Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
154/13.6GBCMN.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: SENTENÇA CONDENATÓRIA
DETERMINAÇÃO DA SANÇÃO
OMISSÃO DE FACTOS
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
REENVIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: I) Chegado o momento de determinação das penas e confrontando-se o julgador com a falta de elementos fáticos necessários para proceder a essa operação, deverá concluir pela necessidade de produção de prova suplementar que, não sendo possível efetuar-se de imediato, deverá fazer-se oportunamente, com reabertura da audiência, como previsto nos artigos 369.º, n.º 2 e 371.º do Código de Processo Penal.
II) Se assim não proceder, encerrando a produção da prova sem os necessários elementos fáticos relativos às condições de vida e personalidade do arguido e sem sequer fazer tentativa de os obter, o tribunal comete a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, al. d) do Código de Processo Penal. E, depois, proferindo decisão condenatória com omissão de factos relevantes para a determinação da sanção, produz sentença ferida do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, a que alude a al. a), do n.º 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães
I . RELATÓRIO
No processo comum singular nº 154/13.6GBCMN, da instância local de Caminha, secção de competência genérica, juiz 1, da comarca de Viana do Castelo, foi submetido a julgamento o arguido José R., com os demais sinais dos autos.
A sentença, proferida a 15 de outubro de 2015 e depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, decide-se:
Julgar as acusações particular improcedente e a acusação pública procedente e, em consequência:
- Absolver o arguido José R. pela prática de um crime de difamação, p.p. pelo art. 180.º do Código Penal
- Condenar o arguido José R. pela prática de um crime de injúrias, p.p. pelo art. 181.º do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 6,50;
- Condenar o arguido José R. pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p.p. pelo art. 143.º do Código Penal na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 6, 50;
- Condenar o arguido José R. pela prática de um crime de dano, p.p. pelo art. 212, nº 1 do Código Penal na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 6,50;
- Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena de 160 dias de multa à taxa diária de 6,50 €, no total de € 1040,00;
- Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se em duas U.C. a taxa de justiça.
Julgar os pedidos de indemnização civil deduzidos por Manuel G. parcialmente provados e procedentes e, em consequência:
Condenar o demandado José R. a pagar ao demandante a título de danos não patrimoniais sofridos a quantia de € 700, 00 (setecentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da data da presente sentença.
Absolver o demandado José R. do demais peticionado.
Custas do pedido de indemnização civil por demandante e demandado na proporção do respectivo decaimento (art. 527.º do Código de Processo Civil).
Notifique.
Remeta boletins ao registo.
Lida será depositada.»
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Inconformado, o arguido José R. interpôs recurso, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:
«1º- O arguido/recorrente considera que nos presentes autos não foi produzida prova cabal e suficiente para que os fatos em análise fossem julgados como provados e conduzissem a sua condenação pela prática do crime de dano.
2º- Não resulta da prova documental junta aos autos nem da prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento que os óculos que o assistente envergava tivessem ficado danificados, melhor “torcidos”, como consta do item nº 5 dos fatos dados como provados pelo Mm. Juiz da instância local de competência genérica a quo.
3º- Do conjunto dos depoimentos prestados em sede de audiência a única pessoa a referir tal fato é o assistente, depoimento este, algo sui generis, nada credível, objetivo ou sequer isento, pois que, quer a testemunha José E. quer a testemunha D. Pereira quando questionadas em relação aos mesmos disseram que não sabiam.
4º- Assim, a testemunha José E. inquirida pela Meritíssima Procuradora disse peremtoriamente que não se lembrava, (cf. Segmento 7:00 de 00:00:01 de 00:24:21), assim como, quando inquirida pela mandatária do aqui arguido (vide segmento 23:44 de 00.00:01 de 00:24:21), e a testemunha D. Pereira disse que se recordava de ver uns óculos no chão mas não saber se estavam partidos, vide nesse sentido o segmento da gravação 33:01 de 00:00:01 a 00:35:00.
