referido princípio in dubio pro reo.
Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
Este princípio considera-se também associado ao princípio nulla poena sine culpa, pois que o princípio da culpa é violado se, não estando o juiz convencido sobre a existência dos pressupostos de facto, ele pronuncia uma sentença de condenação ou uma qualquer outra decisão desfavorável ao arguido.
Conforme salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira3, os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da culpa.
Decorre, assim, que se por um lado o processo há-de assegurar todas as necessárias garantias práticas de defesa de um inocente, por outro lado, não há razão para não considerar inocente quem ainda não foi julgado culpado por sentença transitada.
No seguimento do exposto impõe-se ter por indiciada a seguinte matéria de facto alegada no requerimento de abertura da instrução:
«1º A Autora e Réu celebraram, no dia 10 de Junho de 2009, casamento civil, que foi dissolvido por decisão prolatada e transitada em 14 de Janeiro de 2011 – Assento de Casamento, cuja certidão, como doc. Nº 01, se junta e aqui se dá por integrada para todos os legais efeitos.
2º Tendo contraído, novamente, matrimónio dia 08 de Agosto de 2013 – cfr. Assento de Casamento, cuja certidão, como doc. Nº 02, também se junta e aqui dá por reproduzida.
3º Sendo que o aludido casal residiu desde meados do mês de Fevereiro do ano de 2012, conjuntamente com a filha então menor da assistente, M. D., até ao dia 12 de Abril de 2016, na Estrada Nacional 105, Nº 4280, 4835-517, da freguesia de N…, no conselho de Guimarães.
4º Data em que o arguido abandonou a casa de morada de família de ambos.
5º Pouco tempo após o casamento, por força do carácter egoísta e violento do arguido, a harmonia do lar foi-se degradando, acentuada e irremediavelmente, designadamente pelas constantes discussões que o arguido iniciava, injustificadamente, e que, normalmente, derivavam do comportamento ciumento.
6º Arguido e assistente discutiam regularmente.
7º O arguido sempre tentou controlar todas as actividades da assistente.
8º Por regra, o arguido acompanhava a assistente nas deslocações para efectuar as compras de alimentação, vestuário, higiene e saúde desta e do seu agregado familiar e fazia os correspondentes pagamentos.
9º No dia 04 de Abril de 2015, ao início da tarde, no jardim da residência de ambos, o arguido, tendo desencadeado uma nova discussão com a assistente, dirigiu-se à mesma, dizendo “eu mato-te”,
10º E, empunhando uma ferramenta de jardinagem vulgarmente designada por “gadanho”, o arguido correu atrás da assistente, tendo-se esta escondido e trancado na cave da residência.
11º Ao ouvir as palavras que lhe foram dirigidas pelo arguido, a assistente ficou, como ainda está, receosa, temendo que ele venha, num futuro próximo, atentar contra a sua vida ou integridade física e, bem assim, da sua filha, M. D..
12º Sabe o arguido que as expressões que proferiu são idóneas de causar na assistente, como efectivamente causaram, receio pela sua vida e integridade física.».
E por não indiciada a seguinte matéria de facto:
1º Durante todo o período em que coabitaram em comunhão de mesa, cama e habitação, o arguido submeteu, repetidamente, a assistente a diversos maus tratos, físicos e psicológicos,
2º Pois, sem qualquer razão que o justificasse, a não ser o seu egoísmo, qualquer pretexto servia ao arguido para altear a voz e, ainda, para desencadear uma discussão com a assistente.
3º O arguido adoptava os mais diversos comportamentos que impediam a assistente de ter autonomia, nomeadamente, afectiva, social e, ainda, financeira.
4º Por um lado, o arguido nunca permitiu que a Autora estabelecesse relações de amizade, de alguma proximidade ou sequer que tivesse contacto com outras pessoas, para além daquele e da sua família.
5º Assim como, desde que contraíram o primeiro casamento, em 10/07/2009, o arguido apenas autorizou que a assistente trabalhasse, a partir da casa de morada de família para a empresa Pimatex – Confecções Têxteis, Lda., da qual aquele é sócio gerente e o tivesse ajudado na criação e no desenvolvimento da empresa P…, com sede em ….
6º Sendo que, até ao momento da separação, ocorrida no dia 12/04/2015, a assistente nunca recebeu qualquer remuneração pelo trabalho prestado às empresas do arguido, assim como não permitiu que a mesma fosse titular de qualquer conta bancária.
7º Sendo que, quando não pudesse acompanhar a assistente, o arguido entregava-lhe o dinheiro, em numerário, estritamente essencial para efectuar os pagamentos necessários, sendo que todas as despesas por aquela suportadas tinham, obrigatoriamente, de estar devidamente documentadas e comprovadas através dos competentes recibos.
8º Por outro lado, o arguido, por inúmeras vezes, agrediu psicologicamente a assistente, dirigindo-se a ela, em tom agressivo, em voz alta e em frente da sua filha menor, chamando-a de “vagabunda”, “puta” e “filha da puta”.
9º O arguido também sempre pressionou psicologicamente a assistente, pois impunha que a mesma utilizasse vestuário sem decotes, saias e casacos compridos.
10º Mais acresce que, se a assistente fosse a um salão de cabeleireiro, o arguido acompanhava-a e não permitia que fosse atendida por funcionário do sexo masculino.
11º Caso não a pudesse acompanhar, o arguido ligava-lhe, constantemente, para confirmar o local onde a mesma estava, bem como exigia o respectivo recibo para saber quem a tinha atendido ou deslocava-se ao salão em causa para verificar se a assistente lhe estava a dizer a verdade.
12º Mais acresce que, se a assistente fosse a um salão de cabeleireiro, o arguido acompanhava-a e não permitia que fosse atendida por funcionário do sexo masculino.
13º Caso não a pudesse acompanhar, o arguido ligava-lhe, constantemente, para confirmar o local onde a mesma estava, bem como exigia o respectivo recibo para saber quem a tinha atendido ou deslocava-se ao salão em causa para verificar se a assistente lhe estava a dizer a verdade.
