Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
105/17.9GAMGD.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
CASO JULGADO MATERIAL
NE BIS IN IDEM
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/26/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. O princípio ne bis in idem, embora não sistematicamente regulado no actual CPP, afirma-se à luz dos preceitos conjugados dos arts. 29º/5 e 18º/1, da CRP, deve ser entendido como garantia para o arguido de não ser submetido duas vezes a um julgamento pelos mesmos “factos” e anda de mãos dadas com as razões que subjazem à eficácia do caso julgado de uma decisão anteriormente produzida, que se harmonizam, inteiramente, com o processo penal, em cuja especificidade tem todo o cabimento a imposição de efectivar a certeza do direito e a prevenção do risco da decisão inútil, impedindo que se reproduza ou contradiga uma decisão já tornada definitiva, e, por essa via, garantir também o prestígio dos tribunais, valores que colhem o seu fundamento nos princípios da confiança, da certeza e da segurança jurídicas, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito, emergente do artigo 2º também da CRP.

II. Na delimitação do conceito «mesmo crime», a que alude o citado preceito constitucional, estão em causa, não os factos abstractos configurados na lei, mera categoria legal, mas sim os factos concretos a que a lei atribui determinados efeitos jurídicos e que sejam invocados como fundamento da pretensão punitiva formulada em relação ao arguido.

III. Em princípio, o caso julgado, a que subjazem os valores da segurança das decisões e da autoridade do Estado, cobre o deduzido e o dedutível, referindo-se esta expressão aos factos que, integrados embora nos fundamentos da pretensão punitiva anteriormente apreciada, não foram, por qualquer razão, trazidos à colação no respectivo processo, fazendo precludir todas as possíveis razões que poderiam ter sido aduzidas e não o foram, mas não podendo estender-se à fundamentação que, pura e simplesmente, não foi indicada, sem o poder ter sido, nem à reparação de uma ofensa ainda não contemplada na pretensão punitiva anteriormente julgada.

IV. No crime de violência doméstica, o comportamento imputado ao agente, normal e tendencialmente, pode unificar, através do elemento da reiteração – embora este seja hoje um requisito não imprescindível – uma multiplicidade de condutas que, consideradas isoladamente, poderiam integrar, numa situação de concurso aparente, vários tipos legais de crime, que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma, acabando por ser unificados naquele único crime, que é específico impróprio, pois a qualidade especial do agente ou o dever que sobre ele impende constitui o fundamento da agravação relativamente aos crimes que as condutas já integravam.

V. A unidade de acção típica não é excluída pela realização repetida de actos parciais, quer estes actos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime, pois o tipo legal inclui na descrição da acção uma pluralidade indeterminada de actos parciais, o que é designado por realização repetida do tipo, desde que se confirme uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, presididas por uma mesma unidade resolutiva criminosa desde o início assumida pelo agente, que, a par da homogeneidade de actuação, e da proximidade temporal, constitui a razão de ser da unificação dos actos de trato sucessivo num só crime, que persiste enquanto durarem os actos lesivos da saúde física (que podem ser simples ofensas corporais), psíquica e mental da vítima.

VI. Enquadrando-se o crime de violência doméstica na figura de crimes habituais, também não pode deixar de se considerar que os mesmos integram a categoria de crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, desde que se confirme a referida unificação de condutas ilícitas sucessivas.

VIII. No caso, desde logo, as condutas imputadas ao arguido num e noutro processo são substancialmente distintas (as imputadas nestes autos foram alegadamente perpetradas entre 2010 e 15/08/2017 e as concretizadas na factualidade provada no anterior processo entre o dia 23/10/2017 e o mês de Maio de 2018), depois, tendo sido aplicado o instituto de suspensão provisória, não poderia estender-se à fundamentação da pretensão punitiva inerente a estes autos a máxima de que o caso julgado cobre o “deduzido” (no processo já julgado) – os factos praticados durante o período da suspensão – e o nele “dedutível” – os factos imputados na acusação formulada nestes autos – porque, simplesmente, neste caso, tal pretensão só poderia ser exercida após o trânsito da eventual condenação a que o arguido viesse a ser sujeito pelo crime da mesma natureza de que, então, havia notícia ter ele alegadamente cometido durante o prazo da dita suspensão.

IX. E os actos pelos quais o arguido foi já condenado foram por ele protagonizados durante o período da suspensão provisória do processo que está na origem destes autos, ou seja, quando o mesmo se encontrava sujeito às obrigações daí decorrentes e depois de ter sido solenemente advertido das consequências da prática de novo crime da mesma natureza, pelo que a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo encerrou o “pedaço histórico de vida” nele visado, no momento em que o arguido foi dela notificado e advertido de que a prática de crime da mesma natureza, pelo qual viesse a ser condenado, durante o prazo de suspensão do processo, determinaria o prosseguimento dos presentes autos (art. 282º/4 do CPP).

X. Com efeito, perante o apontado contexto e as mais elementares regras da experiência, há que concluir que o arguido, uma vez ciente da aplicação do instituto de suspensão provisória e advertido de que a prática de crime da mesma natureza pelo qual visse a ser condenado durante o prazo de suspensão do processo determinaria o prosseguimento dos autos, com esse concreto contacto com o sistema penal, não poderia deixar de ter renovado a tomada de consciência da ilicitude e a censurabilidade da subsequente actividade por ele desenvolvida, ou seja, não poderia deixar de ter renovado a resolução criminosa concretizada nos factos praticados ulteriormente, pelos quais veio a ser condenado, não ocorrendo, pois, uma mesma unidade resolutiva para os efeitos do disposto no art. 29º/5 da CRP, à luz das regras vigentes que regulam as relações de concurso de crimes, pelo que o julgamento nestes autos não comportará violação do princípio ne bis in idem.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1.1. Por decisão proferida e depositada em 14-10-2019 no identificado processo, o arguido M. P. foi julgado e absolvido da imputação de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, als. b) e c), e ns. 2, 4 e 5, do C. Penal e ainda do pedido de indemnização cível formulado pela demandante S. G., por se ter por verificada a excepção de caso julgado material, com a seguinte fundamentação:

«(…) Sobre a questão em dilucidação, numa situação idêntica à dos autos, podemos ler no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15-05-2019 (processo 76/17.1GDCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt), o qual seguiremos de perto, o seguinte:

A excepção de caso julgado materializa o disposto no artigo 29.º, n.º 5 da CRP quando se estabelece como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória afirmando “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
O caso julgado é um efeito processual da sentença transitada em julgado, que por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material).
Transcendendo a sua dimensão processual, a proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos faz que o conjunto das garantias básicas que rodeiam a pessoa ao longo do processo penal se complemente com o princípio ne bis in idem ou non bis in idem, segundo o qual o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva. Esta garantia visa limitar o poder de perseguição e de julgamento, autolimitando-se o Estado e proibindo-se o legislador e demais poderes estaduais à perseguição penal múltipla e, consequentemente, que exista um julgamento plural.
Caso julgado em substância significa decisão imutável e irrevogável; significa imutabilidade do mandado que nasce da sentença. Aproximamo-nos assim à lapidar definição romana da jurisdição: quae finem controversiarum pronuntiatione iudicis accipit (que impõe o fim das controvérsias com o pronunciamento do juiz).
Para que a excepção funcione e produza o seu efeito impeditivo característico, a imputação tem que ser idêntica, e a imputação é idêntica quando tem por objecto o mesmo comportamento atribuído à mesma pessoa (identidade de objecto - eadem res). Trata-se da identidade fáctica, independentemente da qualificação legal (nomen iuris) atribuída.

