Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6144/17.2T8BRG.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DE TRANSACÇÃO
VÍCIOS SUSCETÍVEIS DE RECURSO
FALTA DE AUTORIZAÇÃO DA COMISSÃO DE CREDORES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/16/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – O recurso interposto da sentença homologatória de uma transação apenas pode incidir sobre um vício da própria decisão homologatória e não sobre o mérito da transação homologada, ou seja, sobre a validade intrínseca do contrato de transação celebrado entre as partes.

2 – Ao juiz só cabe assegurar-se da disponibilidade do objeto da transação, da qualidade das partes que nela intervieram, da idoneidade negocial (que o contrato não versa sobre negócio jurídico ilícito) e que o contrato de transação abarca as pretensões deduzidas no processo.

3 – Não cabe ao juiz exigir ao administrador da insolvência a demonstração da concordância da assembleia de credores quando é interveniente numa transação e independentemente do seu concreto teor.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO

1.1. Massa Insolvente de X – Sociedade Imobiliária, Lda., intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra E. M., A. P. e marido, R. M., M. F. e marido, J. C., M. M., A. M. e marido, A. F., e A. S. e mulher, Maria, pedindo a condenação:

«1- Dos 1º, 2º, 3º, 4º e 5ºs réus ao pagamento solidário da quantia de 7.453,27€ relativa a IMI das fracções B, C, D, G e I;
2- Dos 1º, 2º, 3º, 4º e 5ºs réus ao pagamento solidário da quantia de 95,57€ a título de juros vencidos e ainda vincendos até efectivo e integral pagamento da quantia em dívida;
3- Dos 6ºs réus ao pagamento da quantia de 4889,46€ relativa a IMI das fracções O e Q;
4- Dos 6ºs réus ao pagamento da quantia de 62,69€ a título de juros vencidos e ainda vincendos até efectivo e integral pagamento da quantia em dívida».

Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese, que as aludidas fracções autónomas integram o património dos Réus e que Autora pagou o Imposto Municipal sobre Imóveis relativo às mesmas, que é da responsabilidade dos respectivos proprietários e não da Massa Falida.
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Contestaram os Réus A. S. e mulher, Maria, alegando que ainda não lograram registar a seu favor das fracções O e Q por facto imputável à Autora, pelo não são devedores da quantia peticionada, enquanto a Autora não regularizar a situação registral (fls. 68).
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Contestaram e reconvieram os Réus E. M., A. P. e marido, R. M., M. F. e marido, J. C., M. M., A. M. e marido, A. F., solicitando a intervenção principal provocada de F. D., administrador judicial, pedindo que os Reconvindos sejam condenados solidariamente no pagamento aos Reconvintes da quantia de € 13.000,00 (treze mil euros), por terem ficado privado do uso das fracções durante doze meses, cujo dano não é inferior a mil euros por mês. Por excepção, invocaram a prescrição, a compensação por serem credores da Autora no montante de € 602.000,00, o abuso do direito por a Autora lhes exigir a quantia de € 7.453,27 quando não pagou o montante que lhes está a dever, e a excepção de não cumprimento por a Autora não lhes ter entregado as fracções acabadas e livres de ónus ou encargos.
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Apresentada réplica, o Tribunal a quo proferiu despacho a não admitir tanto o chamamento de F. D. como a reconvenção.
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Foi relegada para final o conhecimento das excepções de prescrição, compensação, abuso do direito e incumprimento.
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Na audiência de julgamento a Autora e os Réus E. M., A. P. e marido, R. M., M. F. e marido, J. C., M. M., A. M. e marido, A. F., celebraram transacção, a qual foi judicialmente homologada por sentença.
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Os autos prosseguiram quanto aos Réus A. S. e mulher, Maria, tendo a final sido proferida sentença, a qual não foi impugnada e não é objecto deste recurso.
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1.2. Inconformada com a sentença homologatória da transacção, a Caixa ..., SA, enquanto credora no processo de insolvência de X – Sociedade Imobiliária, Lda., e credora com garantia real hipotecária sobre as fracções objecto da transacção homologada, interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

