Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
122/20.1YRGMR
Relator: JOSÉ DIAS
Descritores: ANULAÇÃO DE DECISÃO ARBITRAL
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AÇÃO ESPECIAL
Decisão: ANULAR A DECISÃO ARBITRAL
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- Em sede de ação especial de anulação de sentença arbitral, o tribunal estadual apenas tem competência para anular essa sentença com um dos fundamentos do art. 46º, nº 3 da LAV, não podendo conhecer de mérito.
2- Nos casos em que a sentença arbitral padeça do vício da nulidade parcial, nomeadamente, por excesso de pronúncia ou por condenação ultra petitum ou em objeto diverso do pedido, e em que a parte afetada por esse vício possa ser destacada/dissociada da parte não viciada, apenas há que declarar a nulidade quanto à parte eivada pelo vício da nulidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.
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RELATÓRIO.

X Distribuição – Energia, S.A., com sede na Rua … Lisboa, instaurou a presente ação especial de anulação de decisão arbitral, contra A. M., residente na Travessa …, Guimarães, pedindo a anulação da decisão arbitral proferida em 23/03/2020, pelo Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo ..., ... e ... no âmbito do processo 2823/2019/RM/MS.
Para tanto alega, em síntese, exercer, em regime de concessão de serviço público, a atividade de distribuição de energia elétrica;
No exercício dessa sua atividade celebrou com o Réu um contrato mediante o qual se obrigou a fornecer energia elétrica àquele;
O Réu apresentou junto do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo ..., ... e ... reclamação contra a Autora e a X Comercial – Comercialização de Energia, S.A., em que pede que a aqui Autora seja condenada a:

a- “realizar intervenção na rede de distribuição elétrica, no prazo de 2 meses, por forma a permitir eliminar as perturbações na qualidade de energia elétrica e assim, usufruir da potência contratada”;
b- pagar-lhe uma indemnização “em montante nunca inferior a 25.000,00 euros, a título de danos não patrimoniais”,
A condenação da reclamada X Comercial – Comercialização de Energia, S.A, a reformular “a faturação emitida nos últimos dez anos tendo em conta a potência contratada e a que a efetivamente usufruo”;

Após contestação das reclamadas e realização da audiência final, o identificado Centro de Arbitragem proferiu sentença, cuja parte dispositiva é a seguinte:

“Julga-se parcialmente procedente o pedido nesta ação e, em consequência:
(i) Condenam-se solidariamente as demandadas X Distribuição Energia, S.A. e X Comercial – Comercialização de Energia, S.A., a pagar ao demandante A. M., a título de indemnização por danos não patrimoniais, a importância de 1.000,00 (mil) euros, acrescida da importância de 40 (quarenta) euros por cada mês que decorra desde a data da notificação desta sentença às demandadas e até ao mês em que seja reposta a normalidade do funcionamento de energia ao local de residência do autor, nos termos contratados por este;
(ii) A ação improcede relativamente ao remanescente peticionado, designadamente quanto ao pedido de reformulação da faturação emitida nos últimos dez anos”;
Essa sentença é nula por condenação “ultra petitum” e objeto diverso do pedido, dado que a condenou naquilo que não foi peticionado pelo ali reclamante, ora Réu;
O ali reclamante não peticionou qualquer valor a título de danos patrimoniais, sequer qualquer compensação monetária até à realização da obra de reforço de rede, ou alegou danos futuros, sequer alegou quaisquer danos não patrimoniais futuros, mas apenas a existência de danos não patrimoniais, sequer deduziu qualquer compensação até à verificação de um qualquer evento, pelo que estava vedado ao tribunal condenar a ora Autora nos termos em que a condenou;
Acresce que o valor de mil euros arbitrado ao ali reclamante, aqui Réu, a título de compensação pelos danos não patrimoniais, não encontra suporte factual que o justifique e está em profunda colisão com a maioria da jurisprudência sobre esta matéria.
Regularmente citado, o Réu não contestou.
Por despacho proferido em 07/10/2020 convidou-se a Autora para, “no prazo de dez dias, suprir a sua ilegitimidade ativa, fazendo intervir nos autos a X Comercial – Comercialização de Energia, S.A., mediante a apresentação do competente incidente de intervenção principal da última”.
Mais se determinou que se oficiasse ao Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Tâmega e Sousa, solicitando o envio, a título devolutivo, do processo em que foi proferida a sentença que se pretende ver anulada, determinando-se que, uma vez enviado esse processo, este seja apensado aos presentes autos.
O tribunal arbitral enviou aquele processo, que se encontra apenso aos autos.
Por sua vez, a Autora “X Comercial” acatou o convite que lhe foi dirigido e deduziu incidente de intervenção principal provocada de “X Comercial – Comercialização de Energia, S.A.”.
Esse incidente foi admitido por despacho proferido em 26/10/2020.
Citada, a interveniente “X Comercial” apresentou articulado em que requer, a título principal, a apensação aos presentes autos da ação especial de anulação de decisão arbitral, que corre termos nesta Relação com o n.º 115/20.9YRGMR, instaurada pela mesma contra o aqui Réu, em que pede a anulação daquela decisão arbitral em relação à condenação de que foi alvo.
Subsidiariamente pede que se anule essa sentença no que respeita à condenação da requerente X Comercial.
Por despacho proferido em 16/12/2020, deferiu-se a requerida apensação.
Nos autos apensos, X Comercial – Comercialização de Energia, S.A., com sede na Avenida 24 de Julho n.º 12, Lisboa, instaurou ação especial de anulação de decisão arbitral, contra A. M., pedindo a anulação da decisão arbitral proferida em 23/03/2020, pelo Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo ..., ... e ... no âmbito do processo 2823/2019/RM/MS, no que respeita à condenação da requerente X Comercial.

