Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
325/13.5TABGC.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: HOMICÍDIO
NEGLIGÊNCIA MÉDICA
CAUSALIDADE ADEQUADA
ABSOLVIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- A autópsia médico-legal tem lugar sempre que haja uma morte violenta (acidente, suicídio, homicídio) ou sempre que haja uma morte de causa indeterminada e que pelas circunstâncias em que ocorre possa levantar suspeita de ter havido a atuação de um agente externo que tenha provocado a morte.

II- No caso vertente, os Senhores Peritos Médicos, por não ter sido realizada autópsia e ser desconhecida a causa da morte, concluíram não ser possível saber se o incumprimento por parte da arguida das leges artis no tratamento da doente foi a causa da morte, porque não podem ser excluídas outras causas.

III- A perícia é a atividade de perceção ou apreciação dos factos efetuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.

IV- A prova pericial não está sujeita ao princípio da livre apreciação da prova do artigo 127º do CPP, impondo-se ao juiz uma apreciação vinculada.

V- No caso de a prova pericial (perícia médico-legal) ser apreciada livremente pelo juiz e, por isso, ter sido contrariada com fundamento em razões não cientificas na área da medicina, verifica-se erro notório na apreciação da prova do nº 2 al. c) do artigo 410º do CPP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de tribunal singular nº 325/13.5TABGC, do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, Juízo Local Criminal de Bragança, em que é arguida M. F., com os demais sinais nos autos, foi a arguida condenada, por sentença lida e depositada em 10.09.2019, nos seguintes termos (transcrição):

I. Condeno a Arguida M. F., pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º n.º 2, do Código Penal (em concurso aparente com um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, previsto e punido pelo artigo 150.º n.º 2 do Código Penal), na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período;
II. Absolver a Arguida do remanescente.
2. Não se conformando com tal decisão condenatória, dela interpôs recurso a arguida, extraindo da respetiva motivação, as seguintes conclusões [transcrição]:
1º O Tribunal condenou a Arguida M. F., pela prática de um crime de homicídio por negligência.
2º O Tribunal deu como provado que não foi realizada autópsia médico-legal.
3º Nas duas peritagens juntas aos autos, em nenhuma se conclui a razão da morte da doente, e em nenhuma se conclui que os atos médicos praticados pela Arguida, ou omitidos pela Arguida, foram a causa da morte da doente,
4º Não sabemos se os atos médicos ou omissão deles por parte da arguida, no caso concreto, teriam diminuído o risco de morte da doente, nem sabemos se o aumentou
5ºA falta de autópsia transformou-se na certidão de condenação da arguida e na inversão dos ónus da prova, pois passou-se de falta de prova para ser condenada para falta de prova para poder provar a sua inocência.
6º A arguida foi condenada pela morte de A. T. mas não se sabe as causas da morte de A. T..
7º Não foi a arguida que decidiu que fosse efetuada a dialise, esta decisão coube a três pessoas, não foi uma decisão inamovível da Arguida, foi uma decisão tomada por duas Medicas e o Enfermeiro Chefe
8º Segundo o perito nomeado pelo tribunal “A atuação da arguida, sem a realização da autópsia médico legal não poderá ser considerada como causa direta da morte da paciente, uma vez que não é possível excluir outras causas”
9º Causas estas que o Sr. perito diz podem ter sido a isquemia aguda (enfarte) do miocárdio e o acidente vascular cerebral (tromboembolia).
10º O Sr. Perito afirma: Provavelmente, que eu presumo, se calhar, parece haver, mas eu só posso presumir isso.
11º Condenar a arguida com base em conclusões presumidas viola a ideia máxima da obrigação do juiz que terá de julgar com base em factos e que estes não lhe deixem duvidas para alem do razoável.
12º Quando a questão é cientificamente técnica, por maioria de razão, para lá do razoável só a ciência pode responder.
13º No caso concreto a ciência/peritagem concluiu não poder afirmar, quando muito só conjeturar, mas para se fazer justiça não se pode conjeturar.
14º A sentença viola o artigo 410º, nº 2 a) e c) do Código de Processo Penal
15º A sentença viola o principio básico do nosso direito que é in dubio pro reo.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, e absolvendo-se o arguido.
Assim se fazendo JUSTIÇA

3. O M.P., na primeira instância, respondeu ao recurso interposto pela arguida, tendo concluído no sentido de que [transcrição]:

1. O Tribunal «a quo» analisou escorreitamente a prova produzida em audiência, a qual foi/é bastante para determinar a condenação da arguida.
2. Pese embora não se tenha logrado apurar qual a concreta causa de morte da paciente, por não realização da autópsia médico-legal, resultou claro e seguro que o comportamento da arguida – violando as elementares regras da legis artis - potenciou o risco de morte da paciente, havendo nexo causal entre a sua conduta omissiva e o resultado “morte”.
3. A ausência de uma autópsia, face a toda a factualidade apurada, não traduz qualquer insuficiência da matéria de facto dada como provada, sendo que tal vício tem de decorrer da própria decisão ou desta conjugada com as regras da experiência comum, o que não se verifica in casu.
4. Não decorre da sentença qualquer erro notório de apreciação da porva, sendo qu tal vício não se verifica se, simplesmente, a tese defendida pela recorrente não foi acolhida pelo Tribunal.
5. O Tribunal não violou o princípio do in dubio pro reo, já que não ficou com qualquer dúvida razoável acerca dos factos que resultaram provados/não provados.
6. A dúvida razoável que importa considerar nesta matéria é a dúvida que fica no espírito do julgador e não nos sujeitos processuais, e terá de resultar minimamente expressa.
7. Não é pela alegada insuficiência da prova produzida, nem pelo alegado erro de apreciação da prova que se pode concluir que ocorreu violação do princípio do in dubio pro reo.
8. Não foi violado qualquer dispositivo legal nem princípio de Direito, nomeadamente o disposto nos arts. 32.º da CRP e 410.º do CPP
9. A decisão tomada deve ser mantida nos seus exactos termos, negando-se provimento ao recurso apresentado.

V. Ex.as, porém, e como sempre, farão Justiça!

4. Nesta instância, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá ser julgado procedente, tendo concluído nos seguintes termos (transcrição):

“…salvo melhor opinião, a douta sentença é nula por insuficiência de prova para a decisão, dada a inexistência de autópsia que permita dar como assente a conduta da arguida subsumível ao crime de homicídio por negligência por que foi condenada – artigo 410º, nº 2 CPP.
Verifica-se da factualidade vertida na decisão que faltam elementos que, podendo e devendo ser ou ter sido indagados, são necessários para que possa formular um juízo seguro de condenação.
Sendo que, com os elementos de prova disponíveis será inultrapassável um estado de dúvida que impõe a absolvição da arguida nos termos legal e constitucionalmente consagrados”.
5. Foi cumprido que foi o disposto no artigo 417º nº2 do CPP e não foi apresentada resposta.
6. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1- Objeto do recurso

O âmbito do recurso, conforme jurisP. V. corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso (1) do tribunal, cfr. artigos 402, 403º e 412º, nº 1, todos do CPP.

Assim, considerando o teor das conclusões do recurso interposto pela arguida, a questão a decidir consiste em saber se está demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta da arguida e o resultado morte, e, consequentemente, se a sentença recorrida padece de algum dos vícios do nº 2 do artigo 410º do CPP, designadamente os vícios de insuficiência da matéria de facto para a decisão e /ou de erro notório na apreciação da prova.

2. A decisão recorrida

Na sentença recorrida foram considerados como provados e não provados os seguintes factos seguida da respetiva fundamentação de facto e de direito [transcrição]:

II- Fundamentação de facto:

Da prova produzida em audiência de julgamento, com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

A) Matéria de facto provada:

Da prova produzida em audiência de julgamento, com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. A arguida M. F. é médica e, na data dos factos infra descritos, trabalhava como Assistente Graduada da Especialidade de Nefrologia na Unidade Hospitalar de Bragança – Unidade Local de Saúde do Nordeste, EPE;