As duas identidades que refere a doutrina unidade de acusado e unidade de facto punível têm sido assim consideradas:

a. Para que proceda a excepção de caso julgado requer-se que o crime e a pessoa do acusado sejam idênticos aos que foram matéria da instrução anterior à que se pôs termo no mérito de uma resolução executória.
b. A identidade da pessoa refere-se só à do processado e não à parte acusadora para que proceda a excepção de caso julgado.
c. Se os factos são os mesmos e culminaram com uma sentença executória, ainda que o nomen juris seja distinto, é procedente a excepção de caso julgado do ne bis in idem, como exigência da liberdade do indivíduo, o que impede é que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, sendo indiferente que estes possam ser contemplados de distintos ângulos penais, formal e tecnicamente distintos.

Para a identificação de facto tem que tomar-se em linha de conta v.g. os critérios jurídicos de "objecto normativo" e "identidade ou diversidade do bem jurídico lesionado".
A identidade do facto mantém-se ainda quando seja pelos mesmos elementos valorados no primeiro julgamento ou pela superveniência de novos elementos ou de novas provas deva considerar-se em forma diferente em razão do título, do grau ou das circunstâncias. O título refere-se à definição jurídica do facto, ao momen iuris do crime. A mutação do título sem uma correspondente mutação de facto não vale para consentir uma nova acção penal.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09-10-2017 (processo n.º 83/14.6GAMCD.G1): “Enquadrando-se o crime de violência doméstica, tal como o antecedente crime de maus tratos, na figura de crimes habituais, os mesmos também não podem deixar de se considerar que integram a categoria de crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, mas, para tal, tem-se exigido que se confirme uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, presididas por uma mesma unidade resolutiva criminosa desde o início assumida pelo agente. É essa unidade resolutiva, a par da homogeneidade de actuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos actos de trato sucessivo num só crime.”
Em conclusão, para estabelecer a identidade fáctica para efeito de aplicar a excepção de caso julgado, não interessa que os mesmos factos tenham sido qualificados ou subsumidos a distintos tipos penais, nem importa tão pouco o grau de participação imputado ao sujeito.
Um terceiro requisito de procedibilidade, que tem relação estreita com a natureza do caso julgado, respeita a que o primeiro processo tenha sido findo totalmente e que não seja susceptível de meio impugnatório algum, para que justamente se possa reclamar os efeitos de inalterabilidade que acompanha as decisões jurisdicionais que passam à autoridade de caso julgado.
Para a determinação de identidade de facto é essencial considerar o seu significado jurídico. Os processos de subsunção são um caminho de ida e volta, em que se transita da informação fáctica à norma jurídica e desta aos factos outra vez.
Sempre que, segundo a ordem jurídica, se trate de uma mesma entidade fáctica, com similar significado jurídico em termos gerais – e aqui "similar" deve ser entendido de modo mais amplo possível –, então deve operar o princípio ne bis in idem.
Pelo que, só quando claramente se trata de factos diferentes será admissível um novo processo penal - cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 13-04-2011, acessível in www.dgsi.pt.
Com relevância em sede de crime de violência doméstica, concorda-se com o douto Acórdão da Relação do Porto de 28-10-2015 acessível in www,dgsi.pt, segundo o qual o principio ne bis in idem engloba uma verdadeira proibição de dupla perseguição penal, sempre que tenha ocorrido um qualquer ato processual do Estado que represente uma tomada definitiva de posição relativamente a determinado facto penal, quer seja através de uma sentença, do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, da decisão de não pronuncia pelo Juiz de Instrução Criminal, da declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, prescrição do procedimento criminal ou até por mera desistência de queixa.
Ademais, sendo certo que o crime de violência doméstica é um crime habitual ou de reiteração, onde as várias condutas isoladas são unificadas pela violação do mesmo bem jurídico (a saúde, física, psíquica e mental), se um dado facto, embora novo, se integra no mesmo pedaço de vida do arguido e da vitima subsumível ao crime de violência doméstica, já definitivamente julgado, é abrangido pelo caso julgado e a sua consideração autónoma viola o principio ne bis in idem.

Prossegue o Acórdão, referindo o seguinte:

O conceito ou natureza deste princípio mostra-se analisado por Gomes Canotilho e Vital Moreira In Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª Edição, 2007, pp. 497 e 498, como comportando “duas dimensões: (a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.
A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídicopenais pela prática do «mesmo crime».”
A lei constitucional é clara ao pretender impedir nova apreciação dos mesmos factos, seja qual for a qualificação jurídica que lhes é atribuída. Como afirma Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 1992, pág. 226, “… o caso julgado tem uma função de garantia do cidadão que se traduz na certeza, que se lhe assegura, de não poder voltar a ser incomodado pela prática do mesmo facto”.
Importa, assim, definir e delimitar o que se deve entender ou considerar por “o mesmo substrato material”, “o mesmo facto” ou, segundo o n.º 5 do artigo 29.º da CRP, “mesmo crime”, para, por esta via, evitar o designado duplo julgamento e consequente violação do caso julgado material.
Ora, a jurisprudência tem vindo a entender que a expressão “mesmo crime”, a consagrada pelo legislador “não deve ser interpretada, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, «mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime.” - Ac Rel Coimbra de 28-05-2008, Rel. Alberto Mira.
Segundo Frederico Isasca, ob, cit., pág. 242 e 229 «… o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados».
Por sua vez, decidiu-se no Acórdão do STJ, de 15-03-2006, relator Cons. Oliveira Mendes que “o termo “crime” não deve, pois, ser tomado ao pé-da-letra, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar.
O que o artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, proíbe, é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal.
Deste modo, aquilo que, devendo tê-lo sido, não se decidiu directamente, tem de considerar-se indirectamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tomar-se como decidido tacitamente.
Traduzindo-se, pois, a expressão “mesmo crime”, no designado “pedaço de vida” apreciado e julgado e que constitui ou integra um determinado crime, importa agora analisar todo o factualismo fornecido pelos autos com vista à verificação ou não de caso julgado relativamente ao “pedaço de vida” que no caso releva.
A natureza jurídica do crime de violência doméstica ajuda a melhor compreender e integrar a concreta situação.
Segundo o definido pelo atual artigo 152.º, do Código Penal, este crime pode ser praticado de modo reiterado ou não. O que significa que um único facto pode ser qualificado como integrando este tipo de crime, do mesmo modo que o crime pode ser integrado por vários ou diversos factos. Trata-se, neste caso, de um crime único ainda que de execução reiterada.
Diz-se que a execução é reiterada quando cada ato de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. E todos os eventos parcelares devem ser considerados como evento final unitário. Ou seja, é a soma dos eventos parcelares que constitui o evento do crime único de violência doméstica. E tratando-se de um crime único, a consumação ocorre com a prática do último ato de execução (neste sentido se pronuncia o Ac. TRE de 19-12-2013).