5º- Para que o tipo de crime de dano se verifique não basta que o agente preveja que tal possibilidade possa ocorrer e se conforme com a mesma, seja que, se verifiquem os elementos subjetivos do tipo de ilícito, o dolo em qualquer uma das suas vertentes e nos termos do disposto no artigo 14º do Código Penal, mas que efetivamente se concretize a destruição, no todo ou em parte, danificação, desfiguração ou a inutilidade da coisa alheia, os elementos objetivos exigidos por lei (vide artigo 212º do Código Penal).
6º- Circunstancia que não se verificou no caso em apreço, pelo que, neste aspeto se entende que os fatos constantes do ponto cinco na parte que refere “ (…) ficando o assistente com os óculos que trazia colocados torcidos (…).”, assim como, os do ponto 8 se encontram incorretamente julgados e que devem ser eliminados da matéria dada como provada e acrescentados na matéria dada como não provada, por violação do constante no artigo 212º do Código Penal.
8º- Considera ainda o recorrente que com a sua condenação pela prática do crime de dano, foi violado o princípio in dubio pro reo, consagrado no artigo 32º, nº 2, da C.R.P.
9º- E isto porque ao não haver prova suficiente nem concreta que permitisse a sua condenação, uma vez que, o único depoimento a referir a danificação da coisa alheia – óculos – é o do ofendido/assistente, não havia certeza quanto a sua verificação.
10º- Sendo que, se considera que o Mm. Juiz a quo partiu de um mero juízo valorativo e das regras da experiencia de que tendo o arguido desferindo muros na face do ofendido tal comportamento tenha tido como consequência a danificação desse objeto.
11º- Mais dirá atento o disposto nos artigos 47º nº 1 e 2 e 71º nº 1 do Código Penal, conjugado com as molduras penais a titulo de pena de multa estabelecidas e previstas para o crime de injúrias (artigo 181º do CP) e para o crime de ofensas a integridade física simples (artigo 143º do CP), e de acordo com as exigências de prevenção especial e da culpa do agente e com o fato de o recorrente ser primário, que o quantitativo diário de multa de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos) fixado ao arguido é excessivo e desproporcional, pois que, o Mm. Juiz da instância a quo desconhece a situação económica do recorrente e seus encargos fixos mensais.
12º- O tribunal a quo alicerçou o critério da sua fixação e na falta de elementos objetivos em juízos de valor, considerando o fato de o recorrente se encontrar a trabalhar na Bélgica e portanto auferir um salário médio mensal superior ao salário mínimo nacional.
13º- O recorrente não tem nesse país casa própria, paga uma renda mensal fixa de cerca de € 1.000,00 (mil euros), paga água, luz, saneamento, telefone, gás que ascende a € 500,00 (quinhentos euros) mensais, é trabalhador da construção civil auferindo um salário médio mensal de cerca de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros).
14º- Pelo que, atenta a estas circunstâncias e condições económicas do arguido deveria o quantitativo diário da pena multa sido fixado ao recorrente próximo do mínimo legal, que no entender do recorrente deveria ter sido de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos).
15º- Pelo que, neste aspeto violou Mm. Juiz da instancia a quo os disposições legais supra indicadas, seja os artigos 47º nº1 e 2 e 71º nº 1 do Código Penal.
Termos em que a douta sentença deve ser alterada no sentido de o arguido ser absolvido do crime de dano pelo qual foi condenado, por manifesta violação das normas constantes dos artigos 212º do Código Penal e artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, assim como, o quantitativo diário de multa fixado para o valor de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), por este cumprir os critérios estabelecidos no nº 2 do artigo 47 do Código Penal atenta a situação económica do arguido, nos termos supra expostos, fazendo-se assim, justiça»
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho de 3 de outubro de 2016.
O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, pugnando pelo não provimento do recurso.
Nesta Relação, a Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido de que deve ser determinada a reabertura da audiência para apuramento da personalidade e modo de vida do arguido, relativamente ao que a sentença é totalmente omissa, o que a fere da nulidade a que faz referência o artigo 379.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V..