14º Acresce, ainda, que, em cada deslocação que a mesma fazia na viatura que o mesmo lhe tinha oferecido, o arguido procedia ao controlo do número de quilómetros percorridos, assim como verificava se o veículo continha sinais de a assistente ter estado acompanhada com outras pessoas, nomeadamente se o banco estava ou não mais deitado ou se tinha sido remexido.
15º Acresce, também, que, caso se deslocassem a um restaurante, o arguido colocava a assistente de costas para as demais pessoas presentes e, se estivessem acompanhados por um casal, aquela tinha de se sentar em frente à outra senhora.
16º O arguido também violou a liberdade sexual da assistente, pois, obrigou-a, por diversas vezes e contra a sua vontade, a manter relações sexuais.
17º Em data não concretamente apurada, mas entre finais do ano de 2014 e o início do ano de 2015, quando a assistente regressava, conjuntamente com a sua filha menor e duas pessoas amigas, E. C. e C. M., de uma aula de zumba, o arguido, sem que nada o fizesse prever ou o justificasse, para além do mais, dirigiu-se à Assistente e, em voz alta e em tom agressivo, proferiu os seguintes impropérios “filha da puta, aqui você não entra” junto ao portão.
18º Quando a assistente e a sua filha entraram na residência através da porta da cozinha, constataram que o mesmo estava munido de uma chave de fendas empunhada na mão e com esta levantada na direcção da assistente.
19º Sendo que a assistente, temendo, quer pela sua integridade física, quer da sua filha, limitou-se a ordenar que a filha saísse dali.
20º No dia 07 de Fevereiro de 2015, por a assistente se ter recusado a ter relações sexuais com outras mulheres, o arguido insultou-a, apelidando-a de “puta velha batida”.
21º No dia 05 de Abril de 2015, pelas 18.00 horas, quando se encontravam na residência de um dos irmãos do arguido, quando a assistente se deslocava à casa de banho, o mesmo seguiu-a e, injustificada e intencionalmente, empurrou-a contra a parede com ambas as mãos e apelidou-a de “filha da puta”.
22º No dia 12 de Abril de 2015, antes da hora de jantar, o arguido desencadeou uma nova discussão com a assistente, quando tomou conhecimento de que a filha desta tinha ido almoçar na casa de uma amiga e ainda não tinha voltado, tendo ameaçado repetidamente que não iria permitir a entrada da filha da assistente.
23º Entretanto, no decurso da discussão, o arguido agarrou a assistente pelos cabelos e empurrou-a contra a parede do corredor, fazendo com que a mesma tivesse batido com a face e o tórax na esquina da parede.
24º Tendo, posteriormente, se dirigido à cozinha, voltou em direcção à assistente com uma faca empunhada, dizendo, em tom alto e agressivo, “Hoje eu mato-te hoje”, “Hoje esfaqueio-te toda”.
25º Sendo que a assistente apenas teve oportunidade de fugir e de se esconder no quarto, com a porta trancada, no qual o arguido desferiu vários pontapés com o intuito de forçar a sua entrada.
26º Com o supra descrito comportamento, o arguido pretendeu e efectivamente conseguiu ofender, moral e psicologicamente, injuriar, agredir, humilhar e ameaçar a assistente, mostrando-se indiferente pelo estado em que a deixava.
27º Sendo que, com as supra descritas ofensas e ameaças o denunciado, ilegitimamente, provocou medo e inquietação e, bem assim, prejudicou a liberdade de determinação da assistente.
28º A qual, inclusivamente, tanto era, como ainda é, o receio que a passou a atormentar e, ainda, atormenta, relativamente à possibilidade de o denunciado levar a cabo as ameaças proferidas, viu agravar-se profundamente o seu estado depressivo.
29º Apesar de saber que tal conduta não lhe era permitida, o arguido não e coibiu mesmo assim de actuar.
30º O arguido agiu de forma livre, deliberada, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida por lei e que os factos por si praticados constituem crime.».
Fundamentação de direito.
Conforme referimos no relatório da presente decisão, no requerimento de abertura da instrução que apresentou a assistente imputa ao arguido a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2 do Código Penal, ou, em alternativa, a prática, em autoria material e na forma consumada, de três crimes de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo pelo artigo 155º, nº1, alínea a), tendo por referência o disposto no n.º 1 do artigo 153º, ambos do Código Penal.
O crime de violência doméstica.
O crime de violência doméstica, introduzido no Código Penal pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, estatui na referida disposição normativa, designadamente, o seguinte:
«1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1º grau; ou,
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
É punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no nº 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.».
Na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 98/X, que originou a Revisão do Código Penal introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, menciona-se que, entre as principais orientações se destacam, «o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas, como as crianças, os menores e as vítimas de violência doméstica, maus tratos ou discriminação», salientando-se o seguinte: «Ainda em sede de crimes contra a integridade física, os maus tratos, a violência doméstica e a infracção de regras de segurança passam a ser tipificados em preceitos distintos, em homenagem às variações de bem jurídico protegido. Na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa. No crime de violência doméstica, é ampliado o âmbito subjectivo do crime passando a incluir as situações de violência doméstica que envolvam ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges. Introduz-se uma agravação do limite mínimo da pena, no caso de o facto ser praticado na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, ainda que comum ao agente. À proibição de contacto com a vítima, cujos limites são agravados e pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho com fiscalização por meios de controlo à distância, acrescentam-se as penas acessórias de proibição de uso e porte de armas, obrigação de frequência de programas contra a violência doméstica e inibição do exercício paternal, da tutela ou da curatela.».
