Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
288/17.8T8BRG.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: CONTRATO PROMESSA
IMPOSSIBILIDADE DA CELEBRAÇÃO DO CONTRATO PROMETIDO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PRESCRIÇÃO DO DIREITO DO AUTOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. A “matéria de facto” não pode conter qualquer juízo, indução ou conclusão (mesmo de facto).

2. O instituto do enriquecimento sem causa tem carácter subsidiário, não podendo ser invocado pela parte que tenha ao seu dispor outro meio de obter a restituição da prestação.

3. Assim, só a partir da data em que ambas as partes assumiram a impossibilidade da celebração do contrato prometido ocorreu a extinção da obrigação, com a obrigação dos RR de restituírem ao A. o valor do sinal entregue com base no instituto do enriquecimento sem causa.

4. Essa é também a data a partir da qual o credor teve conhecimento do direito que lhe compete, sendo a partir da mesma que se conta o prazo de prescrição do direito do A. – de pedir a restituição do valor do sinal.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Ana Cristina Duarte
2º Adjunto: Fernando Fernandes Freitas
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J. F., melhor identificado nos autos, intentou contra M. C. e marido, J. P., também melhor identificados nos autos, a presente acção declarativa com processo comum, pedindo que:

a) os réus sejam condenados a restituir-lhe a quantia de € 9.975,96;
b) seja declarada a nulidade do contrato-promessa respeitante à parcela de terreno da área correspondente a 90 m2 e, em consequência, que lhe seja restituída a quantia de € 2.244,59, respeitante ao sinal que foi entregue;

Subsidiariamente, que:

c) a quantia de € 2.244,59 seja adicionada ao montante de € 9.975,96 constante do pedido formulado em a), devendo, assim, os réus ser condenados a restituir-lhe a quantia de € 12.220,55;

Subsidiariamente,

d) os réus sejam condenados a restituir-lhe a quantia € 12.220,55, a título de enriquecimento sem causa;

Cumulativamente,

e) os réus sejam condenados a pagar-lhe os juros de mora, de acordo com a taxa legal aplicável às obrigações civis, contados desde a data da sua citação.
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Para tanto e em síntese alegou que celebrou com os réus dois contratos promessa de compra e venda, sendo um na forma verbal e outro na forma escrita, os quais tinham por objecto duas parcelas de terreno, tendo o autor entregue à ré mulher, promitente vendedora, a título de sinal/pagamento, a quantia de 9.975,96€, por conta da promessa de venda da parcela de terreno com 400 m2, e a quantia de 2.244,59€, por conta da promessa de venda da parcela com 90 m2.

Que veio a propor sucessivas acções judiciais contra os réus, sendo a última com vista à fixação judicial de prazo para a realização da venda no que tange à parcela de 400 m2, tendo nessa acção as partes celebrado uma transacção, na qual acordaram que se verificava uma impossibilidade de celebração do contrato prometido, pelo que, em face de tal acordo, entende assistir-lhe o direito de reaver a quantia entregue a título de sinal.

Mais pretende que, com fundamento na nulidade do contrato promessa ou no enriquecimento sem causa dos réus, estes sejam condenados a restituir-lhe a quantia entregue a título de sinal no âmbito da promessa relativa à parcela de 90 m2.
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Citados, ambos os réus contestaram, excepcionando a verificação do caso julgado quanto ao segundo pedido deduzido, alegando que em anterior acção judicial o A desistiu de tal pedido, desistência que foi homologada por sentença.

Mais invocaram a prescrição do direito do autor, alegando ter entretanto decorrido o prazo geral de prescrição previsto no art. 309.º do Código Civil e o prazo especial de prescrição previsto no art. 482º para o enriquecimento sem causa.

Alegaram ainda terem já procedido à restituição, à esposa do autor, do valor acordado da venda.

O réu J. P. pediu ainda a condenação do autor como litigante de má fé, em multa e indemnização a seu favor, de valor não inferior a 1.000,00€, alegando para o efeito que o mesmo peticiona a nulidade de um contrato que sabe nunca ter existido e a devolução de quantias que sabe já ter recebido integralmente.
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O autor respondeu às excepções invocadas, admitindo assistir razão aos RR quanto à verificação da excepção de caso de julgado quanto ao pedido formulado na al. b), pugnando, no entanto, pela improcedência da excepção de prescrição, por entender que o direito que se propõe exercer na acção (a restituição do sinal em singelo) nasceu apenas em 16/11/2015, aquando da celebração da transacção, no âmbito do processo de fixação judicial de prazo.