Apresenta as seguintes conclusões:
1. No processo n.º 2833/2019 do TRIAVE, o Requerido A. M. peticionou apenas que a co Demandada e aqui Requerente, X Comercial, fosse condenada na reformulação da faturação emitida nos últimos dez anos, tendo em conta a potência contratada e a efetivamente usufruída pelo demandante. Não peticionou a sua condenação no pagamento de qualquer indemnização por danos não patrimoniais, nem em qualquer cláusula penal até reposição da normalidade do fornecimento de energia elétrica ao local de residência do aqui Requerido.
2. A decisão arbitral condenou a Requerente X Comercial, solidariamente com a X Distribuição, a pagar ao Requerido a importância de € 1.000,00 (mil euros), acrescida da importância de € 40,00 (quarenta euros) por cada mês que decorra desde a data da notificação da sentença às Demandadas e até ao mês em que seja reposta a normalidade do fornecimento de energia elétrica ao local de residência do autor, nos termos contratados por este. Condenou, pois, em sentido diverso e mais além do peticionado pelo Requerido.
3. O artigo 3.º, n.º 1, do CPC, estabelece que o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes.
4. Dispõe também o artigo 608.º, n.º 2, do CPC, que o juiz deve resolver na sentença todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuando aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
5. Por sua vez, o artigo 609.º, n.º 1, do CPC, estipula que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
6. E, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC, a sentença é nula quando “o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.
7. No mesmo sentido o artigo 46.º, n.º 3, alínea v), da Lei n.º 63/2011 de 14 de dezembro, que aprova a Lei da Arbitragem Voluntária, prevê que a sentença arbitral pode ser anulada pelo tribunal estadual competente, se “o tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objeto diverso” (sublinhado nosso).
8. O limite da condenação previsto no artigo 609.º, n.º 1 do CPC e no artigo 46.º, n.º 3, alínea v) da Lei n.º 63/2011 de 14 de dezembro, decorre de um dos princípios estruturantes do direito processual civil - o princípio do dispositivo -, numa das suas principais manifestações – o princípio do pedido, a que alude o n.º 1 do art.º 5.º do CPC, nos termos do qual “às partes cabe alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas”.
9. Os princípios do dispositivo e do pedido determinam necessariamente o princípio da correspondência entre o pedido deduzido pelo autor e a decisão do juiz, ou seja, que o tribunal está vinculado, no momento de prolação da decisão às consequências que o autor requereu expressamente no pedido, não cabendo sequer ao juiz ponderar se conviria ao autor um outro pedido.
10. É, pois, ao autor que cabe o direito e o ónus de formular o pedido na petição inicial, nos termos do artigo 552.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil, definindo a sua pretensão, requerendo ao tribunal o efeito jurídico que pretende obter com a ação, não pode mais tarde, ultrapassada a fase em que seria processualmente admissível a ampliação (cf. artigo 265.º, n.º 2, do CPC), pedir ao tribunal que supra a sua omissão, nem este o pode fazer oficiosamente.
11. No processo arbitral também se aplicam o princípio do dispositivo e o princípio do pedido, como decorre do artigo 33.º, n.º 2, da Lei n.º 63/2011 de 14 de dezembro, e do artigo 7.º do Regulamento do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Vale do Ave/Tribunal Arbitral.
12. É o pedido, assim formulado pelo autor, que vinculará o tribunal quanto aos efeitos que pode decretar a final, não podendo decretar um outro efeito, alternativo, apesar de legalmente previsto.
13. O limite da condenação em causa é ainda ditado por razões de certeza e segurança jurídicas, e está relacionada também com a disponibilidade da relação material e os princípios da liberdade e da autonomia da vontade das partes e da autorresponsabilidade destas, razões e princípios aplicáveis ao processo arbitral.
14. Acresce que aquele limite da condenação tem por finalidade essencial a tutela da posição do demandado, assegurando o cumprimento do princípio do contraditório, previsto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC e no artigo 30.º, n.º 1, alíneas a), b) e c) da Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, permitindo que o demandado se defenda em relação ao conteúdo concreto daquele pedido, pois não seria razoável que o demandado fosse surpreendido com uma condenação de valor superior ou diferente da peticionada pelo autor.
15. In casu, a decisão não teve em consideração o pedido formulado pelo Requerido contra a Requerente, nem a causa de pedir que o fundamentou e condenou a aqui Requerente a pagar ao Requerido uma indemnização por danos morais, para surpresa da Requerente, que não teve oportunidade de se defender desse pedido, por o mesmo não ter sido formulado pelo Requerido.
16. Fazendo-o, a decisão arbitral violou os princípios do dispositivo, do pedido, da correspondência entre o pedido do autor e a decisão do Juiz, da autonomia da vontade das partes e do contraditório e os artigos 3.º, n.ºs 1 e 3, 5.º, n.º 1, 608.º, n.º 2 e 609.º, n.º 1, todos do CPC, artigo 33.º, n.º 2, da Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, e artigo 7.º do Regulamento do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Vale do Ave/tribunal Arbitral –, pelo que é nula (cfr. artigo 615.º, n.º 1, e), do CPC e artigo 46.º, n.º 3, alínea v), da Lei n.º 63/2011 de 14 de dezembro).
Apesar de regularmente citado, o Réu também não apresentou contestação nesta ação.
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O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se devidamente representadas em juízo.
O processo é o próprio e inexistem outras nulidades, exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
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Não existe prova a produzir nos presentes autos, relevando para a apreciação das presentes causas a facticidade que emerge dos próprios autos do processo arbitral.
Por outro lado, finda a fase dos articulados e uma vez produzida a prova a que houver lugar, nos termos da al. d), do n.º 2, do art. 46º da Lei n.º 63/2011, de 14/12, que aprovou a Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), a ação especial de anulação de decisão arbitral segue a tramitação do recurso de apelação, com as necessárias adaptações.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto das presentes ações circunscreve-se às seguintes questões:

a- se a sentença proferida em 23/03/2020, pelo Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo ..., ... e ..., no âmbito do Proc. n.º 2823/2019/RM/MS, é nula por condenação ultra petitum e/ou em objeto diverso do pedido;
b- se essa sentença padece de erro de direito ao arbitrar ao ali reclamante, aqui Réu, a quantia de mil euros, a título de compensação por danos não patrimoniais sofridos, por esse valor se mostrar excessivo face aos critérios jurisprudenciais seguidos nesta matéria e à facticidade apurada.
A propósito desta última questão suscita-se a questão prévia de se saber se esta Relação tem competência material para sindicar o invocado erro de direito que a Autora “X Distribuição” imputa à decisão arbitral.
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que relevam para a decisão a proferir no âmbito das presentes ações são os seguintes.
A- A. M. apresentou reclamação no Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo ..., ... e ..., contra X Comercial – Comercialização de Energia, S.A. e X Distribuição – Energia, S.A., em que formula os seguintes pedidos:
Pretendo que a Reclamada X Distribuição Energia, S.A., se digne realizar intervenção na rede de distribuição elétrica, no prazo de 2 meses, por forma a permitir eliminar as perturbações na qualidade de energia elétrica e assim, poder usufruir da potência contratada.
Pretendo ainda que a Reclamada X Distribuição Energia, S.A., seja condenada a indemnizar-me em montante nunca inferior a 25.000,00 euros, a título de danos não patrimoniais.
Mais pretendo que a Reclamada X Comercial – Comercialização de Energia, S.A. reformule a faturação emitida nos últimos dez anos tendo em conta a potência contratada e a que efetivamente usufruo” – cfr. reclamação junta ao processo arbitral apenso, que correu termos no Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo ..., ... e ....
B- No âmbito daquele processo arbitral, o Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo ..., ... e ... proferiu sentença, em 23/03/2020, julgando parcialmente procedente a reclamação, constando essa sentença da seguinte parte dispositiva:
“Julgo parcialmente procedente o pedido nesta ação e, em consequência:
(i) Condenam-se solidariamente as demandadas X Distribuição Energia, S.A. e X Comercial – Comercialização de Energia, S.A., a pagar ao demandante A. M., a título de indemnização por danos não patrimoniais, a importância de 1.000,00 (mil) euros, acrescida da importância de 40 (quarenta) euros por cada mês que decorra desde a data da notificação desta sentença às demandadas e até ao mês em que seja reposta a normalidade do funcionamento de energia ao local de residência do autor, nos termos contratados por este;
(ii) A ação improcede relativamente ao remanescente peticionado, designadamente quanto ao pedido de reformulação da faturação emitida nos últimos dez anos” – cfr. sentença junta ao processo arbitral apenso, que correu termos no Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo ..., ... e ....
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B- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

B.1- Nulidade da sentença arbitral por violação dos princípios do dispositivo e do contraditório.