O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de maus tratos a que alude o artigo 152º-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa relação.
Este parece ser também o entendimento de Plácido Conde Fernandes ao escrever que «não se vê razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos».
Enquanto nos maus tratos físicos se incluem os castigos corporais e as ofensas corporais simples, nos maus tratos psíquicos compreendem-se, designadamente, humilhações, provocações, ameaças e curtas privações de liberdade de movimentos.
Na vigência do crime de maus tratos, na redacção dada ao artigo 152º, do Código Penal, pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, esclarecia já o Supremo Tribunal de Justiça que não são todas as ofensas entre cônjuges que cabem na previsão legal, «...mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade ou, dito de outra maneira, que fundamentalmente traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária por parte do agente».
Acresce agora que, do texto do artigo 152º, nº 1, do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, resulta que o crime de violência doméstica pode ser praticado «…de modo reiterado ou não…».
O crime em causa exige o dolo, isto é, o conhecimento e vontade de realização da conduta antijurídica, com consciência da ilicitude.
Ora, partindo destes pressupostos, tendo presente as considerações vertidas supra aquando da fundamentação de facto e as conclusões a que se chegou, nomeadamente quanto à (in)suficiência dos indícios, concluímos com alguma simplicidade, ressalvado naturalmente o devido respeito por diferente opinião, que o arguido não praticou o crime que lhe vem imputado.
Na verdade, se os presentes autos permitem perceber que entre os sujeitos processuais em litígio existe(ia) uma relação bastante conturbada, já não permitem afirmar, pelo menos com a suficiência legalmente exigida, que a conduta ora imputada ao arguido ultrapasse aquele nível que permita afirmar estarmos perante uma conduta que se traduza crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária por parte do agente.
Salvo o devido respeito por diferente opinião, repete-se, é entendimento deste Tribunal que a factualidade suficientemente demonstrada pela prova produzida nos autos, e supra explicitada, apenas permite afirmar que, na sequência de um desentendimento entre os cônjuges o arguido dirigiu-se à assistente dizendo “eu mato-te” e, empunhando uma ferramenta de jardinagem vulgarmente designada por “gadanho”, correu atrás da desta, tendo a assistente acabado por se esconder na cave da residência.
Dito de outra forma, o comportamento assumido pelo arguido e agora retratado surgiu num contexto de conflito ocasional e sem que tenha atingido uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas consabidamente integram.
Afigura-se-nos poder ser afirmado que se os maus tratos a que alude o artigo 152º do Código Penal não necessitam de uma reiteração (face ao teor desta norma legal), não prescindem de uma gravidade que vá para além e ultrapasse a ameaça, ainda que agravada (sob pena de o crime de violência doméstica se traduzir apenas num crime familiar), ou seja, é necessário que justifique a sua autonomia, pondo em causa de forma absolutamente inadmissível a relação existente entre agressor e ofendido.
Infligir maus tratos físicos e/ou psíquicos significa, na economia do artigo 152º Código Penal, pôr em causa a saúde do ofendido nas suas diversas vertentes: física (ofensa à integridade física), psíquica (humilhações, provocações, ameaças, coacção ou moléstias), desenvolvimento e expressão da personalidade e dignidade pessoal (castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, etc.), que constituem o complexo bem jurídico protegido pela norma incriminadora e traduzem-se num complexo de acções por parte do agente que pressupõem na maioria das vezes uma reiteração das respectivas condutas.
Em síntese, os factos supra tidos por suficientemente indiciados, isolada ou conjuntamente apreciados, em vista da vivência conjugal, e das razões, motivos, modo de actuação de ambos os ex-cônjuges, não atingem o grau de ofensa que vão para além desta, por se nos afigurar que não revelam por parte da actuação do arguido insensibilidade e desprezo para com a sua ex-mulher, pondo em causa a sua dignidade pessoal como tal, e por isso não são dotados de intensidade adequada a ofender de forma significativa a dignidade da vítima.
Apesar da ilicitude e sua gravidade, não estamos perante nenhum tratamento desumano ou degradante que ofenda a dignidade da pessoa humana, tanto mais que a conduta imputada surge na sequência de mais uma discussão, algumas delas aparentemente iniciadas pela assistente.
Concluímos, pois, pelo não preenchimento do tipo legal do crime em apreço.
- O crime de ameaça.
Tendo presente o alegado no requerimento de abertura da instrução a título subsidiário e a matéria de facto supra tida por suficientemente indiciada, nomeadamente a constantes dos artigos 9.º a 12.º, importa analisar da eventual prática pelo arguido dos imputados crimes de ameaça.
Nos termos do disposto no artigo 153º, nº 1 do Código Penal pratica o crime de ameaça quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
O crime de ameaça é um crime contra a liberdade pessoal (liberdade de decisão e de acção), que vê na paz jurídica individual uma condição da sua realização.
O conceito de ameaça requer a verificação de três características essenciais: anúncio de um mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente.