Mais respondeu ao pedido da sua condenação como litigante de má-fé, defendendo que o mesmo deve ser julgado improcedente.
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Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou procedente a invocada excepção de caso julgado, tendo-se, em consequência, declarado extinta a instância no que tange ao ponto b) do petitório do autor.
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Tramitados regularmente os autos foi então proferida a seguinte decisão:

“Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a acção e, em consequência, condeno os réus a procederem ao pagamento ao autor da quantia de 12.220,55€, acrescida dos juros de mora vencidos desde a data da sua citação à taxa legal em vigor em cada momento.
Mais decido não condenar o autor como litigante de má fé…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela vieram os RR interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões:

1- Em 15.01.1999 a Ré mulher assinou e entregou ao autor declaração em como reconhece a impossibilidade legal de realização da escritura de compra e venda definitiva e se compromete, até, a restituir-lhe o sinal recebido e os juros.
2- Essa declaração encontra-se na posse do Autor desde essa data.
3- Pelo que, desde pelo menos 15.01.1999 ocorreu a extinção da obrigação de celebração do contrato prometido e a consequente cristalização do enriquecimento ilegítimo dos réus, com o correlativo empobrecimento injustificado do autor.
4- O acordo firmado entre as partes em 16.11.2015, no processo judicial de fixação de prazo, mais não é do que a repetição do declarado pela Ré mulher em 15.01.1999 e cujo documento foi junto aos autos, com a PI, pelo A.
5- Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante – artº 376º 2 do CC.
6- O Mm. Tribunal violou o disposto nesta disposição legal não dando como provada aquela matéria.
7- O Tribunal a quo deveria ter dado como provado, e colocado no elenco dos

Factos dados como provados, o seguinte:

P) Em 15.01.1999, pela declaração prestada por escrito, entregue ao Autor e referida em G), a Ré reconheceu a impossibilidade de celebrar o contrato definitivo de compra e venda.
7- Ao não fazê-lo, violou o disposto no artº 607º do CPC.
8 - Da leitura do facto que se pretende que seja aditado sob a alínea P), concluiu-se que desde 15.01.1999 que o Autor é conhecedor do direito a ver restituído, por banda dos RR., o por si prestado.
9- Lavrou em equívoco o Tribunal a quo quando afirmou que o Autor foi conhecedor do seu direito apenas em 16.11.2015.
10- E, consequentemente, considerou improcedente a exceção da prescrição invocada pelos RR.
11- Dispõe o artº 482 do CC que o direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de 3 anos a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete.
12- O Direito do Autor prescreveu em 15.01.2002, ou seja, três anos após a elaboração da declaração datada de 15.01.1999.
13- Pelo que a decisão do Tribunal a quo violou o disposto no artº 482º do CC.
14- A Sentença recorrida fez má aplicação dos factos provados e comprovados nos presentes autos.
15- Deve ser revogada a Decisão proferida pela Mmª Juíza a quo e ser substituída por outra decisão que julgue procedente a exceção da Prescrição invocada por ambos os RR nesta ação, ao abrigo do disposto no artº 482 do CC e, consequentemente, absolva os RR. do pedido…”.
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O recorrido veio apresentar contra-alegações, nas quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:

- a de saber se deve ser aditada à matéria de facto o facto alegado pelos RR; e
- se ocorreu a prescrição do direito do A.
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Foram dados como provados na primeira instância os seguintes factos:

A) Em 3/4/1992, a ré mulher, por si e em representação do réu seu marido, mediante o escrito de fls. 11, prometeu vender e o autor prometeu comprar-lhe uma parcela de terreno com a área de 400 m2, a desanexar do logradouro do prédio da ré situado no lugar do …, freguesia de …, concelho de Braga.
B) A parcela de terreno foi prometida vender pelo preço de dois mil contos.
C) A título de sinal e princípio de pagamento, o autor entregou à ré a quantia de mil contos.
D) Ficou acordado que o remanescente do preço, no montante de mil contos, seria pago no dia da celebração do contrato prometido.
E) Ficou acordado que a escritura pública de compra e venda prometida seria celebrada até fim de Maio de 1992.
F) No dia 04-08-1992, o autor pagou à ré ainda a quantia de 1.450 contos, sendo pelo menos 1.000 contos a título de pagamento do remanescente do preço acordado para a venda referida em A).
G) Em 15-01-1999, a ré declarou perante o autor que: "(...) se compromete a devolver o dinheiro mais juros ao Sr. J. F.. Esta promessa de compra e venda em Março de 92 através do seu amigo M. J. promessa esta de 400 metros quadrados de aumento de quintal e porque a lei não dá para escriturar e como o meu dinheiro só está livre no banco em fim de Junho e comprador só pode vir em Agosto porque é emigrante como eu só no dia 23 de Agosto vou efectuar esta evolução do dinheiro dele mais juros. E como não se pode legalizar não há escritura o comprador não se pode apoderar dos 400 metros quadrados de terra. E por ser verdade vamos assinar."
H) O autor propôs a acção judicial que correu termos na Vara de competência mista do Tribunal Judicial de Braga sob o processo n.º 1269/03.0TBBRG, onde foi proferida sentença que declarou que a ré tinha incumprido a promessa de compra e venda.
I) Esta decisão judicial foi revogada por douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, tendo decidido que não havia incumprimento definitivo pela ré.
J) O autor propôs nova acção declarativa de condenação contra a ré, alegando que esta tinha recusado o cumprimento do contrato-promessa e que tal recusa representava o incumprimento definitivo.
K) O processo correu termos no 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Braga sob o n.º 4327/13.3TBBRG.
L) Neste processo foi julgada procedente a excepção de caso julgado, porquanto se entendeu que ainda não existia incumprimento definitivo do contrato promessa celebrado entre o autor e a ré.
M) O autor propôs a acção judicial de fixação de prazo contra os réus, a qual correu termos sob o processo n.º 3451/15.2T8BRG, Secção Cível J2, da Instância Local da Comarca de Braga.
N) Neste processo, o autor e os réus celebraram uma transacção nos termos seguintes:
“1º Requerente e requeridos acordam em que se verifica uma impossibilidade de celebrar o contrato de compra e venda prometido.
2º Assim, torna-se desnecessária a fixação de prazo que é o objeto da presente ação judicial.
3º Desta forma, o requerente e os requeridos acordam que quanto ao contrato de promessa identificado nos presentes autos, apenas resta a questão da restituição do sinal prestado, em singelo, dado que o requerente renuncia expressamente à sua eventual devolução em dobro.
4º As custas em dívida a juízo serão suportadas pelas partes, em partes iguais, prescindindo ambas de custas de parte”.
O) As partes ajustaram que o valor de 450 contos acresceria ao preço referido em B) para pagamento dos materiais existentes nos anexos”.

E foram dados como não provados os seguintes:

1. Em Agosto de 1992, A ré mulher, por si e em representação do réu seu marido, prometeu vender, e o autor prometeu comprar-lhe, uma parcela de terreno com a área de 90 m2, pelo preço acordado de 450 contos.
2. Parte do dinheiro referido em F), concretamente o valor de 450 contos, respeitava ao pagamento do preço acordado para a venda referida em 1.
3. Os réus já devolveram ao autor as quantias referidas em C) e F)”.
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Da impugnação da matéria de facto:

Pretendem os RR que seja aditada à matéria de facto provada um novo facto, com o seguinte teôr:

P) Em 15-01-1999, pela declaração prestada por escrito, entregue ao Autor e referida em G), a Ré reconheceu a impossibilidade de celebrar o contrato definitivo de compra e venda".

Dizem que “Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante – artº 376º nº 2 do CC”-, tendo o tribunal recorrido violado o disposto nesta disposição legal, assim como no artº 607º do CPC, não dando como provada aquela matéria.

Mas sem razão, como é bom de ver.