Segundo Henrique Salinas in Os Limites Objetivos do ne bis in idem, Dissertação de Doutoramento - fevereiro de 2012, página 694 “a preclusão, contudo, não diz apenas respeito ao que foi conhecido, pois também abrange o que podia ter sido conhecido no processo anterior. Para este efeito, teremos de recorrer aos poderes de cognição do acto que procedeu à delimitação originária do processo, a acusação em sentido material, tendo em conta um objecto unitário do processo. Desde logo, como neste acto não existe qualquer limitação à qualificação jurídica dos factos no mesmo descritos, pode concluir-se que não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto, diversamente qualificados. De igual modo, neste acto podiam ter sido conhecidos factos que traduzem uma alteração, substancial ou não substancial, dos que nele foram incluídos, uma vez que, em qualquer dos casos, estamos ainda dentro dos limites do mesmo objecto processual. Por esta razão, não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto.”
Também segundo o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28 de Outubro de 2015: O princípio ne bis in idem engloba uma verdadeira proibição de dupla perseguição penal, sempre que tenha ocorrido um qualquer ato processual do Estado que represente uma tomada definitiva de posição relativamente a determinado facto penal, quer seja através de uma sentença, do arquivamento do inquérito pelo MºPº, da decisão de não pronuncia pelo Juiz de Instrução Criminal, da declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, prescrição do procedimento criminal ou até por mera desistência de queixa. E engloba não só o que foi conhecido no 1º processo mas também o que aí poderia ter sido conhecido.
O crime de violência doméstica é um crime habitual ou de reiteração, onde as várias condutas isoladas são unificadas pela violação do mesmo bem jurídico (a saúde, física, psíquica e mental), nele se exaurindo ou esgotando. Se um dado facto, embora novo, se integra no mesmo pedaço de vida do arguido e da vítima subsumível ao crime de violência doméstica, já definitivamente julgado, é abrangido pelo caso julgado e a sua consideração autónoma viola o princípio ne bis in idem.

No mesmo sentido, v. Ac. da Relação de Lisboa, de 17/04/2013, no processo n.º 790/09.5GDALM.L1-3, nos termos do qual “a apreciação de uma nova conduta, temporalmente inserida no âmbito do período de tempo considerado para uma anterior condenação pelo mesmo crime, desde que individualmente suscetível de integrar o referido crime, por ser relativa a toda uma prática de humilhação, degradação e aviltamento da dignidade do cônjuge, está coberta pela proibição do ne bis in idem, que constitui a manifestação substantiva do princípio do caso julgado”.

No Aresto deste Acórdão referiu-se o seguinte:

1- O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é plural e complexo: visa essencialmente a saúde, entendida nas vertentes de saúde física, psíquica e/ou mental, mas abrange também a protecção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal. E, por conseguinte, é susceptível de ser afectado por toda uma diversidade de comportamentos, desde que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento ou afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge.
2- O tipo de crime, enquanto crime de reiteração ou exaurido, abrange a prática de uma multiplicidade de condutas, reiteradas (e não sucessivas) ao longo de determinado período de tempo, que se praticaram na pessoa do cônjuge, ainda que de natureza diversa, desde que todas elas se tenham reportado a maus tratos, físicos ou psíquicos (art° 152°/1, do CP).
3- Sendo, tipicamente, um crime de reiteração ou exaurido – e colocando-se a questão no âmbito dessa reiteração e não da exceção - que congrega condutas de natureza heterogénea, normalmente tipificadas como crimes, se individualmente consideradas, mas aqui sempre valoradas globalmente, o objeto do caso julgado não se afere considerando a materialidade de cada concreta conduta ofensiva.
4- Esse caso julgado congrega todo um leque de condutas naturalísticas, unificadas pela violação do bem jurídico tutelado, da saúde e dignidade do outro cônjuge/companheira, dentro da relação marital. É esse bem jurídico que unifica as diversas lesões produzidas, no corpo, na saúde, na dignidade e integridade da vítima e não a natureza de cada ato concreto.
5- A apreciação de uma nova conduta, temporalmente inserida no âmbito do período de tempo considerado para uma anterior condenação pelo mesmo crime, desde que individualmente susceptível de integrar o referido crime, por ser relativa a toda uma prática de humilhação, degradação e aviltamento da dignidade do cônjuge, está coberta pela proibição do ne bis in idem, que constitui a manifestação substantiva do princípio do caso julgado.

No sentido de que o princípio ne bis in idem abrange qualquer caso em que o Estado já tenha tomado posição sobre determinada conduta criminosa, veja-se, ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-01-2018 (821/16.2T9GDM.P1), no qual se decidiu que “ocorre violação do principio ne bis in idem, a apreciação pelo tribunal em julgamento, de factos anteriormente investigados em inquérito que foi arquivado e que não foi objecto de despacho de reabertura e em relação aos quais não foram apresentados novas provas.
Posto isto, volvendo ao caso em apreço, cremos que os factos aqui retratados, de acordo com o que se dizendo, se encontram a coberto do princípio ne bis in idem, previsto no n.º 5, do artigo 29.º da CRP. Vejamos:
O arguido foi julgado e condenado por sentença transitada em julgado no dia 11.2.2019, no processo n.º 70/17.2T9MGD, pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do CP, na pessoa de S. G..
Os factos pelos quais o arguido foi condenado nesse processo remontam ao início do relacionamento entre o arguido e a referida vítima (desde sempre o relacionamento da ofendida e o arguido era tumultuoso e pautado por discussões), aludindo-se a factos concretos datados desde Outubro de 2017 e depois desde Maio de 2018 – cfr. pontos 5, 6 e ss. e 15 e ss., dos factos provados.
Nestes autos, decorre dos factos que estão imputados ao arguido que desde o início o relacionamento entre o arguido e a ofendida era tumultuoso e pautado por discussões, começando por concretizar temporalmente os factos em 2014, imputando-se em 2015/2016 actos persecutórios do arguido em face à vítima, contactos telefónicos e factos novamente concretizados em Agosto de 2017.
Ora, além de em ambos os processos se imputarem ao arguido factos de natureza similar – injurias, perseguições, contactos telefónicos – a motivação que se retira das condutas do arguido é exactamente a mesma em ambos os processos: o exercício das responsabilidades parentais referentes ao filho menor do arguido e da vítima.
Globalmente apreciados os factos torna-se visível que as condutas imputadas nestes autos ao arguido têm subjacente a mesma resolução criminosa dos factos pelos quais o arguido já foi julgado no processo 70/17.2T9MGD, dela fazendo parte integrante.
Assim sendo, claro está que não pode, nestes autos, o arguido ser novamente submetido a julgamento por factos que não tendo sido directamente discutidos no processo referido se encontram interligados com os mesmos no âmbito da mesma resolução criminosa, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.
A procedência desta exceção de caso julgado, importa a consequente absolvição do arguido pelo crime de que se encontra acusado nestes autos, ficando, ainda, vedada a pronúncia pelo tribunal sobre os factos que aqui lhe estão imputados, atenta a hipotética contradição de julgados que aquela excepção também visa acautelar.

1.2. Inconformado com a referida decisão, o Ministério Público interpôs recurso formulando na sua motivação as seguintes conclusões:

«A) Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou verificada a excepção do caso julgado material e, consequentemente, absolveu o arguido de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b) e c), 2, 4 e 5, do Código Penal, de que vem acusado nestes autos, pretendendo o reexame da matéria de facto e de direito.
B) Salvo melhor opinião, afigura-se que a Mma Juiz a quo, julgando como julgou, não fez correcta apreciação da factualidade objecto dos presentes e consequentemente não interpretou, nem aplicou correctamente o direito atinente, como se procurará demonstrar.
C) Os factos objecto dos presentes autos foram objecto do instituto de suspensão provisória, nos termos do artigo 281.º, n.º 7, do CPP
D) A requerimento da vítima, S. G., e com a concordância do arguido, M. P., manifestada no dia 02/10/2017 (Ref.ª20616147), por se ter considerado encontrar-se suficientemente indiciada a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, als. b) e c), e ns. 2, 4 e 5, do C. P. Penal, por banda deste sobre aquela, por despacho proferido pelo Ministério Público, no dia 10/10/2017 (Ref.ª 20621378), com a concordância da Mma Juiz de Instrução Criminal, proferida no dia 16/10/2017 (Ref.ª20642592), o inquérito foi encerrado e suspenso provisoriamente pelo período de 9 (nove) meses, com início em 24/10/2017 e termo em 24/07/2018 (cfr. Ref.ª 20663173), mediante o cumprimento determinadas injunções.
E) Conforme decorre do despacho do Ministério Público (Ref.ª 20621378), que aplicou o instituto de suspensão provisória do processo, os factos suficientemente indiciados foram praticados no período do ano de 2010 a 15/08/2017.
F) O arguido foi notificado da aplicação do referido instituto de suspensão provisória (cfr. Ref.ªs 20656018 e 966532) com advertência de que, em caso de incumprimento, ou de prática de crime da mesma natureza, pelo qual venha a ser condenado, durante o prazo de suspensão do processo, este prosseguirá e as prestações feitas não poderão ser repetidas, nos termos do disposto no art. 282.º, n.º 4 do C. P. Penal;
G) No dia 13/11/2017, o Ministério Público tomou conhecimento da existência do inquérito n.º 70/17.2T9MGD, onde eram noticiados a prática de FACTOS NOVOS pelo arguido na mesma pessoa da aqui vítima DURANTE O PERÍODO DE SUSPENSÃO, susceptíveis de integrar em geral e abstracto a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal (cfr. Ref.ª 20694385):
H) Uma vez que o inquérito já havia sido encerrado e encontrava-se na fase da suspensão provisória, não podia ser determinada a apensação daqueles autos de inquérito n.º 70/17.2T9MGD a estes por ser legalmente inadmissível.
I) Na verdade, um inquérito, depois de ter sido objecto da aplicação do instituto de suspensão provisória, segue uma tramitação processual própria que se acha prevista no disposto do artigo 282.º, n.ºs 3 e 4 do CPP e que reza assim:

ARTIGO 282.º (Duração e efeitos da suspensão)

(…) 3. Se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto.
4. O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas: a) se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou
b) se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.»
J) Assim, uma vez aplicado o instituto de suspensão provisória, dúvidas não há que a sua tramitação ulterior legalmente possível apenas pode ser o de arquivar ou determinar o prosseguimento do processo para julgamento, conforme cit. artigo 282.º, n.ºs 3 e 4, do CPP.
K) Ora os factos objecto do aludido inquérito n.º 70/17.2T9MGD, porque praticados durante o período de suspensão, caíam no âmbito da previsão da alínea b) do cit. artigo 282.º, n.º 4 do CPP, pelo que em relação a esta nova factualidade, não restava outra alternativa se não aguardar pelo desfecho final do inquérito/processo.
L) Conforme Eduardo Maia Costa, in Código de Processo Penal, Comentado, ano 2016, 2.ª edição revista, Almedina, p. 247: havendo notícia dentro do prazo da suspensão ou no termo do prazo da suspensão de prática de crime de idêntica natureza, deverá aguardar-se o trânsito da respectiva decisão, em ordem a tomar posição sobre o destino do inquérito.
M) No dia 10/07/2018 foi proferido despacho de acusação naqueles autos de inquérito n.º 70/17.2T9MGD, o que foi dado conhecimento aos presentes autos (cfr. Ref.ª CITIUS 1148919).
N) No dia 21/02/2019 foi junta aos presentes autos certidão da sentença proferida no cit. proc.º n.º 70/17.2T9MGD, com nota do seu trânsito julgado.
O) Conforme referida certidão, por sentença transitada em julgada no dia 11/02/2019, nos autos de processo crime n.º 70/17.2T9MGD, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Mogadouro deste Tribunal, o Arguido foi condenado na prática de um crime de violência doméstica na mesma pessoa da aqui vítima, na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, com obrigação de frequentar programas específicos de prevenção de violência doméstica e ainda de não contactar a assistente, exceptuando o que seja estritamente necessário ao tratamento de questões relacionadas com o filho de ambos (cfr. cit. Ref.ª CITIUS 1303088);
P) Como se pode ver da referida sentença condenatória, os factos pelos quais foi ali condenado ocorreram no período temporal compreendido entre os dias 23/10/2017 e o mês de Maio de 2018, ou seja durante o período da suspensão provisória destes autos – cfr. alínea D) supra
Q) Pelo que no dia 06/03/2019, por despacho proferido pelo Ministério Público foi revogada a suspensão provisória e o arguido acusado pelos factos objecto do despacho que aplicou a suspensão provisória, ao abrigo do disposto do cit. artigo 282.º, n.º4, alínea b), do CPP (crf. Ref.ª CITIUS 21709856).
R) Da análise do despacho de acusação proferido nestes autos e da sentença condenatória, afigura-se de meridiana clareza, que, além de estarmos perante factos que tiveram lugar em períodos temporais distintos, não há unidade de motivação e nem de resolução criminosa.
S) Com efeito, apesar de conexionados pessoalmente (há identidade do arguido e da vítima) os factos dos presentes autos tiveram lugar durante o período em que namoraram - ano de 2010 até 2014 - e depois de terem cessado essa relação de namoro - ano de 2014 a 15/08/2017.
T) Sendo que a motivação que lhe esteve subjacente só parte dos factos reportados ao Inverno de 2016 até 15/08/2017 (pontos 19 a 27 da acusação) é têm que ver com o exercício das responsabilidades parentais, todo os demais prendem-se exclusivamente com o relacionamento de namoro que tiveram e ainda com a não aceitação por banda do arguido da separação e do novo relacionamento amoroso entretanto estabelecido entre a vítima e terceiro.
U) De resto, a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo encerrou esse pedaço histórico de vida no momento em que o arguido foi notificado da sua aplicação e advertido de que a prática de crime da mesma natureza, pelo qual venha a ser condenado, durante o prazo de suspensão do processo, determinaria o prosseguimento dos presentes autos, nos termos do disposto no art. 282.º, n.º 4 do C. P. Penal.
V) Com efeito, nesse momento, o arguido não pôde deixar de tomar consciência da ilicitude e censurabilidade da actividade por si desenvolvida até então.
W) Pelo que, a partir dessa data, quaisquer decisões do arguido de manter a sua conduta ilícita constituem novas resoluções e com tal deverão ser autonomamente valorados em sede criminal.
X) A prática dos factos criminosos que integram a condenação no proc.º 70/17.2T9MGD, ocorreu já depois de ter sido aplicado o instituto da suspensão provisória nestes autos.
Y) Ocorreu assim uma nova resolução criminosa por banda do arguido na prática dos factos que foram objecto do proc.º n.º 70/17.2T9MGD – neste sentido vide, por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no dia 22-11-2017, no proc.º n.º 1764/13. 7TACBR.S1,
Z) Assim, fazendo apelo às mais elementares regras da experiência, há que concluir que os factos objecto dos presentes autos não podem ser considerados como integrando a mesma acção e resolução criminosas, a significar que o objecto dos presentes autos e objecto do proc.º 70/17.2T9MGD são distintos, ou seja, que a condenação imposta ao arguido no proc.º 70/17.2T9MGD não colide com o disposto no n.º 5 do artigo 29º da Constituição da República.
AA) Pelo que não se mostra violado o princípio non bis in idem, previsto no artigo 29.º, n.º5, da Constituição da Republica Portuguesa, e, consequentemente, não se verifica a excepção do “caso julgado material”.
BB) Sem prejuízo do que se vem de arrazoar, acresce que a não se entender assim, estar-se-á a premiar todos arguidos, suficientemente indiciados da prática de crime violência doméstica no âmbito do instituto de suspensão provisória do processo, que vierem a praticar o mesmo crime durante o período da suspensão, pois que ficarão impunes relativamente aos factos criminosos, objecto da suspensão provisória processo, o que redunda numa contradição e destitui o instituto de suspensão provisória no âmbito da violência doméstica de qualquer dignidade.
CC) Nestas circunstâncias, a Mma Juiz a quo julgando, como julgou violou o disposto do artigo 282.º, n.º4, alínea b) do CPP, e os princípios constitucionais da legalidade, da transconstitucional da unidade da ordem jurídica, e respectivo corolário princípio de justiça, subjacente ao Estado de Direito em sentido material.»

