Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
538/05-2
Relator: MARIA AUGUSTA
Descritores: BURLA
FALSIFICAÇÃO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PRESUNÇÕES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/30/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Sendo imputado ao arguido que foi ele quem fez uma encomenda pelo correio, e aceitando o arguido que levantou tal encomenda, mediante a entrega de um cheque pertencente a terceiros, cuja posse não esclareceu, mas dizendo que foi um outro terceiro que lhe pediu o favor de a levantar, e apurando-se que esse terceiro jamais residiu na morada para a qual a encomenda foi enviada, não pode o Tribunal Colectivo dar como provado, que foi o arguido quem fez a encomenda nem que foi o mesmo arguido quem preencheu a parte do nome do titular da conta se não dispuser de outras provas, nomeadamente de exame à letra.
II – Dizendo o Tribunal Colectivo que deu aquele facto como provado porque o arguido «não avançou qualquer outro elemento que, minimamente, indicie a participação de um qualquer terceiro», viola o princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência.
III – Não é ao arguido que cabe convencer o Tribunal de que não foi ele quem assinou o cheque, antes é o Tribunal que deve investigar os factos sujeitos a julgamento.
IV – De qualquer modo, mesmo que se mantivessem os factos provados na 1ª instância, de que fora o arguido quem fez a encomenda e que ao fazê-la pretendia enriquecer à custa da ofendida, o modo de realização dessa intenção não revela qualquer engenho ou engano, não criando a aparência de qualquer realidade que não existe nem falseando a realidade existente e quando o cheque falsificado foi utilizado já o contrato de compra e venda se tinha realizado pois, como é sabido, neste tipo de contratos, a alienação da propriedade produz-se por mero efeito do contrato, nos termos do artº 548º, nº 1 do Código Civil.
V – Assim, nunca o arguido cometeria o crime de burla que lhe vinha imputado.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.