Independentemente do acerto da afirmação dos recorrentes – quanto ao alegado reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, com a qual não concordamos, como é evidente, dado que não há na declaração emitida qualquer reconhecimento de facto desfavorável, mas antes uma comunicação, que lhe é favorável, a justificar o incumprimento do contrato promessa -, consta já da matéria de facto provada, na alínea G), o facto alegado pelo A. no artº 17º da p.i. e que ficou a constar daquela alínea, reproduzindo-se na mesma, ipsis verbis, o teor do documento elaborado pela ré e que está na posse do A. Pretender retirar do teor do aludido documento que a Ré reconheceu a impossibilidade de celebrar o contrato definitivo de compra e venda, afigura-se-nos já matéria conclusiva, insusceptível de ser levada à matéria de facto.

Efectivamente, como tem sido entendimento unânime, na doutrina e na jurisprudência, apenas são factos "as ocorrências concretas da vida real", isto é, os "fenómenos da natureza ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens" (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 1950, pág. 209), sendo que à matéria de facto provada somente podem ser levados factos; os juízos de equidade, de valor ou conclusivos que porventura se devam formular para efeitos da decisão de direito só serão feitos aquando da aplicação do direito.

Ou seja, a “matéria de facto” não pode conter qualquer apreciação de direito ou conclusões jurídicas (equiparadas às questões de direito), isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão (mesmo de facto), pelo que, se por qualquer razão essas questões constarem da selecção da matéria de facto devem considerar-se não escritas. Isto no entendimento, cremos que pacífico, de que embora o actual CPC não contenha norma correspondente à inserida no art. 646º, n.º 4, 1.ª parte, do anterior CPC, chega-se à mesma conclusão interpretando a contrario sensu o actual art. 607.º, n.º4, segundo o qual na fundamentação da sentença o juiz declara os "factos" que julga provados.

Ora, como se disse, pretender que fique a constar da matéria de facto provada que a declaração prestada pela ré, em 15-01-1999, constitui o reconhecimento da impossibilidade de celebração do contrato definitivo de compra e venda, é pretender que se leve à matéria de facto uma conclusão (ainda que de facto), que a lei não consente.

Concluímos, portanto, que não deve ser levada à matéria de facto a sugerida alínea P), com o conteúdo que os RR pretendem ver nela incluído, sendo perante a matéria de facto já fixada na 1ª Instância que se apreciará a questão da prescrição do direito do A.
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Da questão da prescrição do direito do A:

Pretendiam os RR, na sequência do aditamento à matéria de facto da nova alínea P), que fosse extraída dessa matéria a conclusão jurídica de que a ré reconheceu já, em 15.1.1999, a impossibilidade de celebração da escritura pública de compra e venda do terreno prometido vender ao A, comprometendo-se a devolver-lhe o valor do sinal em singelo, mais juros, pelo que foi nessa altura e com esse documento que o A tomou conhecimento do direito que lhe assistia, de reaver daquela o valor em dívida, a coberto do instituto do enriquecimento sem causa, devendo fazê-lo, no entanto, no prazo de 3 anos a contar dessa data. Não o tendo feito, caducou o seu direito de reaver dos RR as quantias ora peticionadas.

Mas não lhes assiste razão, como bem se decidiu na sentença recorrida.

Consta, é certo, da alínea G) da matéria de facto provada, que “Em 15-01-1999, a ré declarou perante o autor que "(...) se compromete a devolver o dinheiro mais juros ao Sr. J. F. (…) porque a lei não dá para escriturar (…). E como não se pode legalizar não há escritura o comprador não se pode apoderar dos 400 metros quadrados de terra. E por ser verdade vamos assinar."

Acontece que o documento mencionado, e que se encontra junto aos autos, não está assinado por ambas as partes, nomeadamente pelo A, pelo que do mesmo apenas se retira que a ré declarou perante aquele, em 15.1.1999, que não pode cumprir o contrato promessa de compra e venda, por razões legais, comprometendo-se a devolver-lhe o valor do sinal em singelo mais juros.

Como já acima deixamos dito, essa declaração da ré não constitui qualquer reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável; muito pelo contrário: com essa declaração a ré pretende justificar perante o A. a razão pela qual não pode cumprir o contrato promessa de compra e venda, por impedimento legal, comprometendo-se a devolver ao A. o valor do sinal em singelo, por via da alegada impossibilidade legal da celebração do contrato definitivo.

Mas nada existe nos autos que nos permita concluir que essa declaração seja verdadeira – que tenha ocorrido a alegada impossibilidade objectiva de celebração do contrato -, ou que o A. a tenha aceite.