«1. Por ser terceira juridicamente interessada, atenta a sua dupla qualidade de credora no processo de insolvência da sociedade “X, Ldª” e credora com garantia real hipotecária sobre os imóveis objecto da transacção celebrada - a saber, fracções autónomas designadas pelas letras “B”, “C”, “D”, “G” e “I” do prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Braga sob o nº .../Braga (...) -, a Caixa ... tem legitimidade para recorrer da decisão proferida.
2. De facto, sai a Caixa ... prejudicada por via da transacção celebrada, por um lado, pois que ela comporta um aumento das dívidas da massa, com a correspectiva diminuição do pagamento aos credores – sendo de relevar que os bens apreendidos no processo de insolvência estão onerados com hipoteca a favor da Caixa ..., pelo que o agravar das dívidas da massa tem reflexo (negativo) directo e imediato no seu ressarcimento -,
3. Ao que acresce que, atentos os termos da transacção que se impugna, as partes estão claramente a tentar ultrapassar a penhora registada sobre os imóveis, em execução movida pela Caixa ... contra os aqui Réus enquanto titulares inscritos dos bens dados em garantia do pagamento dos créditos concedidos à sociedade – entretanto insolvente - “X, Ldª”, e, assim, proceder à sua venda, não no âmbito do processo executivo, mas antes na insolvência – o que, naturalmente, resulta em prejuízo da Caixa ..., pois que certamente será ressarcida em quantia inferior na hipótese – que não se aceita – de os bens não serem vendidos na sua execução.
4. Não se conforma, pois, a Caixa ... com a homologação da transacção celebrada e por três ordens de razão: em primeiro lugar, pois que a mesma vai contra decisões judiciais anteriores devidamente transitadas em julgado, depois, porque viola, ou pretende violar, o princípio do trato sucessivo e a regra da prioridade dos registos e, finalmente, dado que o Sr. Administrador de Insolvência carecia de prévia autorização da comissão de credores para a sua celebração.
5. Começando pelo primeiro dos fundamentos invocados, há que atender ao art. 1º da transacção, em que as partes se referem à acção (cuja decisão se acha junta aos presentes autos) que correu termos com o nº com o nº 6998/13.1TBBRG, no Juiz 5 da Instância Central Cível de Braga deste Tribunal Judicial de Comarca.
6. A afirmação ali contida de que foi declarado resolvido o contrato de permuta celebrado entre os réus e a Y - Transformação de Madeira, em cuja posição contratual sucedeu a sociedade X – Sociedade Imobiliária, Ldª, não é rigorosa, pois que o que foi declarado resolvido foi o acordo de reformulação do contrato de permuta celebrado em 30.DEZ.2004 entre os aqui Réus e a sociedade insolvente “X – Sociedade Imobiliária, Ldª”.
7. Mais afirmam Autora e Réus que as fracções objecto da permuta se mantiveram, pelo menos desde 28 de Novembro de 2003, “na propriedade da dita sociedade X, Sociedade Imobiliária, Lda.”, o que contraria em absoluto a decisão proferida naquela acção, que declarou que os Réus se tornaram legítimos e exclusivos donos e proprietários das fracções “B”, “C”, “D”, “I” e “G” a partir de 28 de Novembro de 2003 (isto é, desde momento anterior ao da celebração do acordo que veio a ser resolvido).
8. Continuam, Autora e Réus, dizendo que assiste “à massa insolvente o direito a manter a apreensão das ditas fracções e a proceder à sua venda em benefício da massa insolvente”, o que, uma vez mais, não é correcto, pois que essas fracções não estão e, em rigor, nunca estiveram verdadeiramente apreendidas, pelo que inexiste apreensão a manter.
9. É certo que, pese embora as fracções em causa – estivessem – como estão – registadas em nome dos aqui Réus (v.g. Ap. 39 de 2007/05/10), o Sr. Administrador de Insolvência tentou apreendê-las e, para o efeito, fê-las constar do auto de apreensão por si elaborado, mas é igualmente certo que o registo da declaração de insolvência ficou – como não poderia deixar de ser - lavrado como provisório por natureza e, entretanto, foi ordenado ao Sr. Administrador de Insolvência que retirasse tais fracções do auto de apreensão.
10. Por esse motivo, isto é, por inexistir apreensão à ordem da massa insolvente, a execução movida pela Caixa ... – a correr no Juiz 2 do Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão deste Tribunal Judicial da Comarca de Braga com o nº 1862/08.9TBBRG - e em que as mencionadas fracções estão penhoradas foi prosseguindo os seus termos, mormente com vista à sua venda.
11. Ora, na sequência da decisão proferida na supra referida acção que correu termos com o nº 6998/13.1TBBRG, o Sr. Administrador de Insolvência, por um lado, voltou a tentar apreender as fracções em crise e, por outro lado, os aqui Réus tentaram fazer com que o processo executivo acabado de referir fosse declarado extinto.
12. Contudo, em face da decisão proferida naquela acção, do todo da decisão proferida, nem uma, nem outra pretensão tiveram sucesso. Aliás, neste ponto há que realçar que pelo Sr. Administrador de Insolvência foi inclusivamente solicitado o cancelamento do registo da aquisição a favor dos aqui Réus e, em consequência, a conversão, em definitivo, do registo da declaração de insolvência sobre as ditas fracções, o que lhe veio a ser negado, tal qual consta do despacho da Sr.ª Conservadora que se acha junto a estes autos.
13. Significa isto que, com a transacção celebrada, as partes estão a tentar obter resultado que vai em sentido diametralmente oposto ao daquela decisão proferida no âmbito da acção que correu termos com o nº 6998/13.1TBBRG, resultado esse que, em parte, já lhes foi negado e precisamente na sequência e em virtude da sentença ali proferida!
14. A homologação da transacção consiste, pois, em violação de caso julgado – v.g. art. 619º, nº1 do CPC.
15. Acresce que o acordo das partes não pode ter a virtualidade de alterar a regra da prioridade dos registos ou o princípio do trato sucessivo. Assim, ainda que as partes afirmem que as fracções são da propriedade da sociedade “X, Ldª” desde momento anterior ao da declaração de insolvência, tal, por ser violador de decisão transitada em julgado, não comportará o cancelamento da inscrição de aquisição a favor dos aqui Réus e registada pela Ap. 39 de 2007/05/10.
16. Daqui decorre que a transacção celebrada apenas poderá ser entendida como uma dação - a produzir os seus efeitos a partir da data do eventual trânsito da sua homologação -, pois que, em pagamento do crédito detido pela massa insolvente, a mesma irá receber bens.
17. Ora, a eventual transmissão das fracções supra melhor identificadas em decurso da dação operada por via da transacção de que se vem tratando não é oponível aos autos executivos, porque posterior à penhora ali registada (através da Ap. 3874 de 2009/10/12).
18. Qualquer entendimento contrário seria claramente violador do disposto no art. 6º, nº 1 do CRP.
19. Significa isto que, ao contrário do pretendido pelas partes, as fracções em crise não poderão ser vendidas no processo de insolvência, mas antes tê-lo-ão de ser no processo executivo.
20. O Sr. Administrador de Insolvência terá porventura confundido as situações em que os bens são apreendidos por integrarem, à data da declaração de insolvência, a esfera patrimonial do insolvente, casos em que, independentemente da existência de processos executivos e penhoras anteriores, por força do disposto no art. 88º do CIRE, os mesmos (bens) são necessariamente vendidos na insolvência.
21. Mas essas situações em nada se confundem com a presente, em que, em pagamento de uma dívida, o Sr. Administrador de Insolvência aceita receber bens – e aceitá-los-á receber no estado em que estão e com os ónus que sobre eles impenderem, pois que aqui não tem aplicação o disposto no mencionado art. 88º do CIRE.
22. Acontece que os bens objecto da transacção estão onerados, não só com hipotecas em benefício da Caixa ..., mas também, como já referido e tal qual resulta das certidões dos imóveis juntas aos autos, com penhora, igualmente a favor da Caixa ..., aqui recorrente.
23. Atento o exposto, em ordem a poder celebrar a transacção cuja homologação se contesta, o Sr. Administrador de Insolvência necessariamente deveria ter obtido a prévia autorização da comissão de credores.
24. Nos termos do disposto no art. 161º, nº1 do CIRE, depende do consentimento da comissão de credores, a prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência, sendo que, claramente, transigir no sentido de a massa receber imóveis absolutamente onerados – a ponto de o produto da sua venda nem sequer permitir a liquidação desses mesmos ónus – e, no mesmo momento, assumir o pagamento não só dos créditos que por via desta acção se pretendia recuperar, mas também de outras dívidas, em montante não quantificado, reveste especial relevo.
25. Não tendo sido, previamente, alertada e consultada a comissão de credores e, por isso, não tendo prestado o seu consentimento, no caso, o Sr. Administrador de Insolvência não possuía, como não possui, os necessários poderes para transigir nos termos em que o fez, tendo actuado em excesso de funções.
26. Tendo sido deliberado e determinado o prosseguimento para liquidação do activo no âmbito do processo de insolvência da sociedade “X, Ldª”, o Sr. Administrador de Insolvência acha-se mandatado para apreender e vender o património da insolvente, assim como para praticar os actos necessários à sua conservação, mas manifestamente não está habilitado a assumir dívidas em nome da massa e a aceitar bens onerados em pagamento de dívidas que, em rigor, foram por si constituídas, porque emergentes da liquidação de impostos da obrigação de terceiros.
27. Não estava, pois, nem está o Sr. Administrador de Insolvência munido dos necessários poderes à celebração da transacção em crise.
28. Ao homologar a transacção celebrada entre a Autora e os Réus E. M., A. P., R. M., M. F., J. C., M. M., A. M. e A. F. a sentença violou os artigos 619º do Código de Processo Civil, 6º, nº 1 do Código do Registo Predial e 161º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
29. Pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que recuse a homologação dessa mesma transacção».
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Os Recorridos E. M., A. P. e marido, R. M., M. F. e marido, J. C., M. M., A. M. e marido, A. F., apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.3. QUESTÕES A DECIDIR

Em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial(1). Tal restrição não opera relativamente às questões de conhecimento oficioso, as quais podem ser decididas com base nos elementos constantes do processo. Em matéria de qualificação jurídica dos factos a Relação não está limitada pela iniciativa das partes - artigo 5º, nº 3, do CPC. Por outro lado, o tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, constitui questão a decidir saber se homologação da transacção deveria ter sido recusada por:

i) Contrariar decisões transitadas em julgado;
ii) Violar o princípio do trato sucessivo e a regra da prioridade dos registos;
iii) O administrador da insolvência carecer de prévia autorização da comissão de credores para a sua celebração.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

Para a apreciação das aludidas questões relevam os seguintes factos, emergentes dos documentos juntos aos autos e da posição assumida pelas partes relativamente aos mesmos:

1 - A X – Sociedade Imobiliária, Lda., foi declarada insolvente no âmbito do processo 1848/09.6TBBRG, tendo-lhe sido nomeado como administrador da insolvência o Dr. F. D..
2 – No âmbito das suas funções, em 03.09.2009, o Administrador da Insolvência elaborou auto de apreensão de bens imóveis, entre os quais as seguintes fracções do prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Braga sob o nº .../Braga (...), inscrito na matriz predial sob o nº ...:
- fracção B, destinada a comércio;
- fracção C, destinada a comércio;
- fracção D, destinada a habitação;
- fracção I, destinada a habitação;
- fracção G, destinada a habitação;
- fracção Q, destinada a habitação;
- fracção O, destinada a habitação (doc. de fls. 6).
3 – E. M., A. P. e marido, R. M., M. F. e marido, J. C., M. M., A. M. e marido, A. F., intentaram contra a Caixa ..., SA, e Massa Insolvente de X – Sociedade Imobiliária, Lda., acção declarativa que correu termos no 1º Juízo Central Cível de Braga, sob o nº 6998/13.1TBBRG, pedindo:
A)
a1) Declararem-se nulas todas as hipotecas e subsequentes penhoras inscritas a favor da Caixa que incidem sobre as fracções B, C, D, I e G, visto terem sido celebradas sobre bens alheios;
a2) Consequentemente, serem cancelados hipotecas e subsequentes penhoras que incidem sobre as referidas fracções;
a3) Declarar-se que os AA. são os legítimos e exclusivos donos e proprietários das fracções B, C, D, I e G;
a4) Declarar-se que a Caixa não é um terceiro de boa-fé para efeitos registrais;
Caso assim não se entenda, subsidiariamente,
B)
b1) Declarar-se resolvido o contrato referido no artigo 29°, com as legais consequências;
b2) Declarar-se a impossibilidade de restituição do prédio no seu estado originário por parte da X, pois afectaria direitos de terceiros de boa fé registados anteriormente à acção resolutiva (i.e., dos proprietários das demais fracções);
b3) Consequentemente, condenar-se a Massa Insolvente de X, Sociedade Imobiliária, Lda ao pagamento aos AA. de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), referentes ao valor do prédio permutado id. em 1°;
b4) Condenar-se a Massa Insolvente de X, Sociedade Imobiliária, Lda ao pagamento aos AA. de 102.000,00 (cento e dois mil euros), acrescidos de juros legais vencidos e vincendos, referente à indemnização contratual de 102 meses de mora;
b5) Declarar-se que os AA. gozam do direito de retenção sobre as fracções preditas até efectivo e integral pagamento das quantias supra peticionadas.
b7) Caso se entenda que na procedência da resolução supra peticionada, não está a Massa Insolvente de X Sociedade Imobiliária, Lda. obrigada a restituir o prédio id. em 1º aos AA.: - Condenar-se a X, sob pena de enriquecimento sem causa, a pagar aos AA. a quantia de e 500.000,00 (quinhentos mil euros), referentes ao valor do prédio.
Caso assim não se entenda, subsidiariamente,
C)
cl) Declararem-se nulos os contratos de abertura de créditos celebrados entre a Caixa e a X por violarem a boa fé e os bons costumes e, consequentemente, serem canceladas as hipotecas e subsequentes penhoras que incidem sobre as fracções B, C, D, I e G.
c2) Declararem-se nulas todas as hipotecas e subsequentes penhoras inscritas a favor da Caixa que incidem sobre as fracções B, C, D, I e G, visto terem sido celebradas sobre bens alheios;
c3) Consequentemente, serem cancelados os referidos registos de hipotecas e subsequentes penhoras que incidem sobre as referidas fracções;
c4) Declarar-se que os AA. são os legítimos e exclusivos donos e proprietários das fracções B, C, D, I e G;
c5) Declarar-se que a Caixa não é um terceiro de boa-fé para efeitos registrais;

Caso assim não se entenda, subsidiariamente,

D)
d1) Declarar-se a anulabilidade do negócio celebrado entre os AA. e a X, com as legais consequências;
d2) Declarar-se a impossibilidade de restituição do prédio no seu estado originário por parte da X, pois afectaria direitos de terceiros de boa fé registados anteriormente à acção resolutiva (i.e., dos proprietários das demais fracções);
d3) Consequentemente, condenar-se a Massa Insolvente de X, Sociedade Imobiliária, Lda ao pagamento de e 500.000,00 (quinhentos mil euros), referentes ao valor do prédio permutado;
d4) Condenar-se a Massa Insolvente de X, Sociedade Imobiliária, Lda ao pagamento de e 102.000,00 (cento e dois mil euros), acrescida de juros legais vencidos e vincendos, referente à indemnização contratual de 102 meses de mora;
d5) Declarar-se que os AA. gozam do direito de retenção sobre as fracções preditas até efectivo e integral pagamento das quantias supra peticionadas.
d6) Declarar-se que a Caixa não é um terceiro de boa-fé para efeitos registrais;
d7) Consequentemente, serem cancelados os referidos registos de hipotecas e subsequentes penhoras que incidem sobre as fracções;
d8) Caso se entenda que na procedência da anulabilidade supra peticionada, não está a X obrigada a restituir o prédio supra id. em 1º aos AA.: - Condenar-se a X, sob pena de enriquecimento sem causa, a pagar aos AA. a quantia de e 500.000,00 (quinhentos mil euros), referentes ao valor do prédio.

Caso assim não se entenda, subsidiariamente.

E)
e1) Condenar-se a X a pagar aos AA. a quantia de e 500.000,00 (quinhentos mil euros) a título de enriquecimento sem causa;
e2) Declarar-se que os AA. gozam do direito de retenção sobre as fracções sobreditas até efectivo e integral pagamento da quantia supra peticionada.
4 – Nessa acção foi em 27.03.2015 proferida sentença, cujo dispositivo tem o seguinte teor:
«IV- Por tudo o exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a presente acção e, em consequência:
- declarar que os Autores se tornaram legítimos e exclusivos donos e proprietários das fracções B, C, D, I e G, por força do contrato de permuta celebrado, tendo porém os respectivos efeitos translativos tido o seu início apenas a partir da data da celebração da escritura constitutiva da propriedade horizontal (no dia 28 de Novembro de 2003);
- declarar que a 1ª Ré não é um terceiro de boa fé para efeitos registrais;
- declarar resolvido o contrato referido nos pontos 11º e 12º dos factos provados;
- Declarar a impossibilidade de restituição por parte da 2ª Ré aos Autores da parcela de terreno identificado no ponto 1º dos factos provados no seu estado originário e, em consequência, condenar a mesma 2ª Ré a pagar-lhes a quantia de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), referente ao prédio permutado e a indemnização de € 102.000,00 (cento e dois mil euros), quantias estas acrescidas de juros de mora desde a data da resolução (2 de Setembro de 2013, inclusive) até integral pagamento, à taxa de 4%, ou outra que legalmente venha a estar em vigor.
- absolver os Réus do restante pedido.

5 – Nessa acção foram considerados provados os seguintes factos:

«1. Por contrato de permuta celebrado no dia 17 de Julho de 2001, os Autores E. M., A. P., M. F. e marido, J. C., M. M. e marido J. L., e A. M. e marido A. F. acordaram ceder à sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada “Y – Transformação de Madeiras, Lda.”, a parcela de terreno, destinada a construção urbana, com a área de 1.555,70 m2, sita no lugar …, freguesia de ..., Braga, omissa na matriz, descrita na CRP de Braga sob o nº 2.090 e aí inscrita a favor daqueles.
2. Em contrapartida, a referida sociedade “Y – Transformação de Madeiras, Lda.”, obrigou-se a entregar aos cedentes, no prazo de 12 meses após a concessão da licença de construção e livres de quaisquer encargos ou ónus, três apartamentos tipo T3, mais precisamente, os 2º, 3º e 4º andares, do lado Norte do prédio a edificar, as três lojas do rés do chão desse imóvel, completamente acabadas e devidamente vistoriadas e com licença de habitabilidade.
3. Aquela parcela havia sido adquirida pelos Autores E. M., M. F., M. M., A. P. e A. M. por sucessão na herança de A. R., marido e pai daquelas, tendo os Autores, por si e seus antecessores, detido e ocupado a mesma desde 1977, aí plantando e colhendo os seus frutos, pagando as respectivas contribuições, de forma ininterrupta, à vista de todos, sem oposição de ninguém, na convicção de serem os seus legítimos proprietários e de estarem a exercer um direito próprio.
4. No dia 19 de Julho de 2001, a Y procedeu ao registo da aquisição desse terreno em seu nome com fundamento nesse contrato de permuta.
5. No dia 30 de Julho de 2001, a Y e a 1ª Ré Caixa ... celebraram um contrato de abertura de crédito no qual esta declarou abrir um crédito a favor daquela no montante de 150.000.000$00, tendo por sua vez a Y declarado constituir hipoteca a favor da 1ª Ré sobre a parcela de terreno descrita em 1, incluindo as edificações urbanas e benfeitorias que nele viessem a ser implantadas.
6. Nessa data a 1ª Ré Caixa ... tinha conhecimento do teor do contrato de permuta.
7. No dia 14 de Novembro de 2002, a Y vendeu à X – Sociedade Imobiliária, Lda., com sede no lugar de ..., …, Amares, a parcela de terreno identificada em 1.
8. Nessa mesma data, a X – Sociedade Imobiliária, Lda., celebrou com a Caixa ... um contrato de abertura de crédito, mediante o qual esta última declarou abrir um crédito a favor daquela até ao montante de € 898.196,85, tendo por sua vez aquela declarado constituir hipoteca a favor da 1ª Ré sobre a parcela de terreno descrita em 1, incluindo as edificações urbanas e benfeitorias que nele viessem a ser implantadas, tendo a hipoteca constituída pela Y sido cancelada.
9. Nas negociações preliminares este contrato de abertura de crédito, o sócio gerente da X – Sociedade Imobiliária, Lda., informou a 1ª Ré Caixa ... dos termos do contrato de permuta celebrado em 1.
10. No dia 28 de Novembro de 2003, foi celebrada a escritura pública de constituição de propriedade sobre o edifício construído na mencionada parcela de terreno, o qual tem 16 fracções autónomas, sendo as fracções A, B e C destinadas ao comércio e as demais destinadas a habitação.
11. A Y não entregou as fracções aos Autores, no prazo referido em 2, pelo que em 30 de Dezembro de 2004 estes últimos celebraram com a X – Sociedade Imobiliária, Lda., através de escrito particular, um acordo de reformulação do contrato de permuta mediante o qual esta se obrigou a entregar-lhes, como contrapartida da aquisição da parcela de terreno referida em 1, as fracções B, C, D, G e I daquele prédio até ao dia 31 de Março de 2005 totalmente acabadas e livres de quaisquer ónus ou encargos, nomeadamente livres da hipoteca voluntária que sobre elas incide, bem como a celebrar a escritura de transmissão da propriedade até ao dia 31 de Dezembro de 2006.
12. Ficou aí estipulado que, em caso de incumprimento dos prazos estipulados, a X – Sociedade Imobiliária, Lda., pagaria aos Autores a quantia de € 1.000,00 (mil euros) por cada mês, ou fracção de mês, de atraso.
13. A aquisição do direito de propriedade sobre as referidas fracções está, desde 10.05.2007, inscrita a favor dos Autores pela inscrição G-2, Ap. ../…, na 1ª Conservatória do Registo Predial de Braga.
14. Os Autores ainda não receberam as fracções completamente acabadas e livres de ónus e encargos, já que, sobre as mesmas incidem as hipotecas registadas provisoriamente a favor da Caixa, pela inscrição C-2 Ap. ../… e pela inscrição c-3 Ap. ../…, convertidas em definitivo pela Ap. 40/111201 e pela Ap. ../…, bem como, penhoras registadas pela Ap. … de 2009/10/12 no âmbito do processo executivo nº 1862/08.9TBBRG da Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Braga.
15. A Caixa ... recusa cancelar as referidas hipotecas e penhoras.
16. Em 08-07-2013 os Autores interpelaram a 2ª Ré, concedendo-lhe um prazo até 1 de Setembro de 2013 para que procedesse ao acabamento completo das fracções, ao cancelamento de todos os ónus e encargos que incidem sobre as mesmas e ao pagamento da indemnização referente a 99 meses de mora, que perfazia a quantia de € 99.000,00, acrescida de juros legais vencidos, com a admonição de que, mantendo-se o incumprimento, considerariam o contrato definitivamente incumprido e resolvê-lo-iam, não tendo a 2ª Ré concluído as fracções, nem procedido ao referido cancelamento.
17. O financiamento que a Ré concedeu quer à Y quer, posteriormente, à X destinou-se à construção de todo o imóvel.
18. Em Março de 2003 foram entregues as chaves da fracção D aos Autores M. F. e J. C., tendo estes começado a habitar esta fracção aos fins de semana e nas férias que passavam em Braga, pagando as despesas de condomínio, mobilando-a e aí colocando electrodomésticos.
19. Em 19.12.2005 a A. M. F. celebrou com a fornecedora de eletricidade contrato de fornecimento de energia eléctrica para a referida fracção, que desde então a tem vindo a pagar.
20. Entre Junho e Agosto de 2005, as chaves das outras quatro fracções (B, C, G e I) foram sendo sucessivamente entregues aos AA., apesar de nenhuma delas estar acabadas.
21. Na posse das chaves, os AA., designadamente, a M. M. passou a limpar as fracções B e C, onde passaram a guardar telas, montando numa das fracções um atelier de pintura.
22. Os Autores solicitaram orçamentos para acabar as fracções e realizam manutenção, limpeza e vigilância do prédio, tudo à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, ininterruptamente, com a convicção de que são proprietários das fracções.
23. O valor da parcela de terreno identificada em 1º ascende a € 5000.000,00».

6 – Interposto recurso per saltum, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 08.10.2015, transitado em julgado a 22.10.2015, negou a revista.
7 – Durante a audiência final realizada neste processo nº 6144/17.2T8BRG, em 04.12.2018, o Administrador da Insolvência, F. J., e os Réus E. M., A. P., R. M., M. F., J. C., M. M., A. M. e A. F. celebraram transacção com o seguinte teor:
«1º
A autora e os réus acima identificados reconhecem que, como consequência da sentença proferida no âmbito do processo n.º 6998/13.1TBBRG, Juiz 5 da Instância Central Cível deste Tribunal, que declarou resolvido o contrato de permuta celebrado entre os aqui réus e a Y - Transformação de Madeira, em cuja posição contratual sucedeu a sociedade X, Sociedade Imobiliária, Lda., as fracções B, C, D, I e G do prédio melhor identificado no art.º 2 da petição inicial se mantiveram, desde pelo menos 28 de Novembro de 2003 e até à presente data, na propriedade da dita sociedade X, Sociedade Imobiliária, Lda., assistindo por isso à massa insolvente o direito a manter a apreensão das ditas fracções e a proceder à sua venda em benefício da massa insolvente.

Em contrapartida do acordado em 1º, a massa insolvente reconhece que todas as dívidas geradas pelos imóveis em questão desde 28 de Novembro de 2003 e até à data da declaração da insolvência são dívidas da responsabilidade da sociedade X, Sociedade Imobiliária, Lda., e as posteriormente geradas (após a declaração da insolvência) são dívidas da massa insolvente, nada mais tendo a autora a exigir dos réus, designadamente a título de restituição de IMI.

A autora desiste da litigância de má-fé quanto aos réus acima identificados.

As custas em dívida a Juízo serão liquidadas em partes iguais pela Autora e pelos Réus».
8 – No mesmo acto foi judicialmente homologada a transacção celebrada, «porque válida quanto ao objecto e às pessoas intervenientes».
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2.2. Do objecto do recurso

A Recorrente entende, em síntese, que a transacção não podia ser judicialmente homologada por três motivos, a saber:

- Por a mesma ir «contra decisões judiciais anteriores devidamente transitadas em julgado»;
- Violar o princípio do trato sucessivo e a regra da prioridade dos registos;
- O administrador da insolvência carecer de prévia autorização da comissão de credores para a sua celebração.