2. No dia 6 de Janeiro de 2013, pelas 4:13 horas, A. T. (paciente), nascida a - de Abril de 1937 (há data, com 75 anos de idade), deu entrada no Serviço de Urgência da Unidade Hospitalar de Bragança – Unidade Local de Saúde do Nordeste, EPE, trazida pelo INEM com queixas de dor no peito;
3. Pelas 4:15 horas, foi observada na triagem do Hospital e atribuída a prioridade clínica de «Muito Urgente» (cor laranja) e encaminhada para observação por clínica geral;
4. Pelas 4:33 horas, foi observada pela Dra. S. D., médica de clínica geral, que verificou estar esta consciente, colaborante, corada e hidratada, com tensão arterial de 225/124 milímetros de mercúrio (mm Hg), com pulso de 98 batidas por minuto (bpm), que o primeiro (1s) e o segundo som (2s) cardíacos eram rítmicos, com sopro sistólico audível em todo o pré-cordio (mediante auscultação cardíaca), que o abdómen encontrava-se distendido, mole e depressível, timpanizado, os membros inferiores estavam sem edemas, não apresentava sinais de enfarte agudo do miocárdio (perante electrocardiograma), analiticamente com ureia 118 e creatinina 5.59 e reencaminhou a paciente para medicina interna;
5. Pelas 6:23 horas, foi observada pela Dra. C.B., médica interna, que anotou que a paciente tinha antecedentes clínicos FEN (febre escaro nodular, mais conhecido por “febre da carraça”) e que não fazia qualquer tipo de medicação habitual e verificou que se encontrava vigilante, orientada e colaborante no tempo e espaço, agitada, com palidez cutânea, anictérica, eupneica, sem sinais de dificuldade respiratória, apirética, com hipertensão arterial, com pulso de 90 bpm, com sopro sistólico audível em todo o pré-cordio, com murmúrio ventricular, globalmente diminuídos sem ruídos adventícios, abdómen distendido, timpanizado sem sinais de irritação peritoneal, sem edemas periféricos nos membros inferiores ou superiores e apresentava analiticamente anemia normocítica normocrómica com hemoglobina 9,8, ureia 118, creatinina 5.59, troponina I 0,09 (o que apurou dos exames complementares de diagnóstico);
6. A paciente foi algaliada e no saco tinha 100 cc de urina sem alterações macroscópicas;
7. Perante tais observações e exames clínicos, diagnosticou-se insuficiência renal aguda (IRA), sem hipercalemia (sem aumento do valor do potássio), com hipertensão arterial (HTA);
8. Pelas 8:59 horas, foi observada pela Dra. C. V., médica interna, que verificou que a paciente encontrava-se consciente, orientada e colaborante no tempo e espaço, descorada, desidratada e com hipertensão arterial (TA de 210/216) com frequência cardíaca de 86 batimentos por minuto, uma saturação de oxigénio no sangue de 96%, frequência respiratória de 26 ciclos por minuto, temperatura do corpo de 36.º C, auscultação cardíaca de sopro sistólico grau III/VI, auscultação pulmonar com murmúrio ventricular mantido bilateralmente embora globalmente diminuído sem ruídos adventícios, abdómen mole e depressível, sem edemas periféricos nos membros inferiores ou superiores, foi realizada gasometria arterial em ar ambiente, com discreta hipocapnea de 29.3 bicarbonato (HCO3) 19.4 de hemoglobina, 8.6 de potássio, 6.1 lactato de 0.6, saturação de oxigénio de 71.2;
9. A Dra. C. V. (após ter auscultado a opinião da Dra. M., com a especialidade em Nefrologia, do Centro Hopitalar de Trás os Montes e Alto Douro - Hospital de referência), entendeu que não havia urgência na realização de hemodiálise, sugerindo fluidoterapia, observar a função renal e caso se desencadeasse edemas ou estase, para se realizar prova diurética com furosemida 20 mg 6/6 horas, para controlar os níveis tensionais, mas não excessivamente para não diminuir a perfusão renal, manter tensão arterial sistólica à volta de 150 com labetolol e dinitrato isosorbide e realizar provas de imagem;
10. Iniciou-se um plano de intervenção na paciente com labetolol em perfusão para manter os níveis tensionais à volta de 150, fluidoterapia a 62 ml/hora, registo de diurese horária (Uro tipo II – estudo de urina tipo II - e bacteriológico de urina), tomografia axial computorizada (TAC) abdominal sem contraste, avaliação de alterações possíveis (massas, quistos renais, etc);
11. Pelas 15:00 horas, voltou a observar a paciente verificando que a mesma apresentava níveis tensionais controlados no monitor, com tensão arterial de 145/68, estando a ser administrado sub perfusão de labetolol de 3.5 ml/hora, diurese horária de 60 ml/hora e determinou que se procedesse a novo estudo analítico;
12. No dia seguinte, 7 de Janeiro de 2018, pelas 8:59 horas, voltou a observar a paciente verificando que realizada prova de imagem com TAC, por ausência de serviço ecográfico, detectou-se rins de dimensões conservadas sem lesões expansivas espontaneamente evidentes, cálculos ou dilatação pileocalicial, bexiga com moderada repleção com balão de algália intraluminal, alguns diminutos granulomas calcificados hepáticos de natureza residual e que nos tomogramas do toraz inferior existem pequenos derrames pleurais bilaterais e pequena hérnia do hiato do tipo de deslizamento, a Paciente sentia-se melhor, pretendia ter alta em breve e já se alimentava sem intercorrências;
13. Pelas 11:24 horas, verificou que se apresentava consciente, orientada e colaborante no tempo e espaço, descorada, mais hidratada, com níveis tensionais médios durante a noite de 153/69, os mais baixos de 139/71 pelas 6:00 AM, nessa hora com 184/94, com frequência cardíaca de 69 bpm, com uma saturação de oxigénio no sangue de 97%, com diurese parcial de 20 horas de 900 cc, urina clara, sem turgescência da veia jugular (S/TGJ), com auscultação cardíaca de som 1 normal e som 2 normal com sopro sistólico grau III/VI, auscultação pulmonar com murmúrio ventricular mantido bilateralmente embora globalmente diminuído sem ruídos adventícios, abdómen mole e depressível, sem edemas periféricos nos membros inferiores ou superiores;
14. Nessas circunstâncias foi contactada a Arguida, enquanto especialista de Nefrologia que referiu então concordar com a terapêutica realizada e sugeriu introduzir betabloqueante oral (BB) em doses baixas e diuréticos em doses baixas e posteriormente realizar monitorização da tensão arterial em 24 horas (MAPA) e ecocardiograma trans torácico (ETT), para seguimento posterior e internamento;
15. Pelas 11:24 horas do mesmo dia registou ainda os resultados da análise ao sangue, nomeadamente com quebra de 2 gramas de hemoglobina em 24 horas, hemoglobina 7.7 macrocíclica, por hemodiluição, sem objectivar perdas hemáticas visíveis, agravamento renal creatinina 6.03 e ureia de 125 potássio (k) 5.4, parâmetros inflamatórios negativos;
16. A paciente seguiu para internamento pelas 15:36 horas e foi internada no Serviço de Medicina/Mulheres sob o diagnóstico insuficiência renal crónica terminal de etiologia indeterminada;
17. No dia 10 e 18 de Janeiro de 2013 efectuou duas sessões de diálise, com um cateter provisório, sem incidentes;
18. No dia 21 de Janeiro de 2013 foi realizada uma nova sessão de diálise com início pelas 15:45 horas e término pelas 17:45 horas, através de um cateter definitivo (longa duração) na veia jugular interna direita da paciente, colocado no bloco operatório por intermédio da arguida;
19. No dia 23 de Janeiro de 2013, a paciente realizou nova sessão de diálise, com baixa eficácia (velocidade de bomba inferior a 250 com falhas constantes de débito), que se iniciou pelas 14:00 horas, com registo de TA de 160/79 mmHg e pulso de 73/min e terminou pelas 17:00 horas, com último registo de TA às 16:25 horas de 146/66 mmHg e pulso de 76/min;
20. Cerca de quatro horas depois, a enfermeira M. N., na sala B, quando estava a começar a ligar a paciente ao monitor para se efectuar diálise, verificou que o cateter não se encontrava permeável, do que informou a arguida;
21. A arguida pediu, inicialmente, a intervenção da enfermeira A. P., tendo esta respondido que não a podia auxiliar por estar a ligar os doentes aos monitores;
22. Nesse seguimento, a arguida pediu ajuda ao Dr. J. B., Internista, que acedeu ao pedido;
23. O Dr. J. B. colocou-se por detrás da paciente enquanto a arguida colocou umas luvas esterilizadas;
24. A arguida, sem respeitar as regras de assepsia, com as luvas esterilizadas tocou em vários sítios com as mesmas;
25. Abriu as suturas, meteu o dedo pela abertura, sendo que a paciente se queixava, com dores;
26. O médico J. B. ainda pediu à arguida que desse anestesia local à paciente, tendo a arguida prosseguido e respondido que «já estava»;
27. A arguida, após ter concluído que o cateter estava bem posicionado, introduziu umas pinças para puxar e esterilizar o cateter e voltou a meter o cateter para dentro depois de verificar que funcionava;
28. Foi entretanto trazida anestesia para suturar a paciente;
29. O Dr. J. B. foi buscar um antibiótico que foi administrado à paciente;
30. A arguida cortou umas compressas com uma tesoura normal para colocar na ferida que acabava de ser suturada, tendo o Dr. J. B. a interpelado para que usasse material esterilizado, o que esta acatou;
31. Efetuou-se um Raio-X à paciente para verificar se o cateter estava bem colocado, o que se confirmou;
32. Após, a arguida chamou a enfermeira T. N. para levar a paciente para a sala AU+, onde existe uma máquina de diálise, tendo esta se recusado por discordar que a mesma fosse para aquela sala, uma vez que era destinada a doentes hemodialisados com hepatite B;
33. Perante a insistência da arguida, a enfermeira contactou telefonicamente o Enfermeiro-Chefe U.R. J. R. pedindo-lhe instruções, tendo este lhe dito que a decisão era da arguida;
34. A Paciente não realizou a diálise;
35. No dia 24 de Janeiro de 2013, por volta das 8:30 horas, a paciente foi encaminhada para a sala de hemodiálise (Sala B);
36. Apresentava-se estável do ponto de vista hemodinâmico com tensão arterial de 165/70;
37. A paciente foi conectada ao monitor na sala de hemodiálise (Sala B), mas a sessão não se iniciou por falha de débito;
38. Após, a arguida mandou retirar a Paciente da máquina, com o intuito de reposicionar/colocar novo cateter;
39. Para tanto, a paciente foi mudada para a denominada sala AU+, onde existe uma máquina para tratamento, e que estava desocupada, com a anuência do Enfermeiro-Chefe que ordenou que fosse levado material de instrumentação para essa sala;
40. A arguida decidiu iniciar o procedimento, tendo sido aplicado à paciente prévia anestesia local;
41. Quando a arguida tentava canalizar a veia, saiu sangue em esguicho da paciente;
42. A enfermeira M. N. alertou a arguida que lhe parecia sangue arterial e pediu a esta para parar, tendo a arguida a mandado calar e prosseguido com o procedimento, pegando no cateter e dizendo em voz baixa «não sei como é que isto se coloca»;
43. A enfermeira M. N. pediu à arguida, caso pretendesse colocar um cateter definitivo, que fosse com a Paciente para o bloco operatório, ao que a arguida respondeu «lá estão vocês a quererem que eu vá para o bloco!»;
44. Entretanto, como o sangue não parava de jorrar, e a paciente que estivera até então consciente e orientada, dava já sinais de hipotensão e taquicardia, a enfermeira M. N. pediu novamente à Arguida que parasse, o que a Arguida ignorou;
45. A Arguida pegou então numa peça (de características concretamente não apuradas) e tentou adaptar a mesma à extremidade do cateter, perfurando o local onde o sangue estava a sair;
46. De imediato aumentou o sangramento da paciente, espalhando sangue por todo o lado;
47. A enfermeira procurou tamponar o local da punção, enquanto a Arguida se questionava a si própria se tinha sido ela quem fez aquilo;
48. Nesse momento, vendo a desorientação da arguida, a enfermeira apelou-lhe que parasse e tocou a campainha para que outros viessem em auxílio;
49. Chegou primeiro a enfermeira P. P., a quem a enfermeira M. N. pediu para chamar o Enfermeiro-Chefe para que este pusesse termo àquele procedimento, uma vez que a paciente tinha perdido muito sangue e apresentava sinais de hipovolémia, estava desidratada, apresentava sudorese intensa, taquicardia, hipotensão e perda de consciência com leves gemidos;
50. A arguida disse que ia introduzir um segundo cateter, tendo a enfermeira pedido novamente para que parasse;
51. No decurso da discussão entre a enfermeira M. N. e a Arguida, a primeira disse à Arguida que “se a doente morresse, ia participar da situação”;
52. O enfermeiro-chefe U.R. disse que a decisão era da médica;
53. A enfermeira virou-se então para o Enfermeiro-Chefe dizendo que se a arguida não parasse com o procedimento, saía da sala, tendo este último lhe dito para se calar e continuar, o que acatou;
54. A arguida colocou o segundo cateter que se revelou permeável e começou então a suturar os locais sangrantes, enquanto a enfermeira efetuava o tamponamento nos restantes locais;
55. Entretanto, foi determinado que a Paciente fosse infundida com fluídos (soro e volutem), tendo a enfermeira P. P. trazido os mesmos, sendo estes administrados à Paciente;
56. Durante tal procedimento, o enfermeiro-chefe U.R. deslocou-se, à sala dos médicos e pediu auxílio à Dra. P. V. (Directora de Serviço de Medicina), tendo esta acedido a deslocar-se à sala AU+ para se inteirar do sucedido;
57. Aí chegada, quando ainda estavam a ser administrados os fluídos, ficou um tempo a falar com a arguida e a ajudá-la, tendo sido determinado que fosse administrado à paciente uma máscara de alto débito e duas unidades de sangue e duas de plasma;
58. A enfermeira M. N. voltou a questionar o enfermeiro-chefe quanto à realização da diálise, tendo este lhe respondido que a médica é que decidia;
59. A Arguida ordenou que se realizasse 3 horas de tratamento de diálise, com uma ultrafiltração de 1000 ml e sódio a 150, ficando a enfermeira M. N. a tomar conta da doente;
60. A paciente efetuou diálise na Sala AU+ entre as 12:07 horas e as 15:09 horas;
61. Inicialmente, pelas 12:07 horas apresentou uma TA (tensão arterial) de 100/50 mmHg e pulso de 56/min; pouco depois, às 12:18 a paciente apresentou uma TA de 84/40 mmHg com pulso de 173/min; verificou-se uma melhoria temporária e progressiva de TA após a infusão de fluídos e administração de duas unidades de sangue e duas de plasma; pelas 12:40 horas, a paciente apresentou uma TA de 144/106 mmHg com pulso de 123/min; pelas 14:56 horas, último registo, a paciente apresentou uma TA de 82/51 mmHg e um pulso de 203/min;
62. A paciente, durante a diálise apresentava instabilidade hemodinâmica, com hipovolémia, hipotensão e taquicardia;
63. Desde que se terminou a administração de fluidos, o estado da doente agravou-se, tendo ficado sem pulso e sem respirar e, nesse seguimento, foi confirmado o óbito;
64. Isto é, por volta das 16.10 horas, a utente faleceu, tendo o óbito sido declarado pela Dra. P. V.;
65. Não foi realizada autópsia médico-legal, uma vez que a Dra. P. V. fez constar no certificado de óbito que A. T. faleceu por causa natural na sequência de «Insuficiência Renal Agudizada», para o que terá contribuído «Hipertensão Arterial», de que padeceria há «anos»;
66. Porém, como se evidencia dos factos ora descritos, não foi essa a causa de morte, pois na verdade,
67. Perante a situação descrita em 49., isto é um quadro hipovolémico grave, associado a uma manobra invasiva grave, impunha-se, segundo as regras médicas, parar com tal procedimento e restaurar, antes de mais, as condições hemodinâmicas da paciente;
68. A situação clínica da Paciente começou a complicar-se no momento em que a Arguida decidiu iniciar o procedimento de colocação de um cateter e tentou canalizar a veia, e em que saiu sangue em esguicho da paciente, situação essa que se foi agravando no seguimento das demais decisões e procedimentos adotados e determinados pela Arguida e que culminou com os referidos registos clínicos já na realização da diálise, evidenciando-se a perda de sangue, o pulso elevado e a tensão muito baixa, que só poderia ter como consequência o desfecho fatal, como infelizmente sucedeu;
69. O que impunha a cessação imediata da manobra, como referido anteriormente;
70. A diálise não deveria ter sido prosseguida, tendo a mesma sido realizada contra as regras da profissão médica que ordenavam que, ao invés do decidido pela Arguida, se procedesse antes à estabilização hemodinâmica da paciente, a realização de exames imagiológicos para determinar a causa da instabilidade hemodinâmica evidente e, se necessário, correcção cirúrgica;
71. Ao prosseguir com a diálise, o que fez contra as regras da profissão, uma vez que mantendo-se o quadro clínico de hipovolémia, hipotensão e taquicardia e não se procedendo à estabilização hemodinâmica da paciente, tal poderia ter como consequência a sua morte;
72. A colocação de um cateter central para hemodiálise é uma manobra invasiva, que não é isenta de complicações, obriga a que no decurso da técnica e/ou reinício seja criteriosamente observado o estado geral do doente, o grau de tolerância ao procedimento e a monitorização contínua cardiovascular e respiratória;
73. Pelo que, segundo as regras médicas, em face do descrito, não deveria a Arguida realizar a referida manobra – diálise - e, iniciada, deveria proceder à sua suspensão imediata;
74. Como consequência direta e necessária da atuação da arguida acima descrita, A. T. sofreu dor, instabilidade hemodinâmica, choque hipovolemico, desidratação, sudorese intensa, taquicardia, hipotensão (baixa dos valores de tensão arterial), perda de consciência, hemorragia não controlada externa, foram causa adequada da morte da Paciente;
75. A Arguida, enquanto médica, sabia que perante o quadro clínico e sintomas apresentados pela paciente, deveria proceder à estabilização hemodinâmica da paciente e que, ao não fazê-lo e prosseguindo com a realização pela Paciente de hemodiálise e ao não interromper a mesma, atuava de forma contrária às regras da sua profissão, o que quis;
76. Mais sabia que ao atuar como descrito, não adotava os deveres de cuidado e atenção, nem a observância das boas regras de atuação médica aplicáveis naquela situação e que conhecia e que, segundo as circunstâncias, lhe eram exigíveis e era capaz de observar e, não obstante quis agir segundo os procedimentos acima descritos, contra as regras médicas e de forma contrária à atuação que lhe era exigida e era capaz de observar, representando e conformando-se com o risco de vida da paciente que gerou e representando sem se conformar que da sua conduta pudesse advir a morte da paciente, dando, assim, causa às lesões descritas da paciente, que foram causa adequada da sua morte;
77. A Arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal;