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1. Questões a decidir
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, são as seguintes as questões a decidir:
A) impugnação da decisão proferida quanto a determinados pontos da matéria de facto provada, por erro de julgamento;
B) Quantum das penas de multa.
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2. Factos Provados
Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação, constantes da sentença recorrida:
«Em sede de audiência de julgamento, provou-se que:
1. No dia 8 de Agosto de 2013, pelas 19h00, Manuel G. deslocou-se à rua…, em Vila Praia de Âncora, a pedido de Maria P, por conta de uma dívida que a mesma iria cobrar ao seu irmão, o arguido, José R..
2. Porque o seu irmão não se encontrava em casa, Manuel S. dirigiu-se para o seu veículo, onde entrou a fim de abandonar o local.
3. Foi quando visualizou o arguido José R., pelo retrovisor, ao que saiu do seu veículo, envolvendo-se em discussão com este.
4. O arguido José R., dirigindo-se a Manuel S., chamou-o de “filho da puta”.
5. O arguido José R. desferiu em Manuel S. um número não apurado de socos na região da face, ficando o assistente com os óculos que trazia colocados torcidos e a cara ensanguentada, após o que se afastou do local.
6. Em consequência directa e necessária da agressão de que foi alvo, Manuel S. sofreu dores e desconforto.
7. O arguido Abel da Silva bem sabia que ao agredir Manuel S. como agrediu, lhe provocava dores e desconforto, resultado que desejou e que logrou alcançar.
8. Mais sabia o arguido que Manuel S. envergava uns óculos e que ao agredi-lo na zona da face poderiam partir-se, possibilidade com a qual se conformou e que aceitou.
9. Com a expressão referida em 4 o demandado visava ofender Manuel S. na sua honra e dignidade, o que conseguiu.
10. Com a mesma sentiu vexame e humilhação.
11. Em consequência do facto referido em 5 o demandante sentiu vergonha, vexame e humilhação.
12. Mais sabia que as suas condutas eram proibida e punidas por lei penal, não se abstendo de as praticar.
Não se provaram com relevância para a decisão da causa quaisquer outros factos, designadamente que:
- no dia 8 de Agosto de 2013, da parte da tarde, pouco antes das 19h00, Manuel G. recebeu um telefonema de Maria P. a dar-lhe conta que tinha telefonado para o arguido José R., seu irmão, para lhe pedir dinheiro que este lhe devia;
- nesse telefonema o arguido respondeu a Maria P. da seguinte forma: “Pede o dinheiro ao filho da puta do meu irmão”;
- R. Lopes segurou Manuel S. pelas costas, abraçando-o, imobilizando-o e impedindo-o de se movimentar;
- o assistente ficou com os óculos que trazia colocado partidos;
- os óculos denotavam um valor monetário de 350,00 euros;
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Motivação.
A convicção do tribunal acerca dos factos provados fundou-se no conjunto das provas produzidas em sede de audiência de julgamento, interpretadas e conjugadas criticamente à luz das regras da experiência.
Tomou-se em consideração as declarações do assistente Manuel G., que de forma credível descreveu o desenrolar dos acontecimentos, a expressão que aquele lhe dirigiu, na data e hora constantes da acusação (“filho da puta”), e que logo depois culminaram com a agressão do arguido José R. contra si, traduzidos num número não apurado de socos no rosto. Esclareceu, ainda, que como resultado da agressão de que foi alvo, ficou com os óculos que trazia colocados torcidos.
De toda a restante prova produzida, testemunhal ou documental, não resultou esclarecido se os óculos em questão teriam reparação possível, ou qual foi o seu custo, pelo que nada se logrou apurar quanto ao seu valor.
Quanto às alegadas expressões que o arguido José R. teria dirigido contra si à testemunha Maria P. Maria dos Santos Pereira, nada foi dito por esta em sede de julgamento relativamente a tal evento.