Apesar de autonomizadas em três questões, redundam em apenas duas, uma vez que as duas primeiras consistem em saber se a transacção podia ocupar-se sobre aquele concreto objecto e a terceira consubstancia um problema de alegada falta de poderes do administrador da insolvência, para o que é necessário determinar os limites da autonomia deste órgão da insolvência.
A apreciação específica dessas questões exige uma prévia indagação das linhas fundamentais do regime jurídico da transacção, nos planos substantivo e adjectivo.
Nos termos do artigo 1248º, nº 1, do Código Civil, a transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões. Com relevo para o caso dos autos, as concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido – artigo 1248º, nº 2, do Código Civil.
Havendo processo pendente, a transacção celebrada é de seguida homologada pelo juiz em sentença que, tendo o valor da decisão de mérito (art. 290º, nº 3, do CPC), constitui caso julgado (art. 619º, nº 2, do CPC) e extingue a instância [art. 277º, al. d), do CPC].
O acto de homologação pressupõe um prévio exame da transacção, no qual o juiz verifica a validade da mesma. Para formar a sua decisão sobre a validade da transacção deve atender ao seu objecto e à qualidade das partes que nela intervieram, tal como impõe o artigo 290º, nº 3, do CPC. São esses os dois elementos essenciais de referência: o objecto da transacção e a qualidade das partes que a celebraram.
Na feliz síntese de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (2), «o juiz verifica, pela indagação relativa ao objecto, se este estava na disponibilidade das partes (art. 289º) e tinha idoneidade negocial (arts. 280º CC e 281º CC) e, pela indagação relativa às pessoas, a sua capacidade e a legitimidade que tinham para se ocupar do objecto (art. 287º, nomeadamente), o que constitui aplicação do direito substantivo. Verifica também a pertinência do objecto do negócio para o processo, isto é a sua coincidência com o pedido deduzido, dado o acto processual pelo qual as partes fazem valer o negócio de auto-composição do litígio (…); mas, no caso da transacção, há que ter em conta que ela pode envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido (art. 1248º-2 CC). (…) deve ser verificada também a coincidência entre o sujeito do acto e a parte processual».
Deixando de parte a questão relativa à qualidade das partes, por não relevar para os autos, importa detalhar os aspectos relativos ao objecto da transacção.
O artigo 1249º do Código Civil desde logo delimita, pela negativa, quais as matérias insusceptíveis de transacção: as partes não podem transigir sobre direitos de que não lhe é permitido dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos. Não suscitando esta última grandes dificuldades de interpretação (3), carece de algum desenvolvimento a determinação da disponibilidade do direito.
Pode-se falar numa disponibilidade objectiva do direito, em contraposição com uma disponibilidade subjectiva.
Quanto à objectiva, a disponibilidade está desde logo sujeita aos limites do reconhecimento da vontade negocial pela lei, tal como emerge do artigo 405º, nº 1, do Código Civil. Depois, há que atender às regras do direito substantivo, que permitem apurar se estamos ou não perante situações juridicamente disponíveis. A lei processual acolhe a matéria da indisponibilidade objectiva no artigo 289º, nº 1, do CPC, ao estabelecer que não é permitida, além do mais, uma transacção que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis (4). Grande parte dos direitos indisponíveis situam-se no campo do direito da família.
A disponibilidade subjectiva do direito afere-se através da averiguação sobre se aquela concreta parte tem capacidade e poder de disposição sobre o mesmo.

No caso dos autos, a transacção não incidiu sobre direitos, relativa ou absolutamente, indisponíveis nem respeita a negócio jurídico ilícito. Estão exclusivamente em causa situações jurídico-privadas disponíveis.
Por outro lado, embora a transacção seja mais ampla – o que é permitido pelo nº 2 do artigo 1248º do Código Civil – do que o objecto do processo, não há dúvida de que abrange este, pelo que se pode dar por adquirida a pertinência do objecto do negócio para o processo.
Por isso, resta saber se a transacção contraria decisões judiciais, relativas ao respectivo objecto, já transitadas em julgado e que vinculam as partes. Em todo o caso, sempre se dirá que, estando a causa no âmbito da disponibilidade das partes, o facto de existir uma decisão judicial transitada em julgado a resolver um litígio em determinado sentido não impede à partida que as mesmas partes venham a dispor sobre a situação substantiva, designadamente modificando os seus efeitos, extinguindo-os ou criando outros. O mundo não se imobiliza só pelo facto de existir uma tal decisão.

Acresce que o recurso interposto da sentença homologatória de uma transacção apenas pode incidir sobre um vício da própria decisão homologatória e não sobre o mérito da transacção homologada, ou seja, sobre a validade intrínseca do contrato de transacção celebrado entre as partes.

Embora a generalidade das conclusões incida sobre aspectos substantivos da transacção, ou seja, sobre a validade e repercussões do acordado pelos respectivos intervenientes, algumas delas confluem, pelo menos na perspectiva da Recorrente, com vícios da própria decisão homologatória, pelo que importa apreciar as questões que se enunciaram.
*
2.2.1. Da violação de decisões transitadas em julgado

Na cláusula 1ª da transacção, as partes fizeram constar que «A autora e os réus acima identificados reconhecem que, como consequência da sentença proferida no âmbito do processo n.º 6998/13.1TBBRG, Juiz 5 da Instância Central Cível deste Tribunal, que declarou resolvido o contrato de permuta celebrado entre os aqui réus e a Y - Transformação de Madeira, em cuja posição contratual sucedeu a sociedade X, Sociedade Imobiliária, Lda., as fracções B, C, D, I e G do prédio melhor identificado no art.º 2 da petição inicial se mantiveram, desde pelo menos 28 de Novembro de 2003 e até à presente data, na propriedade da dita sociedade X, Sociedade Imobiliária, Lda., assistindo por isso à massa insolvente o direito a manter a apreensão das ditas fracções e a proceder à sua venda em benefício da massa insolvente».

Invoca a Recorrente que os Recorridos, ao considerarem que as fracções B, C, D, I e G se mantiveram, pelo menos desde 28.11.2003, na propriedade da sociedade X, «contraria em absoluto a decisão proferida naquela acção, que declarou que os Réus se tornaram legítimos e exclusivos donos e proprietários das fracções “B”, “C”, “D”, “I” e “G” a partir de 28 de Novembro de 2003 (isto é, desde momento anterior ao da celebração do acordo que veio a ser resolvido)».

O primeiro ponto de discórdia que importa dirimir consiste em saber se, em consequência da decisão proferida naquela acção, as ditas fracções são propriedade da Autora, como defendem os Recorridos, ou dos Réus, como sustenta a Recorrente.

Tal questão tem importância decisiva na apreciação da presente apelação, pelo que importa interpretar o teor da sentença e do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferidos no processo nº 6998/13.1TBBRG.

Entre a sociedade Y – Transformação de Madeiras, Lda., e os Réus recorridos foi celebrado, em 17.07.2001, um contrato de permuta mediante o qual aquela se obrigou a entregar a estes, como contrapartida da aquisição de parcela de terreno, três apartamentos e três lojas de prédio a constituir em propriedade horizontal e a edificar na referida parcela. Em 14.11.2002 essa parcela de terreno foi vendida à sociedade X, a qual veio a celebrar com os mesmos Réus, em 30.12.2004, um acordo de reformulação do referido contrato de permuta, pela qual aquela se comprometeu a entregar-lhes, como contrapartida da aquisição da dita parcela, as fracções B, C, D, G e I do prédio implantado naquela, então já constituído em propriedade horizontal, até 31.03.2005.

Na sentença considerou-se que os efeitos translativos relativamente às fracções autónomas «se produziram no momento em que as fracções passaram a existir enquanto tal, ou seja, após a construção do prédio e a correspondente constituição da propriedade horizontal (cuja escritura pública foi celebrada no dia 28 de Novembro de 2003 – ponto 10º dos factos provados)». Daí que no 1º ponto do dispositivo a sentença se tenha vindo a «declarar que os Autores se tornaram legítimos e exclusivos donos e proprietários das fracções B, C, D, I e G, por força do contrato de permuta celebrado, tendo porém os respectivos efeitos translativos tido o seu início apenas a partir da data da celebração da escritura constitutiva da propriedade horizontal (no dia 28 de Novembro de 2003)».

No fundo, a sentença partiu do pressuposto de que a aquisição das fracções decorreu do contrato de permuta celebrado, mas que os respectivos efeitos translativos, para a titularidade dos ora Réus recorridos, tiveram o seu início na data da constituição da propriedade horizontal, pois, acrescentamos nós, até aí inexistiam enquanto realidades jurídicas autónomas e susceptíveis de aquisição. Importa também salientar que a declaração dos ali Autores como proprietários das fracções e o pedido de declaração de que a Caixa ... não é terceiro de boa fé eram instrumentais, não mais do que um primeiro pressuposto, da peticionada declaração de nulidade e cancelamento das hipotecas e penhoras registadas a favor da Caixa. Embora tais pedidos de nulidade e cancelamento tenham soçobrado, manteve-se na sentença (eventualmente de forma desnecessária) a declaração relativa ao efeito translativo da propriedade das cinco fracções e a que a Caixa ... não era terceiro de boa fé.