Mais se apurou que,

78. A Arguida continua a prestar serviço na Unidade Hospitalar de Bragança – Unidade Local de Saúde do Nordeste, EPE, auferindo € 2.300,00 mensais;
79. Vive em casa própria;
80. Não tem filhos;
81. A nível profissional, é pessoa exigente com ela e leva o esclarecimento das patologias ao extremo, investigando sempre, sendo pessoa que tem opinião inamovível;
82. A Arguida não tem antecedentes criminais;
*
B) Factos não provados:

Da discussão da causa, não resultaram provados quaisquer outros factos, nomeadamente que:

a) Nas circunstâncias descritas em 21., a Arguida pediu auxilio à Enfermeira C. G.;
b) O descrito em 25. ocorreu perante outros doentes na sala e provocou o sangramento abundante da paciente que implorava à arguida que parasse;
c) No momento descrito em 26., as Enfermeiras M. N. e A. C. pediram à arguida que desse anestesia local à paciente;
d) Após o descrito em 37., o Enfermeiro-Chefe U. R. e a arguida fizeram o procedimento de reposicionamento exterior do cateter mediante a colocação de uma fita adesiva;
e) Nas circunstâncias referidas em 43., a enfermeira M. N. pediu à Arguida que colocasse um cateter provisório disponível no serviço;
f) No decurso da discussão entre a enfermeira M. N. e a Arguida, a segunda disse que a primeira “era uma ignorante por trabalhar há tantos anos na diálise, pensava que sabia alguma coisa, mas não sabia nada» e «que nunca tinha lidado com doentes politraumatizados sem uma pinga de sangue”;
g) A Arguida disse que as unidades mencionadas em 57. só deveriam ser administradas depois da paciente estar ligada ao monitor da diálise;
h) Nas circunstâncias referidas em 63., a enfermeira M. N. chamou a Dr.ª P. V. e a Dra. E. P., tendo sido trazido um eletrocardiógrafo e um desfibrilhador, tendo-se realizado uma ecografia que comprovou ritmo parado, sem atividade elétrica;
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Consigna-se que não foram considerados os factos negativos (dos factos provados), os factos meramente conclusivos e os factos desprovidos de interesse e relevância para a decisão da causa.
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C) Motivação da decisão de facto:

A matéria de facto acima mencionada resultou da análise crítica e conjugada dos vários meios probatórios produzidos em sede de audiência final, apreciados de acordo com as regras de experiência comum e de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova.
Cumpre concretizar como se formou a convicção do Tribunal.
Desde logo se realce que prestaram declarações as filhas da paciente, A. O. (Assistente) e A. H., as quais, encontrando-se emigradas em França, apenas relataram conhecer o estado geral de saúde da sua mãe e desconhecer quais os tratamentos a que a mesma foi sujeita ou a razão dos mesmos, bem como, naturalmente, o que terá levado à morte da sua mãe.
Por outro lado, e como segundo ponto prévio, saliente-se que prestaram declarações várias enfermeiras que colaboravam com a Arguida no serviço de hemodiálise do Hospital de Bragança, as quais demonstraram não simpatizar com a Arguida, designadamente quanto às relações pessoais estabelecidas entre elas e a Arguida.
Todavia, todos os depoimentos prestados pelas enfermeiras do serviço de hemodiálise (e abaixo mencionados) revelaram-se objetivos e isentos, não se denotando qualquer atitude retaliatória ou vingativa, antes a vontade de esclarecer o que terá ocorrido, independentemente das opiniões profissionais de cada uma (sem prejuízo do que se dirá acerca do depoimento de U. R.).
Posto isto.
O descrito em 1., além de resultar dos vários elementos documentais juntos aos autos, teve em consideração as declarações da própria Arguida a respeito da sua situação profissional.
Quanto à factualidade constante de 2. a 16., a mesma resulta dos elementos documentais juntos aos autos principais a fls. 23 a 29, conjugando os mesmos com os depoimentos de S. D., C. B., C. V., médicas que observaram a Paciente previamente ao seu internamento (em 07-01-2013), e que depuseram com objetividade e isenção.
O vertido em 17. a 18., consta de fls. 24 a 27 do Anexo.
Relativamente ao ocorrido a 23-01-2019, o descrito em 19. está plasmado a fls. 24 do anexo I.

Acresce que, sobre tal dia, prestaram declarações:

A. C., enfermeira a prestar serviço no serviço de hemodiálise em Bragança, relatou que apenas conheceu a doente no dia 23-01-2013, tendo observado algum mal-estar entre a Paciente e a Arguida no decurso da realização da diálise, sendo que a Paciente queria evitar que a Arguida “lhe tocasse”, mas não teve intervenção direta na mesma, embora tenha ido ter com a paciente para a acalmar.
M. N., enfermeira a prestar serviço no serviço de hemodiálise em Bragança desde 2001, relatou que ligou a Paciente à máquina da diálise (sendo que outra colega ia desligar pelas 16:00 horas).
Confirma que o cateter não estava permeável, ou seja, estava a ter pouco débito. Por esse motivo chamou a Arguida, a qual fez algumas manobras no cateter, tendo este aumentado o débito. Lembra-se que a Paciente não queria estar a fazer diálise por “estar farta” do tratamento.
O seu depoimento foi importante para a apreciação do descrito em 20..
J. B., médico no Hospital de Bragança, relatou que neste dia a Arguida pediu a sua colaboração no serviço de diálise.
A Arguida estava a verificar se um cateter estava bem colocado e o depoente ia auxiliando a mesma, indo buscar material.
Recorda-se que, no gabinete dos infetados (sala AU+) a Arguida tinha as luvas colocadas, mas ia mexendo em gavetas para retirar material. Posteriormente, tocou na Paciente, viu os pontos e suturou.
Sabe que no final foi dado antibiótico.
Foram lidas as suas declarações prestadas em inquérito (a fls. 216 a 217), e admitiu tudo o que disse, embora agora não se recorde (atento o hiato temporal).
O depoimento deste médico, pela forma desinteressada e objetiva como foi prestada, foi decisivo para a valoração do vertido em 22. a 31..
É certo que o mesmo não se recordava de vários dados aquando da sua inquirição em audiência de julgamento. Tal é perfeitamente normal tendo em consideração que os factos remontam a 2013 e a situação em que participou, não sendo completamente normal, não é de molde a permitir a sua memorização por tão longo período.
E tendo sido lidas as declarações em inquérito, prestadas em 2014, o mesmo confirmou, de forma espontânea e esclarecida, o seu teor.
A. P., enfermeira a prestar serviço no serviço de hemodiálise em Bragança desde 1998, que confirmou lhe ter sido solicitado o auxilio pela Arguida para intervenção no cateter da Paciente, tendo dito que não podia pois estava escalada em outra sala.
Confirma que o Dr. J. B. foi auxiliar a Arguida.
Nesse sentido, o seu depoimento foi relevante para o mencionado em 21..
C. R., enfermeira a prestar serviço no serviço de hemodiálise em Bragança desde 2005, afirma ter entrado ao serviço às 16:00 horas do mencionado dia e procedeu ao desligamento da Paciente da máquina.
Sabe que posteriormente foi fazer um raio x para perceber se o cateter estava bem, e pensa que tal se confirmou.
Todavia, a Arguida abordou-a no sentido de irem à sala AU+ fazer alguma intervenção no cateter, ao que disse não por estar colocada na sala B.
Sabe que o Dr. J. B. foi ajudar a Arguida. Apesar de não ter intervindo, ouvia falar alto na sala onde decorria a intervenção e pensa que seria a doente a queixar-se.
M. S., assistente operacional no Hospital de Bragança, apenas viu que no dia em causa a Paciente estava “cheia” do tratamento de diálise e dizia para não “lhe tocarem mais no corpo”.
T. N., enfermeira a prestar serviço no serviço de hemodiálise em Bragança, confirma que não foi auxiliar a Arguida na intervenção ao cateter realizada no dia em causa, nem a encaminhar a Paciente para a sala AU+, pois no seu entendimento não o podia fazer lá.
Afirma que relatou tal situação ao enfermeiro-chefe U.R., mas desconhece se a Paciente fez a diálise.
O seu depoimento, foi relevante para o descrito em 32. a 33..
Já o vertido em 34., resulta desde logo da prova documental junta aos autos, e já acima mencionada, segundo a qual a Paciente no dia 23 apenas fez uma sessão de diálise.
Relativamente ao ocorrido em 24-01-2013, resulta de fls. 23 do Anexo I que, por volta das 8:30 horas, a Paciente foi encaminhada para a sala de hemodiálise (Sala B), e que se encontrava estável do ponto de vista hemodinâmico com tensão arterial de 165/70.

Acresce que demonstraram ter conhecimento do sucedido:

A. C., a qual se encontrava ao serviço nesse dia e referiu ter visto a Paciente a ser levada para a sala AU+, tendo a Arguida e a Enfermeira M. N. acompanhado a mesma.
Refere ter ouvido a Enfermeira M. N. a pedir à Arguida para parar o procedimento (ao que julga pela deterioração do estado de saúde da Paciente).
Afirma que quando foi à sala AU+ ajudar a mobilizar a paciente para outra cama (depois de lidas as declarações de fls. 178, referiu ter sido pelas 13:00 horas) foi o “descalabro”, com tudo cheio de sangue (até nas paredes), o que não era normal e percebeu que o estado geral da Paciente era mau (cor roxa e com períodos de apneia). Na sala estavam ainda o Enfermeiro-chefe U.R. e a Dr.ª P. V., encontrando-se ambos a olhar para a Paciente.
Relatou que a Enfermeira M. N. estava muito perturbada com o que tinha visto, pois esta transmitiu-lhe que embora a Paciente estivesse a perder sinais vitais a Arguida não parou o procedimento.
U. R., atualmente membro do conselho de administração do Hospital de Bragança, tendo exercido, de 2011 a 2017, a função de enfermeiro chefe no serviço de nefrologia.
Afirma que só no dia do falecimento contactou com a Paciente. Confirma que a mesma começou a efetuar diálise pelas 8:30 horas, embora o débito não estivesse a ser o desejado.
A Arguida pretendeu movimentar o cateter, de forma a aumentar o débito, e levou a Paciente para outra sala (AU+, destinada aos doentes com hepatite), tendo pedido à enfermeira M. N. para ajudar.
Passado algum tempo (cerca de 1:00 hora a 1:30 horas depois) afirma ter sido chamado à sala pois a Arguida e a enfermeira não se entendiam, sendo que a Arguida pretendia continuar a diálise e a enfermeira queria parar.
A intervenção em causa era a manipulação do cateter e o depoente afirma que “não se quis meter”.
A Paciente estava deitada e havia sangue no chão e lençóis, mas que nas milhares de intervenções realizadas, por vezes há sangue.
Foi chamar a Dr.ª P. V. e esta falou com a Arguida e pediu à enfermeira para ter calma e não abandonar a sala.
Tem conhecimento que a Paciente posteriormente realizou algumas horas de diálise (3 a 4) e que lhe fizeram transfusão de sangue e soroterapia.
Na hora de almoço da enfermeira M. N. ainda se lembra de ter lá ficado alguns minutos e a Paciente estava estável, pelo que não foi chamada a Arguida nesse período de tempo.
Foram ainda lidas, parcialmente, as declarações prestadas em inquérito e verificou-se que o mesmo apresentou algumas contradições, sendo que em julgamento afirmou não ter visto a Arguida a fazer cortes ou suturas e em sede de inquérito referiu o ter visto.
No geral o depoimento desta testemunha revelou-se claramente constrangido e evasivo, o que eventualmente se deverá ao cargo que ocupa (Administrador Hospitalar), denotando-se uma clara intenção de não prejudicar a entidade hospitalar (embora a mesma não seja parte nestes autos).
M. N., relatou que neste dia a Paciente foi inicialmente ligada para efetuar diálise e, após o pequeno almoço, foi-lhe dito pelo enfermeiro-chefe U.R. para ir colaborar com a Arguida na sala AU+.
Deslocou-se para tal sala e, aí chegada, viu que existia carro com material clinico (invólucros de cateter, seringas, pinças, anestésicos, entre outros). Foi-lhe transmitido que iam colocar cateter.
Após abrir o involucro do cateter a depoente informou a Arguida que não conhecia tal equipamento, ao que a Arguida lhe disse para não se preocupar.
Uma vez que lhe parecia um cateter definitivo, por ter um tonalizador ao invés de um dilatador, disse à Arguida que aquela sala não era o local indicado, ao que a Arguida respondeu que já a estavam a empurrar para o bloco.
Foram cumpridas as regras de assepsia e deu-se anestesia na zona do torax e quando foi feita a punção o sangue começou a sair, o que, pela forma e quantidade (utilizou a expressão esguicho), a levou a pensar que seria sangue arterial (embora não tivesse a certeza se era arterial ou venoso)
Como reação, tentou tamponar e pedir ajuda (tocou à campainha).
A Arguida ainda disse “deixe correr” e baixinho afirmava que não sabia como fazer aquilo e se questionava sobre se tinha sido ela a o ter feito.
Solicitou à Arguida para parar, mas esta continuava.
A doente passou de um estado de agitação e começou a ficar sem consciência, com a pele fria e a pedir água.
Ficou em hipotensão, com a tensão arterial sistólica abaixo de 100.
Depois deixou de falar.
Já com o enfermeiro-chefe U.R. na sala, e depois de lhe explicada a situação, o mesmo disse para seguir as indicações da Arguida.
Entretanto a Arguida consegui colocar o cateter e suturou a Paciente.
A Paciente fez soro e voluven para repor líquidos.
Foi-lhe colocada mascara de oxigénio.
Já com a Dr.ª P. V. na sala foi decidido efectuar transfusão de sangue à Paciente.
A Arguida decidiu iniciar a diálise, e a depoente ainda questionou se tal era adequado atento o estado da Paciente, mas a Arguida, em concordância com Dr.ª P. V. e U. R. decidiram iniciar a diálise.
Após decidiram retirar 1000 ml de liquido (ultrafiltração), tendo a depoente mostrado a discordância, mas a Arguida (e a Dr.º P. V. e U. R.) decidiram manter o procedimento.
Após a depoente foi almoçar e quando chegou reparou que além dos 1000 ml, ainda tinha retirado algo mais (talvez 200).
A Paciente manteve-se instável durante todo este procedimento.
Tendo em conta este cenário, decidiu anotar no registo da diálise todos os outros parâmetros que a máquina não regista (fls. 543-544 dos autos principais e 21-22 do Anexo I).
Confrontada com tal documento, refere que no mesmo está refletida a instabilidade da Paciente e a hipotensão e hipovolémia da Paciente.
Após finalizar o tratamento de diálise, e quando se procedia à mobilização da Paciente para noutra cama, foi detetado que não tinha sinais vitais.
Foi chamado U. R. e Dr.ª P. V., tendo sido declarado o óbito da Paciente.
P. V., médica e diretora do serviço de medicina no Hospital de Bragança em 2013 (atualmente reformada), recorda-se que foi chamada pelo enfermeiro-chefe U.R. para intervir em desacordo entre a Arguida e a enfermeira (afirma ter sido a primeira vez que tal ocorreu).
A Arguida estava na sala AU+, com a enfermeira e a Paciente e o cateter, pensa que provisório, já estava colocado na subclávia direita.
Via-se na sala que tinha havido perda de sangue, mas desconhece quantidades.
Aliás, afirma que é normal haver perda de sangue e, inclusivamente, a zona do cateter ficar a babar.
Como pareceu que a Paciente gemia, foi-lhe administrado paracetamol, e como tinha perdido sangue foi administrado plasma e sangue (pensa que a pedido da Arguida).
Pensa ter sido chamada pelas 11:30-12:00 horas, no final da colocação do cateter e após a Paciente começou a fazer diálise. Julga que os sinais vitais estavam normais.
Mais tarde foi novamente chamada e a Paciente não tinha sinais vitais.
Passou o certificado de óbito e colocou como causa de morte a insuficiência renal, por na altura lhe parecer o mais correto.
Todavia, se fosse hoje poria causa indeterminada para permitir autopsia da Paciente.
M. M., enfermeira a prestar serviço no serviço de hemodiálise em Bragança desde 2007, recorda-se que neste dia iniciou os procedimentos para efetuar diálise à Paciente, mas o cateter não funcionava.
A Arguida chegou a pedir para trocar de máquina, mas não havia disponíveis na sala B e levaram a mesma para a sala AU+, tendo ido a enfermeira M. N..
Continuou na sala B, mas a meio da manhã ainda ouviu gritos da M. N. a pedir para parar e viu colegas a ajudar na sala AU+.
P. P., enfermeira a prestar serviço no serviço de hemodiálise em Bragança (entre 2005 e 2015), estava de serviço nesse dia e foi-lhe solicitada ajuda para levar material à Paciente na sala AU+, já a mesma estava instável (mascara de alto débito, voluven e sangue).
Ouviu a M. N. pedir à Arguida para parar o procedimento, pelo menos duas vezes.
Observou que a sala tinha bastante sangue, tendo-lhe chamado a atenção na parede. Embora conceda que perda de sangue ocorre nestes procedimentos, afirma nunca ter visto tanto.
C. L., assistente operacional a exercer funções no Hospital de Bragança, entrou ao serviço no dia em causa e foi-lhe solicitado que fosse à sala AU+ e observou a Paciente no cadeirão, lençol com sangue no chão e dois lençóis com sangue no chão (e a sua colega Sónia disse-lhe que já tinha limpo antes, inclusivamente as paredes).
Foram lidas as declarações prestadas em inquérito, verificando-se existir contradição quanto ao número de lençóis.
Posto isto.
O vertido em 37. resulta do documento de 23 do Anexo I, sendo confirmado pelas testemunhas M. M., M. N. e U. R., que se referiram ao assunto e mencionaram o descrito em 38. e 39..
Quanto ao descrito de 40. a 51., tal resultou, sobretudo, do depoimento de M. N., a enfermeira que assistiu a Arguida no procedimento realizado a 24-01-2013, e que os relatou de forma esclarecedora.
Não se descura, tal como acima se mencionou, que as relações entre os enfermeiros (designadamente a enfermeira M. N.) e a Arguida não eram boas, mas o depoimento foi prestado de forma segura e credível, sendo apoiado pelos restantes depoimentos (na parte onde as respetivas testemunhas presenciaram) e, sobretudo, pelos registos clínicos juntos aos autos e já mencionados.
Especificando, a factualidade relativa à intervenção ocorrida na sala AU+ foi corroborada por M. M. e U. R.. As enfermeiras A. C., P. P. e M. M. confirmaram ter ouvido a testemunha a pedir à Arguida para parar a intervenção. E todas as testemunhas que entraram na sala confirmaram a existência de sangue, para além do que seria normal em intervenção deste caracter.
Do mesmo modo o descrito em 52. a 57., resultou dos depoimentos conjugados da enfermeira M. N. e enfermeiro-chefe U.R., bem como de P. V., em termos, globalmente, coincidentes e que não mereceram qualquer dúvida.
Além do mais, e no tocante à administração de fluidos teve-se em consideração os documentos clínicos de fls. 21-22 e 315 do Anexo I.
Quanto a mencionado a 58., a enfermeira M. N. voltou a frisar que se opôs, não só ao procedimento de colocação/manipulação do cateter, como à realização da diálise (o que foi, de forma genérica confirmado pelo enfermeiro-chefe U.R. e a Dr.ª P. V.).
O vertido em 59. a 62. resulta da ponderação dos depoimentos da enfermeira M. N. e os registos clínicos de fls. 21-22 do anexo I.
Além da credibilidade que atrás já se atribuiu ao depoimento da referida enfermeira, os registos clínicos mencionados são concludentes e assertivos na consideração de que a realidade do sucedido em 24-01-2013 corresponde ao descrito na factualidade provada.
A duração da diálise, os líquidos recebidos pela Paciente, os sinais vitais, e todos os procedimentos seguidos estão comprovados pelos documentos, os quais, recorde-se, em nenhum momento foram colocados em causa por qualquer das pessoas ouvidas ou por qualquer outra prova junta aos autos e/ou produzida em audiência de julgamento.
Acresce que o enfermeiro-chefe U.R. e a Dr.ª P. V., embora relatem que os sinais vitais da Paciente eram estáveis, assumem que estavam a ser administrados vários líquidos à Paciente para a estabilizar, desde logo ao nível da hipovolémia (diminuição do volume sanguíneo).
Diga-se, ainda, que foram prestados esclarecimentos pelo Perito R. A. que elaborou o parecer médico legal de fls. 317 a 333, o qual confirmou e explicitou as respetivas conclusões.
Relativamente ao estado de instabilidade da Paciente, é referido no parecer médico legal (fls. 320 dos autos principais) que a Paciente apresentava um quadro de hipovolémia e taquicardia (ritmo cardíaco acelerado), bem como é descrito (a fls. 321) que a Paciente apresentava quadro de hipotensão (tensão arterial baixa).
A ultima administração de fluidos, plasma, está registada como se tendo iniciado pelas 13:30 horas, sendo que pelas 14:56 a Paciente apresentava TA de 82/51 mmHg e um pulso de 203/min, isto é, novamente taquicardia e hipotensão (ponto 63.).
A Paciente veio a falecer, sendo o óbito registado pelas 16:00 horas e sido dispensada a autópsia, conforme consta dos documentos de fls. 8 (ponto 64. e 65.).
A factologia vertida em 67. a 77., resulta da conjugação de toda a factualidade atrás exposta, bem como do conjunto dos depoimentos prestados em sede de audiência e dos documentos dos autos.
Especial referência para o parecer médico-legal, e respetivos esclarecimentos prestados em audiência pelo Perito, nos termos do qual existe uma relação próxima entre o procedimento e o quadro clinico (instável) da Paciente, bem como da necessidade/conveniência de face ao mesmo, e à intolerância da Paciente ao tratamento, de não se prosseguir com a diálise, mas antes estabilizar hemodinamicamente a Paciente.
Ao não o ter feito, violou as regras próprias da profissão de médico.
Foi referido por várias testemunhas, mas com maior acuidade pelo Perito, que a colocação de um cateter para hemodiálise é uma manobra invasiva, que não é isenta de complicações, mas tal obriga à observação criteriosa das leges artis e do estado dos pacientes, de forma a permitir realizar tal intervenção com segurança e, em caso de necessidade, parar o mesmo.
Mesmo tendo em consideração o relatório de peritagem solicitado pela Inspeção Geral das Atividades Económicas, de fls. 508 a 510, nele refere-se que a evolução do estado da Paciente pressuponha uma perda significativa de sangue, “o que aconselharia uma abordagem mais prudente com interrupção da diálise para melhor avaliar e corrigir a origem da hemorragia”.
No parecer de fls. 323 salienta-se que a não suspensão da manobra (diálise) colocou-se em risco de vida a Paciente, sendo que tal suspensão poderia permitir a estabilização da mesma e o esclarecimento das suas causas e, assim, eventualmente evitar-se o desfecho fatal.
De resto, dos depoimentos prestados, resulta que a Arguida conhecia as regras da profissão, designadamente as referentes à especialidade de nefrologia, exercendo tal profissão há vários anos, e mesmo assim praticou os factos atrás descritos, ciente que estava a criar um risco para a vida da Paciente.
De resto, foi ouvido R. M., médico no Hospital de Bragança, que depôs sobre o comportamento profissional da Arguida, afirmando que a mesma é pessoa exigente com ela e leva o esclarecimento das patologias ao extremo, investigando sempre, sendo pessoa que tem opinião inamovível, o que explicará que a Arguida tenha mantido o procedimento, alheia aos sinais que sugeriam “parar tudo” e avaliar a situação, conforme, de forma perentória, afirmou R. A. em sede de esclarecimentos prestados em audiência.

