Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1421/10.6TBFAF-C.G1
Relator: RAQUEL REGO
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
HIPOTECA
CRÉDITO LABORAL
LOCAL DE TRABALHO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/31/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - O artº 333º do Código do Trabalho, conferindo privilégio especial sómente ao bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade, não tem em vista uma ligação estritamente física e permanente entre o exercício de funções e aquele, mas apenas excluir desse privilégio todos aqueles imóveis que, no caso de insolventes singulares, estão exclusivamente destinados à fruição pessoal do empregador.
II – Não pode ocorrer situações de completa desigualdade entre trabalhadores cujo exercício funcional se contenha nas instalações físicas da respectiva entidade patronal e aqueles que, pela natureza específica das suas funções, só ocasionalmente nelas se detêm, como os motoristas, os vendedores, os promotores publicitários dos produtos junto de superfícies comerciais, os que prestam assistência técnica a clientes, os trabalhadores das feiras e tantos outros.
III – Nestes últimos, a sede do seu local de trabalho situa-se também no dito imóvel, pelo que gozam os seus créditos do privilégio imobiliário especial consagrado no artº 333º do Código do Trabalho.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I – RELATÓRIO.

1. Por apenso aos autos de Insolvência que correm neste Tribunal sob o nº1421/10.6TBFAF-C, em que são insolventes A… e B… veio a Srª Administradora da Insolvência juntar aos autos a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos do disposto no artº 129º, nº1, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, constante de fls. 4 e seguintes.
Cumprido o disposto no artigo 130º, nº1, do citado diploma legal, foi apresentada impugnação pelo credor D…, Ldª tendo a Srª Administradora da Insolvência atendido à reclamação efectuada juntando nova lista de credores reconhecidos, com a devida rectificação.
Veio, então, a C… impugnar a lista de credores reconhecidos no que concerne à natureza dos créditos de E…, F…, G… e H… pugnando pela sua qualificação como comuns.

2. Em resposta,a Srª Administradora justificou a qualificação dos créditos reconhecidos por a sede do estabelecimento dos insolventes, enquanto empresários em nome individual, ser no imóvel apreendido nos autos.

3. o Tribunal a quo veio a proferir sentença decidindo nos seguintes termos:
«Graduação sobre o Imóvel
Em primeiro lugar, os créditos privilegiados dos trabalhadores E… e F…;
Em segundo lugar, o crédito garantido da C…, S.A, pelo valor de €174.351,55;
Em terceiro lugar, o crédito verificado do Instituto da Segurança Social pelas contribuições devidas, no valor de €2.621,28 e o crédito verificado da Fazenda Nacional a título de IMI, no montante de €189,65.
Em último lugar os créditos comuns na sua proporção, caso a massa insolvente seja insuficiente para a sua integral satisfação,
Graduação sobre os Móveis
Em primeiro lugar, os créditos privilegiados dos trabalhadores E…, F…, G… e H….
Em segundo lugar, o crédito verificado do Instituto da Segurança Social pelas contribuições devidas, no valor de €2.621,28.
Em último lugar os créditos comuns na sua proporção, caso a massa insolvente seja insuficiente para a sua integral satisfação».