Ambas as Autoras imputam o vício da nulidade da sentença proferida pelo tribunal arbitral, com fundamento em condenação ultra petitum ou por condenação em objeto diverso do pedido, sustentando a Autora X Distribuição que o reclamante e aqui Réu, A. M., apenas pediu a condenação daquela a pagar-lhe a quantia de 25.000,00 euros, a título de compensação por danos não patrimoniais sofridos, pelo que a sentença arbitral, ao condená-lo no pagamento de uma indemnização de 40,00 euros por cada mês “que decorra desde a data da notificação da sentença às demandadas e até ao mês em que seja resposta a normalidade do fornecimento de energia elétrica ao local de residência do autor, nos termos contratados por este”, incorreu no vício da nulidade por condenação ultra petitum ou por condenação em objeto diverso do pedido, enquanto a Autora X Comercial alega que o ali reclamante apenas pediu a condenação daquela a reformular a faturação emitida nos últimos dez anos, tendo em conta a potência contratada e a que foi efetivamente usufruída por aquele, pedido esse de que foi absolvida pelo tribunal arbitral, pelo que este, ao condená-la solidariamente com a aí reclamada X Distribuição nos pedidos que constam da parte dispositiva da sentença, incorreu em igual vício da nulidade.
Vejamos se assiste razão às Autoras nas críticas que assacam à sentença arbitral.
Entre as causas taxativas de nulidade da sentença previstas no n.º 1 do art. 615º do CPC, conta-se a condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido (al. e) desse n.º 1).
Trata-se de uma causa invalidatória da decisão judicial que se relaciona com o disposto no art. 609º do CPC, onde se estabelece que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir (n.º 1) e que tem como fundamento a violação dos princípios estruturantes do processo civil nacional, que são os princípios do dispositivo e do contraditório.
O princípio do dispositivo assenta na consideração de que podendo as partes dispor dos direitos de natureza privada, sobre as mesmas recai o ónus de promover e de impulsionar os instrumentos da natureza processual destinados a assegurar a respetiva tutela, não podendo o Estado, através dos tribunais, agir por iniciativa própria em matéria de direito privado(1).
Na sua conceção tradicional, o princípio do dispositivo significava que “o processo é coisa ou negócio das partes”, é “uma luta, um duelo entre as partes, que apenas tem de decorrer segundo certas normas”, cumprindo ao juiz arbitrar “a pugna, controlando a observância dessas normas e assinalando e proclamando o resultado”, princípio esse de que entre outras consequências, decorria que competia às partes, mais concretamente, ao autor, instaurar a ação, mediante a apresentação em juízo da petição inicial, em que teria de delimitar subjetiva (mediante a identificação das partes) e objetivamente (mediante a identificação do pedido e a alegação da causa de pedir) a relação jurídica material controvertida que submetia à apreciação e à decisão do tribunal, delimitado e conformando o thema decidendum deste (2).
Apesar desse princípio se encontrar atualmente mitigado pelo princípio contrário, que é o do inquisitório, que confere ao tribunal amplos poderes investigatórios tendo em vista complementar os factos essenciais consubstanciadores da causa de pedir alegados pelo autor na petição inicial, com os factos complementares e instrumentais dos essenciais e, bem assim ao impor ao juiz o poder-dever de, em sede de instrução da causa, realizar, ainda que oficiosamente, as diligências necessárias para apurar todos os factos, sejam eles essenciais (desde que alegados), complementares ou instrumentais (independentemente da respetiva alegação), com vista à justa composição do litígio e ao apuramento da verdade material (art. 411º do CPC), o certo é que atualmente continuam válidas as principais decorrências do princípio do dispositivo, designadamente, o princípio do pedido, segundo o qual o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes (art. 3º, n.º 1 do CPC), bem como o ónus que impende sobre o autor de, na petição inicial, delimitar subjetiva (identificando-se e identificando a parte que demanda), e objetivamente (indicando a pretensão de tutela judiciária que pretende que lhe seja reconhecida pelo tribunal, isto é, o pedido, e os factos concretos que consubstanciam e identificam a causa de pedir que elegeu e em que faz alicerçar o pedido, embora agora apenas tenha o ónus de alegar os factos essenciais dessa causa de pedir, mas já não os complementares e os instrumentais), da relação jurídica que submete a julgamento (arts. 5º, n.º 1 e 552º, n.º 1, als. a), d) e e) do CPC).
Por sua vez, o princípio do contraditório era, e continua, a ser um dos princípios estruturantes do processo civil e a ele subjaz a ideia de que repugna ao sistema processual civil decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, regra essa que apenas comporta desvios excecionais, quando outros interesses lhe sobreponham (3).
Na sua dimensão tradicional, o princípio do contraditório apenas era entendido na sua dimensão negativa, nos termos da qual não era lícito ao tribunal resolver o conflito que o autor lhe submete sem que os demais interessados fossem devidamente chamados para deduzir oposição, o que se processa através da citação.
Nessa dimensão positiva está em causa a defesa do demandado/réu, pelo que naturalmente que essa vertente continua atualmente plenamente em vigor (art. 3º, n.º 1 do CPC), pelo que ao réu carece de ser dado cabal conhecimento da pretensão que contra ele é deduzida pelo autor e quais os concretos factos essenciais consubstanciadores da causa de pedir por este alegados como fundamento dessa pretensão, para que possa apresentar a sua própria versão dos factos, sob pena da decisão que venha a ser proferida pelo tribunal sobre o pleito ser nula, por violação do princípio do contraditório na sua dimensão negativa.
Acontece que na atual lei adjetiva civil nacional, o princípio do contraditório não se esgota na defesa, isto é, na sua vertente negativa, na medida em que é a própria Constituição que proíbe a indefesa e daí que o art. 3º, n.º 3 do CPC, proíba a prolação de decisões surpresa, isto é, decisões inesperadas ou surpreendentes para as partes, por não terem sido objeto de qualquer discussão entre elas.