Por outro lado, no relatório de fls. 510 refere-se que não tendo sido feita autópsia, desconhece-se se, além da hemorragia externa, existiria hemorragia interna, não excluindo como causa de morte alguma assistolia pós arrítmica.
Complementarmente, a fls. 333, esclarece-se que parece existir relação causal muito provável entre as manobras invasivas vasculares e a ocorrência da morte da doente.
No entanto, em nenhum destes relatórios (e tendo em conta que inexiste autópsia) é indicada a concreta causa da morte, apenas admitindo que possa ter sido em resultado de tais manobras. Na verdade, admitem outras causas como possíveis.
Desse modo, e versando agora em concreto o ponto 74., apesar de se considerar sedimentado que os procedimentos levados a cabo pela Arguida provocaram a referida instabilidade e problemas clínicos, bem como a necessidade de suspensão de tal procedimento segundo as leges artis, não tendo sido realizada autópsia, afirma-se nos relatórios acima mencionados que a causa da morte poderá ter sido outra.
Todavia, julgamos cabalmente demonstrado que a conduta omitida pela Arguida, isto é a suspensão/paragem do procedimento e a completa avaliação do estado de saúde da Paciente, evitaria o resultado morte ou, no mínimo, diminuía a probabilidade de tal suceder.
Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15-04-2015 (2), “o nexo causal, na omissão, ocorre quando a conduta omitida podia, com toda a probabilidade, evitar o evento. O artigo 10.º n.º 2 do Código Penal refere que “a comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente obrigue a evitar esse resultado”, ou seja, quando houver uma omissão da ação adequada a evitar o evento. Exige a lei (como se vê) que exista uma adequação entre a ação omitida e o evento. Para delimitar o conceito de “adequação da conduta omitida”, a doutrina recorre à denominada “conexão do risco”, isto é, “a ação esperada ou devida deve ser uma tal que teria diminuído o risco de verificação do resultado típico.” – FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, I, pág. 930”.
Continua o mesmo Aresto afirmando que “haverá conexão de risco quando a ação omitida não tenha diminuído o risco de produção do resultado, a menos que se comprove (posteriormente ao evento) que a ação omitida em nada teria servido para evitar o evento. Admite-se portanto a demonstração de que um comportamento alternativo lícito em nada teria servido para evitar o resultado”.
Deste modo, ao não ter parado o procedimento para avaliar o estado da Paciente e perceber (eventualmente através de exames complementares) os motivos desse estado, a Arguida (além de violar as leges artis) não diminuiu o risco de morte da Paciente, pelo contrário contribuiu decisivamente para tal desfecho.
Relativamente às condições pessoais, além das declarações da própria, resultou do depoimento de R. M..
Os antecedentes criminais constam do certificado junto aos autos.

Quando à factualidade não provada, ficou-se a dever ao facto de nenhuma prova idónea e sustentada ter sido produzida.
*
III – O Direito:

A) Enquadramento jurídico-penal

Vêm a Arguida acusada da prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelo artigo 137.º n.º 1 e 2 do Código Penal.
Determina esta norma que “quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
“Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos”.
O tipo legal de crime supra referido constitui uma especialização do crime de homicídio doloso simples, tipo legal fundamental ou matricial dos crimes contra a vida, previsto no artigo 131.º do Código Penal. O bem jurídico protegido com esta norma é a vida humana, o bem jurídico mais importante e significativo do nosso ordenamento jurídico.
O seu elemento típico imprescindível é, assim, a lesão da vida de outrem, sendo indispensável, para a sua verificação, que o agente cause, por negligência, a morte de outrem.
Nas palavras de Figueiredo Dias, tal incriminação justifica-se, “de um duplo ponto de vista: do ponto de vista da dignidade penal, uma vez que está em causa a tutela de um dos bens jurídicos – a vida humana – mais importantes e significativos do catálogo, seja qual for a perspetiva que se assuma; e do ponto de vista da carência de pena, por isso que o homicídio por negligência (…) se tornou num fenómeno maciço, dadas as inúmeras fontes de perigo para a vida inerentes à “sociedade do risco” contemporânea” (3).
Um dos domínios onde este dispositivo assume, atualmente, relevância exponencial é, precisamente, a das intervenções/tratamentos médico-cirúrgicos, entre outros, designadamente os acidentes de trabalho e os acidentes de viação.

No caso dos autos, está em apreço um tratamento médico, em contexto de internamento hospitalar, que culminou com a morte de uma Paciente. Este sector de atividade implica a prática de atos que, muitas vezes sendo necessários, são potencialmente perigosos.
Nos termos do artigo 150.º n.º 1 do Código Penal, a intervenção e o tratamento médico-cirúrgicos, medicamente indicados, realizados por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com fins terapêuticos e com observância das leges artis são atípicos, relativamente ao crime de ofensa à integridade física. Mais, verificados este quatro elementos – qualidade do agente, intenção terapêutica, indicação médica e execução com observância das leges artis – as intervenções e os tratamentos são atípicos, mesmo que agravem as lesões ou a doença e no limite, mesmo que provoquem a morte do doente.
Nesse conspecto, existem toda uma série de procedimentos e regras de segurança, exigindo que os profissionais da saúde atuem sempre com precaução e no absoluto respeito das mesmas. Se os mesmos, na sua conduta profissional, descurarem este dever geral de cuidado e daí resultar a morte de outra pessoa, está configurado o tipo legal previsto no artigo 137.º do Código Penal, ou seja um homicídio negligente (sendo, desse modo, a sua conduta típica).
Nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque (4), “os deveres de cuidado são concretizados pelas normas jurídicas (legais, regulamentares, estatutárias ou costumeiras) respeitantes à atividade em causa, bem como pelas normas não jurídicas (prudenciais, usuais)”.
O crime de homicídio negligente apresenta-se como um crime material ou de resultado, dependendo a responsabilidade do agente e a sua punibilidade da efetiva morte de outrem como consequência da conduta negligente. O elemento “morte de outra pessoa” assume, assim, um papel de relevo na caracterização da conduta ilícita, uma vez que “a referência expressa, no tipo legal de crime, ao bem jurídico a proteger tem como consequência uma redução do grau de concretização da conduta típica que, no crime em análise, não é descrita em toda a sua dimensão, sendo apenas caracterizada pelo seu efeito (…). A «morte de outra pessoa» surge, desta forma, com um papel identificador da conduta típica” (5).
Da factualidade dada como provada nos autos, resulta faleceu A. T..
Encontra-se assim preenchido um elemento essencial à subsunção do crime em análise: a morte de outrem.

Estabelece o artigo 13.º do Código Penal que “só é punível o facto praticado com dolo, ou nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”. Daqui resulta que, no âmbito criminal, a punição da negligência assume um cariz excecional, por força da consagração do princípio nulla poena sine culpa, ou seja, “toda a pena tem que ter como suporte axiológico – normativo uma culpa concreta” (6).
Do exposto se retira que, para que a conduta do agente integre a prática de um crime e este possa ser jurídico-penalmente responsabilizado pela mesma, é necessário, para além da realização de um tipo-de-ilícito (facto humano lesivo de bens juridicamente protegidos e correspondente ao tipo legal), que o comportamento do agente preencha um tipo-de-culpa (que lhe possa ser pessoalmente censurado).
Ora, a lei penal prevê e pune, expressamente, o homicídio negligente, pelo que, importa aferir se, face ao factualismo apurado, a conduta da Arguida é suscetível de integrar um crime negligente.
Nos termos do artigo 15.º do Código Penal, “age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”.
Nestes termos, a lei, formulando um juízo de dois graus, define a negligência consciente e delimita o âmbito da negligência inconsciente.
Quanto à primeira, a qual está próxima do dolo eventual, o agente, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, admite, prevê como possível a realização do resultado típico, mas confia, podendo e devendo não confiar, que o mesmo se não realiza. Não se conforma, porém, com a realização desse resultado, pois, conformando-se haveria dolo eventual. A “conformação” do agente com o resultado opera, assim, a distinção entre o dolo eventual e a negligência consciente.
Por outro lado haverá negligência inconsciente sempre que o agente por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz não previu, como podia e devia ter previsto, a realização do facto.
Em suma, na negligência consciente o agente não valora corretamente o perigo, ao passo que na negligência inconsciente o agente não reconhece o perigo.
Do exposto resulta que, em qualquer uma das modalidades em que a negligência se pode apresentar, exige-se a capacidade do agente para proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz. Assim o dever cuja violação a negligência pressupõe consiste em o agente não ter usado aquela diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento.
Importa ainda salientar que, ao contrário do que é geralmente aceite, a negligência consciente não assume, necessariamente, um grau de gravidade superior ao da negligência inconsciente, uma vez que a gravidade e perigosidade daquele que não representa o resultado da sua conduta poderão ser superiores à daquele que o representa, mas confia que o mesmo não se verificará (7).

Face ao exposto, concluímos que o que se pune na negligência não é a vontade do resultado que, por definição, é inexistente, mas sim, o facto de o agente não ter querido, em face do conhecimento de que certos resultados são puníveis, preparar-se para, perante certa conduta perigosa, os representar devidamente (negligência consciente) ou para os representar de todo (negligência inconsciente).
Enquanto elemento de um tipo legal, a negligência é, simultaneamente, elemento do tipo-de-ilícito e do tipo-de-culpa (8).
No que concerne ao tipo-de-ilícito, o que caracteriza os crimes negligentes é o facto de a conduta do agente violar um dever objetivo de cuidado que consiste “em o agente não ter usado aquela diligência, exigida segundo as circunstâncias concretas, para evitar o evento” (9).
A violação de normas de cuidado tem particular acutilância no caso de domínios altamente especializados da vida moderna, que importam riscos para a vida de outras pessoas. É o que sucede, nomeadamente, no âmbito de várias atividades humanas, as quais, embora autorizadas, devem ser rodeadas das devidas cautelas e cuidados, por forma a acautelar a realização de resultados típicos antijurídicos.
Nos crimes negligentes de mera atividade (vide, a titulo de exemplo o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal), o tipo de ilícito esgota-se na realização da conduta típica descrita na norma e na não observância do necessário cuidado. Assim, o agente deve omitir ações perigosas, ou, quando tais ações tenham sido social e legalmente autorizadas, por força das necessidades e virtualidades próprias da vida moderna, atuar com P. V., de modo a reduzir ao mínimo o perigo inerente às mesmas.
Porém, nos crimes materiais ou de resultado – como sucede no caso do tipo legal preenchido pelo homicídio negligente – este dever objetivo de cuidado envolve, desde logo, o dever de perceção do perigo, que consiste na avaliação do perigo de modo a evitar a produção do resultado (dever de cuidado interno, na terminologia de Jeschek (10)) e, ainda, o dever de adotar a conduta apta a evitar o resultado (dever de cuidado externo, também na terminologia daquele autor), ou seja, a violação do dever objetivo de cuidado e a previsibilidade objectiva da realização típica.
É assim fundamental que o dever que o agente violou vise obstar à produção do resultado, sendo adequado a evitá-lo, que a produção desse resultado seja previsível e que só o facto de se ter omitido aquele dever tenha impedido a sua previsão ou a sua justa previsão.
Por outro lado, no que respeita ao tipo-de-culpa, o que caracteriza os crimes negligentes é o facto de o juízo de censura pessoal indispensável a toda a responsabilização jurídico-penal (princípio da culpa), se fundar numa atitude leviana ou descuidada do agente.
Importa, assim, aferir se o agente estava em condições de satisfazer as exigências objetivas de cuidado e de prever o resultado (previsibilidade subjetiva do resultado e da conduta negligente).
Neste contexto, a averiguação da violação do dever objetivo de cuidado determina-se por critérios objetivos, que se materializam nas exigências impostas a um homem medianamente prudente colocado na situação concreta do agente (pensemos num homem médio do circulo social ou profissional do agente). Impõe-se um exercício interpretativo no qual se procura aferir se, em concreto, aquele indivíduo, sopesados tais condicionantes, poderia ter atuado de outro modo (11).
Com isto se relaciona o problema da exigibilidade do comportamento lícito, que significa que a conduta não será criminosa quando a adoção de uma outra (cuidadosa) não for de esperar duma pessoa na posição do agente.
Assim considera Maria Fernanda Palma, para além do não cumprimento dos deveres de cuidados, “a ação penalmente relevante exige, pelo menos, uma possibilidade efetiva de substituir o comportamento automático por um comportamento conscientemente dirigido, imediatamente antes ou durante a atuação do agente” (12).
Assim sendo, para responsabilizar o agente pelo ilícito típico, não basta que este se verifique, sendo necessário que o mesmo possa imputar-se objetivamente à conduta e subjetivamente ao agente.
Objetivamente imputáveis são unicamente as consequências do facto que dependem de um processo causal tipicamente adequado, como resulta do artigo 10.º do Código Penal, que consagra, entre nós, a teoria da adequação ou da causalidade adequada. Tal teoria recorre a um critério limitador da causalidade adequada - a previsibilidade objetiva do resultado, correspondendo ao pensamento de que “a imputação penal não pode nunca ir além da capacidade geral do homem de dirigir e dominar os processos causais”, não sendo relevantes todas as condições (como defendido pelos adeptos da teoria da causalidade, das condições equivalentes ou da conditio sine qua non), mas “apenas aquelas que, segundo as máximas da experiencia e a normalidade do acontecer – e portanto segundo o que é em geral previsível – são idóneas para produzir o resultado
Assim, de acordo com a teoria da causalidade adequada devem ser imputados à ação aqueles resultados que, de entre os resultados naturalisticamente causados pela ação, sejam considerados imputáveis de acordo com as leis da experiência e o bom senso gerais, efetuando-se, para tanto, um juízo de prognose póstuma.
É também necessário que a norma que impõe o dever de cuidado o faça precisamente para evitar esse tipo de resultado, ou seja, a morte. Assim, o resultado produzido terá de se encontrar no âmbito de proteção da norma de cuidado violada.
Em numerosos sectores, o dever objetivo de cuidado afere-se com base em regras de conduta (como as normas de trânsito e regulamentos de construção civil) ou em regras de experiência (pense-se nas leges artis).
O dever de cuidado é imposto a todos os cidadãos, cabendo, assim, a todos, o dever de evitar a lesão de terceiros. No entanto, vivendo nós numa sociedade em que determinadas atividades perigosas são consideradas imprescindíveis (que será o caso, por exemplo, das intervenções médico-cirúrgicas) o direito aceita estas atividades, atenta a sua utilidade e necessidade. Não são, assim, objetivamente imputáveis ao agente, as condutas levadas a cabo no âmbito do risco permitido e que não aumentam o risco da produção do resultado.
Salientamos ainda a existência do princípio da confiança, que significa que o agente deve poder contar com que os outros não cometerão factos ilícitos culposos, podendo adequar a sua conduta a tal expectativa. Por fim, cumpre ainda esclarecer que se um sujeito se propõe iniciar uma atividade para a qual não possui os necessários conhecimentos, sobre o mesmo impende o dever de informação e preparação prévia, sob pena de daí derivar uma falta de cuidado, que o direito denomina de culpa na assunção ou culpa por excesso.
Existem, no entanto, autores para quem a existência de uma relação de causalidade entre a ação negligente e a produção é insuficiente, exigindo também a existência de um nexo especifico, ou seja, que “o resultado seja uma concretização ou realização do risco inerente àquela conduta ilícita” que será demonstrado se se provar o resultado poderia ter sido evitado com a adoção pelo agente do “comportamento licito alternativo” e que “a norma de cuidado infringida tinha como objetivo evitar a produção do resultado proibido em concreto verificado” (13).
Importa, agora, subsumir as considerações teóricas enunciadas à factualidade concretamente apurada no caso concreto.
Resulta provado nos presentes autos que no dia 24 de Janeiro de 2013, por volta das 8:30 horas, a Paciente apresentava-se estável do ponto de vista hemodinâmico com tensão arterial de 165/70. Foi conectada ao monitor na sala de hemodiálise (Sala B), mas a sessão não se iniciou por falha de débito.
Após, a Arguida mandou retirar a Paciente da máquina, com o intuito de reposicionar/colocar novo cateter. Para tanto, a paciente foi mudada para a denominada sala AU+