Porém, a sentença, embora reconhecendo o aludido efeito translativo, não se ficou por aqui, uma vez que tinha sido pedida a declaração de resolução do contrato de permuta reformulado e das questões a apreciar constava a de «averiguar da existência de direito de resolução do contrato de permuta celebrado a 30-12-2004 e os respectivos efeitos, bem como se aos Autores assiste direito de retenção até ao efectivo pagamento da indemnização respectiva».

Com efeito, também declarou «resolvido o contrato referido nos pontos 11º e 12º dos factos provados», ou seja, o contrato de permuta objecto de reformulação.

Tendo sido declarado resolvido o contrato de permuta, o 1º ponto do dispositivo da sentença (que era um mero pressuposto de um pedido que foi julgado improcedente) tem de ser integrado no quadro e efeitos da resolução. O Tribunal de 1ª instância expressamente fez constar dos fundamentos de direito que a resolução do contrato tinha «as consequências previstas nos arts. 801º, nº 2, e 289º, nº 1 (ex vi art. 433º), todos do Cód. Civil». Tal como resulta do artigo 433º do Código Civil, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico. Esses efeitos constam do artigo 289º do Código Civil.
Daí resulta, em primeiro lugar, que a resolução tem efeitos retroactivos (v. arts. 289º, nº 1, e 434º, nº 1, do Código Civil) e, em segundo lugar, que deve «ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente» (art. 289º, nº 1, 2ª parte, do CC).
Ora, tendo a sentença declarado resolvido o contrato de permuta, as respectivas prestações tinham que ser restituídas às partes, como impõe a lei. Os ali Autores (aqui Réus recorridos), não obstante serem considerados proprietários das fracções até ao momento em que se fez operar a resolução, tinham a obrigação de as restituir à Massa Insolvente da X. Aliás, na fundamentação de direito, a sentença diz isso expressamente: «os Autores resolveram o contrato de permuta, pelo que estão obrigados à restituição à 2ª Ré das fracções que lhes foram entregues» (5). Esta parte da sentença esclarece integralmente o enquadramento e sequência lógica-jurídica do 3º ponto do dispositivo face ao 1º ponto do mesmo, não permitindo interpretação diferente daquela que aqui se faz.
A ali 2ª Ré, aqui Autora, por sua vez, em substituição da restituição da parcela de terreno, que já não era possível devolver em espécie por aí estar implantado um edifício (transformação material e jurídica), tinha que restituir aos ali Autores “o valor correspondente”. Foi isso precisamente que a sentença fez quando, no 4º ponto do dispositivo, declarou «a impossibilidade de restituição por parte da 2ª Ré aos Autores da parcela de terreno identificado no ponto 1º dos factos provados no seu estado originário e, em consequência, condenar a mesma 2ª Ré a pagar-lhes a quantia de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), referente ao prédio permutado e a indemnização de € 102.000,00 (cento e dois mil euros), quantias estas acrescidas de juros de mora desde a data da resolução (2 de Setembro de 2013, inclusive) até integral pagamento, à taxa de 4%, ou outra que legalmente venha a estar em vigor». Ou seja, a sentença ordenou a restituição aos Autores do valor correspondente à sua prestação no contrato de permuta, que desde logo liquidou.
Mas a referida resolução, tal como já se referiu e aqui se reafirma, também operou a restituição à Massa Insolvente da X das fracções autónomas objecto do contrato de permuta. E esse efeito de restituição, como não podia deixar de ser, é retroactivo, em conformidade com o disposto nos artigos 289º, nº 1, e 434º, nº 1, do Código Civil (6).
Portanto, a Massa Insolvente da X é a proprietária, desde 28.11.2003, das cinco fracções autónomas em causa.
Sendo a Autora a proprietária das aludidas fracções, a transacção não contraria, e muito menos viola, a decisão transitada em julgado proferida naquela outra acção. As partes intervenientes na transacção apenas reconheceram aquilo que é evidente face àquela sentença, que tem de ser interpretada como um todo coerente: as fracções B, C, D, I e G, encontram-se «desde pelo menos 28 de Novembro de 2003 e até à presente data, na propriedade da dita sociedade X, Sociedade Imobiliária, Lda., assistindo por isso à massa insolvente o direito a manter a apreensão das ditas fracções e a proceder à sua venda em benefício da massa insolvente».
Aliás, a Recorrente, salientando apenas um ponto da sentença e ignorando a resolução do contrato de permuta aí declarada, sustenta um absurdo jurídico: com a resolução apenas existiria restituição – sucedânea (por “valor correspondente”) – por parte da Massa Insolvente; a outra parte, os ora Réus recorridos, nada restituiriam, em violação do disposto nos artigos 289º, nº 1, e 434º, nº 1, do Código Civil, ficando na sua esfera patrimonial a prestação e a contraprestação. Não é assim, como já se demonstrou.
Pelo exposto, ao contrário do que a Recorrente invoca na conclusão 14ª das suas alegações, a homologação da transacção não viola o caso julgado (artigo 619º, nº 1, do CPC).
*
2.2.2. Da violação do princípio do trato sucessivo e da regra da prioridade dos registos

A Recorrente invoca na conclusão 15ª das suas alegações que «o acordo das partes não pode ter a virtualidade de alterar a regra da prioridade dos registos ou o princípio do trato sucessivo. Assim, ainda que as partes afirmem que as fracções são da propriedade da sociedade “X, Ldª” desde momento anterior ao da declaração de insolvência, tal, por ser violador de decisão transitada em julgado, não comportará o cancelamento da inscrição de aquisição a favor dos aqui Réus e registada pela Ap. 39 de 2007/05/10».
Já assentamos que a transacção não viola decisão transitada em julgado, pelo que naturalmente isso implica a improcedência da aludida conclusão.
Em todo o caso, sempre se dirá que, sem prejuízo dos efeitos substantivos do registo, não é a realidade substantiva que tem de se conformar com a realidade registral. Pelo contrário, é a realidade substantiva que deve estar espelhada no registo predial.
Por outro lado, versando uma transacção sobre situações jurídicas disponíveis e estando em conformidade com o decidido numa acção anterior (e o registo predial deveria reflectir precisamente o então decidido, na sua integralidade), uma eventual desconformidade com o que consta do registo não a torna inválida: nem o objecto é indisponível nem o negócio é ilícito. Uma alegada violação do princípio do trato sucessivo e da regra da prioridade dos registos é insusceptível de, por si só, obstar à homologação da transacção.
Além disso, em termos substantivos, a transacção, ocupando-se apenas da regulação das relações entre as partes nela intervenientes, não retira qualquer direito à Recorrente, pois os seus créditos continuam garantidos por hipoteca, independentemente do meio processual onde os faz valer: execução ou insolvência.
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2.2.3. Da falta de autorização da comissão de credores

Nas conclusões 23ª, 25ª e 26ª das suas alegações, a Recorrente sustenta que «em ordem a poder celebrar a transacção cuja homologação se contesta, o Sr. Administrador de Insolvência necessariamente deveria ter obtido a prévia autorização da comissão de credores», uma vez que «não possuía, como não possui, os necessários poderes para transigir nos termos em que o fez, tendo actuado em excesso de funções» e que «não está habilitado a assumir dívidas em nome da massa e a aceitar bens onerados em pagamento de dívidas».

No fundo, a Recorrente sustenta que o Administrador da Insolvência não possuía poderes para transigir nos termos em que o fez por duas ordens de razões distintas:

a) Em consequência da transacção, a massa insolvente recebe imóveis onerados;
b) Por na transacção estar a assumir dívidas em nome da massa.

Vejamos.

