Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
660/16.0T9BGGGC-A.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
REQUERIMENTO
TEMPESTIVIDADE
PROCEDIMENTOS A OBSERVAR
ARTº 246
Nº 4 DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Tendo a ofendida, na própria denúncia que originou o procedimento criminal requerido logo a sua constituição como assistente, a autoridade que recebeu a queixa fica desonerada da obrigação legal de efetuar advertência sobre a obrigatoriedade da constituição como assistente e dos procedimentos a observar, a que alude o n.º 4 do artigo 246 do CPP.

II) Neste caso, de omissão justificada daquela advertência, o direito de constituição como assistente mantém-se até ao limite temporal em que ocorreria a extinção do direito de queixa, ou seja, até ao decurso do prazo de seis meses previsto no artigo 115.º, n.º 1 do CP.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

No processo de inquérito nº 660/16.0T9BGC da Procuradoria do juízo local criminal de Bragança foi indeferido o pedido de constituição de assistente de Maria, com os demais sinais dos autos, por despacho judicial datado de 13 de dezembro de 2016, com o seguinte teor:

«Nos presentes autos de Inquérito, notificada que foi a ofendida Maria para se constituir como assistente no prazo de 10 dias, por ausência de legitimidade do Ministério Público para prosseguir com a ação penal, atenta a natureza particular do crime denunciado (crime de difamação), veio a mesma fazê-lo, por requerimento de 02 de Agosto de 2016.
Ora, o despacho supra referido, constante de fis. 54, foi notificado à ofendida a 17 de Junho de 2016 e ao Ilustre Mandatário da mesma data (cfr. fls. 56 e 57), presumindo-se a mesma notificada no 3º dia útil posterior ao registo, pelo que o prazo de 10 dias começou a correr a 21 de Junho e terminou a 30 de Junho.
Deste modo, e tendo em conta que o requerimento foi apresentado a 02 de Agosto de 2016, urge concluir que a requerida constituição como assistente não é tempestiva, impondo-se indeferir o respetivo pedido.
Termos em que, por não estar em tempo, indefiro a constituição como assistente da ofendida Maria.
Notifique.
Remeta ao Ministério Público.»
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Inconformada, Maria interpôs recurso, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:

«I – Em 17.06.2016, o assistente Amílcar foi notificado para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos comprovativo do pagamento da taxa de justiça em falta ou identificar o ofendido que requereu a sua constituição como assistente (cfr. Doc. 1 que aqui se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

II – O assistente Amílcar esclareceu que o comprovativo do pagamento da taxa de justiça junto com a queixa-crime diz respeito à sua constituição como assistente, tendo a mesma sido admitida por despacho de 30.06.2016.

III – Embora nunca tenha sido notificada nesse sentido – ou seja, nos termos e para os efeitos dos artigos 68.º, n.º 2 e 246.º, n.º 4 do CPP -, decidiu a ora recorrente antecipar-se e proceder à sua constituição como assistente, o que fez em 02.08.2016.

IV – Sucede que a ora recorrente é surpreendida com o despacho recorrido, o qual indefere a sua constituição como assistente por alegada extemporaneidade.

V - A apelante considera que o douto despacho recorrido, ao indeferir a sua constituição como assistente, violou o disposto nos artigos 68.º, n.º 2 e 246.º, n.º 4 do CPP.

VI – Desde logo, afigura-se notório que o tribunal a quo labora em erro ao partir da seguinte premissa: “notificada que foi a ofendida Maria para se constituir assistente no prazo de 10 dias (…)”.

VII – Pelo que as conclusões a que chegou se encontram, naturalmente, equivocadas.

VIII – Importa ainda ressalvar que ainda que a notificação junta como Doc. 1 houvesse sido notificada à ora recorrente – que não foi -, do teor da mesma facilmente se conclui que igualmente laboraria em erro o tribunal a quo.

IX – Porquanto a mesma não consubstancia a advertência prevista no artigo 246.º, n.º 4 do CPP, a qual nunca teve lugar.

X – É pacífico que apenas com o cumprimento, pela autoridade competente, do dever de informação e advertência do denunciante se inicia o decurso do prazo de 10 dias previsto no n.º 2 do artigo 68.º do CPP.

XI – No caso presente, não pode dar-se por verificada aquela advertência, o que impede o início da contagem do prazo.