O mal ameaçado, que tanto pode ser de natureza pessoal como patrimonial, tem de configurar, em si mesmo, um facto ilícito típico contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.
O mal ameaçado tem de ser futuro; não pode, pela sua iminência, confundir-se com uma tentativa de execução do respectivo acto violento.
Por último, a concretização futura do mal depende, ou aparece como dependente, da vontade do agente.
Após a revisão de 1995 do Código Penal, o crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano, passando a ser um crime de mera acção e de perigo. Exige-se apenas que a ameaça seja susceptível de afectar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado.
O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do homem comum); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das sub-capacidades do ameaçado).
O tipo subjectivo requer o dolo que exige (mas basta-se) com a consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado.
Da matéria de facto supra tida por suficientemente indiciada resulta com relevo para a questão ora em apreço que «no dia 04 de Abril de 2015, ao início da tarde, no jardim da residência de ambos, o arguido, tendo desencadeado uma nova discussão com a assistente, dirigiu-se à mesma, dizendo “eu mato-te” e, empunhando uma ferramenta de jardinagem vulgarmente designada por “gadanho”, o arguido correu atrás da assistente, tendo-se esta escondido e trancado na cave da residência.».
Temos, por conseguinte, um comportamento assumido pelo arguido que o poderia fazer incorrer na prática de um crime de ameaça.
Sucede porém que, conforme se mostra alegada no requerimento de abertura da instrução a matéria de facto em apreço e o conteúdo da mesma que foi tido por suficientemente indiciado, o que dela se extrai é que o arguido só não concretizou os seus intentos porque a assistente fugiu e refugiou-se na cave da habitação.
Por outro lado, as expressões proferidas pelo arguido demonstram claramente a intenção actualista de atentar contra a vida ou a integridade física da assistente e surgem numa situação de extrema conflitualidade entre esta e aquele.
Assim, o mal (ofender a integridade física e/ou a vida da assistente) não aparece em termos de vir a ocorrer no futuro. Ou seja, no contexto dos factos descritos não se mostra caracterizado que o arguido tenha ameaçado a assistente com um mal futuro. As expressões alegadamente proferidas pelo arguido surgem como a verbalização de um mal iminente, aliás associado, tal como referimos atrás, a um concreto acto de execução: agredir a assistente.
Ora, para que se dê por preenchido o tipo objectivo do crime de ameaça é necessário, sublinhe-se, que o mal ameaçado seja futuro. O mal objecto da ameaça não pode ser iminente, pois que neste caso estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal.
“Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, por exemplo, haverá ameaça, quando alguém afirma “hei-de te matar”; já se tratará de violência, quando alguém afirma: ”vou-te matar já”.
Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante. Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa”.
No contexto do descrito a expressão proferida pelo arguido traduz, como dissemos, um mal iminente e, por isso, conforma um «acto de execução» do crime que verdadeiramente se pretendida cometer.
Vistos os factos tidos supra por suficientemente indiciados verifica-se que eventualmente se poderia considerar como preenchidos os elementos típicos objectivos e subjectivos de diferentes ilícitos penas, ainda que na forma tentada (ofensa à integridade física e/ou homicídio), pois que o arguido de modo voluntário e querido teria tentando atingir a integridade física e/ou a vida da assistente.
Importa todavia apurar se este Tribunal pode conhecer deste(s) crime(s). Afigura-se-nos, salvo o devido respeito por diferente opinião, que não, uma vez que para o seu conhecimento sempre haveriam que ter sido descritos no requerimento de abertura da instrução (e não o foram, pelo menos de forma precisa e cabal) os factos necessários ao preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo relacionados com esses mesmos crimes.
Na verdade, tratando-se de um mal iminente, como supra foi entendido, sempre se torna legítima a conclusão de que poderemos estar perante uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é do respectivo mal, já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, actos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico.
Quando alguém afirma «vou-te matar» poderemos estar perante uma tentativa de homicídio, de tentativa de coacção, que consomem naturalmente a ameaça, ou perante um crime de ameaças. Tudo depende da intenção do agente.
É que, para haver tentativa não basta a prática de actos de execução é necessário que esses actos sejam de execução de um crime que o agente «decidiu cometer» (artigo 22º, nº 1).
Ora, do alegado no requerimento de abertura da instrução e da matéria supra tida por suficientemente indiciada não resulta que o arguido tenha decidido cometer um qualquer outro crime para além daqueles que lhe vinham imputados.
O acrescento agora de novos factos em relação aos descritos no requerimento de abertura da instrução e a imputação ao arguido de outro(s) crime(s) diferentes daquele(s) que lhe vinha(m) ali imputados sempre haveria de consubstanciar uma alteração substancial dos factos (cfr. artigo 1º, alínea f), do Código de Processo Penal), não permitida nesta fase processual por força do disposto no artigo 303º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Decisão.
Nestes termos, tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito e sem necessidade de ulteriores considerações, decido negar provimento ao requerimento de abertura da instrução e, em consequência, não pronuncio o arguido A. S. pela prática dos crimes que lhe vinham imputados no requerimento de abertura da instrução, determinando o consequente e oportuno arquivamento dos autos.
(…)