Considerou-se o depoimento de José E., que de forma segura, credível e circunstanciada relatou os eventos da realidade fática em apreço, concretizando quer a expressão injuriosa quer as agressões de que o assistente foi alvo.
Considerou-se, ainda, o depoimento credível da testemunha Maria P., que confirmou a expressão dirigida ao assistente – “filho da puta” – seguida de agressão consubstanciada em socos no mesmo assistente.
Todas as testemunhas arroladas e o próprio R. Lopes, que já não assume a qualidade de arguido e este no local na data em apreço, confirmaram a existência, a certa altura, de agressões de parte a parte entre o arguido e o assistente, dando conta de toda a sucessão de eventos, sem omissões, o que reforçou ainda mais a credibilidade das testemunhas.
Mais se consideraram quanto aos factos provados as regras da experiência, que permitem concluir que após os factos descritos na acusação o assistente ficou com dores e se sentiu humilhado.
Mais se ponderou o certificado de registo criminal junto aos autos.
Os factos considerados como não provados mereceram resposta negativa por sobre eles não ter sido produzida prova e prova que se considerasse suficiente.»
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A). Impugnação da decisão proferida quanto a determinados pontos da matéria de facto provada, por erro de julgamento.
Sustenta o recorrente que o tribunal a quo, ao dar como provada a factualidade constante do n.º 5 – na parte em que se refere que os óculos que o assistente trazia colocados ficaram torcidos – e doo n.º 8, fez incorreta apreciação da prova produzida em audiência, da qual tal não resultou.
Para tanto, indica as provas que, em seu entender, impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação.
Assim cumprindo os requisitos de forma estabelecidos para a impugnação da matéria de facto pelo artigo 412.º, n.º 3, als. a), b) e c) e n.º 4 do Código de Processo Penal.
Requisitos esses que se fundam na necessidade da delimitação objetiva do recurso da matéria de facto, na medida em que o recurso deste tipo não se destina a um novo julgamento com reapreciação de toda a prova, como se o julgamento efetuado na primeira instância não tivesse existido, sendo antes o recurso da matéria de facto concebido pela lei como remédio Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 7.ª edição, atualizada e aumentada, 2008, pág. 105.
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Nestes casos, o Tribunal da Relação não faz um segundo julgamento, não vai à procura de uma nova convicção, antes se limitando a fazer o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos no recurso e das provas que imponham, e não só que permitam, decisão diferente. Pois a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tendo de respeitar, o princípio da livre apreciação da prova do julgador, expresso no artigo 127.º do Código de Processo Penal e a sua relação com a imediação e oralidade, sobretudo quando tem que se debruçar sobre a valoração efetuada na primeira instância da prova testemunhal, face à ausência de contacto direto com esse prova, o que integra uma das grandes limitações deste tipo de recursos.
Tudo isto implicando que o tribunal de recurso só possa alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos de erro na apreciação da prova.
Posto isto, vejamos se o tribunal a quo errou na apreciação e valoração da prova produzida na audiência e se o resultado do processo probatório devia ser outro.
Da transcrição da motivação, já supra efetuada, resulta que a sentença recorrida expôs de forma suficiente os elementos de facto que fundamentam a decisão e explicitou de modo percetível o processo lógico que a tal raciocínio conduziu, o que fez sem erro patente de julgamento e sem utilizar meios de prova proibidos. Designadamente explicando, de forma clara, que a prova dos factos relativos ao estado em que ficaram os óculos que o assistente trazia colocados foi feita com base nas declarações do assistente Manuel G., que narrou pormenorizadamente a agressão de que foi vítima, com socos no rosto, esclarecendo que em resultado da mesma – e para além do mais – ficou com os óculos que trazia colocados torcidos.

As testemunhas Maria P. e José E., que demonstraram terem conhecimento direto dos factos, por os terem presenciado, confirmaram a agressão ao assistente, da forma por este narrada e declararam que ele usa óculos e os tinha colocados nessa altura. Tendo inclusive a Maria P. afirmado que chegou a ver os óculos caídos no chão, em consequência da agressão.

