Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
34/13.7PAPTL.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
CONTRADITÓRIO
FALTA JUSTIFICADA DO CONDENADO À AUDIÇÃO
NULIDADE DA DECISÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) A revogação da suspensão da execução da pena de prisão representa uma real modificação do conteúdo decisório da sentença condenatória, devendo ser sempre posta ao mesmo nível desta no que respeita ao exercício do contraditório no seu grau máximo, que passa pela audição presencial do condenado.
II) A falta justificada à audição implica o seu adiamento, pelo menos uma vez, sob pena de não se dar ao condenado uma efetiva possibilidade de exercer presencialmente o direito de contraditório.
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO
No processo sumário n.º 47/13.7PAPTL, da instância local de Ponte de Lima, secção de competência genérica, juiz 1, da comarca de Viana do Castelo, foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido Manuel M., com os demais sinais dos autos, e decidido que o mesmo terá de cumprir a pena de seis meses de prisão em que foi condenado, por despacho datado de 12 de abril de 2016, com o seguinte teor:
«Por sentença proferida nos presentes autos no dia 05 de Junho de 2013, transitada em julgado no dia 05 de Julho de 2013, foi o arguido Manuel M. condenado, além do mais, na pena de 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nº1, do Decreto-Lei nº2/98, de 03 de Janeiro (cfr. fls.34-38).
Essa suspensão ficou condicionada ao cumprimento das seguintes condições: [i] demonstrar a inscrição numa escola de condução no prazo de 3 (três) meses; [ii] demonstrar a sujeição a exame e código no prazo de 1 (um) ano.
Por sentença proferida no dia 20 de Dezembro de 2013, transitada em julgado no dia 03 de Dezembro de 2014, no âmbito do Processo Abreviado nº377/13.8GAPTL, do (extinto) 1º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Ponte de Lima, foi o arguido condenado, além do mais, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, pela prática, no dia 18 de Julho de 2013, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nº1, do Decreto-Lei nº2/98, de 03 de Janeiro (cfr. fls.111-135).
*
O Digno Magistrado do Ministério Público, a fls.137, promoveu a revogação da suspensão da pena de prisão aplicada nos presentes autos.
*
Salvaguardou-se o princípio do contraditório, tendo o arguido, a fls.140-141, pugnado pelo indeferimento da promovida revogação, na medida em que: [i] trata-se de um velocípede com motor e não de uma viatura, estando previsto pela União Europeia a dispensa de tal habilitação para este tipo de viaturas; [ii] foi julgado e condenado pelo tribunal atendendo a todas as circunstâncias, depois de ter analisado a sua personalidade, as suas condições de vida, a sua inserção social; [iii] no Processo nº377/13.8GAPTL considerou-se que a pena de prisão aplicada deveria ser suspensa; [iv] tripulou o referido velocípede num estado de necessidade e não por ter desobedecido ao Tribunal; [v] não se está perante uma situação prevista no artigo 56º, nº1, alínea b), do Código Penal.
*
Por despacho proferido no dia 03 de Julho de 2015, a fls.142, determinou-se a audição do aludido Manuel M., que, apesar de regularmente notificado, não compareceu (cfr. fls.147-148), justificando a sua falta a fls.151-152.
*
O Certificado do Registo Criminal do arguido foi junto a fls.153-170.
*
A fls.58-60 consta comprovativo de que o arguido se inscreveu numa escola de condução para tirar a Carta de Condução da Categoria AM (Ciclomotores).
*
Por despacho proferido no dia 02 de Dezembro de 2015, a fls.202, determinou-se a notificação do arguido para que comprovasse ter-se sujeitado a exame de código no período compreendido entre 05 de Julho de 2014 e 05 de Julho de 2015.
*
O identificado Manuel M., a fls.208-210 e 215-216 e 218-219, esclareceu ter reprovado no exame a que se sujeitou.
Mais referiu ter prosseguido com as aulas, vendo-se, no entanto, obrigado a interrompê-las devido a um acidente grave que sofreu, que o impossibilita de trabalhar ou de fazer movimentos rotativos, incluindo os de aprendizagem de condução.
*
Apreciando.
O arguido Manuel M. foi condenado nestes autos numa pena de prisão de 6 (seis) meses, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, condicionada aos deveres de inscrever-se numa escola de condução e de sujeitar-se a exame e código.