1.3. A assistente S. G. não respondeu ao recurso e neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu fundamentado parecer, sustentando que muito embora exista identidade de sujeitos, os factos tiveram lugar em períodos temporais distintos, não se podendo afirmar a unidade de motivação ou de resolução criminosa; a aplicação do instituto de suspensão provisória do processo e notificação das suas consequências ao arguido encerrou o pedaço histórico de vida que a determinou, tomando este consciência da ilicitude e censurabilidade da actividade por si desenvolvida até então.

1.4. Foi cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP, efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, n.º 3, al. c), do CPP.
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II – Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, suscita-se neste recurso a questão de saber se os factos pelos quais o arguido foi submetido a julgamento, factos integrantes do crime de violência doméstica, se devem ter por já julgados no processo n.º 70/17.2T9MGD, onde lhe foi imposta, por decisão proferida em 10/01/2019, transitada em julgado em 11/02/2019, a pena de 2 anos e 6 meses de prisão, ou seja, se foi violado o princípio constitucional consagrado no n.º 5 do artigo 29º da Constituição da República.

Importa apreciar e decidir tal questão.
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III - O Direito.

1. O caso julgado material.

O recorrente mostra-se inconformado com a sentença proferida que julgou verificada a excepção de caso julgado material e, consequentemente absolveu o arguido da prática do crime de violência doméstica que lhe vinha imputado, sustentando que os factos tiveram lugar em períodos temporais distintos, não havendo unidade de motivação e de resolução criminosa, na medida em que os factos em discussão nestes autos tinham sido objecto do instituto de suspensão provisória, que veio a ser revogada, quando no términus do prazo se constatou que o arguido havia praticado no seu decurso novos factos delituosos.

Vejamos.

Como é sabido, o princípio ne bis in idem, embora não sistematicamente regulado no actual Código de Processo Penal – ao contrário do que sucedida no de 1929 –, afirma-se, contudo, à luz dos preceitos constitucionais conjugados dos arts. 29º, n.º 5 e 18º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (1).

De harmonia com o disposto no primeiro dos citados normativos ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime. Esse comando alberga o concreto sentido de que «a necessidade de acatar a proibição do “duplo processo” sobre o mesmo facto, inerente ao princípio ne bis in idem, anda de mãos dadas com as razões que subjazem à eficácia do caso julgado de uma decisão anteriormente produzida, que se harmonizam, inteiramente, com o processo penal, em cuja especificidade tem todo o cabimento a imposição de efectivar a certeza do direito e a prevenção do risco da decisão inútil, impedindo que se reproduza ou contradiga uma decisão já tornada definitiva, e, por essa via, garantir também o prestígio dos tribunais, valores que colhem o seu fundamento nos princípios da confiança, da certeza e da segurança jurídicas, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito, emergente do artigo 2º da Constituição» (2).

Neste âmbito, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (3) referem que o princípio ne bis in idem «comporta duas dimensões: (a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.
(…) A constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime».».
Com lucidamente salientou o acórdão do STJ de 20/10/2010 (p. 3554/02.3TDLSB.S2), «em processo penal o caso julgado formal atinge, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade – a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objecto do processo –, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, supondo a inalterabilidade sic stantibus aos pressupostos de conformação material da decisão».
Também o Prof. Damião da Cunha entende que este princípio deve ser entendido como «garantia subjectiva para o arguido não ser submetido duas vezes a um julgamento pelos mesmos “factos” e, consequentemente, e de acordo com um processo regido pelo princípio de acusação, não ser “acusado” duas vezes pelos mesmos factos» e esclarece que «o caso julgado penal em relação a futuros processos penais teria um efeito meramente negativo – a obrigação, para o juiz, de declinar a decisão sobre a questão já resolvida» (4).
Impõe-se a delimitação do conceito «mesmo crime», a que alude o preceito constitucional.
Para Frederico Isasca (5), «crime significa, aqui, um comportamento de um agente espácio-temporalmente delimitado e que foi objecto de uma decisão judicial, melhor, de uma sentença ou decisão que se lhe equipare” (...) “a expressão crime não pode ser tomada ao pé da letra, mas antes entendida como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar. O que o nº 5 do art.º 29º da Constituição da República Portuguesa proíbe é, no fundo, que um mesmo concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal».
No que concerne ao que deva entender-se por definição do objecto do processo, o mesmo Autor (6), referenciando os ensinamentos de Eduardo Correia, Castanheira Neves e Figueiredo Dias e a evolução da doutrina, conclui: «O objeto do processo penal será, assim, o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço de vida vertido na acusação e imputado, como crime, a um determinado sujeito e que durante a tramitação processual se pretende reconstituir o mais fielmente possível».

E na conformação ou preenchimento do conceito “identidade do facto”, ínsito ao princípio “ne bis in idem”, ou seja, para poder responder à questão de saber quando é que um facto se pode considerar “o mesmo” e, assim, saber se está a ser objecto dum duplo julgamento, encontramos arrimo no que professam Tereza Pizarro Beleza e Frederico Lacerda da Costa Pinto (7):