Em face desta prova, o tribunal a quo acreditou nas declarações do assistente, também no que respeita ao estado em que ficaram os seus óculos.

A tal contrapõe o recorrente, apenas, que não há nenhuma testemunha que tenha visto os estragos nos óculos. E, embora isso seja verdade, o certo é que da audição da gravação dos respetivos depoimentos verifica-se também que nenhuma das testemunhas afirma o contrário, apenas declarando que não se aperceberam se óculos ficaram ou não «torcidos». Narrando contudo os factos relativos à agressão ao assistente de forma absolutamente compatível com a possibilidade de, por causa dela, os óculos daquele se terem estragado. Não se podendo também esquecer que, como já supra se referiu, a testemunha Maria P. os chegou a ver caídos no chão, na sequência da agressão, o que só por si é suscetível de os danificar uma vez que. como é da experiência comum, os óculos são um objeto delicado, que deve ser manuseado com cuidado, sob pena de sofrerem estragos.

Por outro lado, tendo em conta a natureza dos acontecimentos, que envolvem uma injúria e agressão física com socos na face do assistente, que ficou com a cara ensanguentada, é natural que as testemunhas tenham centrado a sua atenção na pessoa do próprio assistente e não tenham reparado no exato estado em que ficaram os seus óculos, tanto mais que estes não chegaram a partir, ficando apenas «torcidos».

É pois bom de ver que o recorrente não apresenta sequer uma razão válida para que o Tribunal a quo não devesse acreditar na versão apresentada em audiência pelo assistente que, aliás, não foi contrariada por qualquer outro meio de prova.

E, sendo assim, se o tribunal a quo, perante quem foi produzida a prova, com imediação e oralidade, deu credibilidade ás declarações prestadas pelo assistente, se estas são plausíveis segundo as regras da experiência comum e até suportadas por outras provas complementares, a sua decisão é inatacável neste ponto, porque proferida de acordo com a sua livre convicção, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal e em absoluto respeito dos dispositivos legais aplicáveis.

Por outro lado, do iter criminis do arguido, ou seja, da sua ação objectivamente apurada (agressão com vários socos na face) apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência comum, extrai-se a sua intenção relativamente ao dano nos óculos, plasmada no n.º 8. Pois é indubitável que qualquer homem adulto que desfira socos na face de uma pessoa que tenha os óculos colocados tem necessariamente de saber que dessa forma pode causar o estrago dos óculos e de se ter conformado com a verificação dessa possibilidade.
A argumentação e prova indicadas pelo recorrente não impõem assim decisão diversa da proferida, nos termos da al. b), do n.º 3, do artigo 412.º, do Código de Processo Penal.

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O princípio in dubio pro reo
O princípio do in dubio pro reo, postulado do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição sempre que a prova não permite resolver a dúvida acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da atuação do acusado. Tendo esse non liquet de ser resolvido sempre a favor do arguido, sob pena de preterição do referido princípio da presunção de inocência.
Como se escreveu no acórdão do TRP, de 17.11.2010, proferido no processo n.º 97/08.2GCSTS.P1 Disponível em www.dgsi.pt.: “I. O princípio in dubio pro reo pressupõe que após a produção e apreciação exaustiva de todos os meios de prova, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos fatos; não de uma dúvida hipotética e abstracta, sugerida pela apreciação da prova feita pelo recorrente, mas antes uma dúvida assumida pelo próprio julgador. II – Só há violação do princípio in dubio pro reo quando for manifesto que o julgador, perante uma dúvida relevante, decidiu contra o arguido, acolhendo versão que o desfavorece”.