Essa decisão transitou em julgado no dia 05 de Julho de 2013. A fls.58-59 comprovou essa inscrição.
No que concerne à sujeição a exame e código esclareceu ter reprovado, acrescentando que prosseguiu com as aulas que, todavia, interrompeu devido a um acidente grave de que foi vítima.
Sucede que no dia 18 de Julho de 2013, isto é, volvidos 13 (treze) dias do trânsito em julgado da decisão dos presentes autos, o arguido voltou a tripular um ciclomotor na via pública, sem que estivesse devidamente habilitado para o efeito.
Por estes factos veio a ser condenado no âmbito do Processo Abreviado nº377/13.8GAPTL, do (extinto) 1º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Ponte de Lima, em pena de prisão de 5 (cinco) meses, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano.
A fls.140-141, o arguido sustenta, além do mais, que: [i] trata-se de um velocípede com motor e não de uma viatura, estando previsto pela União Europeia a dispensa de tal habilitação para este tipo de viaturas; e [ii] tripulou o referido velocípede num estado de necessidade e não por ter desobedecido ao Tribunal.
Salvaguardando o devido respeito, o lugar próprio para invocar estes fundamentos seria o identificado Processo Abreviado nº377/13.8GAPTL, tendo em vista apurar se no caso decidendo verificava-se, ou não, alguma causa de exclusão da ilicitude e/ou de desculpação e/ou algum erro sobre a ilicitude.
Aqui, cuida-se de aferir da eventual revogação da suspensão da pena de prisão aplicada nos presentes autos, pelo que tais argumentos são inócuos.
Defende, também, o arguido, que no mencionado Processo Abreviado nº377/13.8GAPTL foram ponderadas as circunstâncias em que os factos foram praticados, a sua personalidade, as suas condições de vida e a sua inserção social, concluindo-se pela suspensão da pena de prisão.
O que refere corresponde, efectivamente, à realidade.
No entanto, para essa condenação não foi ponderada a condenação dos presentes autos, conforme se alcança do ponto 4., atinente aos antecedentes criminais (cfr. fls.113-115).
De todo o modo, mesmo que tivesse sido sopesada não inviabilizava que nos presentes autos se apreciasse da sua eventual revogação.
Dito de outro modo, se para a determinação da pena concreta aplicada no Processo Abreviado nº377/13.8GAPTL fosse tomada em consideração a pena dos presentes autos – que não foi –, ainda assim não ficaria precludida a ponderação da sua eventual revogação.
No caso de que nos ocupamos, o arguido Manuel M. foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nº1, do Decreto-Lei nº2/98, de 03 de Janeiro.
Em pleno período da suspensão da pena de prisão aplicada nestes autos, cometeu um novo crime de condução de veículo sem habilitação legal, concretamente, decorridos 13 (treze) dias do início do referido período da suspensão.
Pelo tipo de crime que praticou e a factualidade inerente ao mesmo, o arguido demonstrou claramente que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
Com efeito, o arguido demonstrou uma absoluta incapacidade de reger a sua vida de acordo com os normativos jurídico-penais que protegem a segurança rodoviária, mais demonstrando uma absoluta incapacidade em respeitar a suspensão aplicada.
Na verdade, foi absolutamente indiferente à censura que no dia 05 de Junho de 2013 lhe foi dirigida nos presentes autos, praticando um crime da mesma natureza cerca de 1 (um) mês depois e decorridos uns meros 13 (treze) dias do início do período da suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada.
No caso em apreço a decisão tomada de suspender a execução da pena de prisão foi-o não obstante o arguido ter já sido, em três outros processos, condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal (Processo Comum Singular nº509/04.7GAPTL, do (extinto) 2º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Ponte de Lima, Processo Sumário nº342/08.7GAPTL, do (extinto) 2º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Ponte de Lima, e Processo Sumário nº112/10.2GAPTL, (extinto) 1º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Ponte de Lima).
Deste modo e sem prejuízo de outros ilícitos criminais pelos quais foi condenado, ao identificado Manuel M., antes da condenação nos presentes autos, foram-lhe efectuadas 3 (três) advertências para o desvalor social da condução inabilitada, duas com pena de multa e uma com pena de prisão substituída por multa.
A nenhuma delas foi sensível, o que determinou que na 4ª condenação – a destes autos – lhe fosse aplicada uma pena de prisão suspensa na sua execução.