II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

De acordo com o disposto no artigo 412º, do Código de Processo Penal e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19-10-95, publicado no D.R. I-A de 28-12-95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim, vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que as questões suscitadas são as seguintes:
- Nulidade do despacho proferido por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal, sobre as arguidas nulidades do inquérito, não inquirição de duas testemunhas, falta de acusação pelo crime de ameaças e, falta de notificação da assistente para dedução acusação pelo crime de injúrias.
- Nulidade do despacho proferido por omissão de acto obrigatório, nos termos do disposto no artigo 120º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal, por não remessa de certidão para inquérito, pelos crimes de ofensa à integridade física e/ou homicídio, na forma tentada.
- Impugnação da decisão instrutória, por incorrecta ponderação dos indícios de facto, quanto aos crimes de violência doméstica, artigo 152º, do Código Penal ou, de ameaças agravadas, artigo 155º, do mesmo diploma legal, relativamente ao depoimento da testemunha M. D. Bispo e, das demais testemunhas inquiridas.

2 - Apreciando e decidindo:

Da invocada nulidade do despacho proferido por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal, sobre as arguidas nulidades do inquérito, da não inquirição de duas testemunhas, da falta de acusação pelo crime de ameaças e, da falta de notificação da assistente para dedução acusação pelo crime de injúrias.
Decorre do citado preceito legal, que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Ao referir-se a questões que o tribunal devesse apreciar ou conhecer, apenas abrange a falta de decisão ou pronúncia “sobre questões que tem o dever de apreciar, sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expandidas pela parte na defesa da sua pretensão” – Ac. do STJ de 12-02-2009, Proc. 131/11.1YFLSB.
Assim, analisando em concreto a decisão recorrida, relativamente à invocada nulidade do inquérito por falta de inquirição de duas testemunhas, resulta expresso que “Voltando ao caso dos autos verifica-se que o Ministério Público não procedeu à inquirição das testemunhas referidas pela assistente.
Desconhece-se, ao certo, qual o conhecimento que as testemunhas em causa teriam dos factos objecto dos presentes autos.
O certo é que, e conforme resulta claro do exposto, só a ausência absoluta de inquérito ou a omissão de diligências impostas por lei determinam nulidade do inquérito por insuficiência do mesmo (artigo 120º, nº 2, alínea d), do Código Processo Penal); assim a omissão de diligências não impostas por lei não determina uma tal nulidade, pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público. O Ministério Público é livre, salvaguardados os actos de prática obrigatória e as exigências decorrentes do princípio da legalidade, de levar a cabo ou de promover as diligências que entender necessárias, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito e não determina a nulidade do inquérito por insuficiência a omissão de diligências de investigação não impostas por lei (cfr. citado Acórdão do Tribunal Constitucional de 2/6/2004)”.
Logo poder-se-á concordar ou não com o decidido, mas não se poderá invocar que o tribunal a quo não apreciou a questão controvertida, pelo que não procede esta invocada nulidade da decisão instrutória.

De igual forma, relativamente à falta de acusação pelo crime de ameaças, o tribunal pronunciou-se nos seguintes termos:
“Tendo presente o alegado no requerimento de abertura da instrução a título subsidiário e a matéria de facto supra tida por suficientemente indiciada, nomeadamente a constantes dos artigos 9º a 12º, importa analisar da eventual prática pelo arguido dos imputados crimes de ameaça.
Nos termos do disposto no artigo 153º, nº 1 do Código Penal pratica o crime de ameaça quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
O crime de ameaça é um crime contra a liberdade pessoal (liberdade de decisão e de acção), que vê na paz jurídica individual uma condição da sua realização.
O conceito de ameaça requer a verificação de três características essenciais: anúncio de um mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente.
O mal ameaçado, que tanto pode ser de natureza pessoal como patrimonial, tem de configurar, em si mesmo, um facto ilícito típico contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.
O mal ameaçado tem de ser futuro; não pode, pela sua iminência, confundir-se com uma tentativa de execução do respectivo acto violento.
Por último, a concretização futura do mal depende, ou aparece como dependente, da vontade do agente.
Após a revisão de 1995 do Código Penal, o crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano, passando a ser um crime de mera acção e de perigo. Exige-se apenas que a ameaça seja susceptível de afectar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado.
O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do homem comum); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das sub-capacidades do ameaçado).
O tipo subjectivo requer o dolo que exige (mas basta-se) com a consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado.
Da matéria de facto supra tida por suficientemente indiciada resulta com relevo para a questão ora em apreço que «no dia 04 de Abril de 2015, ao início da tarde, no jardim da residência de ambos, o arguido, tendo desencadeado uma nova discussão com a assistente, dirigiu-se à mesma, dizendo “eu mato-te” e, empunhando uma ferramenta de jardinagem vulgarmente designada por “gadanho”, o arguido correu atrás da assistente, tendo-se esta escondido e trancado na cave da residência.».
Temos, por conseguinte, um comportamento assumido pelo arguido que o poderia fazer incorrer na prática de um crime de ameaça.
Sucede porém que, conforme se mostra alegada no requerimento de abertura da instrução a matéria de facto em apreço e o conteúdo da mesma que foi tido por suficientemente indiciado, o que dela se extrai é que o arguido só não concretizou os seus intentos porque a assistente fugiu e refugiou-se na cave da habitação.
Por outro lado, as expressões proferidas pelo arguido demonstram claramente a intenção actualista de atentar contra a vida ou a integridade física da assistente e surgem numa situação de extrema conflitualidade entre esta e aquele.
Assim, o mal (ofender a integridade física e/ou a vida da assistente) não aparece em termos de vir a ocorrer no futuro. Ou seja, no contexto dos factos descritos não se mostra caracterizado que o arguido tenha ameaçado a assistente com um mal futuro. As expressões alegadamente proferidas pelo arguido surgem como a verbalização de um mal iminente, aliás associado, tal como referimos atrás, a um concreto acto de execução: agredir a assistente.
Ora, para que se dê por preenchido o tipo objectivo do crime de ameaça é necessário, sublinhe-se, que o mal ameaçado seja futuro. O mal objecto da ameaça não pode ser iminente, pois que neste caso estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal.
“Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, por exemplo, haverá ameaça, quando alguém afirma “hei-de te matar”; já se tratará de violência, quando alguém afirma: ”vou-te matar já”.
Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante. Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa”.
No contexto do descrito a expressão proferida pelo arguido traduz, como dissemos, um mal iminente e, por isso, conforma um «acto de execução» do crime que verdadeiramente se pretendida cometer.”.
Por outro lado resulta do despacho de arquivamento que “as diversas testemunhas inquiridas admitiram, em suma, terem assistido, ou pelo menos, ouvido diversas discussões entre o casal que culminaram na sua separação, contudo deram conta de nunca terem presenciado a prática de maus tratos (ameaças, ofensas, injúrias) de um dos cônjuges em relação ao outro”.
Pelo que, em face do exposto, forçoso se torna concluir quer do despacho de não pronúncia, quer do despacho de arquivamento, que se pronunciaram expressamente, quanto ao eventual crime de ameaças imputado ao arguido, não ocorrendo a invocada nulidade por omissão de pronúncia nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal.