«(…) De acordo com a doutrina dominante, o conceito de identidade do facto é de natureza material e não puramente processual e, por outro lado, é um conceito normativo e não um conceito naturalístico.
Significa isto que não é o processo que determina se o facto é ou não o mesmo, mas sim as características materiais do facto que podem infirmar ou confirmar a identidade do mesmo.
A identidade do facto é, por seu turno, um conceito normativamente modelado para o qual concorrem não só aspectos naturalísticos do objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado, acontecimento em causa, como também as conexões normativas que lhe conferem as qualidades que justificarão a sua integração no objecto dum processo.
Nesse sentido, a doutrina aponta três vectores da identidade do facto que devem ser tipos em conta, a saber: a identidade do agente, a identidade do facto legalmente descrito e a identidade de bem jurídico agredido. Agente, facto e bem jurídico são os três crivos de identificação da identidade do acontecimento que se pretende submeter a um processo.
Só perante a identidade destes três conjuntos de elementos (agente, facto legalmente descrito e bem jurídico) é que se pode afirmar que o facto que se pretende submeter a um certo processo é o mesmo ou é distinto de outro facto submetido, anteriormente ou concomitantemente, a outro processo.
(…) Existirá dupla valoração sobre o mesmo facto quando o juízo de valor jurídico formulado incida sobre o mesmo agente e o mesmo facto em função da tutela do mesmo bem jurídico. Isto acontecerá independentemente da natureza da sanção aplicável. Para além destes casos de identidade plena de factos, ainda será necessário ponderar as situações de identidade parcelar dos factos em função das relações lógicas e axiológicas de identidade (i.e. consunção e, eventualmente, especialidade) e subordinação (i.e. subsidariedade) entre as normas que valoram as situações jurídicas. O que vale por dizer que a dupla valoração só é realmente evitada quando se sujeita o material analisado às regras vigentes que regulam as relações de concurso de normas. Só assim se pode garantir que uma pessoa ou entidade não é duplamente julgada ou condenada pelo mesmo facto, no seu todo ou em parte. (…)»
Por fim mas como decorrência do exposto, não olvidamos que estão em causa, não os factos abstractos configurados na lei, mera categoria legal, mas sim os factos concretos a que a lei atribui determinados efeitos jurídicos e que sejam invocados como fundamento da pretensão punitiva formulada em relação ao arguido.
Ora, não é pacífica nem evidente a resposta à questão de saber se a proibição imanente ao princípio ne bis in idem, enquanto manifestação substantiva do caso julgado, engloba ou alcança apenas os factos que foram conhecidos e objecto de decisão no primeiro processo ou, também, os factos que, podendo e devendo ter sido aí conhecidos, não o foram.
Todavia, aderimos ao entendimento de que, em princípio, o caso julgado cobre o deduzido e o dedutível, referindo-se esta expressão aos factos que, integrados embora nos fundamentos da pretensão punitiva anteriormente apreciada, não foram, por qualquer razão, trazidos à colação no respectivo processo.
Já Manuel de Andrade ensinava que “vale a máxima segundo a qual o caso julgado «cobre o deduzido e o dedutível» ou «tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debebat»”, ficando, por isso, precludida a possibilidade de se vir, “em novo processo, invocar outros factos instrumentais, ou outras razões (argumentos) de direito não produzidas nem consideradas oficiosamente no processo anterior»” (8).
Realmente, não podemos deixar de entender que o caso julgado «cobre o deduzido e o dedutível», fazendo precludir todas as possíveis razões que poderiam ter sido aduzidas e não o foram, porque subjazem ao instituto os valores da segurança das decisões e da autoridade do Estado. Por isso, em tese geral, concordamos com o entendimento acerca do efeito preclusivo inerente ao caso julgado, expresso nessa máxima. A cobertura do “dedutível” pelo caso julgado apenas não pode abranger o adicionamento fáctico que venha a ser apresentado e correspondente ao preenchimento, posterior ao processo precedentemente decidido, de qualquer condição, ou à verificação de qualquer prazo ou de qualquer facto (art. 621º do CPC).
No entanto, também pensamos que não podem ser esquecidos todos os valores em presença: por um lado, as referidas segurança das decisões e autoridade do Estado, por outro, a realização da justiça. Razão pela qual, deve ser bem precisado o sentido e alcance dessa máxima: a inclusão do “dedutível” no caso julgado refere-se necessariamente, apenas, a factos instrumentais ou outras razões (argumentos) de direito ou a factos que, integráveis embora na fundamentação complexa da pretensão submetida ao anterior julgamento, não foram indevidamente materializados ou concretizados e, portanto, trazidos à colação no respectivo processo. E, sob pena de completa subversão da ideia de realização da justiça, só relativamente a esses factos é admissível a extensão dos efeitos do caso julgado, não podendo, pois, estender-se à fundamentação que, pura e simplesmente, não foi indicada, sem o poder ter sido (9), nem à reparação de uma ofensa ainda não contemplada na pretensão punitiva anteriormente julgada.
Ora, revertendo ao caso dos autos em face das considerações expostas, importa para melhor resolução da questão que nos vem colocada que nos debrucemos sobre a natureza do crime de violência doméstica que foi imputado ao arguido, quer no processo n.º 70/17.2T9MGD – em cujo âmbito o mesmo, por factos cometidos entre os dias 23/10/2017 e o mês de Maio de 2018, foi condenado –, quer nestes autos – em que lhe era assacada a prática de determinados factos entre 2010 e 15/08/2017, em relação aos quais na decisão recorrida se considerou estarem abrangidos pelo caso julgado, pelas razões acima exibidas.

O tipo de ilícito em apreço, integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, dentro deste, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, visam tutelar, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam esta dignidade (10).
O bem jurídico protegido por este tipo de crime – a saúde física, psíquica e mental – é complexo e pode ser afectado por todos os comportamentos que ou que afectem a dignidade pessoal do cônjuge (11).
O preenchimento do tipo legal não se basta com qualquer ofensa à saúde física, psíquica e emocional ou moral da vítima: «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus tratos» (12).
Por outro lado, tal crime pode unificar, através do elemento da reiteração – embora este seja hoje um requisito, não imprescindível –, uma multiplicidade de condutas que, consideradas isoladamente, poderiam integrar vários tipos legais de crime, mas que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma.
A unidade de acção típica não é excluída pela realização repetida de actos parciais, quer estes actos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime. O tipo legal inclui na descrição da acção uma pluralidade indeterminada de actos parciais. Trata-se do que, na doutrina, é designado por realização repetida do tipo (13). Há crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, como se expressa no artigo 19º, n.º 2 do CPP, mas que são um só crime; não há pluralidade de crimes, mas pluralidade no modo de execução do crime.
Este crime «persiste enquanto durarem os actos lesivos da saúde física (que podem ser simples ofensas corporais) e psíquica e mental da vítima (humilhando-a, por exemplo) e a relação de convivência que faz dele um crime de vinculação pessoal persistente» (14).
Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo não se baste com uma acção isolada do agente (tão-pouco com vários actos temporalmente muito distanciados entre si), já vinha sendo entendido pela jurisprudência que, em certos casos, uma só conduta, pela sua excepcional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal (15).
A entrada em vigor da Lei nº 59/2007 de 4/9 introduziu as aludidas alterações a tal ilícito, mas, no essencial e para o que aqui interessa, continua a ser punível, e em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa do seu cônjuge (ou companheiro), esclarecendo-se agora expressamente que tal actuação pode ser “de modo reiterado ou não” e que aqueles maus tratos incluem “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
Todavia, no que respeita ao segundo dos elementos mencionados e tendo presente apenas o conceito de “maus tratos físicos”, há que atentar em que não basta para o seu preenchimento que o agente pratique factos que se subsumam na previsão do art. 143, n.º 1 (ofensas à integridade física simples). É, também, necessário, que a actuação atinja o bem jurídico tutelado com a incriminação em apreço, ou seja que lese a dignidade, enquanto pessoa, da vítima (16). E para tal, não basta a simples e/ou isolada agressão ao cônjuge.
Necessário é que a conduta do agente, nesse particular conspecto, seja ofensiva do bem-estar da vítima, considerado, quer numa perspectiva física, quer numa vertente psíquica e mental. Por outro lado, por regra, relevam as condutas que se traduzam na prática reiterada de agressões a tal bem jurídico (17). Em caso de agressão isolada, por regra, estar-se-á apenas diante da possibilidade de verificação de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelos arts. 143º e ss.
Importa, assim, analisar e caracterizar se o quadro global da agressão de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, o que por si mesmo, constitui, nas palavras de Nuno Brandão (18), «um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima», e impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.

O que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é susceptível de se classificar como “maus tratos”. Conforme se escreveu no Ac. da RE de 30-06-2015 (19), «essa conduta deverá revelar ainda um “plus” de danosidade, quando, face ao restante entorno factual se pode concluir pela sua adequação a afectar a dignidade pessoal do outro elemento do casal». Esta decisão foi sintetizada pelo seguinte modo: «A imagem global do facto e a apreensão/percepção de todo o episódio de vida em apreciação relevam na delimitação da fronteira entre condutas que têm dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica e aquelas que não devem relevar para o direito penal, aqui. Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efectiva de um bem jurídico (digno de protecção penal). A ratio do tipo “violência doméstica” não reside, na protecção da família, mas na protecção da pessoa individual na família, na tutela da sua dignidade, protegendo-a de um abuso de poder na relação afectiva. Ocorrendo os factos provados num quadro de relacionamento conjugal deteriorado, mas em que, apesar dessa degradação, os cônjuges se foram mantendo livremente no casamento, sem posições de dominância de um sobre o outro, interagindo sempre em condições de paridade e igualdade conjugal, uma agressão isolada e pouco intensa, que atingiu a integridade física da assistente, e outras ofensas pontuais ao seu bom nome, embora merecedoras de censura penal, não encontram tutela à luz do art. 152º do CP, e sim dos arts 143º, nº 1 do CP e 181º, nº1 do CP.».
Ou, ainda, como se salientou, duma forma, porventura mais impressiva, no sumário do Ac. deste Tribunal de 15-10-2012 (20): «A delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, deve fazer-se com recurso ao conceito de “maus tratos”, sejam eles físicos ou psíquicos. Há “maus tratos”quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima».
Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele.
Doutrinalmente, o crime de violência doméstica, tem sido definido, de forma pacífica, como crime habitual. «Crimes habituais são aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual» (21).