Ora, como flui já da exposição imediatamente antecedente, o tribunal a quo considerou provados todos os factos relevantes relativos ao recorrente, o que fez para além de qualquer dúvida razoável sobre qualquer deles, sem dúvidas em fixar a ocorrência dos factos tal como se encontram descritos. Não decorrendo da sentença a existência ou confronto do julgador com qualquer dúvida insanável sobre factos, motivo pelo qual não houve nem há dúvida para ser valorada a seu favor, não tendo aqui aplicação o princípio in dubio pro reo e não tendo, em consequência, sido violado o princípio constitucional estruturante do processo penal, que é a presunção de inocência.
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Improcede, assim, a impugnação da matéria de facto.
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A concretização das penas
O recorrente sustenta, também, serem excessivas as penas de multa que lhe foram aplicadas, desde logo por o tribunal desconhecer a sua situação económica e encargos fixos mensais.
Vejamos.
O recorrente José R. foi condenado, em concurso real e como autor material, pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal, na pena de 60 dias de multa; pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º do mesmo diploma, na pena de 80 dias de multa; pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1, também do Código Penal, na pena de 60 dias de multa; e, em cúmulo jurídico, na pena única de 160 dias de multa, à taxa diária de € 6,50.
Para chegar a tal condenação, consta da sentença recorrida que, depois de feita a subsunção jurídica dos factos, assente a prática dos crimes e culpabilidade daquele arguido, o tribunal a quo procedeu à determinação das penas parcelares, começando pela sua escolha, após o que concretizou cada uma delas, procedeu à determinação da pena única correspondente ao cúmulo, fixando e fixou a respetiva taxa diária.
Operações essas que, como se sabe, têm todas os respetivos critérios legalmente definidos, nos artigos, 40.º, 47.º, 70.º, 71.º e 77.º do Código Penal.
Dispõe o artigo 40.º do Código Penal, logo no seu n.º1, que «A aplicação de penas (…) visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e, no seu nº 2, «Em caso algum a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa».
O artigo 70.º do Código Penal determina que caso ao crime sejam aplicáveis uma pena de multa em alternativa a uma pena de prisão o Tribunal deve dar preferência à primeira, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, que são precisamente as constantes do citado artigo 40.º, nº 1.
Por sua vez, o artigo 71.º do mesmo diploma prescreve, para além do mais, que na determinação concreta da pena deverão considerar-se, designadamente, «as condições pessoais do agente e a sua situação económica” (al. d)), “a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime» (al. e)), e «a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto» (al. f)).
Devendo, na concretização da pena única a aplicar ao concurso serem considerados «em conjunto, os factos e a personalidade do agente», por imposição do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal.
Determinando o artigo 47.º, n.º 2, também do Código Penal, que o montante diário correspondente a cada dia da pena de multa deve ser fixado entre 5 € e 500 € «em função da situação económica e financeira do condenado e seus encargos pessoais.»
Ora, não obstante os critérios que emanam dos preceitos legais citados, in casu, o tribunal a quo procedeu a todas as operações conducentes à determinação concreta das penas parcelares e única, assim como fixou a taxa diária da multa, com total desconhecimento sobre o modo de vida, situação pessoal, económica e financeira e personalidade do arguido/recorrente, exceto o que sobre ela revelam a ausência de antecedentes criminais, já que, para além do certificado de registo criminal, absolutamente nenhuma outra prova foi sobre esse assunto produzida.
Rigorosamente nada se sabendo, assim, sobre o caráter do arguido e sua situação familiar, profissional, social, económica, financeira e condições de vida.
E, não obstante essa ausência de prova, a que acresce a realização da audiência na ausência do arguido, o certo é que não foi sequer tentada qualquer diligência no sentido de apurar as condições de vida do arguido e a sua personalidade.
Ora, todo este procedimento de determinação das sanções sem conhecimento da concreta pessoa do arguido surge completamente à revelia do protagonismo dado à determinação da pena pelo legislador processual penal, que numa das marcas ideológicas do Código de Processo Penal estabeleceu, inclusive, um sistema que se costuma designar por césure mitigado, segundo o qual, na fase decisória, depois de resolvida a questão da culpabilidade Cfr. artigo 368.º do Código de Processo Penal. e assente esta, entra-se num segundo estádio, destinado exclusivamente à determinação da pena, quando esta seja devida Cfr. artigo 369.º do Código de Processo Penal..