Já relativamente à invocada nulidade do despacho de arquivamento, por falta de notificação da assistente para dedução acusação pelo crime de injúrias.
Ao Ministério Público cabe exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática, artigo 219º, da Constituição da República Portuguesa.
Por sua vez, nos termos do artigo 48º, do Código de Processo Penal, o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49º a 52º.
Assim, o artigo 49º daquele diploma exige que, quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público para que este promova o processo.
De igual modo, nos termos do artigo 50º, nº 1, do Código de Processo Penal, quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular.
Resulta do artigo 285º, nº 1, do Código de Processo Penal, que findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular (crime de injúrias – artigo 181º e, 188º, do Código Penal), o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em 10 dias, querendo acusação particular.
Assim, resultando inequívoco dos autos, que a omissão pelo Ministério Público desta notificação da assistente, é correspondente a uma falta de promoção processual, que constitui a nulidade nos termos do artigo 119º, alínea b), do Código de Processo Penal, pois sem a notificação da assistente para este fim e a consequente dedução da acusação, o processo não atinge a sua finalidade principal.
Por sua vez, dispõe o artigo 122º, do Código de Processo Penal, que as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar (nº 1) e, ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela (nº 3).
Estando em causa uma nulidade por omissão de um acto do Ministério Público que não ordenou a notificação da assistente para os termos do artigo 285º, do Código de Processo Penal, relativa exclusivamente ao invocado crime de injúrias, só quanto aos factos relativos a este tipo de crime, cumpre declarar a nulidade do despacho de arquivamento, nos termos do disposto no artigo 119º, alínea b), do mesmo diploma legal, aproveitando-se o mesmo despacho quanto a tudo o mais nos termos do artigo 122º, nº 3, do mesmo diploma.
Então procede nesta parte o recurso interposto, declarando-se a nulidade do despacho de arquivamento e dos actos subsequentes ao mesmo, apenas relativamente ao invocado crime de injúrias, nos termos do disposto no artigo 119º, alínea b), do Código de Processo Penal, aproveitando-se no restante, nos termos do artigo 122º, nº 3, do mesmo diploma.

Da invocada nulidade do despacho proferido por omissão de acto obrigatório, nos termos do disposto no artigo 120º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal, por não remessa de certidão para inquérito, pelos crimes de ofensa à integridade física e/ou homicídio, na forma tentada.
Resulta do invocado artigo 120º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal, que constitui insuficiência da instrução não terem sido praticados os actos processuais legalmente obrigatórios.
Não tendo a recorrente invocado qualquer preceito legal fundamentador da obrigatoriedade do juiz de instrução praticar o acto por si invocado, “que, uma vez transitada a decisão em crise, se extraísse certidão dos presentes autos ou que se remete os presentes autos para o Ministério Público para que se prosseguisse com o inquérito para se apurar a responsabilidade do arguido quanto aos factos de tentativa de ofensa à integridade, na nossa respeitosa opinião, na forma grave ou qualificada, e/ou tentativa de homicídio, na forma simples ou qualificada, com efeito, tratando-se de ilícitos de natureza pública, cabe ao Ministério Público promover o respetivo inquérito — cfr. artigo 48° do CPP — não tendo isso sucedido e tratando-se da omissão de um ato legalmente prescrito e obrigatório, a douta decisão instrutória em apreço, por violação do disposto na al. d) do n° 1 do artigo 120º do CPP, ferida de nulidade”.
Face à estrutura acusatória do processo penal português, estipula o nº 4, do artigo 288º, do Código de Processo Penal, que o juiz não pode investigar autonomamente o caso submetido a instrução, estando vinculado factualmente aos elementos que lhe são trazidos no requerimento de abertura de instrução de forma a poder decidir sobre a justeza ou acerto da decisão de acusação ou arquivamento.
O requerimento de abertura da instrução constitui, assim, um elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução, a qual, sendo autónoma, como se disse, se terá de conter dentro do tema factual que lhe é proposto através daquele, podendo por isso dizer-se, garantidamente, que o requerimento de abertura de instrução delimita o “thema decidendum” dos autos, quer em relação à actividade jurisdicional, quer quanto ao pleno exercício do contraditório por parte do arguido, cuja tutela de defesa apenas se garante se ali estiverem concretizados, de forma clara, os factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime que lhe é imputado.
Não resultando pois expresso da lei a alegada obrigação e, conhecidas as limitações decorrentes da finalidade e âmbito da instrução, não se alcança fundamento legal para a arguida nulidade de insuficiência da instrução, pelo improcede o recurso interposto nesta parte.