Como tal, além da vertente negativa, o princípio do contraditório comporta atualmente uma dimensão positiva, que proíbe a prolação de decisões surpresa e que visa salvaguardar a influência das partes na decisão a proferir pelo tribunal, seja sobre questões adjetivas ou substantivas.
Nessa dimensão positiva, salvos os casos excecionais consentidos pela lei adjetiva, que têm em vista salvaguardar outros valores ou interesses que a lei, em determinadas situações específicas, considera preponderantes, ao juiz, sob pena de nulidade da decisão que vier a proferir, não é lícito proferir, oficiosamente ou a requerimento das partes, qualquer decisão sobre questões de direito ou de facto, sejam elas adjetivas ou substantivas, sem que a todas as partes tenham tido efetiva oportunidade de num prazo razoável, sobre elas se poderem pronunciar e de, assim, influenciar a decisão que vai ser proferida pelo tribunal.
Compreende-se, por isso, que o art. 615º, n.º 1, al. d) fulmine de nulidade a decisão em que o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, salvo se o conhecimento destas estiver prejudicado pela solução dada a outras (art. 608º, n.º 2) – nulidade por omissão de pronúncia -, ou quando conheça de questões de que não podia conhecer, por não terem sido suscitadas pelas partes e não serem do conhecimento oficioso do tribunal (art. 608º, n.º 2) – nulidade por excesso de pronúncia -, o que tem a ver com a causa de pedir, isto é, com os fundamentos do pedido, e a al. e), do n.º 1 daquele preceito, fulmine a decisão com a mesma consequência jurídica da nulidade quando nela o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido (o que se relaciona com a pretensão).
Causa de pedir e pedido conformam, assim, necessariamente o thema decidendum, isto é, o campo dentro do qual o tribunal se tem (e pode) mover, quer em sede de instrução da causa, quer em termos de decisão a proferir.
Com efeito, se por força do princípio do dispositivo, o processo tem de se iniciar por iniciativa insubstituível do autor, pois só a ele cabe solicitar a tutela jurisdicional, que não pode ser oficiosamente concedida (art. 3º, n.º 1 do CPC), e se esse processo se inicia com a apresentação da petição inicial (art. 259º), em que o autor terá de alegar os factos constitutivos da situação que quer fazer valer ou negar, ou integrantes do facto ou cuja existência ou inexistência afirma (causa de pedir), e em que terá de formular a pretensão de tutela judiciária que pretende que o tribunal lhe reconheça (pedido), quer o pedido, quer a causa de pedir invocados pelo autor, na petição inicial, conformam necessariamente o objeto do processo e condicionam o âmbito de cognição dentro do qual o tribunal se pode e tem de mover e, consequentemente, a decisão de mérito a ser por ele proferida.
Deste modo, é que o juiz, na sentença, “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceto aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”, não podendo “ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras” (art. 608º, n.º 2) – o que se prende com os fundamentos (causa de pedir e exceções) - e “não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir (art. 609º, n.º 3) – o que já se relaciona com a pretensão (pedido).
Sempre que tal não aconteça e o tribunal viole os enunciados limites que lhe foram traçados pelas partes, incorre em nulidade, por violação dos princípios do dispositivo e do contraditório.
Quando o tribunal condena o réu ou o autor-reconvindo em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, posterga os limites do poder jurisdicional que lhe está conferido, infringindo o princípio do dispositivo e, noutra vertente, o princípio do contraditório (art. 3º, n.º 3), na medida em que condena a parte contrária (o réu ou o autor-reconvindo) em pedido em relação ao qual estes não tiveram oportunidade de se defender e de influir ativamente na decisão que acabou por ser proferida, pelo que essa sentença é nula, na parte em que ocorra o excesso cometido pelo tribunal em relação ao pedido que foi formulado pelo autor ou pelo réu-reconvinte (art. 615º, n.º 1, al. e)).
Esse excesso de condenação pode ser quantitativo ou qualitativo, sendo que, no primeiro caso, verifica-se o vício da condenação “em quantidade superior”, também designado de condenação “extra vel ultra petitum”, enquanto, no segundo caso, verifica-se o vício da condenação em objeto diverso do pedido.
Precise-se que os princípios do dispositivo e do contraditório têm plena aplicação ao processo arbitral, conforme não podia deixar de ser, por se tratar de princípios estruturantes do processo civil nacional e se tratar de emanação do direito fundamental da dignidade da pessoa humana, erigido pelo art. 1º da CRP como fundamento do estado e da ordem jurídica portuguesas, do princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei (art. 13º) e do direito fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva na sua dimensão de um processo equitativo (art. 20º, n.º 4), compreendendo-se, por isso, que entre os princípios e regras fundamentais que regem o processo arbitral, se conte, nos termos das als. a) e c), do n.º 1 do art. 30º da LAV, a necessidade do demandado ser citado e de se garantir a observância, em todas as fases do processo, o princípio do contraditório, salvas as exceções previstas na LAV; de no n.º 2 do art. 33º, se estatuir cumprir ao demandante apresentar a petição, em que enuncia o seu pedido e os factos em que se baseia, cumprindo, por sua vez, ao demandado apresentar a sua contestação, em que explana a sua defesa; e que entre as causas taxativas de nulidade da sentença arbitral, previstas na al. a), do n.º 3 do art. 46º, se conte o facto do tribunal ter condenado em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido (ponto V dessa al. a) do n.º 3 do art. 46º da LAV).
Note-se que nos casos em que proceda a anulação da sentença arbitral, o n.º 3 do art. 46º da LAV admite a anulação parcial daquela quando a parte “relativamente à qual se verifique existir qualquer dos fundamentos de anulação previstos no n.º 3 deste art. 46º puder ser dissociada do restante da mesma” (requisito da autonomia da parte viciada) (4).