Porém, proferida decisão neste processo, transitada em julgado no dia 05 de Julho de 2013, condenando o arguido em 6 (seis) meses de prisão, ficando a sua execução suspensa por 1 (um) ano, tal não o impediu que, em 18 de Julho de 2013 estivesse a cometer, de novo, o mesmo tipo de crime.
A versão original do Código Penal de 1982 consagrava a revogação da pena suspensa na sua execução como consequência do cometimento pelo condenado, no decurso do período de suspensão, de crime doloso pelo qual viesse a ser punido com pena de prisão.
Dispunha então o nº1, do artigo 51º, que a suspensão será sempre revogada se, durante o respectivo período, o condenado cometer crime doloso por que venha a ser punido com pena de prisão.
Partia-se de uma estreita correlação entre o incumprimento da pena cuja execução fora suspensa e o juízo de prognose sobre o comportamento futuro do delinquente, considerando-se que a condenação em pena de prisão por crime doloso cometido no período de suspensão evidenciava a falência daquele juízo de prognose e justificava a revogação automática da suspensão.
As alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº48/95, de 15 de Março, implicaram uma significativa evolução face ao regime anterior.
Dispõe a alínea b), do nº1, do actual artigo 56º: 1 – A suspensão da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
A introdução do requisito actualmente exigido – revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas – pôs termo à revogação ope legis da revogação da suspensão como mera decorrência do cometimento de um novo crime no período da suspensão e restringiu a possibilidade de revogação àquelas situações em que o cometimento de um novo crime naquele período temporal implicasse a convicção de que o juízo de prognose que havia fundamentado a suspensão se deveria considerar definitivamente arredado.
Mas precisamente porque é este, agora, o elemento determinante da revogação da suspensão, a lei deixou de exigir a natureza dolosa do novo crime cometido, assim como deixou de exigir a condenação em pena de prisão.
Ou seja, a revogação da suspensão da pena como decorrência do cometimento de novo crime no período da suspensão deixou de ser um acto meramente formal, implicando agora uma apreciação judicial das circunstâncias em que ocorreu o cometimento do novo crime para, em função das conclusões assim obtidas, se decidir da vantagem ou inconveniente da revogação, juízo que será necessariamente conformado pelas finalidades consagradas no artigo 40º, nº1, em função, pois, das necessidades de protecção do bem jurídico subjacente à norma violada pelo condenado e das necessidades de reintegração do agente na sociedade. Concomitantemente, foi alargado o leque de medidas admissíveis como reacção ao incumprimento das condições de suspensão, de modo a garantir que a efectivação da pena suspensa se restringirá aos casos em que o condenado, através da sua conduta, revele uma verdadeira desconformação com os pressupostos que determinaram a suspensão da execução da pena de prisão. E assim, o mero incumprimento, ainda que com culpa, dos deveres impostos como condição da suspensão, deixou de justificar a revogação, passando a exigir-se que o condenado infrinja grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social (cfr. alínea a), do nº1, do artigo 56º, do Código Penal).
As finalidades subjacentes à aplicação das penas, indicadas no artigo 40º, nº1, do Código Penal, são a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, visando claramente finalidades de prevenção geral e especial, não finalidades de compensação da culpa ou de retribuição do mal causado (vide FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p.331).
Assim, no juízo de prognose postulado pela suspensão da execução da pena de prisão, garantidas que sejam pela suspensão as irrenunciáveis exigências de defesa do ordenamento jurídico, importará essencialmente averiguar se esta opção garante as exigências de ressocialização, consentindo a formulação de um juízo favorável à interiorização, pelo destinatário, do significado da pena, em termos tais que este adopte, no futuro, um comportamento lícito, conforme às exigências do ordenamento jurídico-penal, não voltando a delinquir. Tal aferição faz-se em função do critério estabelecido no artigo 50º, nº1, oferecendo-se a pena de prisão suspensa na sua execução como a pena adequada ao caso sempre que, em função da personalidade do agente, das condições da sua vida, da sua conduta anterior e posterior ao crime e das circunstancias deste, seja possível concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão, expressas numa pena de prisão suspensa na sua execução, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição referidas no já citado nº1, do artigo 40º.