Por fim, da impugnação da decisão instrutória, por incorrecta ponderação dos indícios de facto, quanto aos crimes de violência doméstica, artigo 152º, do Código Penal ou, de ameaças agravadas, artigo 155º, do mesmo diploma legal, relativamente ao depoimento da testemunha M. D. Bispo e, das demais testemunhas inquiridas.
Ora, no presente recurso da decisão instrutória de não pronúncia do que se trata é precisamente de sindicar o juízo sobre as provas (indiciárias) efectuado pelo juiz de instrução, ou seja, de julgar o texto da decisão em confronto com/ou em conjunto com todos os indícios recolhidos na fase instrutória do processo (em sentido amplo de inquérito e instrução).
Quem leia a decisão recorrida não lhe pode assacar qualquer erro, o que se não confunde com a desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a da própria recorrente e que esta reclama.
As provas analisadas na decisão recorrida revelam claramente um sentido e a decisão extraiu ilação em conformidade e logicamente possível.
Na verdade, sob a alegação do mencionado vício, o que a recorrente pretende por em causa (e também põe), é o que nos reconduz à análise da última questão suscitada no presente recurso, mas que não se confunde com o alegado vício de apreciação da prova indiciária constante dos autos que, repete-se, no presente caso não se verifica.
É que tal vício, não se verifica quando a discordância resulta da forma como o tribunal apreciou a prova produzida e esta apreciação diverge daquela que teria sido a da própria recorrente.
O simples facto de a versão da recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal e expressa na decisão recorrida não conduz ao aludido vício de erro de apreciação da prova - cf., entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 19-09-1990, BMJ 399, pág. 260 e de 26-03-1998, processo nº 1483/97.
O que a recorrente afinal impugna é a convicção adquirida pelo Tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos factos ela adquiriu, olvidando o princípio da livre apreciação da prova inserto no artigo 127º, do Código de Processo Penal.
É certo, como refere Marques Ferreira, em “Jornadas de Direito Processual Penal”, pág. 227 a 231, este princípio deve ser entendido como o dever de “(…) perseguir a verdade material, de tal sorte que a apreciação da prova há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controle”. Ou, como se lê em Paulo Pinto Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica, 3ª ed., pág. 328, “A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efectiva motivação da decisão.”. Tal princípio tem, portanto limites: limites endógenos, relativos ao exercício da apreciação da prova e que condicionam o próprio processo de formação da convicção e da descoberta da verdade material e exógenos, no sentido que condicionam o resultado da apreciação da prova. De entre os primeiros, refira-se o grau de convicção requerido para a decisão, a proibição de meios de prova e a observância do princípio da presunção de inocência; e dos segundos, a observância do princípio in dúbio pro reo – cfr. ob. e loc. citados.
Como diz Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. II, Verbo, 4ª ed., pág. 151, “Com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim. A convicção do julgador há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre «uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros».
O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir de factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio, que há-de fundar-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.”.
Sabido é que, a instrução “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.” – cfr. artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal – sendo formada pelo conjunto de actos que o juiz entenda levar a cabo, e obrigatoriamente por um debate instrutório, oral e contraditório, findo o qual o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia – cfr. artigo 289º, nº 1 e, 307º, nº 1, do citado Código.
De acordo com o disposto no artigo 308º, nº 1, do Código de Processo Penal, “Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.”.
Ao conteúdo do que sejam indícios suficientes alude, desde logo, o artigo 283º, nº 2, do Código de Processo Penal, estipulando que “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”.
A doutrina e a jurisprudência têm-se pronunciado abundantemente sobre o que deve entender-se por “indícios suficientes”.
Assim, ensina o Prof. Figueiredo Dias, em “Direito Processual Penal”, vol. I, Coimbra Ed., 1984, pág. 133, que “(…) os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição.”.
No mesmo sentido vai o ensinamento do Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, Verbo, 1994, pág. 182 e 183, ao afirmar que “(…) o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido (…). A lei não se basta, porém, com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação (…). Para a pronúncia, como para acusação, a lei não exige, pois, a prova no sentido de certeza moral da existência de um crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido (…).”.
Note-se, até, que alguma doutrina recente – entre outros, Jorge Noronha e Silveira, “O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coordenação Prof. Fernanda Palma, Almedina, 2004, pág. 171 – vem defendendo uma maior exigência quanto à suficiência dos indícios, sustentando que esta não se basta com a maior possibilidade de condenação do que de absolvição, mas antes “(…) deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação.”.
A jurisprudência tem considerado, de modo que se nos afigura maioritário, que “indícios suficientes” correspondem à persuasão ou à convicção de que, mediante o debate amplo da prova em julgamento, se poderão provar em juízo os elementos constitutivos da infracção – cfr. entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 25-06-1988, no B.M.J. nº 378, pág. 787, do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-1992, no processo nº 427747, cit. em “Código de Processo Penal Anotado”, Simas Santos e Leal Henriques, vol. II, 2ª ed., e do Tribunal da Relação de Évora de 22-06-1993, no B.M.J. nº 428, pág. 706.