. A arguida decidiu iniciar o procedimento, tendo sido aplicado à paciente prévia anestesia local.
Quando a arguida tentava canalizar a veia, saiu sangue em esguicho da paciente.
A enfermeira M. N. alertou a arguida que lhe parecia sangue arterial e pediu a esta para parar, tendo a arguida a mandado calar e prosseguido com o procedimento, pegando no cateter e dizendo em voz baixa «não sei como é que isto se coloca».
Entretanto, como o sangue não parava de jorrar, e a paciente que estivera até então consciente e orientada, dava já sinais de hipotensão e taquicardia, a enfermeira M. N. pediu novamente à Arguida que parasse, o que a Arguida ignorou.
A Arguida pegou então numa peça (de características concretamente não apuradas) e tentou adaptar a mesma à extremidade do cateter, perfurando o local onde o sangue estava a sair.

De imediato aumentou o sangramento da paciente, espalhando sangue por todo o lado.
A enfermeira procurou tamponar o local da punção, enquanto a Arguida se questionava a si própria se tinha sido ela quem fez aquilo.
Nesse momento, vendo a desorientação da arguida, a enfermeira apelou-lhe que parasse e tocou a campainha para que outros viessem em auxílio.
Chegou primeiro a enfermeira P. P., a quem a enfermeira M. N. pediu para chamar o Enfermeiro-Chefe para que este pusesse termo àquele procedimento, uma vez que a paciente tinha perdido muito sangue e apresentava sinais de hipovolémia, estava desidratada, apresentava sudorese intensa, taquicardia, hipotensão e perda de consciência com leves gemidos.
A arguida disse que ia introduzir um segundo cateter, tendo a enfermeira pedido novamente para que parasse.
A arguida colocou o segundo cateter que se revelou permeável e começou então a suturar os locais sangrantes, enquanto a enfermeira efetuava o tamponamento nos restantes locais.
Entretanto, foi determinado que a Paciente fosse infundida com fluídos (soro e volutem), tendo a enfermeira P. P. trazido os mesmos, sendo os estes administrados à Paciente. Já com a presença da Dr.ª P. V., foi determinado que fosse administrado à paciente uma máscara de alto débito e duas unidades de sangue e duas de plasma.
A enfermeira M. N. voltou a questionar o enfermeiro-chefe quanto à realização da diálise, tendo este lhe respondido que a médica é que decidia.
A Arguida ordenou que se realizasse 3 horas de tratamento de diálise, com uma ultrafiltração de 1000 ml e sódio a 150, ficando a enfermeira M. N. a tomar conta da doente.
A paciente efetuou diálise na Sala AU+ entre as 12:07 horas e as 15:09 horas.
Inicialmente, pelas 12:07 horas apresentou uma TA (tensão arterial) de 100/50 mmHg e pulso de 56/min; pouco depois, às 12:18 a paciente apresentou uma TA de 84/40 mmHg com pulso de 173/min; verificou-se uma melhoria temporária e progressiva de TA após a infusão de fluídos e administração de duas unidades de sangue e duas de plasma; pelas 12:40 horas, a paciente apresentou uma TA de 144/106 mmHg com pulso de 123/min; pelas 14:56 horas, último registo, a paciente apresentou uma TA de 82/51 mmHg e um pulso de 203/min.
A paciente, durante a diálise apresentava instabilidade hemodinâmica, com hipovolémia, hipotensão e taquicardia.
Desde que se terminou a administração de fluidos, o estado da doente agravou-se, tendo ficado sem pulso e sem respirar e, nesse seguimento, foi confirmado o óbito.

Como teria atuado uma médica prudente e cautelosa, com respeito pelas leges artis, nestas circunstâncias?

É nosso entendimento que a atitude conforme as leges artis, quando colocados na concreta situação da Arguida, poderia e deveria ter adotado uma postura mais prudente e adequada, desde logo não iniciando o procedimento de diálise e, tendo-o feito, parando o mesmo mediante os sinais vitais da Paciente.
Perante o quadro hipovolémico grave, associado a uma manobra evasiva grave, impunha-se, segundo as regras médicas, parar com tal procedimento e restaurar, antes de mais, as condições hemodinâmicas da paciente.
Na verdade, a situação clínica da Paciente começou a complicar-se no momento em que a Arguida decidiu iniciar o procedimento de colocação de um cateter e tentou canalizar a veia, e em que saiu sangue em esguicho da paciente, situação essa que se foi agravando no seguimento das demais decisões e procedimentos adotados e determinados pela Arguida e que culminou com os referidos registos clínicos já na realização da diálise,

evidenciando-se a perda de sangue, o pulso elevado e a tensão muito baixa, que só poderia ter como consequência o desfecho fatal, como infelizmente sucedeu.
Tal impunha a cessação imediata da manobra, como referido anteriormente.
A diálise não deveria ter sido prosseguida, tendo a mesma sido realizada contra as regras da profissão médica que ordenavam que, ao invés do decidido pela Arguida, se procedesse antes à estabilização hemodinâmica da paciente, a realização de exames imagiológicos para determinar a causa da instabilidade hemodinâmica evidente e, se necessário, correcção cirúrgica.
Ao prosseguir com a diálise, o que fez contra as regras da profissão, uma vez que mantendo-se o quadro clínico de hipovolémia, hipotensão e taquicardia e não se procedendo à estabilização hemodinâmica da paciente, tal poderia ter como consequência a sua morte.
Pelo que, segundo as regras médicas, em face do descrito, não deveria a Arguida realizar a referida manobra – diálise - e, iniciada, deveria proceder à sua suspensão imediata.
Assim, dos factos dados como provados, resulta que a Arguida criou um risco juridicamente proibido violando elementares regras relativas à intervenção médico-cirúrgica, as quais eram do seu conhecimento e resultantes, desde logo, de um cuidado exigível a uma médica.
As regras de cuidado em causa visam precisamente assegurar a vida e integridade física de todos os utentes dos cuidados de saúde, de forma a mitigar a perigosidade das intervenções médico-cirúrgicas, atividade em si própria perigosa, que não obstante se apresentar como essencial para o normal desenrolar da vida comunitária nos nossos dias, acarreta inúmeros riscos, se desenrola de forma a reduzir a esfera de tais riscos, protegendo a vida e integridade física alheias.
Como ficou dito supra é irrelevante que outras omissões ou atos tenham concorrido para o resultado, pois basta que a omissão ou comissão praticada seja uma das condições de resultado, não sendo necessário que ela seja a primeira ou a última condição da sua verificação.
A Arguida não se conformou que da sua conduta poderia resultar a morte de outrem, no entanto, o resultado em causa era previsível, aliás durante o procedimento foi por várias vezes alertada para tal.
Em suma, a Arguida podia e devia ter atuado de outro modo, nomeadamente, não iniciando a diálise e, mesmo após a iniciar, parando tal atividade e realizado os exames necessários para apurar do estado de saúde da Paciente e, desse modo, adotar todas as medidas necessárias a evitar o resultado morte.
Criou assim um risco proibido, pelo que o resultado morte lhe é imputável.
De facto, de acordo com a formulação negativa da causalidade adequada, adotada pela doutrina nacional mais representativa (14), a condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre inteiramente inadequada ou indiferente para o resultado danoso, o qual só se teria produzido por circunstâncias anómalas ou excecionais (não conhecidas do agente).

Mas será que a conduta da Arguida integra uma negligência grosseira?

No seguimento do ensinado por Figueiredo Dias (15), a negligência grosseira constitui um grau essencialmente aumentado ou expandido de negligencia. Tal conceito implica uma especial intensificação da negligencia não só ao nível da culpa, mas também ao nível do tipo de ilícito. A este ultimo nível torna-se indispensável que se esteja perante uma ação particularmente perigosa e de um resultado de verificação altamente provável a luz da conduta adotada.
Há negligência grosseira nos casos de grave violação do dever de cuidado, de atenção e de P. V., de grave omissão das cautelar necessárias para evitar a realização do facto antijurídico. A temeridade e a leviandade, quando ligadas a ações especialmente perigosas, embora permitidas por lei, são reveladoras de negligência grosseira, particularmente censurável em virtude de o agente ter o dever especial de representar que de tais ações poderia resultar a morte de alguém (16).
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-05-1993 (17) defende que a negligência grosseira a que alude o artigo 137.º n.º 2 do Código Penal é uma negligência qualificada que consiste num comportamento de clara irreflexão ou ligeireza, ou na falta de precauções exigidas pela mais elementar P. V. ou das cautelas aconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos atos correntes da vida. Consiste no esquecimento das precauções exigidas pela mais vulgar P. V., ou na omissão das precauções ou cautelas mais elementares.
Perante o grau particularmente aumentado de negligência, evidenciado acima, é nosso entendimento de que a factualidade provada deverá ser enquadrada na previsão do artigo 137.º nº 1 e 2 do Código Penal.
Com efeito, estamos perante um comportamento que ultrapassou claramente a simples falta de cuidado, que segundo as circunstâncias estava obrigada, evidenciando uma conduta insensata, irrefletida e esquecendo elementares precauções exigidas pela P. V. de quem realiza este tipo de procedimentos clínicos, não obstante todos os sinais existentes e, além do mais, ter sido advertida para tal.
Conexionado com o acima descrito está o crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, previsto no artigo 150.º n.º 2 do Código Penal.
São elementos constitutivos do tipo deste crime, que tutela a vida e a integridade física, (i) a realização de intervenção ou tratamento por médico ou outra pessoa legalmente autorizada, com propósito curativo, e com violação das leges artis; (ii) a criação de perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde, em consequência da inobservância das leges artis; e, ao nível subjetivo, o dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto (que deverá abranger todos os elementos do tipo objetivo).
Já vimos anteriormente, que a Arguida, médica nefrologista, na execução de um tratamento clinico que supervisionava praticou na pessoa da Paciente atos médicos, diálise, sendo que perante o quadro clinico da mesma, de grande instabilidade hemodinâmica, impunha-se, segundo as regras médicas, parar com tal procedimento e restaurar, antes de mais, as condições hemodinâmicas da paciente, o que não ocorreu. Ou seja, a Arguida persistiu no tratamento.
Vale isto dizer que a Arguida na execução do tratamento que praticou, violou as leges artis da medicina, não reduzindo o perigo de morte da Paciente.
Também se mostra incontornável que a Arguida, enquanto médica, sabia que perante o quadro clínico e sintomas apresentados pela Paciente, deveria proceder à estabilização hemodinâmica da paciente e que, ao não fazê-lo e prosseguindo com a realização pela Paciente de hemodiálise e ao não interromper a mesma, atuava de forma contrária às regras da sua profissão, o que quis.
Verifica-se, assim, a conduta dolosa quanto à violação das leges artis.
Todavia, verifica-se uma situação de concurso legal ou aparente, em que as leis penais concorrem só na aparência e em que a aplicação de uma norma punitiva que prevalece, exclui a das demais, neste caso a referente à intervenção médico-cirúrgica.
Não se verificam quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Pelo exposto, cometeu a Arguida o crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º n.º 2 do Código Penal, de que vinha acusada.