XII – De resto, a considerar-se a notificação realizada ao assistente Amílcar como consubstanciando aquela advertência, estaria fazer-se uma interpretação muito extensiva e legalmente inadmissível dos preceitos em análise.

XIII – Sendo certo que, estando em causa o exercício do direito constitucionalmente consagrado de acesso ao direito e aos tribunais, o cumprimento daquele dever de informação e advertência, obedece a requisitos cuja interpretação não pode ser leviana.

XIV – Caso assim não se entenda, ainda que esgotado o prazo do artigo 68.º, n.º 2 do CPP – o que não se concede e apenas por mera cautela de patrocínio se concebe -, tal não veda à ofendida, ora recorrente, a possibilidade de se constituir assistente dentro do prazo previsto no n.º 3 do artigo 68.º, nomeadamente, até 5 dias antes do início da audiência de julgamento, uma vez que, nos presentes autos, estamos em presença igualmente de um crime de natureza pública: o crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º, n.º 1 do Código Penal.»
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Respondeu o Ministério Público junto do Tribunal a quo, pugnando pela manutenção do decidido.
*
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho datado de 8 de fevereiro de 2017.
Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto e fundamentado parecer, no qual conclui que «a recorrente peticionou a atempadamente a sua constituição como assistente no processo, fazendo-o em conformidade com o tempo previsto no art.º 68,n.ºs 2 e 3 do CPPenal, pelo que deverá ser revogado o despacho posto sob sindicância, julgando-se procedente o recurso.»
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, na sequência do que a recorrente veio responder, subscrevendo o entendimento vertido no parecer.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).

1. Questão a decidir
Face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação apresentada, a questão a apreciar e decidir é a de saber se o seu requerimento de constituição como assistente é tempestivo.
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2. ELEMENTOS PROCESSUAIS COM INTERESSE PARA A DECISÃO:

a) O presente inquérito iniciou-se em 09.06.2016, com denúncia da ofendida/recorrente Maria e de Amílcar contra Maria A. e Manuel, por factos suscetíveis de integrarem a co-autoria de um crime de difamação e de um crime de denúncia caluniosa, previstos e puníveis, respetivamente, pelos artigos 180.º, n.º 1 e 365.º, n. 1, do Código Penal.

b) A denúncia foi subscrita por advogado a quem a recorrente e o outro ofendido haviam outorgado poderes para tal, sendo no seu final formulado expressamente pedido de constituição como assistentes dos ofendidos e junto comprovativo do pagamento do montante correspondente ao total de 1 Uc de taxa de justiça (€ 102.000,00).

d) Em 17.06.2016 a recorrente e seu mandatário foram notificados para «juntar comprovativo do pagamento da taxa de justiça em falta ou identificar o ofendido que requer a sua constituição como assistente, uma vez que os ofendidos Amílcar e Maria vieram requerer a sua constituição como assistentes, sucedendo que, apenas juntaram comprovativo do pagamento de uma taxa de justiça de 1 UC, quando é devido o pagamento de uma taxa de justiça de 1 UC por cada um dos assistentes.»

c) Na sequência do que o mandatário dos ofendidos esclareceu que «a constituição de assistente se referia ao ofendido Amílcar», o qual veio então a ser admitido a intervir nos autos como assistente, por despacho datado de 20.06.2016.

d) A 02.08.2016 foi junto aos autos requerimento da recorrente – subscrito pelo seu advogado – pedindo a sua intervenção como assistente e juntando comprovativo do pagamento da respetiva taxa de justiça, de 1 UC.