Assentes nas premissas acabadas de enunciar, revertendo ao caso dos autos, nele, o aqui Réu A. M., instaurou ação arbitral junto do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo ..., ... e ..., contra as aqui Autoras X Distribuição e X Comercial pedindo a condenação:

1- da X Distribuição a:
a- realizar intervenção na rede de distribuição elétrica, no prazo de dois meses, por forma a permitir eliminar as perturbações na qualidade da energia elétrica e assim, poder usufruir da potência contratada pelo ali Autor;
b- pagar-lhe quantia nunca inferior a 25.00,00 euros, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos;
2- da X Comercial a reformular a faturação emitida nos últimos dez anos, tendo em conta a potência contratada e a que efetivamente foi por ele usufruída nos últimos dez anos.

No que respeita ao pedido compensatório de 25.000,00 euros, conforme decorre da simples leitura da petição inicial (reclamação) apresentada pelo ali Autor, esse pedido respeita unicamente aos danos não patrimoniais pretensamente já sofridos pelo último (não a danos não patrimoniais futuros), conforme resulta do facto de naquela se ler: “Assim, em face da situação supra relatada, que me tem causado, durante os últimos dez anos, diversos transtornos e incómodos, pretendo ser ressarcido em montante nunca inferior a 25.000,00 euros, a título de indemnização por danos não patrimoniais”.

Acontece que após citação das ali Rés (aqui Autoras) e destas terem apresentado contestação, realizou-se a audiência final, vindo o tribunal arbitral em 23 de março de 2020, a proferir sentença, cuja parte dispositiva, é a seguinte:

“Julgo parcialmente procedente o pedido nesta ação e, em consequência:
(i) Condenam-se solidariamente as demandadas X Distribuição Energia, S.A. e X Comercial – Comercialização de Energia, S.A., a pagar ao demandante A. M., a título de indemnização por danos não patrimoniais, a importância de 1.000,00 (mil) euros, acrescida da importância de 40 (quarenta) euros por cada mês que decorra desde a data da notificação desta sentença às demandadas e até ao mês em que seja reposta a normalidade do funcionamento de energia ao local de residência do autor, nos termos contratados por este;
(ii) A ação improcede relativamente ao remanescente peticionado, designadamente quanto ao pedido de reformulação da faturação emitida nos últimos dez anos”.

Quanto ao pedido condenatório vertido no primeiro ponto da parte decisória da sentença arbitral que se acaba de transcrever, resulta linearmente dessa condenação e dos fundamentos explanados na sentença arbitral que suportam a mesma, que este ponto comporta três condenações, sendo duas expressas, e uma implícita, a saber:

1º- a condenação solidária das ali Rés, X Distribuição e da X Comercial, a realizarem a intervenção na rede de distribuição de energia elétrica, de modo a ser reposta a normalidade do funcionamento da energia elétrica ao local de residência do ali Autor, A. M., nos termos contratados por este (condenação esta implícita);
2º - a condenação solidária da X Distribuição e da X Comercial a pagarem ao ali Autor a quantia de mil euros, a título de compensação pelos danos não patrimoniais já sofridos (condenação esta expressa); e
3º- a condenação solidária da X Distribuição e da X Comercial a pagarem ao ali Autor a quantia de quarenta euros por cada mês que decorra desde a data da notificação dessa sentença àquelas e até ao mês em que seja reposta a normalidade do fornecimento de energia elétrica ao local de residência do aí Autor, A. M., nos termos contratados por este (condenação também expressa).
Porém, como muito bem diz a ora Autora X Comercial, o ali Autor, A. M., não deduziu quanto àquela nenhum dos enunciados pedidos condenatórios em que foi condenada solidariamente com a X Distribuição, mas tão só pediu a condenação da mesma a reformular a faturação que emitiu àquele Autor, nos últimos dez anos, por referência à potência contratada e aquela que foi por ele efetivamente usufruída, pedido esse de que a X Comercial foi absolvida pelo tribunal arbitral.
Deste modo, é apodítico que ao condenar a X Comercial naqueles três pedidos solidariamente com a X Distribuição, a sentença arbitral incorreu no vício da nulidade por condenação ultra petitum, previsto nos arts. 615º, n.º 1, al. e) do CPC, e 46º, n.º 3, al. a), ponto V, da LAV, impondo-se a anulação da parte decisória daquela no que concerne às condenações constantes do ponto (i) da respetiva parte decisória, quanto à condenação da X Comercial – Comercialização de Energia, S.A., procedendo, por isso, in totum, a ação de anulação por ela instaurada com o n.º 115/20.9YRGMR.
Passando à condenação da X Distribuição, conforme igualmente bem diz a última, o aí Autor, em sede de petição inicial, apenas pediu a condenação desta a “realizar a intervenção na rede de distribuição, no prazo de dois meses, por forma a permitir eliminar as perturbações na qualidade da energia elétrica e assim, poder usufruir da potência contratada” e, bem assim, a condenação da mesma a indemnizá-lo “em montante nunca inferior a 25.000,00 euros, a título de danos não patrimoniais” já sofridos, mas não pediu qualquer condenação daquela nos danos não patrimoniais que viesse a sofrer, isto é, futuros, o que significa que ao condená-la a pagar ao aí Autor “a importância de 40 (quarenta) euros por cada mês que decorra desde a data da notificação desta sentença às demandadas e até ao mês em que seja reposta a normalidade do funcionamento de energia ao local de residência do autor, nos termos contratados por este”, a título de compensação de danos morais futuros, a sentença arbitral incorreu no vício da nulidade por condenação ultra petitum.
A parte condenatória constante da sentença arbitral eivada por esse vício é claramente destacável das restantes condenações nela proferidas em relação à Autora X Distribuição, pelo que, nos termos do n.º 3 do art. 46º da LAV, apenas se impõe anular a parte decisória da sentença afetada pelo vício da nulidade, mantendo-se as restantes condenações da Autora X Distribuição a realizar a intervenção na rede de distribuição de energia elétrica, de modo a ser reposta a normalidade do funcionamento de energia ao local de residência do ali Autor, A. M., nos termos contratados por este (condenação esta implícita) e a pagar ao último a quantia de mil euros, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos (condenação esta expressa) incólume.