No processo comum colectivo nº130/03, da Vara Mista da comarca de Braga, por acórdão de 17/12/04, depositado na mesma data, foi o arguido JOSÉ :
- absolvido do crime de furto simples, p. e p. pelo artº203º nº1 do C.P.;
- condenado pela prática de:
- um crime de burla, p. e p. pelo artº217º nº1 do C.P., na pena de 10 meses de prisão;
- um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artº256º nº1 al.a) e 3, do C.P., na pena de 1 ano de prisão.
Em cúmulo, foi condenado na pena única de 15 meses de prisão.
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Inconformado, o arguido recorreu, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1. No entendimento do recorrente, a decisão proferida pelo tribunal a quo violou os arts. 26º, 71º, 256º, nºs1, alínea a) e 3 e 379º, n.º1, alínea a) todos do C.Penal.
2. Dos elementos constantes do processo retira-se, com suficiente clarividência, que deveria ter sido outra a decisão sobre a matéria de facto relativa aos acontecimentos em discussão nos autos, que por isso se impugna por meio deste recurso.
3. Relativamente à matéria de facto dada como provada, entende o recorrente que, face à prova produzida, os factos constantes das alíneas a), b) e c) do título II das presentes alegações de recurso nunca deveriam ter sido dados como provados.
4. De facto, pela prova produzida em sede de Audiência de Julgamento, sempre o recorrente deveria ser absolvido de todos os crimes que lhe eram imputados.
5. Não se conclui, com o mínimo de clareza, quais as motivações que levaram o tribunal a quo a decidir pela condenação do arguido num crime de falsificação de documento, nesta parte a douta sentença não está fundamentada pelo que deve ser declarada nula.
6. Pelo facto de o cheque ter chegado à posse do arguido, por meios que o próprio tribunal não conseguiu apurar, não obstante o mesmo lhe ser entregue por um terceiro, não se pode concluir, por si só, que a assinatura aposta no cheque tenha o punho do arguido.
7. Não resultou da prova produzida quaisquer elementos que demonstrem que o arguido sabia estar na posse de um documento com fraude na identificação.
8. Apenas mediante uma peritagem, que nunca se realizou, á caligrafia do arguido e ao documento em si mesmo, poderia o Tribunal dar como provado que o arguido cometeu fraude na identificação.
9. Se o arguido não apresentou elementos suficientes da versão que ad inicio sempre defendeu, tal não decorre de culpa sua, mas do facto de E ter fugido do país, deixando o arguido com uma aparente responsabilidade nos factos que foram objecto de decisão na presente sentença recorrida.
10. Não existe qualquer incongruência entre os dados apresentados pelo arguido relativamente às circunstâncias do seu relacionamento com o E e a informação obtida pelo tribunal, constante de fls.54.
11. Da análise da listagem de chamadas do número de telefone móvel registado no nome do arguido, não consta qualquer chamada para os escritórios da “Flash”.
12. Dos depoimentos das testemunhas de acusação Rui e Bruno, legal representante da “Flash...” e funcionário, respectivamente, não resulta demonstrado, sem que resultem dúvidas na convicção do tribunal, de que foi o arguido que realizou a encomenda objecto do presente recurso.
13. Não resultou provado que o arguido tivesse agido com dolo, quando aceitou o pedido de um amigo em receber a encomenda de material electrónico na sua residência.
14. De todo o modo, em caso de serem julgadas improcedentes as motivações que o recorrente expende, supra, o que se concebe apenas academicamente, sem conceder, o que é certo é que a pena que lhe foi aplicada é exagerada.
15. Tendo em conta as circunstâncias que rodearam este caso concreto chegamos à conclusão que as exigências de prevenção especial e geral são, in caso, inexistentes.
16. Assim, a sentença recorrida violou, quanto á medida da pena, o disposto no art.º71º do C. Penal.
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O recurso foi admitido por despacho de fls.298.
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O MºPº respondeu concluindo pela sua improcedência.
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O Exmo Procurador–Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer no qual conclui pela remessa dos autos ao tribunal a quo para que a decisão seja fundamentada.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º n.º 2 do C.P.P..
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para a audiência, na qual foram observados todos os formalismos legais.
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Cumpre decidir:
Factos dados provados, não provados e fundamentação de facto (transcrição):
Em data indeterminada situada entre os dias 4 de Setembro de 2002 e 9 de Janeiro de 2003, o arguido entrou na posse, por forma que não foi possível apurar, de um módulo de cheque, com o número 3453197936, referente à conta n.º x que Maria possuía na agência de Santa Tecla da Caixa Geral de Depósitos e que esta instituição de crédito lhe enviara, por correio, para a sua residência, situada na Rua Martins Sarmento, nesta cidade de Braga.
Uma vez na posse desse módulo de cheque e porque entretanto tivesse formado o propósito de o utilizar em proveito próprio, o arguido, em princípios de Janeiro de 2003, contactou telefonicamente a empresa de venda de material informático à cobrança denominada “Flash, Lda” e encomendou-lhe o material discriminado na factura inserta a fls. 16, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, no montante de 1.645 euros, IVA incluído, indicando a sua residência como local de entrega.
Em execução dessa encomenda, a “Flash” expediu, através do correio, o material em causa para a residência do arguido no dia 9 de Janeiro de 2003.
No dia seguinte, 10 de Janeiro, a encomenda chegou ao seu destino e foi recebida pelo próprio arguido, que, para pagamento do respectivo preço, sem o qual o material não lhe seria entregue, entregou ao funcionário dos CTT o cheque acima referido, no qual previamente inscrevera, pelo seu próprio punho, o nome, manuscrito, da titular da conta a que dizia respeito no espaço reservado ao saque e que então completou o seu preenchimento, apondo-lhe a quantia, por extenso e em numerário, correspondente à factura apresentada, bem como a data e local de emissão.
Esse cheque foi posteriormente depositado numa conta que a ofendida possui no Barclays Bank e veio a ser devolvido com a menção de “roubo”, porquanto a titular da conta a que o mesmo dizia respeito participara entretanto o seu extravio.
O arguido agiu livre e deliberadamente, com o propósito concretizado de obter para si próprio uma vantagem patrimonial ilegítima, bem sabendo que ao assinar o mencionado cheque como se fosse a titular da conta a que o mesmo dizia respeito imitava uma ordem de pagamento que esta não tinha dado nem queria dar e punha em crise a fé pública inerente a esse tipo de documentos, com plena consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Não indemnizou a ofendida.
É solteiro e vive com a mãe.
Trabalha por conta de outrem como vendedor de automóveis, auferindo um salário mensal de 500 euros.