Do mesmo modo, tendo sido imposta ao condenado a pena de suspensão da execução da pena de prisão e cometendo este um novo crime no decurso do período de suspensão, é ainda o critério dos fins das penas que deve ser ponderado. O juiz verificará se o cometimento do novo crime infirmou definitivamente o juízo de prognose que justificou a suspensão da execução da pena, permitindo alicerçar a convicção de que a suspensão se revela insuficiente para garantir o respeito futuro pelos valores jurídico-criminalmente tutelados ou se, pelo contrário, apesar da prática do novo facto criminoso, subsistem ainda fundadas expectativas de ressocialização, sendo razoável admitir um comportamento futuro conforme com os ditames do direito. No primeiro caso, revogará a suspensão da execução da pena de prisão, o que determinará o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença.
Apreciemos, pois, à luz das considerações que antecedem, a situação concreta retratada nos autos.
Como vimos, o arguido Manuel M., que já anteriormente à condenação imposta nos presentes autos tinha cometido diversos crimes da mesma natureza, voltou a cometer novo crime no período de suspensão da pena.
É claro que não basta afirmar as condenações sofridas pelo agente para se concluir pela infirmação do juízo de prognose favorável determinante da suspensão da pena. Fosse assim e estaríamos a regressar enviesadamente ao regime inicial do Código de 1982.
No regime actual, uma condenação decorrente de comportamento não revelador de verdadeira tendência para o crime (por exemplo, uma condenação isolada por crime sem particular relevo para o juízo relativo à desconformidade ético-social do comportamento do condenado) jamais permitiria afirmar o afastamento do juízo de prognose e a necessidade de cumprimento efectivo da pena de prisão.
Situação diversa é aquela em que os antecedentes criminais do condenado evidenciam já por si uma personalidade fortemente refractária do dever de respeito à lei, denotando a sua incapacidade de assimilar a carga negativa associada aos comportamentos penalmente sancionados.
É esse, aliás, o caso dos autos, em que o cometimento de novo crime de condução de veículo sem habilitação legal no decurso do período de suspensão da execução da pena se não oferece como facto isolado, mas verdadeiramente como mais um elo de um encadeado de factos que parece não ter fim à vista.
Tanto quanto resulta do Certificado de Registo Criminal, o arguido foi objecto das seguintes condenações, todas elas por crime de condução de veículo sem habilitação legal: [i] no Processo Comum Singular nº509/04.7GAPTL, do (extinto) 2º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Ponte de Lima, foi condenado em pena de multa por sentença proferida no dia 14 de Dezembro de 2005, por factos praticados no dia 12 de Novembro de 2004; [ii] no Processo Sumário nº342/08.7GAPTL, do (extinto) 2º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Ponte de Lima, foi condenado em pena de multa por sentença proferida no dia 14 de Julho de 2008, por factos praticados no dia 22 de Junho de 2008; [iii] no Processo Sumário nº112/10.2GAPTL, do (extinto) 1º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Ponte de Lima, foi condenado em pena de prisão substituída por multa por sentença proferida no dia 11 de Março de 2010, por factos praticados no dia 20 de Fevereiro de 2010; [iv] nestes autos (Processo Sumário nº47/13.7PAPTL), foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução por sentença proferida no dia 05 de Junho de 2013, por factos praticados no dia 23 de Maio de 2013; e [v] no Processo Abreviado nº377/13.8GAPTL, do (extinto) 1º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Ponte de Lima, foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução por sentença proferida no dia 20 de Dezembro de 2013, por factos praticados no dia 18 de Julho de 2013.
Ou seja: Não obstante a sucessão de condenações anteriormente sofridas, confrontado com a que lhe foi imposta nos presentes autos – pena de prisão com execução suspensa – o condenado voltou a praticar novo crime de condução sem habilitação legal no período da suspensão da pena.
Como convencer, então, da subsistência do bem fundado do juízo de prognose que levou à suspensão da execução da pena?
Depois de duas condenações em pena de multa, uma condenação em pena de prisão substituída por multa e uma condenação em pena de prisão suspensa na sua execução, a prática de um novo crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal não desmente a eficácia da pena de substituição para a tutela do bem jurídico já anteriormente violado?
Quantas condenações seriam ainda necessárias para que se pudesse chegar a essa conclusão?
O grau de indiferença manifestado perante a anterior condenação em pena suspensa é inequivocamente acentuado, a que acresce a total ausência de capacidade de auto- responsabilização e arrependimento.