Isto é, os indícios suficientes correspondem a um conjunto de factos que, relacionados e conjugados entre si, conduzam à convicção de culpabilidade do arguido e de lhe vir a ser aplicada uma pena.
Na consideração do que se deixa exposto, não pode deixar de se ter presente que a sujeição de alguém a julgamento é, no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa, Anotada”, vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Ed., 2007, pág. 522, “(…) já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame.”.
Ou, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-06-2006, no Processo 06P2315, disponível em www.dgsi.pt.jstj, “a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame.
Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronúncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (artº 3º daquela Declaração e 27º da Constituição da República).
E por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição» (…).”.
Tendo em consideração o que se deixa exposto, como bem salienta o Mm. Juiz aquando da explicitação do conteúdo da prova produzida em inquérito e em instrução, da análise das declarações prestadas pelo arguido e do teor das declarações da assistente e das testemunhas inquiridas, com maior especificidade, o depoimento da testemunha M. D., dúvidas não se nos suscitam, num juízo de prognose, que tal prova em julgamento conduziria com razoável e elevada probabilidade, ante o juízo de certeza e segurança que a apreciação da prova em julgamento impõe e exige, à absolvição do arguido.
Na verdade, dos depoimentos das testemunhas arroladas pela assistente, com excepção da testemunha M. D., filha da assistente, das declarações desta e do arguido, nenhum facto concreto resulta relativamente aos factos ocorridos constantes do requerimento de abertura da instrução.
Das declarações da assistente, corroboradas pelo depoimento da testemunha M. D., sua filha, que merece ponderação integrada com a sua situação de dependência da assistente, resulta efectivamente a descrição dos factos constantes do requerimento de instrução, e, do depoimento da testemunha M. G., igualmente resulta a descrição dos factos ocorridos em 04-04-2015, contudo e, em confronto com as declarações do arguido que nega os mesmos, sendo que nenhuma das restantes testemunhas arroladas presenciou a ocorrência de quaisquer factos, com a excepção assinalada, referente à testemunha M. G., nos precisos termos em que declarou, verifica-se a existência de uma séria e inultrapassável dúvida sobre o efectivamente ocorrido, até porque não existem quaisquer outros meios de prova que os comprovem.
Tal como bem resulta do despacho recorrido, para além dos factos respeitantes ao dia 04-04-2015, que conforme bem analisou o despacho recorrido, não são subsumíveis aos tipos legais de crime invocados, todos os demais encontram-se contraditados não sendo possível ao tribunal optar por uma das versões dos acontecimentos da assistente e da sua filha ou do arguido.
Vale o exposto por se afirmar que, o Tribunal a quo motivou e objectivou o seu convencimento expresso no relato dos factos que teve como não suficientemente indiciados de forma inteiramente racionalizável, em que assumiu compreensível e inatacável conjugação de indícios, instalando-se-lhe dúvida sobre a justeza dos factos participados pela assistente, que naturalmente, em obediência ao princípio in dúbio pro reo, só podia e devia ser resolvida a favor do arguido.
Um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido.
Assim, bem andou o Tribunal a quo ao não pronunciar o arguido A. S., pela prática de crimes de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, do Código Penal ou, de ameaças agravadas, previsto e punido pelos artigos 153º e, 155º, do Código Penal.
Em face de tudo o que se deixa exposto, conclui-se, assim, que o Mm. Juiz bem valorou todos os elementos probatórios, em sintonia com as regras de experiência, ainda que indiciariamente, sem que resulte ter enveredado por convicção que não esteja devidamente fundamentada e, por isso, suficientemente objectivada e lógica, através de uma equilibrada ponderação.
A decisão instrutória recorrida não merece, pois, qualquer censura, devendo ser mantida nos seus precisos termos, com a consequente falta de provimento do recurso interposto pela assistente.
Assim, pelo exposto decide-se julgar improcedente a impugnação da decisão instrutória, por incorrecta ponderação dos indícios de facto, quanto aos crimes de violência doméstica, artigo 152º, do Código Penal ou, de ameaças agravadas, artigo 155º, do mesmo diploma legal, relativamente ao depoimento da testemunha M. D. e, das demais testemunhas inquiridas.

Por tudo o exposto, procede parcialmente o recurso interposto pela assistente S. D.Cirineu de Jesus, declarando-se a nulidade do despacho de arquivamento e dos actos subsequentes ao mesmo, relativamente ao invocado crime de injúrias, nos termos do disposto no artigo 119º, alínea b), do Código de Processo Penal, mantendo-se o demais decidido na 1ª instância nos seus precisos termos.

Sem custas, atenta a procedência parcial do recurso interposto.

III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em:

- Julgam parcialmente procedente o recurso interposto pela assistente S. D., declarando-se a nulidade do despacho de arquivamento e dos actos subsequentes ao mesmo, relativamente ao invocado crime de injúrias, nos termos do disposto no artigo 119º, alínea b), do Código de Processo Penal, mantendo-se o demais decidido na 1ª instância nos seus precisos termos.

Sem custas, atenta a procedência parcial do recurso interposto.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto.

Guimarães, 06-02-2017

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(Fernando Paiva Gomes M. Pina)
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(Nazaré J. L. M. Saraiva)