Possui o 12º ano de escolaridade.
Já respondeu quatro vezes por condução ilegal, uma vez por um crime de emissão de cheque sem provisão e uma outra por falsificação de documentos, tendo sido sempre condenado em penas de multa.
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NÃO SE PROVOU a restante factualidade alegada na acusação, designadamente que o arguido se tivesse apoderado de uma carteira de cheques, entre os quais constava o cheque n.º 3453197936, pertencente a Maria, retirando-a da caixa do correio onde fora depositada e integrando-a na sua esfera patrimonial, bem como a matéria de facto alegada pelo arguido na contestação na parte em que se encontra em oposição com a matéria de facto dada como provada.
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FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
A convicção do Tribunal sobre a matéria de facto fundou-se na ponderação critica da prova produzida, sendo de salientar que o próprio arguido, quando interrogado, admitiu que recebeu a mercadoria enviada pela “Flash” e entregou para pagamento do respectivo preço o cheque constante de fls. 15, preenchendo todos os seus espaços, com excepção da assinatura.
Ora, não obstante o arguido tivesse sustentado que não forjou a assinatura da titular da conta a que esse cheque dizia respeito, nem efectuou a encomenda para pagamento da qual o entregou, imputando a um terceiro a autoria desses comportamentos, a verdade é que não avançou qualquer outro elemento que, minimamente, indicie a participação de um qualquer terceiro, sendo certo que as circunstâncias em que a pessoa por ele indicada, Rui Manuel Escaleira Pereira, lhe teria pedido o favor de receber a dita encomenda são infirmadas pela informação constante de fls. 54, segundo a qual esse individuo jamais terá residido nos números 11 ou 13 da Rua Dr. …, nesta cidade de Braga, e terá deixado de trabalhar na firma “Y” cerca de um ano antes da data dos factos a que se reportam os presentes autos, o que foi corroborado em audiência pelo representante legal dessa firma, Mário .
Acresce que, porventura por ter pensado que o tribunal dispensaria essa diligência, o arguido começou por negar, em termos peremptórios, que fosse titular do telemóvel indicado à firma ofendida pelo autor da encomenda e por ela mencionado na participação, sustentando depois, quando confrontado com a informação solicitada à TMN, constante de fls. 137, que se “esquecera” desse número, por lidar com muitos telemóveis (o que, diga-se, não deixa de ser digno de registo, atento o espantoso número de chamadas efectuadas pelo telemóvel em causa num escasso período de três meses, conforme se extrai de fls. 138 e seguintes).
Entendemos, pois, que a versão apresentada pelo arguido, embora engenhosa (na medida em que explora a circunstância de a transacção ter sido efectuada à distância e, como tal, os funcionários da firma ofendida, que não o conheciam anteriormente, não o poderem reconhecer como sendo o autor da encomenda), não corresponde à verdade, subsistindo incólumes os elementos objectivos que, inequivocamente, o incriminam.
Igualmente relevantes foram os depoimentos prestados pelas testemunhas Maria, proprietária do cheque utilizado pelo arguido, Rui e Bruno, respectivamente sócio e funcionário da firma ofendida.
Por último, ponderou-se o teor do cheque constante de fls. 15, da factura constante de fls. 16, do certificado de registo criminal inserto a fls. 68 a 72 e do relatório social inserto a fls. 121 a 124.
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O objecto do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação por ele apresentada, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Assim, são as seguintes as questões a decidir:
1. Saber se o acórdão padece de falta de fundamentação relativamente aos factos integrantes do crime de falsificação de documento;
2. Saber se foram correctamente julgados os seguintes factos:
a) que a assinatura aposta no cheque é da autoria do arguido;
b) que foi o arguido quem fez a encomenda do material informático;
3. Saber se são inexistentes as necessidades de prevenção geral e especial e se, por isso, a pena aplicada é exagerada.
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1ª Questão:
Nos termos do artº374º nº2 do C.P.P., a sentença começa por um relatório, ao qual se segue a fundamentação “...que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.” (sublinhado nosso).
Por seu lado, o artº379º do C.P.P. preceitua:
1. É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no artº374º, nºs2 e 3, al.b); ou
b) Que condenar por factos diversos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
No que se refere ao nº2 do artº374º do C.P.P., é obrigatória a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e o seu exame crítico, ou seja, o julgador tem, na fundamentação, que indicar “os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência” Marques Ferreira – Meios de Prova , in Jornadas de Direito Processual Penal - o Novo Código de Processo Penal, pág.229/230. .
“A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso...”, acrescenta o mesmo autor.
Como escreve Medina Seiça O Conhecimento Probatório do Co-Arguido – Coimbra Editora, pág.202.., a exigência de fundamentação não expressa apenas uma função de garantia contra o abuso sempre possível do poder, mas, ao consistir na exposição das razões justificativas do juízo, é dela que resulta a força do convencimento da própria decisão, a capacidade de se impor na sua bondade argumentativa.
Ora, no que se refere, designadamente, aos factos integradores do crime de falsificação, o Tribunal explica porque é que chegou à conclusão de que foi o arguido quem apôs a assinatura no cheque, apesar de este o negar.
Fá-lo da seguinte forma:
A convicção do Tribunal sobre a matéria de facto fundou-se na ponderação critica da prova produzida, sendo de salientar que o próprio arguido, quando interrogado, admitiu que recebeu a mercadoria enviada pela “Flashindex” e entregou para pagamento do respectivo preço o cheque constante de fls. 15, preenchendo todos os seus espaços, com excepção da assinatura.
Ora, não obstante o arguido tivesse sustentado que não forjou a assinatura da titular da conta a que esse cheque dizia respeito, nem efectuou a encomenda para pagamento da qual o entregou, imputando a um terceiro a autoria desses comportamentos, a verdade é que não avançou qualquer outro elemento que, minimamente, indicie a participação de um qualquer terceiro, sendo certo que as circunstâncias em que a pessoa por ele indicada, Rui Manuel Escaleira Pereira, lhe teria pedido o favor de receber a dita encomenda são infirmadas pela informação constante de fls. 54, segundo a qual esse individuo jamais terá residido nos números 11 ou 13 da Rua Dr. Alberto Cruz, nesta cidade de Braga, e terá deixado de trabalhar na firma “2IG” cerca de um ano antes da data dos factos a que se reportam os presentes autos, o que foi corroborado em audiência pelo representante legal dessa firma, Mário José Pereira Gonçalves.
(…)