e) O que foi considerado intempestivo e com esse fundamento indeferido tal pedido de constituição como assistente da recorrente, pelo despacho recorrido, datado de 13.12.2016 e já supra transcrito.
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
A questão suscitada no recurso prende-se com os limites temporais legalmente fixados para a formulação do pedido de intervenção como assistente, que divergem consoante estejamos, ou não, perante crimes de natureza particular.
Nos crimes de natureza particular, em que o procedimento criminal está dependente de acusação particular, o denunciante tem a obrigação de declarar que deseja constituir-se assistente.
Nestes casos, como resulta dos artigos 68.º, n.º 2 e 246.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, a autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal a quem a denúncia for feita deve inclusive advertir o denunciante da obrigatoriedade de se constituir assistente e dos procedimentos a observar, bem como do prazo para tal, que é de dez dias a contar dessa advertência.
Sobre os efeitos da inobservância deste prazo, pronunciou-se já o STJ no acórdão n.º 1/2011, para fixação de jurisprudência, publicado no DR, I Série, de 26.01.2011, com o seguinte sumário:
«Em procedimento dependente de acusação particular, o direito à constituição como assistente fica precludido se não for apresentado requerimento para esse efeito no prazo fixado no n.º 2 do artigo 68.º do Código de Processo Penal».
Já nos crimes de natureza semipública ou pública, e nos termos do n.º 3 do artigo 68.º do Código de Processo Penal, «os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz: a) Até cinco dias antes do debate instrutório ou da audiência de julgamento; b) Nos casos do artigo 284.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 287.º, no prazo estabelecido para a prática dos respetivos atos; c) No prazo para a interposição do recurso da sentença.»
Revertendo ao caso dos autos, verifica-se que a ofendida/recorrente denunciou factos suscetíveis de integrarem um crime de difamação, que tem natureza particular (2) e um crime de denúncia caluniosa, que tem natureza pública.
Relativamente a este crime de denúncia caluniosa, o requerimento de constituição de assistente formulado pela recorrente em 2 de agosto de 2016, numa altura em que o processo se encontrava ainda na fase de inquérito, é manifestamente tempestivo à luz do já transcrito artigo 68.º, n.º 3, al. a), pelo que é linear que quanto a ele nunca o despacho recorrido poderia subsistir.
Quanto ao crime de natureza particular, verificamos que na própria denúncia que originou respetivo procedimento a ofendida/recorrente – que então se encontrava já devidamente representada por advogado – requereu logo a sua constituição como assistente. O que naturalmente desonerou a autoridade que recebeu a queixa da obrigação legal de efetuar advertência sobre a obrigatoriedade da constituição como assistente e dos procedimentos a observar (3), por não fazer qualquer sentido advertir alguém para cumprir uma obrigação quando ele já a cumpriu.
Neste contexto está pois justificada a omissão daquela advertência, verificada nos autos (4) e, consequentemente, também naturalmente afastada a preclusão do direito à constituição como assistente, caso não tenha sido apresentado requerimento para esse efeito no prazo de dez dias após aquela advertência, como é a jurisprudência fixada pelo já supra citado acórdão uniformizador do STJ, com o n.º 1/2011, precisamente por essa situação não ter aqui ocorrido.
Aliás, no caso dos autos, o que aconteceu foi simplesmente que o requerimento de constituição como assistente formulado pela recorrente na própria denúncia ficou sem efeito por falta de pagamento atempado da respetiva taxa de justiça devida, conforme previsão expressa para estes casos do artigo 8.º, n.ºs 1, 4 e 5 do Regulamento das Custas Processuais.
Em tais situações, outra solução não se pode considerar senão que o direito de constituição como assistente se manterá até ao limite temporal em que ocorreria a extinção do direito de queixa, ou seja, até ao decurso do prazo de seis meses previsto no artigo 115.º, n.º 1 do Código Penal. (5)
Vistas as coisas por este prisma, não há dúvida que quando em 2 de agosto de 2016 a recorrente formulou novamente o seu pedido de constituição como assistente, encontrava-se em tempo de o fazer também quanto ao crime de natureza particular denunciado, por não ter ocorrido preclusão desse direito e ainda não terem decorrido seis meses desde o conhecimento dos respetivos factos e seus autores.
Não podendo assim subsistir o despacho recorrido, que em contrário decidiu, argumentando com uma preclusão do direito de constituição como assistente que, como vimos, não tinha ocorrido.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em conceder provimento ao recurso, em consequência do que se revoga o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que admita a recorrente Maria a intervir nos autos como assistente, se essa admissão não for de rejeitar por razões diferentes das invocadas no despacho impugnado.
Sem tributação.
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Guimarães, 11 de Setembro de 2017
(Elaborado e revisto pela relatora)


1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Cfr. artigo 188.º, n.º 1 do Código Penal.
3. A alude o n.º 4 do artigo 246.º do Código de Processo Penal.
4. Contrariamente ao que, infundadamente, resulta do despacho recorrido.
5. Neste sentido, em situação análoga, cfr., por todos, o acórdão desta Relação, de 02.05.2012 , CJ, T3, 2012, p. 310, já citado no parecer do Ministério Público.