É tempo de o arguido Manuel M. entender que a condenação em pena suspensa não é um formalismo desprovido de consequências nem representa uma forma de desculpabilização de actos criminalmente censuráveis. Bem pelo contrário, traduz solene aviso para a gravidade da conduta censurada e, quando imposta em crimes puníveis em alternativa com pena de multa ou de prisão, significa o reconhecimento da insuficiência da pena de multa para a tutela dos bens jurídicos protegidos pela norma violada; e significa também que a sua conduta se encontra já num patamar elevado de censurabilidade, com a consequente advertência para a redução da tolerância da ordem jurídica para com futuros comportamentos idênticos.
No caso vertente, essa solene advertência transmitida sob a forma de pena de substituição
– pena de prisão suspensa na sua execução – não evidenciou revestir o grau de dissuasão da prática de novos crimes de que supostamente estaria dotada.
Bem pelo contrário, revelou-se ineficaz para assegurar as finalidades apontadas às penas criminais (a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade).
O juízo de prognose positivo foi, pois, deslegitimado pela actuação do próprio arguido. Donde se conclui que não havendo verdadeiro fundamento para esperar que o aludido
Manuel M. mantenha doravante uma conduta lícita, não resta alternativa: a suspensão da execução da pena deve ser revogada, pois só assim interiorizará o desvalor da sua conduta e só assim ficarão asseguradas as exigências de prevenção geral.
A presente decisão seguiu de muito perto o Acórdão da Relação de Coimbra, de 12 de Maio de 2010 (acessível em www.dgsi.pt/trc, Processo nº1803/05.5PTAVR.C1, relator JORGE JACOB).
Termos em que, ao abrigo do disposto no artigo 56º, nº1, alínea b), e nº2, do Código Penal, determina-se a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido Manuel M., devendo cumprir a pena de 6 (seis) meses de prisão em que foi condenado nos presentes autos.
Notifique e demais diligências necessárias.»
*
Inconformado, o arguido interpôs recurso, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:
«a) O arguido cumpriu as imposições impostas pela sentença, como condição de suspensão de execução da pena de prisão.
b) Não significa, pelo facto de ter cometido novo crime de condução sem habilitação legal, num estado de necessidade, que desvaloriza a sua conduta, ou que a sua intenção fosse a de infringir grosseiramente as regras que lhe haviam sido impostas.
c) a decisão em apreço não apreciou correctamente o disposto nos artigos 40º e 56º do CPP.
d) expressamente violou o art. 20º da Constituição.
e) assim, deve ser revogada a douta decisão em apreço, mantendo-se a suspensão da pena..»
*
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho datado de 31 de maio de 2016.
O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador Geral adjunto emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso.
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V..
1. Questão a decidir
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a questão a apreciar respeita à revogação da suspensão da execução da pena.
*
2. Ocorrências processuais com interesse para a decisão
A) Por sentença proferida nos presentes autos, no dia 5 de junho de 2013, transitada em julgado em 5 de julho de 2013, foi o arguido Manuel M. condenado, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3.º, n.º1, do Decreto-Lei nº2/98, de 3 de janeiro, na pena de 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, condicionada ao cumprimento das seguintes condições: demonstrar a inscrição numa escola de condução no prazo de 3 (três) meses; e demonstrar a sujeição a exame e código no prazo de 1 (um) ano.

B) O arguido demonstrou nos autos a inscrição numa escola de condução para tirar a Carta de Condução da Categoria AM (Ciclomotores, bem como sujeição a exame de código, ao qual reprovou.

C) Houve entretanto conhecimento, através da remessa da respetiva certidão, que por sentença proferida no dia 20 de dezembro de 2013, transitada em julgado em 3 de dezembro de 2014, no âmbito do processo abreviado nº377/13.8GAPTL, do (extinto) 1º juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Ponte de Lima, o arguido foi condenado na pena de 5 (cinco) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, pela prática, no dia 18 de julho de 2013, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3.º, n.º1, do Decreto-Lei nº2/98, de 3 de janeiro.

D) Foi designada uma data para a audição do arguido, à qual este não compareceu, justificando a sua falta.