A motivação de facto e a análise crítica da prova expostas permitem-nos perceber o raciocínio seguido pelo Tribunal a quo para chegar à conclusão de que a assinatura aposta no cheque foi feita pelo punho do arguido.
Assim, não se verifica a apontada nulidade.

Mas se o acórdão não padece de nulidade, já o vício de erro notório na apreciação da prova (de conhecimento oficioso) é patente.
Senão, vejamos:
Da apreciação da motivação de facto e da análise crítica da prova constata-se que para chegar à conclusão de que foi o arguido quem «inscrevera, pelo seu próprio punho, o nome, manuscrito, da titular da conta que dizia respeito no espaço reservado ao saque» existe um vício de raciocínio, pois com base nas regras da experiência tal conclusão é de todo insustentável.
Demonstrando:
Para dar como provado este facto o Tribunal a quo baseou-se nas declarações do arguido que apenas admitiu ter recebido a mercadoria e ter entregue o cheque de fls.15 para pagamento do preço, preenchendo todos os espaços, à excepção da assinatura, cuja autoria imputa a terceiro, e ainda no teor do cheque.
Apesar de o arguido negar ser da sua autoria a assinatura aposta no cheque, de não ter sido feito exame à letra e de inexistir qualquer outra prova deste facto, o Tribunal justifica a sua convicção dizendo que aquele, apesar de imputar a terceiro a assinatura (e também a encomenda da mercadoria) «não avançou qualquer outro elemento que, minimamente indicie a participação de um qualquer terceiro, sendo certo que as circunstâncias em que a pessoa por ele indicada, Rui Manuel Escaleira Pereira, lhe teria pedido o favor de receber a dita encomenda são infirmadas pela informação constante de fls. 54, segundo a qual esse individuo jamais terá residido nos números 11 ou 13 da Rua Dr. Alberto Cruz, nesta cidade de Braga, e terá deixado de trabalhar na firma “2IG” cerca de um ano antes da data dos factos a que se reportam os presentes autos, o que foi corroborado em audiência pelo representante legal dessa firma, Mário José Pereira Gonçalves.
Não tendo sido produzida prova directa, o Tribunal a quo, partindo de um facto conhecido – ter sido o arguido quem, confessadamente, recebeu a mercadoria e entregou o cheque, por si preenchido (à excepção, obviamente, da assinatura), para pagamento do preço – presume o facto desconhecido – que foi também o arguido quem apôs no cheque a assinatura que dele consta.
Na formação da convicção, é sabido, não está o juiz impedido de usar presunções baseadas em regras da experiência, ou seja, nos ensinamentos retirados da observação empírica dos factos. Ensina Vaz Serra Direito Probatório Material – BMJ 112/190. que “Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência de vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (…) ou de uma prova de primeira aparência”. Mas “a ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios, ou a falta de um ponto de ancoragem, no percurso lógico de congruência segundo as regras da experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada por impressões.” Ac. do STJ de 17/03/04 (Processso nº265/03), in http://www.dgsi..pt/jstj,nsf .
Porém, o raciocínio seguido pelo Tribunal a quo para chegar ao facto presumido, que não é consequência típica daquele de que se parte, carece de sequência lógica, compatível com as regras da experiência e mostra-se violador dos princípios da investigação, do in dubio pro reo e da presunção de inocência, este último consagrado no artº32º nº2 da CRP.
Para dar como provado que a assinatura aposta no cheque é do punho do arguido bastou-se o Tribunal a quo com o facto de este não conseguir fornecer “qualquer outro elemento” ao tribunal que o convencesse da versão apresentada.
Ora, a viciação do raciocínio começa logo aqui ao partir-se de um pressuposto errado que é o de que o arguido tem de convencer o tribunal de que não foi ele quem assinou o cheque mas um terceiro.
Em processo penal nada tem o arguido que provar. Sobre ele não recai qualquer ónus de prova. Basta-lhe criar na mente do julgador uma dúvida razoável sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão (note-se que nunca é possível obter uma certeza absoluta quando estão em causa comportamentos humanos).
De resto, um dos princípios estruturantes do nosso processo penal é o princípio da investigação, segundo o qual é ao tribunal que cumpre investigar os factos sujeitos a julgamento, embora as partes também possam (e devam) dar o seu contributo, criando as bases necessárias à sua decisão. Se, apesar de toda a prova recolhida, o tribunal ficar com dúvidas sérias sobre factos relevantes para a decisão, tem que, deitando mão do princípio in dubio pro reo, articulado com o princípio da presunção de inocência, em cujo conteúdo se integra a proibição de inversão do ónus de prova Gomes Canotilho e Vital Moreira - Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Ed. Revista – Coimbra Editora, em anotação ao artº32, pág.203., dar como provada a tese mais favorável ao arguido.
Assim ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Ed. Revista – Coimbra Editora, em anotação ao artº32, pág.203. quando escrevem que o princípio da presunção de inocência, além de ser uma garantia subjectiva, é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa. (sublinhado nosso).
É, pois, manifesto, que foi feita uma incorrecta aplicação destes princípios o que levou a uma incorrecta ponderação e avaliação da prova produzida em julgamento.
Como se escreve no Ac. do STJ, de 15/04/98 BMJ 476/82., existe erro notório na apreciação da prova “quando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta, com toda a evidência a conclusão contrária à que chegou o tribunal. Nesta perspectiva, a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida se extrair, por forma mais que óbvia, que o colectivo optou por decidir, na dúvida, contra o arguido”.