O primeiro argumento invocado é absolutamente destituído de fundamento face à situação jurídica emergente da decisão proferida no processo nº 6998/13.1TBBRG, do 1º Juízo Central Cível de Braga.
A transacção não opera a transferência de quaisquer bens imóveis do património dos Réus para a Autora Massa Insolvente. Tais bens, em concreto cinco fracções autónomas, já integram a Massa Insolvente desde que isso lhe foi reconhecido, por efeito da resolução do contrato de permuta, na supra identificada acção.
Se já integram o património da Autora, é perfeitamente claro que nenhum poder, relativo ao recebimento de imóveis onerados, foi exercido pelo Administrador da Insolvência. Enfatiza-se ainda que a oneração dos imóveis é absolutamente estranha aos Réus, uma vez que é um acto muito anterior (v. pontos 5 e 8 dos factos provados da sentença proferida no proferidos no processo nº 6998/13.1TBBRG) e da responsabilidade da X – Sociedade Imobiliária, Lda., enquanto garantia dos financiamentos então contraídos por esta junto da Caixa ..., SA. Por isso, as fracções são um activo da Massa Insolvente da X, assim como as inerentes dívidas integram o passivo da mesma.

Quanto ao segundo argumento, relativo à assunção de dívidas pelo Administrador da Insolvência no quadro da transacção, carece de algum desenvolvimento a questão dos poderes do administrador da insolvência e dos limites da autonomia deste órgão da insolvência.
As funções do administrador da insolvência são essencialmente executivas e mostram-se elencadas no artigo 55º do CIRE, de forma não exaustiva. Quem tem o poder decisivo são os credores, competindo à comissão de credores, para além de outras tarefas especialmente cometidas, fiscalizar a actividade do administrador da insolvência e prestar-lhe colaboração – artigo 68º, nº 1, do CIRE. Na sua dinâmica concreta, a articulação entre o administrador e a comissão de credores suscita alguns problemas pontuais.
A norma violada invocada pela Recorrente é o artigo 161º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), cujo nº 1 dispõe que depende do consentimento da comissão de credores, ou, se esta não existir, da assembleia de credores, a prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência.
Os actos sujeitos a consentimento prévio são os que assumam especial relevo para o processo de insolvência, não fornecendo a lei o conceito, mas sim os factores a ter em conta para a qualificação dos actos, que indica no nº 2. Complementarmente e com carácter enunciativo, para ilustrar melhor a categoria geral, «o nº 3 fornece uma enumeração de actos que, independentemente de quaisquer circunstâncias, são legalmente considerados de especial relevo» (7).
Se o acto não estiver previsto no nº 3 do artigo 161º do CIRE, para a sua qualificação, recorre-se em primeiro lugar ao critério dos «riscos envolvidos e às repercussões sobre a tramitação ulterior do processo». Depois atende-se, como factor de ponderação, às perspectivas de satisfação dos credores da insolvência. Finalmente, se for o caso, deve-se sopesar a susceptibilidade de recuperação da empresa.
A violação do disposto no artigo 161º, nº 1, traduzida na prática de actos abrangidos sem o apropriado consentimento prévio, constitui justa causa de destituição e fundamenta a responsabilidade civil do administrador da insolvência, se reunidos os demais pressupostos.
Conforme expressamente consta do preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, «reforçou-se a competência do administrador, eximindo-o à necessidade permanente de obter a aquiescência de outros órgãos para a concretização dos actos de administração e, sobretudo, de liquidação da massa insolvente, por contrapartida da expressa responsabilização pessoal perante os credores. Nessa medida, (…) ele não depende, em regra, de ninguém mais para promover a liquidação nas suas diversas manifestações. Não há, também, por regra, a possibilidade de reagir contra os seus actos, em termos de os poder afectar, diferentemente do que antes sucedia».
É precisamente neste panorama que tem de ser considerado o acto do Administrador da Insolvência traduzido na sua intervenção na transacção lavrada pelas partes neste processo.
Sobre o que sucede no plano dos próprios actos, quando cometida a infracção ao nº 1 do artigo 161º do CIRE, referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (8) que «a isto responde o art. 163º. Dele decorre que, consoante haja ou não equilíbrio entre as prestações da massa e as da contraparte, incluídas aqui as obrigações assumidas por esta e pelo administrador da insolvência, assim o acto considerado produz a plenitude dos seus efeitos ou, pelo contrário, é ineficaz. Em nenhum caso, todavia, há invalidade em sentido próprio». Significa isto que a falta de consentimento necessário para a prática do acto não afecta a eficácia do acto, não sendo oponível o vício à contraparte. O vício só é oponível – num quadro de ineficácia do acto – quando as obrigações que se projectam na massa e a vinculam excederem manifestamente as assumidas pela outra parte (9).

O Administrador da Insolvência intentou a presente acção para obter a restituição do valor de IMI por si pago, no montante de € 7.453,27 (acrescido de juros de mora vencidos, no valor de € 95,57, e vincendos), no que respeita às fracções B, C, D, G e I, pressupondo que as mesmas eram propriedade dos Réus.

Ora, este pressuposto relativo à propriedade não se verifica. Em consequência da resolução do contrato de permuta, os Réus recorridos estavam obrigados a restituir as cinco fracções autónomas. Se assim é, naturalmente que as despesas relativas a impostos inerentes às mesmas, por se referirem a períodos de tempo em que são propriedade da Autora, atento o efeito retroactivo da resolução, são da responsabilidade desta. Trata-se ainda de um efeito da resolução.
Portanto, quando a Autora, representada pelo Administrador da Insolvência, declara reconhecer «que todas as dívidas geradas pelos imóveis em questão desde 28 de Novembro de 2003 e até à data da declaração da insolvência são dívidas da responsabilidade da sociedade X, Sociedade Imobiliária, Lda., e as posteriormente geradas (após a declaração da insolvência) são dívidas da massa insolvente, nada mais tendo a autora a exigir dos réus, designadamente a título de restituição de IMI», nada mais faz do que reconhecer um efeito que já emergia da resolução do contrato de permuta declarada na anterior acção judicial.
Em rigor, tal acordo tem apenas um mero valor interpretativo ou recognitivo de uma realidade jurídica já objecto de decisão transitada em julgado, não assumindo a Autora outras despesas para além daquelas que já eram da sua responsabilidade (e que efectivamente suportou) em virtude da resolução do contrato de permuta e da obrigação de restituição das respectivas prestações. São despesas feitas por causa das fracções autónomas e que incumbem a quem é seu proprietário, no caso a Autora.
Nesse quadro, que é o correcto, nem o Administrador da Insolvência carecia de poderes para declarar o que declarou na transacção, nem era exigível a autorização prévia da Comissão de Credores, desconhecendo esta Relação, pelo simples exame dos autos, se a mesma existia ou não (apenas se sabe que nada consta dos autos sobre essa eventual autorização, para além do afirmado pela Recorrente).
Assim sendo, a transacção é inteiramente válida e o Tribunal recorrido, na ponderação do que a mesma envolvia, outra coisa não podia fazer do que homologá-la, como efectivamente fez.