Pelo contrário, o que resulta da matéria de facto provada (designadamente das alíneas H), J) e M), é que o A. se tem “batido” sempre, nas várias acções que intentou contra os RR, pelo incumprimento pelos mesmos do contrato promessa celebrado, pedindo a restituição do sinal dado em dobro.

Apenas na transacção celebrada pelas partes na acção n.º 3451/15.2T8BRG, elas reconhecem ambas (incluindo o A), pela primeira vez, “…que se verifica uma impossibilidade de celebrar o contrato de compra e venda prometido…”, aceitando o requerente receber dos RR o valor do sinal em singelo e renunciando à sua eventual devolução em dobro.

Significa isso que apenas nessa data, e com esse reconhecimento por parte do A. - de que o contrato promessa não podia ser cumprido -, ele deixou de ter fundamento para pedir a condenação dos RR pelo incumprimento culposo do contrato.

Daí que, como bem se decidiu na sentença recorrida, o prazo para o A reclamar dos RR a restituição dos valores prestados com base no enriquecimento sem causa se tenha iniciado apenas naquela data, na qual o A. tomou conhecimento do direito que lhe assistia de ver restituídas as quantias por si entregues, com fundamento na acordada impossibilidade de cumprimento do contrato prometido (na impossibilidade da prestação acordada).

Como decorre do nº1 do artº 795º do CC – impossibilidade de cumprimento não imputável ao devedor -, “Quando no contrato bilateral uma das prestações se torne impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação, e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição, nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa”.

Ou seja, só a partir da data em que ambas as partes assumiram a impossibilidade da prestação, ocorreu a extinção da obrigação (artº 790º nº1 do CC), ficando os RR obrigados a restituírem ao A. o valor do sinal entregue com base no instituto do enriquecimento sem causa. Até essa data havia uma causa justificativa para o seu enriquecimento, que era a retenção do sinal, ao abrigo de um contrato promessa cujo cumprimento ou incumprimento ainda estava por decidir.
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Fazendo um enquadramento jurídico do instituto do enriquecimento sem causa, dispõe o n.º 1 do artigo 473.º do CC que “Aquele que sem causa justificativa enriquecer à custa de outrem, é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”, acrescentando o n.º 2 do mesmo artigo que “A obrigação de restituir por enriquecimento sem causa tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir, ou em vista de um efeito que não se verificou”.

São assim requisitos deste instituto: a) o enriquecimento, consistente na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista; b) o empobrecimento, traduzido no inerente sacrifício económico correspondente à vantagem patrimonial alcançada, ou seja, o valor que ingressa no património de um é o mesmo que saí do património do outro; c) o nexo causal entre um e outro; e d) a falta de causa justificativa da deslocação patrimonial verificada: ou porque nunca a tenha tido, ou porque tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido.

Para além disso, e como expressamente resulta do disposto no artigo 474º do mesmo diploma legal, “Não há lugar à restituição por enriquecimento sem causa, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecido”.

Acrescenta ainda o artº 482º do CC – quanto ao prazo de prescrição –, que “o direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento”.

Está em causa nos autos a questão de saber qual é a data a partir da qual o credor teve conhecimento do direito que lhe compete.
Essa data não é, certamente, a data em que, abstractamente, a parte conhece o direito à restituição que lhe confere o instituto do enriquecimento sem causa previsto no artº 473º do CC.

Essa data há-de ser aquela a partir da qual ela pode exercitar o seu direito à restituição, por falta de causa para o enriquecimento do R e o seu próprio empobrecimento. No caso de a causa justificativa da deslocação patrimonial ter existido inicialmente e ter deixado de existir, essa data ocorrerá apenas neste último momento. É nesse sentido que deve ser entendida a expressão “a data a partir da qual o credor teve conhecimento do direito que lhe compete”.

O conhecimento não é, assim, um qualquer conhecimento, mas o conhecimento do direito à restituição por enriquecimento sem causa.

Esta particular natureza do direito que se pretende exercitar justifica que a jurisprudência tenha adoptado um critério especial no que concerne à densificação do conceito “momento do conhecimento”. Defende-se, assim, dada a natureza subsidiária do instituto do enriquecimento sem causa, que o prazo de prescrição não se inicia enquanto o empobrecido poder invocar causa concreta para o respectivo empobrecimento, que o mesmo é dizer, enquanto tiver à sua disposição outro meio ou fundamento que justifiquem a restituição. O prazo conta-se assim desde o momento em que aquele sabe que ocorreu um enriquecimento à sua custa e quem se encontra enriquecido (Acs. RL de 15.02.2012 e de 29.4.2013, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.).