Como se asseverou no acórdão da RP de 21/12/2016 (22), citando Lobo Moutinho, in “Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português”, p. 620, nota 1854, «O crime habitual, no sentido que à expressão confere a actual legislação, é um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de actos “reiterados”. Que a persistência temporal na consumação se não dá mediante a prática de um só acto, mas de uma multiplicidade deles - eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os actos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados - eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo. O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por “actos reiterados”. (...) Apenas se pode admitir a “consumação por actos reiterados” (um crime habitual) em casos especiais – o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime. (...) Como a doutrina indica, os crimes “habituais” (seja qual for o entendimento a dar à “habitualidade” do crime, o mesmo é dizer, à “reiteração” dos actos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles».

Por outro lado, a distinção entre unidade e pluralidade de crimes é determinante para as consequências jurídicas do facto, ou seja, para a punição do agente. A regra é a de que, sendo vários os preceitos violados, ou sendo o mesmo preceito objecto de plúrimas violações, haja uma pluralidade de crimes. Esta pluralidade só fica afastada no caso de concurso aparente, ou nas formas de unificação de condutas como crime continuado, como um único crime ou como crime de trato sucessivo.

Dispõe o n.º 1 do art. 30º que «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».

Enquadrando-se o crime de violência doméstica, tal como o antecedente crime de maus tratos, a que vimos aludindo na figura de crimes habituais, os mesmos também não podem deixar de se considerar que integram a categoria de crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, mas, para tal, tem-se exigido que se confirme uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, presididas por uma mesma unidade resolutiva criminosa desde o início assumida pelo agente. É essa unidade resolutiva, a par da homogeneidade de actuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos actos de tratos sucessivos num só crime. A conexão temporal é assim fundamental para aferição do critério de definição da unidade ou pluralidade de infracções e, se entre os factos medeia um largo espaço de tempo, um hiato temporal, encontra-se comprometida a unificação das condutas (23).
Foi o que também se afirmou no acórdão do STJ de 29-11-2012 (24): «(…) O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque)”» (25).

A decisão recorrida, partindo igualmente desta acepção do crime de violência doméstica como crime habitual ou de reiteração, entendeu que, em ambos os processos, para além da similaridade da natureza dos factos imputados ao arguido – injúrias, perseguições, contactos telefónicos –, também a motivação subjacente a todos esses factos radicava, identicamente, no exercício das responsabilidades parentais referentes ao filho menor do arguido e da ofendida e, por outro lado, tanto às condutas imputadas nestes autos como àquelas pelas quais o arguido já foi julgado (definitivamente) no processo nº. 70/17.2T9MGD presidiu a mesma resolução criminosa, que delas fez parte integrante, e, portanto, a consideração autónoma das aqui imputadas seria violadora do princípio ne bis in idem, estando abrangidas pelo caso julgado.
Não acompanhamos esse raciocínio, essencialmente por três ordens de razões.
Desde logo, as condutas imputadas ao arguido num e noutro processo, na sua materialidade, são substancialmente distintas, uma vez que as imputadas nestes autos foram alegadamente perpetradas no período temporal compreendido entre 2010 e 15/08/2017, enquanto as concretizadas na factualidade provada no proc. 70/17.2T9MGD foram praticadas entre o dia 23/10/2017 e o mês de Maio de 2018.
Depois, por força do disposto no art. 282º do CPP (26), tendo sido aplicado o instituto de suspensão provisória, não poderia estender-se à fundamentação da pretensão punitiva inerente a estes autos a máxima de que o caso julgado cobre o “deduzido” (no processo já julgado) – os factos praticados durante o período da suspensão – e o nele “dedutível” – os factos imputados na acusação formulada nestes autos – porque, simplesmente, neste caso, tal pretensão só poderia ser exercida após o trânsito da eventual condenação a que o arguido viesse a ser sujeito pelo crime da mesma natureza de que, então, havia notícia ter ele alegadamente cometido durante o prazo da dita suspensão.
Por fim, e é o que mais releva nesta apreciação, os actos pelos quais o arguido foi já condenado foram por ele protagonizados durante o período da suspensão provisória do processo que está na origem destes autos, ou seja, quando o mesmo se encontrava sujeito às obrigações daí decorrentes e depois de ter sido solenemente advertido das consequências da prática de novo crime da mesma natureza (27). Ora, tal como defende o recorrente, a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo encerrou o “pedaço histórico de vida” nele visado, no momento em que o arguido foi dela notificado e advertido de que a prática de crime da mesma natureza, pelo qual visse a ser condenado, durante o prazo de suspensão do processo, determinaria o prosseguimento dos presentes autos (art. 282º, n.º4 do CPP).
Com efeito, perante o apontado contexto e fazendo apelo às mais elementares regras da experiência, há que concluir que o arguido, uma vez ciente da aplicação do instituto de suspensão provisória e advertido de que a prática de crime da mesma natureza pelo qual visse a ser condenado durante o prazo de suspensão do processo determinaria o prosseguimento dos autos, com esse concreto contacto com o sistema penal, não poderia deixar de ter renovado a tomada de consciência da ilicitude e a censurabilidade da subsequente actividade por ele desenvolvida, ou seja, não poderia deixar de ter renovado a resolução criminosa concretizada nos factos praticados ulteriormente, pelos quais veio a ser condenado (neste sentido, o acórdão do STJ de 22-11-2017, p. 1764/13. 7TACBR.S1). Donde, para os efeitos do disposto no art. 29º, n.º 5 da CRP, à luz das regras vigentes que regulam as relações de concurso de crimes, não se vislumbra como possa pretender-se que ocorra uma mesma unidade resolutiva (28) e, como tal, a continuação criminosa entre os factos já julgados e os factos a julgar – de modo a integrarem-se uns e outros na mesma acção delituosa, no mesmo objecto – e, por isso, que se verifique o risco de dupla valoração de normas.
Assim, salvo o devido respeito por diferente opinião, apesar da relativa brevidade do hiato temporal durante o qual, em conformidade com os dados fornecidos pelo processo, não se verificaram actos reputáveis de maus tratos do arguido em relação à assistente, sufragamos a exposta orientação do nosso mais alto Tribunal para concluir que a factualidade ocorrida no contexto dessa interrupção, relacionada com a suspensão provisória do processo em que, posteriormente, se encadeou a acusação proferida, não é conciliável com a unidade resolutiva imprescindível à afirmação da compleição de um único crime.
Caso os factos constantes da acusação venham a ser tidos por provados, a conduta agora em apreço poderá consubstanciar um outro crime, não sendo abarcável pelos factos directamente discutidos no âmbito do processo 70/17.2T9MGD, nem podendo todos os factos ilícitos praticados pelo arguido ser reconduzidos a um único crime de violência doméstica, pelo que o julgamento daqueles não comportará violação do princípio ne bis in idem.
*
Decisão:

Nos termos expostos, acorda-se em julgar procedente o recurso e, por consequência, em revogar a decisão recorrida e determinar que seja proferida nova decisão pela Exma. Sra. Juíza que efectuou o julgamento a fixar os factos provados e não provados de acordo com a prova produzida e a subsumi-los ao direito.