3- Apreciação do recurso

3.1- A questão essencial a decidir no presente recurso, como dissemos supra, consiste em saber se está demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta da arguida descrita nos factos provados da sentença recorrida e a morte da falecida A. T..
A demonstração do nexo de causalidade entre um comportamento humano e um dado resultado apresenta-se, na maior parte das vezes, como fenómeno de fácil determinação, designadamente quando o resultado é a morte de uma pessoa.
Porém, seguramente não é o que sucede no caso que agora nos ocupa, uma vez que a morte da A. T., ocorreu em meio hospitalar, na sequência da sua entrada, em 06.01.2013, no Serviço de Urgência da Unidade Hospitalar de Bragança – Unidade Local de saúde do Nordeste, EPE, com queixa de dor no peito. Com efeito, a A. T., foi depois internada no Serviço de Medicina /Mulheres, com o diagnóstico de insuficiência renal crónica terminal de etiologia indeterminada, tendo sido submetida a tratamento por intermédio de profissionais de saúde com vista à sua cura, mas veio a falecer em 24.01.2013, após tratamento de diálise, sob a direção da médica nefrologista de serviço, ou seja, a aqui arguida.

Em casos como o presente, o conhecimento acerca do cumprimento das leges artis da medicina (18) pelos profissionais de saúde e a determinação da causa da morte requer especiais conhecimentos científicos da medicina. Por isso, nos presentes autos foi realizada uma perícia, subscrita por perito médico, com vista a apurar, designadamente, se a arguida, no exercício da sua atividade profissional médica, incumpriu as leges artis da sua atividade profissional e, em caso afirmativo, se do seu incumprimento resultou a morte da A. T..

Acresce dizer que consta dos autos certidão do assento de óbito relativo à falecida A. T., no qual, a Diretora de Serviço de Medicina, Drª P. V., fez constar que a A. T. faleceu de causa natural na sequência de “Insuficiência Renal Agudizada”, para o que terá contribuído “Hipertensão Arterial”, de que padecia há “anos.”
Em virtude de ter sido feito constar do mencionado assento de óbito que a malograda A. T. havia falecido de causa natural, foi inviabilizada a realização de autópsia médico – legal, conforme, aliás, foi reconhecido pela aludida Drª P. V., na qualidade de testemunha, em audiência de julgamento (cfr. fundamentação da sentença recorrida).
Com efeito, de acordo como o disposto no artigo 18º, nº 1 da Lei n.º 45/2004, de 19.08, que define o Regime Jurídico das Perícias Médico-legais e Forenses, “A autópsia médico-legal tem lugar em situações de morte violenta ou de causa ignorada, salvo se existirem informações clínicas suficientes que associadas aos demais elementos permitam concluir, com segurança, pela inexistência de suspeita de crime, admitindo-se, neste caso, a possibilidade da dispensa de autópsia”.
Assim, podemos afirmar que a autópsia médico-legal tem lugar sempre que haja uma morte violenta (acidente, suicídio, homicídio) ou sempre que haja uma morte de causa indeterminada e que pelas circunstâncias em que ocorre possa levantar suspeita de ter havido a atuação de um agente externo que tenha provocado a morte.
A autópsia clínica tem objetivos diferentes da autópsia médico-legal. Nestes casos, o cadáver tem uma causa de morte natural, há um diagnóstico clinico provável ou certo que carece de um melhor esclarecimento durante a autópsia.
A autópsia anatomo-clínica nunca pode ser realizada em casos de morte violenta ou de suspeita de morte violenta.
De modo diferente do que ocorre na autópsia médico-legal, nas autópsias clínicas é obrigação do médico que tratava o indivíduo que entretanto faleceu, abordar a família ou o seu representante legal e depois de explicar os objetivos da autópsia anatomo-clínica, pedir autorização para a sua realização. Estas autópsias decorrem nos serviços de anatomia patológica dos hospitais.

No caso vertente, a não realização de autópsia médico-legal conduziu a que a perícia efetuada supra referida tenha sido inconclusiva no que concerne à questão de saber se a morte da A. T. ocorreu em consequência, necessária e direta, de a arguida não ter cumprido as leges artis da medicina.
Na verdade, pode ler-se a pág. 323 da perícia “No presente caso existiram sinais que evidenciavam gravidade, pelo que, ao continuar-se com o procedimento, e perante a evidência de manifesta instabilidade hemodinâmica da doente, a manobra devia ter sido suspensa por P. V. e a sessão de diálise não devia ter sido iniciada até á estabilização da doente e esclarecimento da causa. Ao não proceder desta forma, pode-se ter colocado a vida em risco. Em virtude de não ter sido realizada autópsia em tempo útil fica por saber a localização e a dimensão da causa da morte”.
E, no final, concluiu-se, dizendo que “ Dependendo da natureza e gravidade da lesão induzida, a suspensão imediata do procedimento e o controlo hemostático, a estabilização hemodinâmica da doente, a não realização de hemodiálise no momento, e o esclarecimento da causa através de meios imagiológicos, eventualmente implicando correção cirúrgica poderiam, hipoteticamente, ter evitado o desfecho fatal”.
Em sentido idêntico, concluiu-se na perícia efetuada no âmbito do processo disciplinar movido pelo Ministério da Saúde – Inspeção – Geral das Atividades em Saúde, a fls. 510 (vol. 4), quando refere que “Aquela evolução, no entanto, pressupõe uma perda significativa de sangue, o que aconselharia uma abordagem mais prudente com interrupção da diálise para melhor avaliar e corrigir a origem da hemorragia.
Tudo parece ter-se precipitado naquele período. Como não foi feita autópsia ficaremos sem saber se, para além da hemorragia para o exterior, haveria hemorragia intratorácica. De qualquer forma a anemia, embora controlada estava a ser corrigida e compensada.
Perante o quadro de taquicardia que acompanhou o tratamento e perante o aparentemente súbito desfecho da situação em paragem cardíaca irreversível, não será possível excluir assistolia pós arrítmica”.
Em síntese, é seguro afirmar que os Senhores Peritos Médicos concluíram que, em consequência da não realização de autópsia, não é possível excluir outras causas da morte da A. T..
Não obstante o parecer técnico cientifico subjacente às conclusões das sobreditas perícias, na sentença recorrida foi considerado como provado que em consequência direta e necessária da atuação da arguida resultou, como causa adequada, a morte da A. T. (cfr. factos provados números 68, 71, 72 e 74).

Em sede de fundamentação da matéria de facto, na sentença recorrida fundamentou-se aquela tomada de posição, aduzindo-se, nomeadamente, o seguinte:
“A factologia vertida em 67. a 77., resulta da conjugação de toda a factualidade atrás exposta, bem como do conjunto dos depoimentos prestados em sede de audiência e dos documentos dos autos.
Especial referência para o parecer médico-legal, e respetivos esclarecimentos prestados em audiência pelo Perito, nos termos do qual existe uma relação próxima entre o procedimento e o quadro clinico (instável) da Paciente, bem como da necessidade/conveniência de face ao mesmo, e à intolerância da Paciente ao tratamento, de não se prosseguir com a diálise, mas antes estabilizar hemodinamicamente a Paciente.
Ao não o ter feito, violou as regras próprias da profissão de médico.
(…)
“…no relatório de fls. 510 refere-se que não tendo sido feita autópsia, desconhece-se se, além da hemorragia externa, existiria hemorragia interna, não excluindo como causa de morte alguma assistolia pós arrítmica.
Complementarmente, a fls. 333, esclarece-se que parece existir relação causal muito provável entre as manobras invasivas vasculares e a ocorrência da morte da doente.
No entanto, em nenhum destes relatórios (e tendo em conta que inexiste autópsia) é indicada a concreta causa da morte, apenas admitindo que possa ter sido em resultado de tais manobras. Na verdade, admitem outras causas como possíveis.
Desse modo, e versando agora em concreto o ponto 74., apesar de se considerar sedimentado que os procedimentos levados a cabo pela Arguida provocaram a referida instabilidade e problemas clínicos, bem como a necessidade de suspensão de tal procedimento segundo as leges artis, não tendo sido realizada autópsia, afirma-se nos relatórios acima mencionados que a causa da morte poderá ter sido outra.
Todavia, julgamos cabalmente demonstrado que a conduta omitida pela Arguida, isto é a suspensão/paragem do procedimento e a completa avaliação do estado de saúde da Paciente, evitaria o resultado morte ou, no mínimo, diminuía a probabilidade de tal suceder.

Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15-04-2015 (19), “o nexo causal, na omissão, ocorre quando a conduta omitida podia, com toda a probabilidade, evitar o evento. O artigo 10.º n.º 2 do Código Penal refere que “a comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente obrigue a evitar esse resultado”, ou seja, quando houver uma omissão da ação adequada a evitar o evento. Exige a lei (como se vê) que exista uma adequação entre a ação omitida e o evento. Para delimitar o conceito de “adequação da conduta omitida”, a doutrina recorre à denominada “conexão do risco”, isto é, “a ação esperada ou devida deve ser uma tal que teria diminuído o risco de verificação do resultado típico.” – FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, I, pág. 930”.

Continua o mesmo Aresto afirmando que “haverá conexão de risco quando a ação omitida não tenha diminuído o risco de produção do resultado, a menos que se comprove (posteriormente ao evento) que a ação omitida em nada teria servido para evitar o evento. Admite-se portanto a demonstração de que um comportamento alternativo lícito em nada teria servido para evitar o resultado”.
Deste modo, ao não ter parado o procedimento para avaliar o estado da Paciente e perceber (eventualmente através de exames complementares) os motivos desse estado, a Arguida (além de violar as leges artis) não diminuiu o risco de morte da Paciente, pelo contrário contribuiu decisivamente para tal desfecho”.
Ora, não podemos concordar com a fundamentação da sentença recorrida acima transcrita, sendo, a nosso ver, inapropriada a invocação do citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto, pois que o caso dos presentes autos não é comparável com o aí versado. Com efeito, diferentemente do que sucede no caso vertente, a situação abordada neste aresto reporta-se a um caso de erro de diagnóstico médico, mas em que foi efetuada autópsia médico-legal, tendo sido apurada a causa da morte.

No caso vertente, os Senhores Peritos Médicos, por não ter sido realizada autópsia e ser desconhecida a causa da morte, concluíram não ser possível saber se o incumprimento por parte da arguida das leges artis no tratamento da doente foi a causa da morte, porque não podem ser excluídas outras causas.
Por forma diversa, o Senhor Juiz, na sentença, com base nos mesmos elementos considerados pelos Senhores Peritos Médicos, concluiu que “a conduta omitida pela arguida, isto é a suspensão/paragem do procedimento e a completa avaliação do estado de saúde da Paciente, evitaria o resultado morte ou, no mínimo, diminuía a probabilidade de tal suceder”.
Porém, pergunta-se, como é possível o Senhor Juiz concluir do modo referido se é desconhecida, em termos médico-legais, a causa da morte e os Senhores Peritos Médicos - que são quem detêm conhecimentos técnico científicos relativos à medicina – concluíram, pese embora a P. V. aconselhasse a paragem / suspensão do tratamento no sentido de estabilizar a doente, não ser possível estabelecer a relação entre a conduta omitida pela arguida e a morte por, face à ausência de autópsia, não ser de excluir outras causas.
Convém recordar que a perícia é a atividade de perceção ou apreciação dos factos efetuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.
Segundo o artigo 163º do CPP “1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência”.


