Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
905/21.5T8BRG.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
REGISTO DE PROVA
AUTO DE NOTÍCIA
LEI N.º 27/2010 DE 30/08
EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE DO EMPREGADOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/31/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I - O registo da prova produzida em audiência num Tribunal de primeira instância, destina-se tão só a permitir a reapreciação dessa mesma prova pelo Tribunal ad quem. Estando vedada ao tribunal ad quem a reapreciação da matéria de facto, a gravação da prova produzida no julgamento em 1ª instância revela-se um acto inútil. Não havendo lugar à documentação da prova produzida em audiência de julgamento no processo de contra-ordenação, por ser proibido por lei a prática de acto inútil, tal é suficiente para que se considere que nenhuma nulidade foi cometida ao omitir-se a gravação da audiência.
II - No auto de noticia devem ser especificados os factos materiais que constituam a infracção, deles se fazendo constar o dia, a hora, o local, e as circunstâncias em que foram cometidos, a identificação do arguido, dos ofendidos, do autuante, a referência às disposições legais que prevêem e punem a infracção, bem como a coima e sendo caso a sanção acessória.
III - O autuante deve fazer constar do auto de noticia, apenas o que verifica e atesta, ou seja os factos os comportamentos e as situações não podendo, nem devendo imputar os factos a título de culpa, seja na modalidade de dolo seja na modalidade de negligência, ao arguido, sob pena se poder estar a infringir ou a contrariar o princípio da “presunção de inocência” do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
IV - A Lei n.º 27/2010, de 30/08 aplica-se e abrange toda a actividade de transporte rodoviário, bastando que tenha sido realizado transporte rodoviário através da utilização de veículos equipados com tacógrafo, como sucedeu no caso em apreço.
V - Para excluir responsabilidade pela prática de infracção cometida pelo motorista incumbe à empresa demonstrar que pôs à disposição do condutor todos os documentos necessários para que as entidades de fiscalização pudessem aferir da observância ou não das normas dos regulamentos, sendo da exclusiva responsabilidade do condutor não se ter feito acompanhar de tais documentos e/ou da sua não apresentação àquelas entidades.

Vera Sottomayor
Decisão Texto Integral:
RECORRENTE: X – DISTRIBUIÇÃO, LDA.
RECORRIDO: MINISTÉRIO PÚBLICO
Comarca de Braga, Juízo do Trabalho de Braga, Juiz 2

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

Relatório

No âmbito da decisão administrativa proferida pela Unidade Local de Braga da Autoridade para as Condições do Trabalho em 13/01/2021, foi aplicada à Recorrente, X – DISTRIBUIÇÃO LDA., a coima no valor de €2.822,00, acrescida da sanção acessória de publicidade, pela prática da contra ordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas dos artigos 25º, nº 1, al. b), 12º, 14º, nº 4, al. a) da Lei nº 27/2010, de 30.08, 561º, nº 1 e 562º, nº 1 do CT.
A arguida/recorrente não concordando com a decisão administrativa recorreu para o Juízo do Trabalho de Braga, pugnando pela procedência do recurso, com as demais consequências.

Recebido o recurso e realizado o julgamento foi proferida decisão que terminou com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de impugnação judicial interposto por X – Distribuição, Ldª., termos em que se decide manter a decisão da ACT que, pela prática de infracção contra-ordenacional p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 25º, nº 1, al. b), 12º, 14º, nº 4, al. a) da L. nº 27/2010, de 30.08, 561º, nº 1 e 562º, nº 1 do CT, lhe aplicou coima no valor de € 2.822,00, acrescida de custas, e sanção acessória de publicidade. ---
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em valor equivalente a 2 UC – cfr. artº 59º do Dec. L. nº 107/2009, de 14.09, e 8º, nº 7 do RCP e tabela III a ele anexa. ---
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Deposite – cfr. artº 372º, nº 5 do CPP, aplicável ex vi do preceituado no artº 60º do Dec. L. nº 107/2009, de 14.09, e 41º, nº 1 do RGCO. ---
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Notifique e comunique à autoridade administrativa – cfr. artº 70º do RGCO. ---
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Após trânsito em julgado, dê-se cumprimento ao disposto no artº 562º, nºs 3 e 4 do CT.”
A arguida X – DISTRIBUIÇÃO, LDA inconformada com esta decisão, que julgou improcedente a impugnação judicial e manteve a decisão proferida pela Unidade Local de Braga da Autoridade para as Condições do Trabalho, recorreu para este Tribunal da Relação de Guimarães pedindo a revogação da decisão com a sua substituição por outra que a absolva da instância, motivando o seu recurso com as seguintes conclusões:
“A- Seja considerada a nulidade processual prevista no art. 195º do CPC, e em consequência seja a autora do presente recurso absolvida da instância, ou ordenada a repetição do julgamento.