Em mera sede de argumentação subsidiária, em rigor já desnecessária e com o risco de resvalar para um pretensioso academismo, vamos agora supor que efectivamente a Autora assumia na aludida transacção dívidas cuja vinculação não resultava directamente dos efeitos da resolução do contrato de permuta, mas que estavam relacionadas com as fracções. No fundo, vamos admitir que a consideração do valor do Imposto Municipal sobre Imóveis pago relativamente a cada uma das fracções nos anos de 2008, 2009, 2010 e 2011 não resultaria directamente da obrigação de restituição.
Neste circunspecto, havia a considerar que o pedido formulado, no montante de € 7.453,27, acrescido de juros de mora vencidos, no valor de € 95,57, e vincendos. Como a transacção apenas implicou da parte da Autora, enquanto concessão à contraparte, a desistência desse pedido, era no mínimo duvidoso que pudéssemos qualificar tal acto como assumindo especial relevo para o processo de insolvência. Isto porque formalmente, único aspecto que o juiz do processo conseguia apreciar, também os Réus recorridos fizeram concessões.
Depois, mesmo dando por adquirido o referido especial relevo, em virtude do disposto no artigo 163º do CIRE, tal acto praticado pelo Administrador da Insolvência, ainda que sem prévia autorização da Comissão de Credores, nunca padeceria de invalidade em sentido próprio.
Finalmente, independentemente de quaisquer outras considerações, não cabe ao tribunal onde corre a acção objecto de transacção exigir, caso a caso, ao administrador da insolvência a demonstração da concordância da assembleia de credores sempre que é interveniente numa transacção e independentemente do seu concreto teor. Isso é algo que respeita às relações internas no âmbito do processo de insolvência. Não cabe ao juiz do processo onde é lavrada a transacção tutelar os interesses da massa insolvente e dos respectivos credores. O administrador da insolvência representa o insolvente (art. 81º, nº 4, do CIRE) e a massa insolvente (art. 81º, nº 1, do CIRE) e compete-lhe a defesa dos respectivos interesses, dispondo de poderes para isso, sendo que a violação de tal dever principal constitui justa causa de destituição e fundamento de responsabilidade civil. Ao juiz do processo só cabia assegurar-se da disponibilidade do objecto da transacção, da qualidade das partes que nela intervieram, da idoneidade negocial (que o contrato não versava sobre negócio jurídico ilícito) e que o contrato de transacção abarcava as pretensões deduzidas pelas partes no processo. Tendo a transacção sido celebrado por quem efectivamente é administrador daquela concreta insolvência, não só estava assegurada a capacidade e a legitimidade para se ocupar daquele específico objecto negocial, como detinha legalmente poderes para, em representação da Autora, outorgar o contrato de transacção. A eventual falta de consentimento da Comissão de Credores, que não está demonstrado que inexista, não poderia obstar à homologação da transacção celebrada entre a Autora e o Administrador da Insolvência da sociedade, atento o regime jurídico que acima se traçou dos poderes do administrador da insolvência e dos limites da autonomia deste órgão da insolvência, bastando atentar no disposto no disposto no artigo 163º do CIRE. Resulta de tal disposição que a não obtenção, pelo administrador da insolvência, do consentimento prévio da comissão de credores, quando exigível, não constitui causa de ineficácia dos actos praticados pelo administrador de insolvência.

Acresce que a homologação da transacção circunscreve-se à apreciação das circunscritas questões a que já aludimos, tal como constam do artigo 290º, nº 3, do CPC, e não a efectuar a composição do litígio segundo o direito aplicável. Numa síntese apertada, o juiz não conhece do mérito das pretensões e das repercussões substantivas do acordado. E isto é assim porque, por exemplo, no domínio em causa nos autos, seria extremamente difícil a um juiz que desconhece o concreto processo de insolvência pronunciar-se sobre o específico significado do acto do administrador da insolvência para aquele processo. Contemplando a transacção mútuas concessões, na generalidade dos casos o juiz não está em condições de aferir das inteiras repercussões do acto praticado pelo administrador da insolvência. Por isso, tal matéria não é examinada pelo juiz, o qual apenas tem de se assegurar que o administrador intervém na transacção, pessoalmente ou por representante com poderes especiais para transigir. Tendo o administrador da insolvência efectivos poderes de representação para transigir e intervindo pessoalmente na transacção, nem sequer tem aplicação o disposto no artigo 291º, nº 3, do CPC, aplicável ao mandatário judicial sem poderes para transigir.

Uma nota final se impõe após todo este excurso, que em rigor poderia até ser a primeira e única.
Depois de devidamente analisada e apreciada, verifica-se que a argumentação da Recorrente no recurso assenta essencialmente na análise substancial do contrato de transacção, e não apenas dos aspectos mencionados no nº 3 do artigo 290º do CPC. Ou seja, a Recorrente discute a validade intrínseca do contrato que as partes celebraram nos autos.
Ora, o recurso interposto da sentença homologatória de uma transacção não constitui a sede própria para se pôr em causa a validade substantiva do contrato de transacção (10), desde logo porque aquela sentença não conhece do mérito nem representa a resolução do litígio. Daí que o recurso só possa incidir sobre um vício da própria decisão homologatória e não sobre o mérito da transacção homologada (11).
Também por esta razão, e independentemente de quaisquer outras, o recurso sempre deveria ser julgado improcedente.
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2.3. Sumário

1 – O recurso interposto da sentença homologatória de uma transacção apenas pode incidir sobre um vício da própria decisão homologatória e não sobre o mérito da transacção homologada, ou seja, sobre a validade intrínseca do contrato de transacção celebrado entre as partes.
2 – Ao juiz só cabe assegurar-se da disponibilidade do objecto da transacção, da qualidade das partes que nela intervieram, da idoneidade negocial (que o contrato não versa sobre negócio jurídico ilícito) e que o contrato de transacção abarca as pretensões deduzidas no processo.
3 – Não cabe ao juiz exigir ao administrador da insolvência a demonstração da concordância da assembleia de credores quando é interveniente numa transacção e independentemente do seu concreto teor.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença homologatória da transacção.
Custas pela Recorrente.
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Guimarães, 16.05.2019
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)


1. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 115.
2. Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 4ª edição, Almedina, págs. 586 e 587.
3. Não podem ser objecto de transacção negócios cujo conteúdo ou fim seja contrário à lei ou à ordem pública ou ofensiva dos bons costumes – arts. 280º e 281º do Código Civil.
4. Sem relevo para o caso dos autos, é comum distinguir entre indisponibilidade absoluta e relativa. Por exemplo, numa acção de divórcio não é permitida a transacção, mas já é admissível a desistência do pedido.
5. O Supremo Tribunal de Justiça reproduziu, nessa parte, o teor da sentença e considerou inteiramente acertado o que aí se afirmava («dado o acerto destas considerações»).
6. Retroage à data de 28.11.2003, data em que as fracções adquiriram autonomia jurídica.
7. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, pág. 605.
8. Ob. cit., pág. 608.
9. Acrescentam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 612, «a solução adoptada privilegia a tutela daqueles que negoceiam com o administrador, mesmo que à custa dos interesses dos credores. Ter-se-á querido acolher neste domínio uma solução que se aproxima da prevalecente em matéria de vinculação de sociedades de responsabilidade limitada (cfr. arts. 260º e 409º do C.S.Com.), a benefício da fluidez e segurança do tráfico jurídico».
10. Neste sentido, o acórdão da Relação de Lisboa de 12.12.2013, relatado por Rui Vouga, proferido no processo 6898/11.0TBCSC.L1-1, também versando sobre uma transacção em que foi interveniente um administrador da insolvência, acessível em www.dgsi.pt.
11. Como bem se refere no acórdão da Relação de Évora de 26.10.2017, relatado por Albertina Pedroso, proferido no processo 1682/14.1TBFAR.E1, «a sentença que homologa a transacção limita-se a apreciar e validade e regularidade do negócio celebrado pelas partes e, concluindo pela sua validade, confirma os termos e efeitos desse contrato, absolvendo ou condenando nos termos que resultam da transacção, o mesmo é dizer da auto-composição do litígio, porquanto são as próprias partes que compõem ou resolvem a lide segundo a sua vontade, sem terem que se preocupar com o regime jurídico aplicável. Daí vem que nada importa, no caso de auto-composição que o litígio obtenha ou não solução conforme ao direito. Uma confissão, uma desistência, uma transacção não deixa de ser válida ou eficaz pelo facto de traduzir uma composição da lide contrária à respectiva ordem jurídica, isto é, contrária à que o tribunal haveria de pronunciar, se fosse chamado a decidir. (…) significa isto que, tendo as partes manifestado no processo a vontade de subtraírem ao juiz a composição da lide, a sentença recorrida, que homologa a desistência e a transacção, limita-se a apreciar da validade e regularidade das declarações das partes e, concluindo pela respectiva validade, quanto ao seu objecto e à qualidade das partes, confirma os termos e efeitos desses actos ou negócios jurídicos de direito substantivo praticados no processo, absolvendo do pedido e/ou condenando nos termos que resultam da transacção, como aconteceu na situação vertente. Por isso que, a revogação em sede de recurso da sentença homologatória de qualquer um dos indicados actos de auto-composição do litígio, só possa ter por fundamento a violação de um dos requisitos que o juiz tem que verificar, ou seja, por exemplo, ter sido concedida sem que o objecto do litigio estivesse na disponibilidade das partes, em violação do disposto no artigo 289º do CPC; ou sem que as pessoas que fizeram a declaração tivessem capacidade e legitimidade para o efeito, em violação do preceituado nos artigos 287º e 288º do CPC».