Com bem refere Germano Marques da Silva (20), a presunção que o artigo 163º, nº1 consagra não é uma verdadeira presunção no sentido de ilação, o que a lei tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido; o que a lei verdadeiramente dispõe é que salvo com fundamento numa crítica material da mesma natureza, isto é, cientifica, técnica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador. Não é necessária uma contraprova, basta a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento de juízo pericial”.
O artigo 163º do CPP, pese embora permitindo uma livre apreciação da factualidade pressuposta pelo perito, determina que o juiz “…só pode divergir do juízo contido no parecer do perito, fundamentando devidamente a divergência (…) se puder fazer uma apreciação também técnica, cientifica ou artística, ou se se tratar de um caso de inequívoco erro”, cfr. Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 467.
“Compreende-se que assim seja. Com efeito, se a lei prevê a intervenção de pessoas dotadas de conhecimentos especiais para a valoração da prova, seria de todo incompreensível que admitisse depois que o pressuposto da prova pericial não tivesse qualquer relevância, mas já é razoável que o juízo técnico, científico ou artístico possa ser apreciado na base de argumentos da mesma natureza”.
Em síntese, como diz Paulo Sousa Mendes (21) “Um juiz pode recusar as conclusões do relatório pericial com argumentos próprios, desde que os discuta no terreno técnico em que se situa o relatório”. “Mas só por um extraordinário acaso poderá suceder que um juiz tenha cabedal de erudição necessário para discutir os argumentos do perito no plano técnico”.
No caso vertente, o Senhor Juiz apreciou livremente a prova, nos termos do disposto no artigo 127º do CPP, o mesmo é dizer, os depoimentos efetuados pelas testemunhas, os registos clínicos, bem assim a prova pericial produzida, tendo concluído nos termos sobreditos, estabelecendo o nexo causal entre o incumprimento das leges artis e o resultado morte.
Todavia, a prova pericial, como vimos, não está sujeita ao princípio da livre apreciação da prova, impondo-se ao juiz uma apreciação vinculada.
Assim, no caso vertente, tendo os Senhores Peritos Médicos concluído que, por não ter sido realizada autópsia, não ser possível excluir outras causas da morte, e não tendo este parecer sido posto em causa pelo Senhor Juiz com fundamento em razões cientificas na área da medicina, não lhe era permitido concluir nos termos em que o fez. Ao assim proceder, incorreu em erro notório na apreciação da prova, o qual resulta do texto da decisão por si só ou de acordo com as regras da experiência comum, razão pela qual a sentença recorrida padece do vício (22) do nº 2 al. c) do artigo 410º do CPP (23).
Em consequência, e porque os autos fornecem todos os elementos necessários, tendo em conta, nomeadamente, o teor das perícias, ao abrigo do disposto no artigo 431º, nº 1 al. a) do CPP, impõe-se modificar a matéria de facto da sentença recorrida.

Assim, procede-se à seguinte alteração da matéria de facto da sentença recorrida, relativamente aos factos nela considerados como provados:

- Facto 66: Não provado;
- Facto 68: Provado apenas que a situação clínica da paciente começou a complicar-se no momento em que a arguida decidiu iniciar o procedimento de colocação de um cateter e tentou canalizar a veia, e em que saiu sangue em esguicho da paciente, situação essa que se foi agravando no seguimento das demais decisões e procedimentos adotados e determinados pela arguida e que culminou na realização da diálise,
evidenciando-se a perda de sangue, o pulso elevado e a tensão muito baixa;
- Facto 71: Não provado;
- Facto 74: Provado apenas que A A. T. sofreu dor, instabilidade hemodinâmica, choque hipovolémico, desidratação, sudorese intensa, taquicardia, hipotensão (baixa dos valores de tensão arterial), perda de consciência, hemorragia não controlada externa;
- Facto 76: Provado apenas que mais sabia a arguida que ao atuar como descrito, não adotava os deveres de cuidado e atenção, nem a observância das boas regras de atuação médica aplicáveis naquela situação e que conhecia e que, segundo as circunstâncias, lhe eram exigíveis e era capaz de observar e, não obstante quis agir segundo os procedimentos acima descritos, contra as regras médicas e de forma contrária à atuação que lhe era exigida e era capaz de observar, representando sem se conformar com o risco de vida da paciente e representando sem se conformar que da sua conduta pudesse advir a morte da paciente.
- Facto 77: Provado apenas que a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente.
De forma que os factos provados 65 a 77 da sentença recorrida passam a ter a seguinte numeração e redação:

65. Não foi realizada autópsia médico-legal, uma vez que a Dra. P. V. fez constar no certificado de óbito que A. T. faleceu por causa natural na sequência de «Insuficiência Renal Agudizada», para o que terá contribuído «Hipertensão Arterial», de que padeceria há «anos»;
66. Perante a situação descrita em 49., isto é um quadro hipovolémico grave, associado a uma manobra invasiva grave, impunha-se, segundo as regras médicas, parar com tal procedimento e restaurar, antes de mais, as condições hemodinâmicas da paciente;
67. A situação clínica da Paciente começou a complicar-se no momento em que a Arguida decidiu iniciar o procedimento de colocação de um cateter e tentou canalizar a veia, e em que saiu sangue em esguicho da paciente, situação essa que se foi agravando no seguimento das demais decisões e procedimentos adotados e determinados pela Arguida e que culminou já na realização da diálise, evidenciando-se a perda de sangue, o pulso elevado e a tensão muito baixa;
68. O que impunha a cessação imediata da manobra, como referido anteriormente;
69. A diálise não deveria ter sido prosseguida, tendo a mesma sido realizada contra as regras da profissão médica que ordenavam que, ao invés do decidido pela Arguida, se procedesse antes à estabilização hemodinâmica da paciente, a realização de exames imagiológicos para determinar a causa da instabilidade hemodinâmica evidente e, se necessário, correção cirúrgica;
71. A colocação de um cateter central para hemodiálise é uma manobra invasiva, que não é isenta de complicações, obriga a que no decurso da técnica e/ou reinício seja criteriosamente observado o estado geral do doente, o grau de tolerância ao procedimento e a monitorização contínua cardiovascular e respiratória;
72. Pelo que, segundo as regras médicas, em face do descrito, não deveria a Arguida realizar a referida manobra – diálise - e, iniciada, deveria proceder à sua suspensão imediata;
73- A A. T. sofreu dor, instabilidade hemodinâmica, choque hipovolémico, desidratação, sudorese intensa, taquicardia, hipotensão (baixa dos valores de tensão arterial), perda de consciência, hemorragia não controlada externa
74. A Arguida, enquanto médica, sabia que perante o quadro clínico e sintomas apresentados pela paciente, deveria proceder à estabilização hemodinâmica da paciente e que, ao não fazê-lo e prosseguindo com a realização pela Paciente de hemodiálise e ao não interromper a mesma, atuava de forma contrária às regras da sua profissão, o que quis;
75. Mais sabia que ao atuar como descrito, não adotava os deveres de cuidado e atenção, nem a observância das boas regras de atuação médica aplicáveis naquela situação e que conhecia e que, segundo as circunstâncias, lhe eram exigíveis e era capaz de observar e, não obstante quis agir segundo os procedimentos acima descritos, contra as regras médicas e de forma contrária à atuação que lhe era exigida e era capaz de observar, representando sem se conformar com o risco de vida da paciente e representando sem se conformar que da sua conduta pudesse advir a morte da paciente
76. A Arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida;
Em consequência da sobredita alteração da matéria de facto, pese embora a arguida tenha violado, por forma inequívoca, as leges artis da medicina, tendo omitido o dever de cuidado a que estava obrigada a observar e de que era capaz, porque não ficou demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta da arguida e a morte da A. T. não pode a arguida ser responsabilizada pela perpetração do crime de homicídio por negligência que lhe foi imputado, devendo, pois, ser dele absolvida.
Uma última nota para referir que verificamos ter sido a arguida também acusada pela prática de um crime de intervenções e tratamento médico-cirúrgicos p. e p. pelo artigo 150º, nº 2 do C. Penal, em concurso aparente com o crime de homicídio por negligência.
Segundo o artigo 150º do CP, com a epígrafe “Intervenções e tratamentos médico cirúrgicos” «1 - As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física.
2 - As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal.».

Considerando que a arguida vai ser absolvida da perpetração do imputado crime de homicídio por negligência, e porque o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 410º do CPP, é de equacionar a possibilidade de subsunção da sua conduta na previsão do aludido crime de intervenções e tratamento médico-cirúrgicos.
Ora, relativamente a esta questão, a resposta não pode deixar de ser negativa, porquanto não está demonstrado que da conduta da arguida, o mesmo é dizer da violação das leges artis, tenha resultado perigo para a vida da paciente ( a perícia é clara neste sentido na medida em que admite essa possibilidade, mas sem certeza quanto a esse facto devido à falta de realização de autópsia). Ou seja, não está demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta da arguida e o perigo (concreto) para a vida.
Convém recordar que o bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime em apreço é a vida ou a integridade física. Trata-se de um crime de perigo concreto (quanto ao bem jurídico) e de resultado relativamente ao objeto da ação, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª edição atualizada, 2015, pág. 581.
Por outro lado, e ainda que assim não fosse, não resulta igualmente provado o dolo da arguida relativamente ao perigo para a vida da paciente. Com efeito, para o preenchimento do tipo legal em referência “exige-se (…) que o médico conheça e deseje a violação das leges artis e, para além disso, conhece a deseja a criação do perigo. Ou seja, o dolo imposto pela norma (para o qual basta o dolo eventual) deverá revelar-se a dois níveis: primeiro, na própria violação das legis artis; depois, na criação do perigo a que a norma se refere”, cfr. Vera Lúcia Raposo, Do ato médico ao problema jurídico, Almedina, 2016, reimpressão, págs. 166 e 167, e, no mesmo sentido, a jurisP. V. aí citada.

No caso vertente, tendo em conta a arguida é médica experiente na área da nefrologia, teve consciência de que o procedimento por ela seguido não era conforme às leges artis e, apesar disso, agiu da forma referida. Porém, fê-lo, no âmbito de uma intervenção médica com finalidade terapêutica, ou seja, com o propósito de curar a paciente, acreditando que nenhum prejuízo daí decorreria para ela, não se conformando com o perigo concreto de vida.
Nesta conformidade, impõe-se julgar procedente o presente recurso, com as consequências necessariamente daí decorrentes.

III – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pela arguida e, em consequência, decide-se revogar a sentença recorrida e absolver da arguida da prática do crime de homicídio por negligência que lhe foi imputado.
Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 27.04.2020
(Texto integralmente elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários (artigo 94º, nº 2 do C. P. Penal).

(Armando da Rocha Azevedo - Relator)
(Clarisse Machado S. Gonçalves - Adjunta)


1. Entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr. Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..
2. Processo 46/11.3TAMCD.P1, disponível in www.dgsi.pt.
3. in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 106.
4. In, Código Penal Anotado, 2.ª Ed., pág. 111.
5. Maria Joana Oliveira, in A Imputação Objetiva na Perspetiva do Homicídio Negligente, Coimbra Editora, 2004, pág. 57.
6. Maia Gonçalves, in Código Penal Anotado, Almedina, 2007, pág. 109.
7. Maria Joana Oliveira, Ob. Cit., pág. 80.
8. Neste sentido, vide Américo Taipa de Carvalho, in Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais Teoria Geral do Crime, Coimbra Editora, 2008, pág. 524 e 525.
9. Eduardo Correia, in Direito Criminal, volume I, Almedina, 2008, pág. 425.
10. in Derecho Penal I, pág. 590.
11. Maria Joana Oliveira, Ob. Cit., pág. 102.
12. in Questões centrais de imputação e critérios de distinção…, Casos e Materiais de Direito Penal, Almedina, 2.ª edição, pág. 53.
13. Maria Joana Oliveira, Ob. Cit. pág. 115-116.
14. Por exemplo, o Prof. Pereira Coelho, O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, 1995, pag. 20, nota 21, e Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1991, pag. 885.
15. Ob. Cit., pág. 113.
16. Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal anotado, 3.ª edição, pág. 182.
17. Citado no Código Penal Anotado referido na nota 15, pág. 197.
18. As leges artis da medicina são”um complexo de regras e princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico, para casos semelhantes, ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais. (…) Regras de índole não exclusivamente técnico-científica, mas também deontológicas ou de ética profissional, pois não se vislumbra qualquer razão, antes pelo contrário, para a exclusão destas da arte médica” — Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, “Responsabilidade Médica em Direito Penal”, Almedina, página 54
19. Processo 46/11.3TAMCD.P1, disponível in www.dgsi.pt.
20. Curso de Processo Penal, Verbo, 5ª ed., Vol. II, pág. 263-264
21. A prova penal e as regras da experiência, in Estudos em Homenagem ao Pro. Figueiredo Dias, Boletim da Faculdade, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2010, Vol. III, pág. 1009.
22. Os vícios do n.º 2 do artigo 410º do CPP são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento, como se exprime Maria João Antunes (RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
23. O erro notório na apreciação da prova unicamente é prefigurável quando se depara ter sido usado um processo racional e lógico mas, retirando-se, contudo, de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irrazoável, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum, bem como das regras que impõem prova tarifada para determinados factos, cfr. Ac STJ de 18.03.2004, processo 03P566, rel. Simas Santos, acessível em www.dgsi.pt