Sem prescindir,
B- O comportamento imputado à arguida terá sido praticado, portanto, pelo Sr. J. M., colaborador da aqui arguida, onde exercia as funções de distribuidor, tendo sido despedido,
C- Pelo que deverá ser declarada nula a Acusação e, em consequência arquive o presente auto de contraordenação;
D- Declare inaplicável, por falta de fundamento legal, a Lei invocada à situação em causa e, em consequência absolvida da prática do ilícito em que foi condenada;
E- Absolva a entidade empregadora visada da infração que lhe é imputada, uma vez preenchidos os requisitos para a exclusão de responsabilidade nos termos do n.º 2 do art.13.º da Lei n.º27/2010, de 30 de agosto.”
O recurso foi admitido na 1.ª instância.
O Ministério Público apresentou contra alegação, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Remetidos os autos para este Tribunal da Relação de Guimarães, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, no sentido da improcedência do recurso, parecer esse que foi objecto de qualquer resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
*
Objecto do Recurso

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente na sua motivação – artigos 403.º n.º 1 e 412.º n.º 1, ambos do C.P.P. e aqui aplicáveis por força do artigo 50.º n.º 4 do regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14/09.

Atentas as conclusões de recurso importa apurar o seguinte:
- Da nulidade do julgamento por falta de gravação da audiência
- Da nulidade do auto de notícia por dele não resultar o elemento subjectivo da infracção
- Da inaplicabilidade à arguida da Lei n.º 27/2019, de 30 de Agosto;
- Da exclusão da responsabilidade da arguida

Fundamentação de facto

O Tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto.

1) Factos Provados
a). No dia -.06.2019, pelas 10h30m, a recorrente, que tem por objecto a actividade de comercialização e distribuição de bebidas e produtos alimentares, fazia circular na EN 101, na zona de acesso à Circular Sul de Braga, o veículo pesado de mercadorias de matrícula JJ, de sua propriedade, equipado com tacógrafo e conduzido por J. M., seu trabalhador. ---
b). Realizada que foi, nas indicadas circunstâncias de tempo e de lugar, acção de fiscalização, levada a efeito pela GNR, não se fazia aquele motorista acompanhar das folhas de registo utilizadas no tacógrafo, nem de registos manuais ou impressões, respeitantes a esse dia e aos 28 dias anteriores. ---
c). Com fundamento no imputado incumprimento culposo da obrigação de se fazer acompanhar pelos elementos de registo referidos em b)., a recorrente instaurou contra o motorista procedimento de natureza disciplinar, que se desenvolveu e mereceu decisão final nos termos constantes da documentação de fls. 75 a 83, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. ---
d). A recorrente, descurando os deveres postos a seu cargo, e de que era capaz, não organizou o trabalho do motorista em causa, afecto ao transporte rodoviário de mercadorias, por forma a assegurar-se do cumprimento por ele da obrigação de fazer-se acompanhar dos registos de actividade relativos aos períodos de condução/descanso referentes ao dia em causa e aos 28 dias anteriores, e da obrigação de os apresentar, em caso de fiscalização, à autoridade competente. ---
e) Pela prática, aos 18.02.2015, de infracção ao disposto no n.º 1 do art.º 25º da L nº 27/2010, de 0.08, foi a recorrente condenada em coima no valor de €2.244,00, no âmbito do procedimento contra-ordenacionl que, perante a ACT, correu termos sob o n.º ……56, por decisão que veio a tornar-se definitiva aos 03.05.2016, na sequência da ocorrida retirada do recurso dela interposto e que originara o Proc. n.º 5555/15.2T8BRG, deste juízo do Trabalho, Juiz 2.