4. Inconformada, apelou a C…, rematando as alegações com as seguintes conclusões:
«1. Nos presentes autos foi reconhecido à C…, ora recorrente, um crédito sobre os insolventes no valor global de € 228.142,84 (duzentos e vinte e oito mil cento e quarenta e dois euros e oitenta e quatro cêntimos), sendo esse crédito qualificado como garantido até ao valor de € 174.351,55 (cento e setenta e quatro mil trezentos e cinquenta e um euros e cinquenta e cinco cêntimos), por força das hipotecas voluntárias que incidem sobre o imóvel apreendido, e como comum na parte remanescente, ou seja, € 53.791,29 (cinquenta e três mil setecentos e noventa e um euros e vinte e nove cêntimos).
2. Julgou o Tribunal a quo, no que respeita aos credores E… e F… que “não obstante os referidos credores trabalharem em feiras e por isso não terem um local de trabalho fixo o centro estável ou predominante do desenvolvimento da sua actividade laboral era no referido imóvel”.
3. Concluiu, por isso, a sentença em crise gozarem tais créditos de privilégio creditório imobiliário especial sobre o imóvel apreendido nos autos, graduando-os, a final, com preferência sobre os demais credores para pagamento pelo produto da venda do imóvel apreendido.
4. Ora, dos factos julgados provados após produção da prova não resulta que os credores E… e F… prestassem a sua actividade ao serviço dos insolventes no imóvel apreendido.
5. Bem pelo contrário, tais factos indiciam exactamente o inverso: que os credores E… e F… não exerciam a sua actividade no imóvel apreendido, pois que a sua actividade era exercida nas feiras.
6. A circunstância de nesse imóvel serem aparcadas as viaturas, serem armazenados os produtos ou serem apresentados os trabalhadores não permite concluir que é nesse imóvel que se encontra o lugar físico do cumprimento da prestação do trabalhador e muito menos permitirá concluir que é aí que o trabalhador tem o centro estável e predominante da sua relação laboral.
7. Tanto mais que, atenta a natureza da actividade prestada pelos credores reclamantes E… e F…, não tinham estes, na qualidade de feirante, qualquer centro estável ou predominante onde pudessem exercer a sua actividade.
8. Uma vez que ser feirante é, por definição, “exercer o comércio de forma não sedentária em mercados descobertos ou em instalações não fixas ao solo da maneira estável em mercados cobertos” – v.g. art. 3º, al. c) do D.L. nº 339/85 de 21/08.
9. Ora, para a atribuição do privilégio creditório imobiliário especial a que alude o art. 333º, nº 1, al. b) do Código de Trabalho, o legislador impõe, não só que o imóvel pertença ao empregador, mas também que seja nesse imóvel que o trabalhador exerce a sua actividade.
10. E assim sendo, em face de todo o exposto, é a situação dos autos omissa quanto à verificação do segundo requisito exigido por esse dispositivo legal para atribuição do privilégio creditório imobiliário especial, uma vez que os credores E… e F… não exerciam a sua actividade no imóvel apreendido a favor da massa insolvente.
11. Acresce que, o imóvel apreendido a favor destes autos, tem como único e exclusivo destino a habitação, correspondendo igualmente à residência dos insolventes.
12. Sobre esse imóvel incidem quatro hipotecas voluntárias a favor da C….
13. Sendo que uma dessas hipotecas garante a dívida emergente de financiamento destinado à construção de imóvel e concedido ao abrigo do regime de Crédito Jovem Bonificado, que tem em vista a aquisição, construção, e realização de obras de conservação ordinária, extraordinária e de beneficiação de habitação própria.
14. Tal financiamento foi concedido e garantido por forma a, de acordo com o direito vigente, garantir à C… a primazia de seu crédito sobre os demais credores em sede de eventual cobrança coerciva ou insolvencial.
15. E, de facto, face ao regime vigente, a C… podia, com segurança, contar que o seu crédito estaria absolutamente garantido, pois que, destinando-se o imóvel à habitação própria dos insolventes, não poderia a C… ser surpreendida – como foi – por eventuais privilégios de trabalhadores sobre esse mesmo imóvel.
16. Não se coaduna, pois, com o espírito do art. 333º, nº 1, al.
b) do Código de Trabalho a consideração de que o local de exercício da actividade do trabalhador pode corresponder – no todo ou em parte – à residência do empregador.
17. Seja pela natureza da actividade que os credores reclamantes Adelino e Eduardo prestavam, seja pela própria finalidade do imóvel apreendido nos autos, não pode o Tribunal a quo extrapolar dos factos provados a conclusão de que esses credores exerciam aí a sua actividade e o utilizavam como centro estável e predominante da mesma.
18. Carece, pois, de verificação o 2º requisito exigido pelo art.333º, nº 1, al. b) do Código do Trabalho para que se possa atribuir aos crédito reclamados por E… e F… o privilégio creditório imobiliário especial a que alude esse dispositivo legal.

Termina pela procedência do recurso e pela revogação da sentença recorrida que deverá ser substituída por outra que, julgando os créditos dos credores E… e F… como créditos comuns, os gradue para pagamento do produto da venda do bem imóvel penhorado nos autos após o crédito hipotecário da aqui recorrente.

5. Foram oferecidas contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
6. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1 – O credor E… reclamou o seu crédito no valor total de €3.778,97.
2 – O credor F… reclamou o seu crédito no valor total de €4.792,93.
3 – A credora G… reclamou o seu crédito no valor total de €14.866,73.
4 – A credora H… reclamou o seu crédito no valor total de €18.442,35.
5 – Foi apreendido nos autos o prédio urbano composto por cave, rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito no Lugar de …, freguesia de …, Fafe, descrito na Conservatória de Registo Predial de Fafe sob o nº …/….
6 – No imóvel identificado em 5 estavam aparcadas as viaturas, nas quais, ao serviço dos insolventes, os credores identificados em 1 e 2 efectuavam o respectivo serviço inerente às feiras, sendo novamente aparcadas no fim de cada dia.
7 - No imóvel identificado em 5 eram armazenados os produtos que os credores identificados em 1 e 2 carregavam nas carrinhas para serem vendidos nas feiras.
8 – Do imóvel eram retirados produtos para comercializar no estabelecimento Z…, à Rua…, nº …, Fafe.
9 - Os credores identificados em 1 e 2 apresentavam-se todos os dias no imóvel identificado em 5 para desse modo, no âmbito da relação laboral, serem deslocados para as feiras.