Nas expressivas palavras de Maia Gonçalves In Código de Processo Penal anotado, 2009, p. 837., neste segundo estádio e só então «são tomados em conta os elementos respeitantes aos antecedentes criminais do arguido, as perícias sobre a personalidade e o relatório social. Os elementos já apurados podem ser bastantes e então entra-se logo na escolha da pena (…). Mas se suceder serem tais elementos insuficientes, e ser indispensável prova complementar, reabre-se a audiência procedendo à produção dos meios de prova necessários, ouvindo-se, sempre que possível, (…) quaisquer pessoas que possam depor com relevo sobre a personalidade e as condições de vida do arguido.»
Revertendo novamente ao caso sub judice, temos pois de concluir que o tribunal a quo, quando chegou ao momento de determinação das penas, confrontando-se com a falta de elementos fáticos necessários para proceder a essa operação, deveria ter concluído pela necessidade de produção de prova suplementar que, não sendo possível efetuar-se de imediato Designadamente com a inquirição de testemunhas presentes que eventualmente tivessem conhecimento daquele circunstancialismo., deveria fazer-se oportunamente, com reabertura da audiência, como previsto nos artigos 369.º, n.º 2 e 371.º do Código de Processo Penal.
Bastaria, para tal, solicitar a realização de relatório social, como prevê o artigo 370.º, nº 1 do Código de Processo Penal, o qual, nos termos da respetiva definição fornecida pelo artigo 1º, nº 1, al. g), é precisamente «a informação sobre a inserção familiar e sócio-profissional do arguido (...), elaborada pelos serviços de reinserção social, com o objetivo de auxiliar o tribunal ou o juiz no conhecimento da personalidade do arguido, para os efeitos e nos casos previstos nesta lei.»
Ou, então, produzir qualquer outra prova lícita que possibilitasse o conhecimento da pessoa do arguido, pois apesar de este residir habitualmente no estrangeiro, não resulta dos autos uma impossibilidade objetiva de obter aquele mínimo de elementos sobre as suas condições de vida e personalidade, necessários à fixação da pena.
Não tendo assim procedido, encerrando a produção da prova sem os necessários elementos fáticos relativos às condições de vida e personalidade do arguido e sem sequer fazer tentativa de os obter, cometeu o tribunal a quo a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, al. d) do Código de Processo Penal. E, depois, proferindo decisão condenatória com omissão de factos relevantes para a determinação da sanção, produziu sentença ferida do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, a que alude a al. a), do n.º 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal. Na medida em que do próprio texto da decisão recorrida, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, resulta uma «lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito» (relativa à determinação da sanção), que permite a «conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.» Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos Penais, 8ª ed. Lisboa, 2012, p. 74.
Vício este que é de conhecimento oficioso Que são de conhecimento oficioso. Cfr. Acórdão do STJ nº 7/95 in DR Iª série, de 28.12.1995, que ainda hoje mantém toda a atualidade, o qual fixou jurisprudência obrigatória no sentido do conhecimento oficioso dos vícios da sentença enunciados no artigo 410.º do Código de Processo Penal, que resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum.

e determina o reenvio do processo para novo julgamento, restrito às questões de facto pertinentes para conhecimento das condições de vida e personalidade do arguido/recorrente. E fixados tais factos o reenvio estende-se também, obviamente, à questão de direito com eles conexa, ou seja, à decisão sobre a determinação das penas parcelares e única.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida, ordenando-se o reenvio parcial para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º do Código de Processo Penal, restrito às questões de facto pertinentes para conhecimento das condições de vida e personalidade do arguido José R., e subsequente decisão de direito conexa, de determinação das respetivas penas parcelares e única.
Sem tributação.
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Guimarães, 10 de outubro de 2016
(Elaborado e revisto pela relatora)