Como esclarece Mário Júlio de Almeida Costa (Direito das Obrigações, 9ª edição, Revista e Aumentada, 451) “…Não permite o nosso sistema que o empobrecido disponha de uma acção alternativa. Ele apenas poderá recorrer à acção de enriquecimento quando a lei não lhe faculte outro meio para cobrir os seus prejuízos. Sempre que exista uma acção normal (de declaração de nulidade ou anulação, de resolução, de cumprimento, de reivindicação, etc.) e possa ser exercida, o empobrecido deve dar-lhe preferência: não se levantará, pois, a questão de averiguar se há locupletamento injustificado. E se o aludido instituto não funciona quando a lei faculta ao empobrecido outros meios de se indemnizar ou ser restituído, o mesmo apenas terá aplicação se inexistir outro meio de indemnizar ou restituir o empobrecido…”

Ora, revertendo ao caso dos autos, é manifesto que a transferência patrimonial da quantia de Esc: 2.000.000,00 do A. para os RR, correspondente ao sinal e princípio de pagamento no âmbito do contrato-promessa celebrado, não ocorreu sem uma causa justificativa, antes está inteiramente justificada pelo próprio contrato-promessa. Ela só deixa de existir a partir da transacção efectuada nos autos, quando ambas as partes assumiram e aceitaram que o contrato promessa deixava de produzir efeitos, por impossibilidade de realização do contrato prometido.

Assim, a obrigação de restituição a que os RR se encontravam vinculados até àquela data só poderia ser fundada no contrato-promessa celebrado, seja na perspectiva do seu incumprimento, seja na perspectiva da eventual impossibilidade culposa imputável ao devedor.

Fácil será então de concluir que se o A tivesse optado, na data da declaração emitida pela ré em 15.1.1999, e apenas com base nela, pela acção de enriquecimento sem causa, essa acção fracassaria, porque o instituto de que se havia socorrido não tinha ainda aplicação à situação em causa, pois o invocado enriquecimento podia e devia ser destruído mediante acção de cumprimento ou de resolução por incumprimento do contrato promessa, não podendo o A. lançar mão da acção por enriquecimento sem causa sem antes demonstrar estarem esgotadas as outras vias de que dispunha para obter a restituição visada (Acs do STJ de 27-11-2003, e da RL de 30-4-2015, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Só quando termina o fundamento para pedir a restituição do sinal com base no contrato promessa e essa restituição se baseia no reconhecimento da impossibilidade do cumprimento do contrato definitivo – o que destrói a existência do próprio contrato promessa –, surge para o A. a possibilidade de accionar os RR com base no instituto do enriquecimento sem causa.

Ora isso aconteceu apenas em 16.11.2015 (na data da transacção efectuada nos autos nº3451/15.2T8BRG), não tendo decorrido ainda 3 anos desde essa até à propositura da ação.

Conclui-se assim do exposto que não ocorreu a prescrição do direito do A, pelo que improcedem as conclusões dos apelantes.
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DECISÃO:

Pelo exposto, Julga-se improcedente a Apelação e confirma-se a decisão recorrida.
Custas (da Apelação) a cargo dos recorrentes.
Notifique.

Sumário do acórdão:

I- A “matéria de facto” não pode conter qualquer juízo, indução ou conclusão (mesmo de facto).
II- O instituto do enriquecimento sem causa tem carácter subsidiário, não podendo ser invocado pela parte que tenha ao seu dispor outro meio de obter a restituição da prestação.
III- Assim, só a partir da data em que ambas as partes assumiram a impossibilidade da celebração do contrato prometido ocorreu a extinção da obrigação, com a obrigação dos RR de restituírem ao A. o valor do sinal entregue com base no instituto do enriquecimento sem causa.
IV- Essa é também a data a partir da qual o credor teve conhecimento do direito que lhe compete, sendo a partir da mesma que se conta o prazo de prescrição do direito do A. – de pedir a restituição do valor do sinal.
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Guimarães, 28.2.2019