B.2- Do mérito – questão prévia.

A X Distribuição imputa à sentença arbitral erro de direito ao fixar ao aí Autor a quantia de mil euros, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, reputando esse valor como exagerado atenta a facticidade apurada e os critérios jurisprudenciais seguidos nessa matéria.
A propósito do erro de julgamento que a Autora X Distribuição imputa à sentença arbitral suscita-se a questão prévia de se saber se o presente tribunal estadual dispõe de competência para conhecer de mérito.
A resposta a essa questão é claramente negativa.
Com efeito, nos termos do n.º 4 do art. 39º da LAV, a sentença arbitral que se pronuncie sobre o fundo da causa ou que, sem conhecer desta, ponha termo ao processo arbitral, só é suscetível de recurso para o tribunal estadual competente no caso de as partes terem expressamente previsto essa possibilidade na convenção arbitral e desde que a causa não haja sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável.
Nessas situações, ou seja, nos casos em que as partes não acordaram expressamente, na convenção de arbitragem, a possibilidade de recorrerem da sentença arbitral, ou nos casos em que o tenham feito, mas a causa foi decida segundo critérios de equidade ou mediante composição amigável do litígio, não pode ser interposto recurso da sentença arbitral para os tribunais arbitrais, mas apenas pode ser requerida a anulação dessa sentença junto dos tribunais estaduais, em ação especial de anulação de decisão arbitral, com um dos fundamentos taxativamente elencados no n.º 3 do art. 46º da LAV, cujo n.º 9 (art. 46º) é expresso em estatuir que o tribunal estadual não pode conhecer de mérito da questão.
Por conseguinte, em sede de ação de anulação de decisão arbitral, o tribunal estadual não pode conhecer de mérito, ou seja, esta Relação não pode sindicar o erro de direito que a Autora X Distribuição imputa à sentença arbitral quando o condena a pagar ao aí Autor (aqui Réu) a quantia de mil euros, a título compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, reputando-a como exagerada (5), porquanto a ação de anulação de decisão arbitral tem efeitos puramente cassatórios ou rescisórios, não atribuindo ao tribunal estadual competência substitutiva em sede de mérito.
Neste sentido já se pronunciava Paula Costa e Silva, no domínio da Lei n.º 31/86, de 29/8, isto é, na vigência da anterior LAV, que não continha dispositivo equivalente ao atual art. 46º, n.º 9, em que a propósito da possibilidade do juiz, na ação de anulação, poder conhecer de mérito, escrevia que: “o princípio da substituição não parece colher em face da Lei n.º 31/86, que nada diz sobre esta questão. Na verdade, permitir ao juiz que conheça do mérito da causa, implica limitar duplamente a autonomia da vontade. A primeira limitação traduz-se no facto de, apesar de o juiz ficar vinculado à missão conferida pelas partes aos árbitros, não poder ignorar-se que não é indiferente para estas a identidade das pessoas que dirigem o litígio. Assim, e ao recorrerem à arbitragem, escolhem as partes, não apenas o direito, ou as regras, que querem ver aplicadas ao fundo da causa, como também os árbitros, que entendem ser as pessoas mais aptas a solucionar um determinado conflito. Ora, se o juiz, não indicado pelas partes, se substituir aos árbitros, existe uma limitação à vontade daquelas. Por outro lado, se se atribuírem poderes ao juiz para dirimir o litígio, introduz-se um segundo grave limite à vontade das partes. Com efeito, se estas recorrem, em primeiro lugar, ao processo arbitral é porque o consideram a melhor forma de resolução de um conflito. Ora, se o juiz se pronuncia relativamente ao fundo, impede que as partes recorram, uma vez anulada a primeira sentença arbitral, a uma segunda arbitragem. Acresce que o princípio da substituição não decorre da natureza da ação de anulação. Com efeito, esta dirige-se apenas à destruição de uma decisão existente, não à obtenção de uma nova decisão. Assim, a missão do juiz esgota-se quando anula a sentença arbitral, podendo atacar-se a sua decisão com fundamento em pronúncia indevida, se conhecer do mérito da causa” (6).
Decorre do que se vem dizendo, improceder este fundamento da ação.
Aqui chegados, resulta do acabado de expor, proceder na sua integralidade a ação intentada pela X Comercial – Comercialização de Energia, S.A. (ação com o n.º 115/20.9YRGMR), impondo-se anular a sentença arbitral proferida em 23 de março de 2003, pelo Centro de Arbitragem de Conflito de Consumo ..., ... e ..., que a condenou solidariamente com a Ré X Distribuição a realizar a intervenção na rede de distribuição de energia elétrica, de modo a ser reposta a normalidade do funcionamento da energia ao local de residência do ali Autor, A. M., nos termos contratados por este; a pagar ao ali Autor a quantia de mil euros, a título de compensação pelos danos não patrimoniais já sofridos e, bem assim a pagar ao mesmo Autor a quantia de quarenta euros por cada mês que decorra desde a data da notificação dessa sentença arbitral a ambas aí Rés e até ao mês em que seja reposta a normalidade do fornecimento de energia elétrica ao local de residência do aí Autor, A. M., nos termos contratados por este, improcedendo, por conseguinte, in totum, a ação arbitral quanto à ali Ré e qui Autora X Comercial.
Quanto à ação intentada pela X Distribuição – Energia, S.A. (Proc. n.º 122/20.1RGMR), esta procede parcialmente, impondo-se anular a sentença arbitral proferida em 23 de março de 2003, pelo Centro de Arbitragem de Conflito de Consumo ..., ... e ..., quanto à parte decisória em que condena a aqui Autora “X Distribuição” a pagar, a título de compensação por danos não patrimoniais futuros, ao aí Autor (aqui Réu), A. M., a quantia de 40,00 (quarenta) euros, desde a notificação da decisão arbitral às aí demandadas “e até ao mês em que seja reposta a normalidade do fornecimento de energia elétrica ao local de residência do autor, nos termos contratados por este”, (mantendo-se as restantes condenações da Autora X Distribuição a realizar a intervenção na rede de distribuição de energia elétrica, de modo a ser reposta a normalidade do funcionamento da energia ao local de residência do ali Autor, A. M., nos termos contratados por este e, bem assim a pagar ao último a quantia de mil euros, a título de compensação por danos não patrimoniais sofridos, incólumes), improcedendo essa ação na parte restante do pedido.
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Decisão:

Nesta conformidade, acordam os juízes desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar:

I- a ação intentada pela X Comercial – Comercialização de Energia, S.A. (ação com o n.º 115/20.9YRGMR), totalmente procedente e, em consequência:
- anulam a sentença arbitral proferida em 23 de março de 2003, pelo Centro de Arbitragem de Conflito de Consumo ..., ... e ..., na parte em que condenou a aqui Autora “X Comercial – Comercialização de Energia, S.A.”, solidariamente com a Ré “X Distribuição”, a realizar a intervenção na rede de distribuição de energia elétrica, de modo a ser reposta a normalidade do funcionamento da energia ao local de residência do ali Autor, A. M., nos termos contratados por este; a pagar ao ali Autor a quantia de mil euros, a título de compensação pelos danos não patrimoniais já sofridos; e, bem assim a pagar ao mesmo Autor a quantia de quarenta euros por cada mês que decorra desde a data da notificação dessa sentença arbitral a ambas aí Rés e até ao mês em que seja reposta a normalidade do fornecimento de energia elétrica ao local de residência do aí Autor, A. M., nos termos contratados por este, improcedendo, por conseguinte, in totum, a ação arbitral quanto à ali Ré e qui Autora X Comercial;
II- a ação intentada pela X Distribuição - Energia, S.A. (ação com o n.º 122/20.1YRGMR), parcialmente procedente e, em consequência:
a- anulam a sentença arbitral proferida em 23 de março de 2003, pelo Centro de Arbitragem de Conflito de Consumo ..., ... e ..., quanto à parte decisória em que condena a aqui Autora “X Distribuição” a pagar, a título de compensação por danos não patrimoniais futuros, ao aí Autor (aqui Réu), A. M., a quantia de 40,00 (quarenta) euros, desde a notificação da decisão arbitral às aí demandadas “e até ao mês em que seja reposta a normalidade do fornecimento de energia elétrica ao local de residência do autor, nos termos contratados por este”, (mantendo-se as restantes condenações da Autora X Distribuição a realizar a intervenção na rede de distribuição de energia elétrica, de modo a ser reposta a normalidade do funcionamento da energia ao local de residência do ali Autor, A. M., nos termos contratados por este e, bem assim e a pagar ao último a quantia de mil euros, a título de compensação por danos não patrimoniais sofridos, incólumes);
b- no mais, improcede a ação intentada pela X Distribuição, absolvendo-se o aqui Réu, A. M., desse restante pedido.
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Custas da ação n.º 115/20.9YRGMR, intentada pela X Comercial, pela Autora, dado que apesar de ter obtido totalmente procedência da ação, o aqui Réu não contestou e a Autora, mediante a presente ação propôs-se exercer (e exerceu) um direito potestativo (anulação da decisão arbitral), que não teve origem em qualquer facto ilícito praticado pelo aqui Réu (art. 536º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC).
Custas da ação n.º 122/20.1YRGMR, intentada pela X Distribuição, pela Autora, pela mesma ordem de razões (art. 536º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC).
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Fixa-se o valor das ações em 25.000,00 (vinte e cinco mil) euros.
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Notifique.
Após trânsito do presente acórdão, devolva o processo arbitral ao Centro de Arbitragem de Conflito de Consumo ..., ... e ....
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Guimarães, 21 de janeiro de 2021
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:

Dr. José Alberto Moreira Dias (relator)
Dr. António José Saúde Barroca Penha (1º Adjunto)
Dr. José Manuel Alves Flores (2º Adjunto)


1. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 18.
2. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 373 e 374.
3. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, ob. cit., pág. 21.
4. Armindo Ribeiro Mendes, “Intervenção dos Tribunais da Relação no que Toca à Matéria de Honorários dos Árbitros”, in “Tópicos para a Intervenção na Relação de Évora (17/05/2011)”, pág. 11, acessível in Internet.
5. Neste sentido Acs. RG. de 28/05/2020, Proc. 117/19.8YRGMR; RC. de 21/04/2015, Proc. 3486/12.7TBLRA.C1; de 26/11/2019, Proc. 100/19.3YRCBR.C1, TCAN de 15/09/2017, Proc. 00003/15.0BCPRT, todos in base de dados; Armindo Ribeiro Mendes, ob. cit., pág. 11.
6. Paula Costa e Silva, in “Anulação e Recursos da Decisão Arbitral, págs. 960 e 961, acessível in internet.