***
O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
Nos recursos apreciam-se questões e não razões;
Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

***
Conforme resulta do relatório supra, a questão a resolver neste recurso é a de saber se os credores E… e F… devem vêr os seus créditos qualificados como privilegiados relativamente ao imóvel a que se reportam os autos, o mesmo é dizer, se deve considerar-se tal imóvel como o respectivo local de trabalho.
Vem esta decorrência do estatuído no artº 333º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, nos termos do qual os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.
Como todos sabemos, no âmbito da Lei 17/86 e da Lei 96/2001, os créditos emergentes de contrato individual de trabalho ou da sua violação e respectivos juros, gozavam de privilégio mobiliário e imobiliário gerais.
Portanto, a inovação ocorrida traduz-se na substituição do anterior privilégio imobiliário geral por um privilégio imobiliário especial circunscrito ao bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.
É clara a capital importância da determinação do local de trabalho do trabalhador reclamante.
A Srª Juiz a quo dissertou sobre a matéria fazendo constar o seguinte:
«O conceito de local de trabalho aponta para o lugar físico de cumprimento da prestação do trabalhador que coincide, em regra, com as instalações da empresa ou com o estabelecimento do empregador.
Contudo, situações há em que atenta a natureza da actividade desenvolvida não existe um local de trabalho fixo e único como é o caso dos trabalhadores que exercem a sua actividade por conta de outrem em feiras. Neste e noutros casos semelhantes a noção de local de trabalho deverá coincidir com o centro estável ou predominante do desenvolvimento da actividade laboral».
Sobre a matéria, pode ler-se in “Direito do Trabalho”, pag.475, de Pedro Romano Martinez que «em princípio, a natureza das coisas aponta para o local de trabalho ser na empresa, junto do empregador, mas há actividades ambulatórias (…) em que o local de trabalho pode ser uma zona geográfica, noneadamente um distrito ou um país».
Esta Relação teve já de pronunciar-se sobre a matéria em alguns arestos, de que é exemplo recente o datado de 28.11.2011 (itij), nos termos do qual « Ao fixar, para os créditos dos trabalhadores, um privilégio imobiliário especial, o legislador teve em vista, em sentido amplo, os imóveis em que esteja sediado o estabelecimento para o qual o trabalhador prestou a sua actividade (…)».
E, como facilmente se constata, qualquer outra interpretação, como a defendida pela recorrente, sempre conduziria a resultados inaceitáveis, gerando nomeadamente situações de completa desigualdade entre trabalhadores cujo exercício funcional se continha nas instalações físicas da respectiva entidade patronal e aqueles que, pela natureza específica das suas funções, só ocasionalmente nelas se detinham. Seria o caso dos motoristas, como também dos vendedores, dos promotores publicitários dos produtos junto de superfícies comerciais, dos que prestam assistência técnica a clientes, dos trabalhadores das feiras e tantos outros.
Portanto, o artº 333º do actual CT (aprovado pela Lei 7/2009, de 12/02) abrange os imóveis existentes na massa insolvente que estavam afectos à actividade empresarial da insolvente, independentemente de uma qualquer conexão específica ou imediata entre o imóvel e a concreta actividade laboral de cada um dos trabalhadores reclamantes. … O legislador teve em mente, não um concreto ou individualizado local de trabalho, mas os imóveis em que esteja implantado o estabelecimento para o qual o trabalhador prestou a sua actividade, independentemente de essa actividade ter sido aí desenvolvida ou no exterior, apenas se exclui o património do empregador não afecto à sua organização empresarial, notadamente os imóveis exclusivamente destinados à fruição pessoal do empregador, tratando-se de pessoa singular, ou de qualquer modo integrados em estabelecimento diverso daquele em que o reclamante desempenhou o seu trabalho – Acórdão da Relação de Coimbra de 12.06.2012 (itij).
Assim, com a expressa menção que passou a constar do anterior artigo 377º do Código do Trabalho e actual 333º, conferindo privilégio especial sómente ao bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade, não se tem em vista uma ligação estritamente física e permanente entre o exercício de funções e aquele, mas apenas excluir desse privilégio todos aqueles imóveis que, no caso de insolventes singulares, estão exclusivamente destinados à fruição pessoal do empregador.
Por tudo isto, não pode deixar de se sufragar a sentença em crise, face à factualidade provada de que os credores E… e F… se apresentavam, todos os dias, no imóvel apreendido nos autos para desse modo, no âmbito da relação laboral, serem deslocados para as feiras.
É que - relembre-se - do mesmo modo se provou que no dito imóvel se encontravam aparcadas as viaturas, nas quais, ao serviço dos insolventes, os referidos credores efectuavam o respectivo serviço inerente às feiras, sendo novamente aparcadas no fim de cada dia. Era, ainda, no mesmo que eram armazenados os produtos que os referidos credores carregavam nas carrinhas para serem vendidos nas feiras.
O estabelecimento comercial estava, pelo exposto, ali sediado, sendo irrelevante que não fosse esse o seu exclusivo uso, pois que, como se viu, só no inverso o privilégio não existiria.
É de manter o decidido.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Guimarães, 31/01/2013
Raquel Rego
António Sobrinho
Isabel Rocha