E) Do certificado de registo criminal do arguido constam, para além da condenação dos presentes autos e daquela outra já mencionada na alínea C) supra, ainda as seguintes:
. no processo comum singular nº509/04.7GAPTL, do (extinto) 2º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Ponte de Lima, por decisão de 14.12.2005, transitada em julgado a 11.01.2006, foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, relativamente a factos ocorridos em 12.11.2004, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de 4,00 €;
. no processo sumário nº342/08.7GAPTL, do (extinto) 2º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Ponte de Lima, , por decisão de 14.07.2008, transitada em julgado a 03.08.2008, foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, relativamente a factos ocorridos em 22.06.2008, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €;
. no processo sumário nº112/10.2GAPTL, (extinto) 1º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Ponte de Lima), por decisão de 11.03.2010, transitada em julgado a 01.04.2010 foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, relativamente a factos ocorridos em 20.02.2010, na pena de 4 meses de prisão substituídos por 120 dias de multa, à taxa diária de 6,00€.
F) No dia 12 de abril de 2016 foi proferido o despacho recorrido, transcrito logo no início deste acórdão.

*

3. Apreciação do recurso
No atual sistema jurídico penal, vigente desde as alterações introduzidas pelo D. L. nº 48/95, de 15 de março, a revogação da suspensão da execução da pena nunca é uma consequência automática da conduta do condenado, implicando sempre uma apreciação judicial sobre a eventual frustração das finalidades que estiveram na base da suspensão, nos termos do disposto no artigo 56.º do Código Penal.
Tal apreciação representa uma real modificação do conteúdo decisório da sentença condenatória, devendo por isso ser posta ao mesmo nível desta no que respeita ao exercício do contraditório no seu grau máximo, que passa pela audição presencial do arguido.
Só dessa forma se efetiva o direito de defesa consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, já que também nos casos em que foi cometido um crime no período da suspensão, o artigo 56.º, n.º 1, al. b) do Código Penal impõe que se indague se as finalidades que estavam na base da suspensão ficaram irremediavelmente comprometidas pelo cometimento desse novo crime Aliás, nem se compreenderia que quando estivesse unicamente em causa a modificação dos deveres, regras de conduta ou outras obrigações impostas fosse obrigatória a audição presencial do condenado e já não o fosse naqueles casos em que pode estar em causa a privação da sua liberdade.
.
Defendemos pois, na esteira de parte da mais recente jurisprudência dos tribunais superiores, que a audição presencial do condenado é obrigatória em todos os casos de eventual revogação da suspensão da execução da pena, constituindo a sua preterição uma nulidade insanável, prevista no artigo 119.º, al. c) do Código de Processo Penal Cf., por todos, o acórdão do TRP de 06.03.2013, proc. nº 691/05.6PIPRT.P1, relatado por Moreira Ramos, disponível em www.dgsi.pt e, na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. pág. 1240.
.
No caso em apreço, o tribunal a quo, tendo conhecimento que o arguido cometeu um crime no período de suspensão de execução da pena que lhe havia imposto, designou uma data para lhe tomar declarações. Contudo, não tendo o arguido comparecido e muito embora tenha justificado essa sua falta, não foi designada uma outra data alternativa para a sua audição, como se impunha, já que a realização da mesma não se mostrava por qualquer forma inviável.
Na prática, acabou por não ser conferida ao arguido a efetiva possibilidade de exercer presencialmente o direito de contraditório, já que o motivo pelo qual faltou à audição não lhe era imputável.
Foi assim cometida uma nulidade insanável, que determina a nulidade da decisão recorrida.
Acresce, ainda, que não obstante o arguido não ter sido ouvido, o tribunal a quo também não determinou a realização e qualquer diligência que permitisse conhecer as circunstâncias envolventes do novo crime e o impacto do mesmo no juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão – designadamente por via da elaboração do relatório social – redundando assim a decisão recorrida, na prática, numa revogação automática da suspensão.
Procede pois o recurso, ainda que por motivos diversos dos invocados.
*

III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, declarar a nulidade da decisão recorrida que deve ser substituída por outra que, em observância do princípio do contraditório, designe nova data para a audição presencial do arguido e, após a realização dessa diligência e de outras que porventura ainda venham a ser consideradas úteis, seja proferida nova decisão sobre a revogação, ou não, da suspensão da execução da pena.
Sem tributação.
*
Guimarães, 15 de dezembro de 2016
(Elaborado e revisto pela relatora)