Apesar deste vício de que padece o acórdão, é possível a este Tribunal de recurso decidir da causa, evitando, assim, o reenvio do processo, já que do processo constam todos os elementos de prova que lhe serviram de base e a prova foi impugnada nos termos do nº3 do artº412º do C.P.P..

2ª Questão:
Saber se foram correctamente julgados os seguintes factos:
a) que a assinatura aposta no cheque é da autoria do arguido;
b) que foi o arguido quem fez a encomenda do material informático;

Autoria da assinatura aposta no cheque:
Como acabamos de referir, dado que o arguido nega ter sido o seu autor e nenhuma outra prova foi produzida sobre a questão, deitando mão do falado princípio do in dubio pro reo, tem que dar-se como não provado tal facto.

Quanto à pessoa que fez a encomenda do material informático, o arguido negado ter sido ele. Por seu lado, a testemunha Bruno Alcobia, que o não conhecia, não pode, como é óbvio, identificá-lo pela voz (fls.339). Embora tenha afirmado que registou no sistema da empresa o número de telefone através do qual foi feito o contacto (fls.336 dos autos ou 19 da transcrição) e ter sido esse número, bem como no nome e morada do arguido que a empresa forneceu às autoridades aquando da queixa (fls.337 dos autos ou 20 da transcrição) e através do qual ele foi identificado no presente processo, não é possível afirmar, com a necessária segurança, ter sido aquele o autor da encomenda. Tanto poderia ter sido ele como alguém a seu pedido ou mesmo o tal amigo que ele diz ter-lhe pedido esse “favor”.
Assim, porque a prova directa sobre estes factos é também muito frágil, fica-nos a dúvida sobre a autoria da encomenda, justificando-se, também neste caso, o recurso ao princípio in dubio pro reo Note-se, porém, que a alteração deste facto é irrelevante, pois, como adiante melhor se esclarecerá, os factos dados como provados pelo Tribunal a quo nunca integrariam o crime de burla por que o arguido foi condenado. .