Sem tributação.
Guimarães, 26/02/2020

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado


1 O aludido princípio é manifestação substantiva do caso julgado, figura que, em si mesma, tem proteção constitucional alicerçada, quer no disposto no n.º 3 do artigo 282.º, quer nos princípios da confiança e da segurança jurídica, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito, emergente do artigo 2.º, ambos da Constituição, pelo que não poderia ser arredada do âmbito dos processos penais. Ainda assim, apesar da aludida omissão sistemática, o diploma vigente contém disposições dispersas aflorando o caso julgado, em sede de admissibilidade de recursos e de execução das decisões penais (cfr., designadamente, a conjugação dos artigos 396º/4, 399º, 400º, 411º, 427º, 432º, 438º, 447º/1, 449º/1, 467º, 487º, 492º e 498º/3).
Nesse sentido, o acórdão do STJ de 22-11-2017 (p. 1764/13. 7TACBR.S1): «A circunstância de a lei adjectiva penal vigente não regular o caso julgado não significa que o processo penal prescinde daquele instituto, consabido que nesta concreta área do Direito se sente com muito maior intensidade e acuidade a necessidade de protecção do cidadão contra situações decorrentes da violação do caso julgado. Aliás, a CRP consagra de forma irrefutável o caso julgado penal, no seu art. 29.º, n.º 5».
2 Sumário do precedente acórdão desta Secção de 15/12/2016 (p. 72/15.3GBVPA.G1), em cuja fundamentação se adita:
«Em relação a este instituto, muito antigo e conhecido, pode dizer-se, sucintamente, que se forma caso julgado quando de uma decisão judicial se não pode já recorrer ou reclamar, por via ordinária, e tem como fundamento razões de justiça, naturalmente, mas, sobretudo, da segurança ou paz social, da certeza e segurança jurídicas, visando evitar situações de instabilidade, atribuindo-se assim força vinculativa ao determinado por um tribunal, que definiu uma questão em dados termos, nos seus aspectos factuais e jurídicos».
Dispõe o art. 4º do CPP: «Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderam aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal». Nessa senda, a fundamentação do anterior acórdão desta Secção de 24-09-2018 (p. 25/13.6TAVNF.G1) obteve a seguinte síntese:
«A intangibilidade (tendencial) do caso julgado (art. 628º do CPC) é um princípio do nosso ordenamento jurídico decorrente da exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: o caso julgado acarreta para o tribunal do processo subsequente a dupla proibição de contradição ou de repetição da decisão transitada e resolve-se num pressuposto processual negativo e, portanto, numa excepção dilatória própria [art. 577º i) do CPC], mas a decisão proferida sobre o mesmo objecto também vale entre as mesmas partes de ambas as acções, como “autoridade de caso julgado”, e, quando tal sucede, o tribunal da acção posterior está vinculado à decisão proferida na causa anterior, mesmo sem a tríplice homotropia de sujeitos, pedido e de causa de pedir
3 In “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Volume I, 4ª ed., Coimbra Editora, pp. 497 e 498.
4 In “Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e questão da sanção num processo de estrutura acusatória”, Porto 2002, Publicações Universidade Católica, pp. 484 e 59, respectivamente.
5 In “Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância no Processo Penal Português”, Almedina, pp. 220 e 221, nota de rodapé (1).
6 In ob. cit. p. 240
7 In “Direito Processual Penal I, Objecto do Processo, Liberdade de Qualificação Jurídica e Caso Julgado”, 2001, acessível no endereço https://docentes.fd.unl.pt, pp. 25 e 26.
8 In “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, p. 324 e RLJ, ano 70º, p. 235. Identicamente, Castro Mendes, in “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, p. 178 e Anselmo de Castro, in, “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. II, Almedina 1982, p. 394. E no mesmo sentido tem-se pronunciado a jurisprudência, conforme se vê, entre muitos outros, dos Acórdãos do STJ de 06.07.2006 (p. 1461/06); de 4.03.2008 (p. 4620/07); de 21.4.2010 (p. 6647/07.0TBSTB.E1.S1); de 10.10.2012 (p. 1999/11.7TBGMR.G1.S1); de 30.11.2017 (p. 3074/16.9T8STR.S1), todos acessíveis in wwwdgsi.pt/stj.
9 Segundo cremos, o que o Prof. Manuel de Andrade escreve a pág. 324 da ob. cit. (“Noções Elementares de Processo Civil”) insere-se plenamente nesta linha de pensamento.
10 Como refere Taipa de Carvalho in “Comentário Conimbricense”, I, pp. 329 a 339.
11 V. Ac. da RP de 31/1/2001, p. 0041056-in dgsi.pt.
12 Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica – novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, nº 8, p. 305.
13 Cfr., designadamente, Hans-Heinrich, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, S.A., pp. 998-999, e Manuel Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Editorial Verbo, 1992, pp. 546-547.
14 J. M. Tamarit Sumalla, in “Comentários a la Parte Especial del Derecho Penal”, 1996, p. 100.
15 V., entre outros, os Acs. do STJ 14/11/97, CJ 3º/235, de 5/4/06 (p. 06P468) e de 6/4/06 (p. 06P1167) e da RE de 29/11/05 (p. nº 1653/05-1).
16 Cfr. Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense”, p. 332.
17 Cfr., neste sentido, o Ac. da RC de 3/11/1999, CJ, 5º/123.
18 In “Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010.
19 P. 1340/14.7TAPTM.E1, relatora Ana Brito.
20 P. 639/08.6GBFLG.G1, relator Fernando Monterroso.
21 Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 314.
22 P. 1150/14.1GAMAI.P1- Eduarda Lobo.
23 Com este conteúdo foi sintetizada a fundamentação do antecedente acórdão desta Secção de 9-10-2017 (p. 83/14.6GAMCD.G1).
24 P. 862/11.6TAPFR.S1- Santos Carvalho.
25 No mesmo sentido, o Ac. do STJ de 12-07-2006 (p. 06P1709-Armindo Monteiro), de cujo sumário se extraem os seguintes trechos: «O crime exaurido é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de corresponderem a uma execução completa do facto, e em que a imputação dos actos múltiplos e sequentes é imputada a uma realização única. Mas a incidência do tempo naquela unicidade não pode deixar de se tomar em apreço, e até comprometê-la mesmo, se decorrer um largo hiato de tempo entre as múltiplas condutas; não já se interceder um momento volitivo a despoletá-las todas, que aglutine as primeiras e subsequentes, ainda dentro daquela volição, hipótese que exclui o concurso real de infracções, nos termos do art. 30.º, n.º 1, do CP. (…) é fundamental discernir se entre os actos (…) é detectável um qualquer elo de ligação objectiva e subjectiva, sob a forma de resolução única que possa unificá-los na mesma conduta. A pluralidade de actos só não determina uma pluralidade de acções típicas na medida em que cada uma delas exprime um puro explodir ou déclancher, mais ou menos automático, da carga volitiva correspondente ao projecto criminoso inicial, ensinando as regras da psicologia que se entre os factos medeia um largo espaço de tempo os últimos da cadeia respectiva já não são a mera descarga dos primeiros, exigindo um novo processo deliberativo.».
26 Cujo nº 4 preceitua que o processo prossegue se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.
27 O instituto da suspensão provisória do processo encontra-se previsto nos arts. 281º a 282º do C. Processo Penal [no que respeita à fase de inquérito] e consiste, basicamente, em, existindo indícios suficientes do cometimento do crime pelo arguido, o inquérito não terminar com a dedução da acusação, antes ficar suspenso durante um certo período, com a sujeição do arguido a injunções e regras de conduta fixadas pelo Ministério Público com a concordância do juiz. A par do regime geral, a lei prevê regimes especiais de suspensão provisória, para determinados tipos legais, entre eles, para o crime de violência doméstica não agravado pelo resultado.
28 Embora se trate de um aspecto não determinante, a análise dos conjuntos das condutas imputadas num e noutro processo também não permite corroborar a afirmação que consta da decisão recorrida quanto a ter sido a mesma a motivação que as desencadeou.