Não sendo dados como provados estes factos integrantes da materialidade da infracção, não pode também dar-se como provado que o arguido agiu com o propósito concretizado de obter para si próprio uma vantagem patrimonial ilegítima, bem sabendo que ao assinar o mencionado cheque como se fosse a titular da conta a que o mesmo dizia respeito imitava uma ordem de pagamento que esta não tinha dado nem queria dar e punha em crise a fé pública inerente a esse tipo de documentos, com plena consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei. É que não sendo estes factos susceptíveis de apreensão directa, tinha que tomar-se como ponto de partida a materialidade da infracção para, através da utilização de uma presunção baseada no princípio da normalidade e das regras da experiência, a eles se chegar.

Perante os factos provados, com as alterações ora efectuadas, a solução de direito tem também ela que ser alterada.
Como já atrás fizemos uma breve referência, o arguido mesmo com os factos provados em 1ª Instância, nunca poderia ser condenado pela prática do crime de burla.
Vejamos porquê:
Dispõe o artº217º do C.P. , no seu nº1
Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
São, pois, elementos do tipo:
- que o agente determine alguém à prática de actos que causem prejuízo patrimonial a si próprio ou a terceiro;
- que o agente use de erro ou engano sobre os factos que astuciosamente provocou;
- que tenha intenção de obter, para si ou para terceiro, enriquecimento ilegítimo.
A propósito deste crime, escreve Almeida Costa Comentário Conimbricense do CÓDIGO PENAL – Parte Especial – Tomo II, pág.293, §13. que ele integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ele na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.
Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais.
Ora, mantendo-se os factos dados como provados na 1ª Instância - que fora o arguido quem fez a encomenda e que ao fazê-la pretendia enriquecer à custa da ofendida -, o modo de realização dessa intenção não revela qualquer engenho ou engano, não criando a aparência de qualquer realidade que não existe nem falseando a realidade existente.
Com efeito, o arguido, como qualquer outro cliente, telefonou para a empresa ofendida, deu a sua identificação, morada e número de telefone e encomendou os bens que entendeu e que esta, como era habitual fazer com qualquer cliente, lhe enviou pelo correio, à cobrança.
Quando o cheque (falsificado) foi utilizado, já o contrato de compra e venda se tinha realizado. Ora, como é sabido, neste tipo de contrato a alienação da propriedade produz-se por mero efeito do contrato Cfr. artº548º nº1 do C.C.. e, na doutrina, entre outros, Menezes Cordeiro – Direito das Obrigações, I Vol., pág. 25 e Pedro Nunes de Carvalho – Dos Contratos – Teoria Geral dos Contratos – Universidade Lusíada, pág.129. .
Assim, o erro ou engano tem que ser anterior à própria celebração do contrato e não à obrigação do pagamento do preço.
No caso, tratou-se de um normal negócio, em que não houve, da parte do arguido a utilização de qualquer artimanha ou engano para induzir em erro a ofendida e levá-la, dessa forma, a celebrá-lo.
Com a alteração da matéria de facto realizada nesta instância, então, é manifesto que o crime de burla não se verifica.

Passemos ao crime de falsificação:
Não se tendo provado ser da autoria do arguido a assinatura aposta no cheque, não se verifica, desde logo, um dos pressupostos do referido crime.
Questão diferente, mas que não é objecto da acusação, seria a de saber se o arguido utilizou, de forma dolosa, o cheque falsificado por terceiro.

Perante o exposto, o arguido tem que ser absolvido de ambos os crimes por que vinha condenado - burla e falsificação.
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Fica, pois, prejudicado o conhecimento das demais questões.
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DECISÃO

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, embora com diferentes fundamentos, consequentemente, absolve-se o arguido dos crimes de burla e falsificação por que vinha condenado.
Sem tributação.
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Guimarães, 30/05/05