2) Factos Não Provados
Com relevância para a decisão da causa, resultaram não provados os seguintes factos:
1. Desde data anterior à da ocorrência reportada nas als. a). e b). da materialidade dada como demonstrada, a recorrente haja incutido sempre ao seu motorista a obrigação de se munir das folhas de registo referentes aos tempos de condução/descanso dos últimos 28 dias e de as apresentar quando lhe fossem solicitadas pelas autoridades. ---
2. Também em data anterior à da mencionada ocorrência, o motorista em questão haja beneficiado de formação específica, ministrada pela ré, a respeito do cumprimento daquelas obrigações. ---
3. O motorista cumprisse o horário fixo do estabelecimento, das 8h30m-12h30m e das 14h30m-18h30m, e que o mesmo se encontrasse afixado na sede da recorrente e que estivesse à disposição das autoridades dentro das viaturas. ---
4. Ao exercer o acto de condução, nas condições referidas na al. b). da materialidade dada como demonstrada, o referido motorista haja desobedecido a ordens expressas que lhe foram dirigidas pela recorrente e actuado de forma contrária à formação de que beneficiara, com o propósito de prejudicar a sua entidade empregadora e de vir a ser despedido com a atribuição de indemnização por antiguidade. ---
5. Para além do procedimento disciplinar mencionado na al. c). da materialidade dada como demonstrada, o motorista em causa haja, posteriormente, sido visado em outro processo de idêntica natureza, que veio a culminar com o seu despedimento. ---
6. A recorrente haja empregue todos os meios ao seu alcance e organizado a sua actividade para que o seu motorista cumprisse os procedimentos relativos aos registos de actividade.

Fundamentação de direito

1- Da nulidade do julgamento por falta de gravação da audiência

Insurge-se a Recorrente quanto ao facto da audiência de julgamento não ter sido gravada.

Como é consabido os Tribunais do Trabalho funcionam, no âmbito da sua competência em matéria de contra-ordenações laborais e de segurança social, como instância de recurso, reapreciam a decisão da autoridade administrativa, quer de facto, quer de direito. Por seu turno, o Tribunal da Relação funciona neste âmbito essencialmente como instância de revista, e, consequentemente, em termos limitados, quer quanto às decisões judiciais que admitem recurso, quer quanto ao âmbito e efeitos do recurso, razão pela qual, em regra, apenas conhece da matéria de direito, sem prejuízo da apreciação dos vícios referidos no artigo 410.º, nº 2 do CPP e das nulidades que não devam considerar-se sanadas. – cfr. art.º 434.º do CPP; artsº 66.º e 75.º n.º 1 do DL 433/82 de 27/10 (doravante RGCO) e art.º 51.º n.º 1 da Lei 107/2009, de 14/09, estipulando este último o seguinte:

Se o contrário não resultar da presente lei, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.”.
Por outro lado, o artigo 66.º do RGCO estabelece expressamente que na audiência em 1ª instancia não há “lugar à redução da prova a escrito”, indo assim ao encontro do prescrito quer no art.º 75.º do RGCO, quer do prescrito no art.º 51.º n.º 1 da Lei 107/2009, de 14/09.
Nos presentes autos a prova produzida em audiência de julgamento, não foi gravada, nem teria de ser, pela simples razão de não haver lugar em 1.º instância à documentação da prova em audiência de julgamento, quer por estar vedada a intervenção à 2ª instância em sede de matéria de facto e, nessa medida, este Tribunal não se poderia socorrer da eventual gravação da prova oral produzida em audiência de julgamento, não tendo tal gravação qualquer utilidade, revelando-se assim ser um acto completamente inútil. - Cfr. Acórdãos RP de 13-2-2013, Proc. n.º 786/12.0TBSJM.P1; RC de 25-6-2015, Proc. n.º 555/14.2TTCBR.C1, RC de 21-6-2017, Proc. n.º 744/12.4E.ACTB.C1, RG de 11-02-2019, Proc. n.º 861/18.7T8BGC.G1 disponíveis in www.dgsi.pt.
Em suma, o registo da prova produzida em audiência num tribunal de primeira instância, destina-se tão só a permitir a reapreciação dessa mesma prova pelo Tribunal ad quem. Estando vedada ao tribunal ad quem a reapreciação da matéria de facto, a gravação da prova produzida no julgamento em 1ª instância revela-se um acto inútil. Não havendo lugar à documentação da prova produzida em audiência de julgamento no processo de contra-ordenação, por ser proibido por lei a prática de acto inútil, tal é suficiente para que se considere que nenhuma nulidade foi cometida ao omitir-se a gravação da audiência.

2- Da nulidade do auto de notícia por dele não resultar o elemento subjectivo da infracção

Insurge-se a Recorrente quanto ao facto de ao ser notificada, nos termos previstos no art.º 50 do RGCO, para na fase administrativa dos autos poder exercer o direito de defesa, não lhe terem sido fornecidos todos os elementos necessários para que ficasse a conhecer toda a factualidade da qual resultaria a sua responsabilidade, designadamente porque dos factos descritos não consta o elemento subjectivo da infracção.
Com efeito, a notificação a que se alude no art.º 50.º do RGCO destina-se a dar a conhecer ao arguido as razões pelas quais lhe é imputada determinada infracção para que se possa defender da mesma.
Estabelece o n.º 2 do art.º 13.º da Lei n.º 107/2009, de 04-09, regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social (doravante RPCLSS) que «[s]em prejuízo do disposto em legislação especial, há lugar a auto de notícia quando, no exercício das suas funções o inspector do trabalho ou da segurança social, verificar ou comprovar, pessoal e directamente, ainda que por forma não imediata, qualquer infracção a normas sujeitas à fiscalização da respectiva autoridade administrativa sancionada com coima» e do n.º 1 do art.º 15.º da referida lei prescreve que «[o] auto de notícia, a participação e o auto de infracção referidos nos artigos anteriores mencionam especificadamente os factos que constituem a contra-ordenação, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foram cometidos e o que puder ser averiguado acerca da identificação e residência do arguido, o nome a categoria do autuante ou participante e, ainda, relativamente à participação, a identificação e a residência das testemunhas».
Daqui ressalta desde logo que no auto de noticia devem ser especificados os factos materiais que constituam a infracção, deles se fazendo constar o dia, a hora, o local, e as circunstâncias em que foram cometidos, a identificação do arguido, dos ofendidos, do autuante, a referência às disposições legais que prevêem e punem a infracção.
No que respeita ao elemento subjectivo tem sido entendimento dominante, o qual acolhemos, que o autuante deve fazer constar do auto de noticia, apenas o que verifica e atesta, ou seja os factos os comportamentos e as situações não podendo, nem devendo imputar os factos a título de culpa, seja na modalidade de dolo seja na modalidade de negligência, ao arguido, sob pena se poder estar a infringir ou a contrariar o princípio da “presunção de inocência” do arguido, consagrado no artigo 32.°, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Acresce dizer que esta posição não desrespeita a doutrina do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 1/2003 (DR I Série-A, n.º 21, de 25.01.2003), do qual resulta a necessidade do relato de factos que indiciem não somente a existência do tipo legal objetivo (os pressupostos da concreta contraordenação) como também o tipo legal subjetivo, sob pena de nulidade, pois como consta da conclusão IV do citado Acórdão, “(…) se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação, mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal e 41º, nº 1 do regime geral das contra-ordenações]”.Ora contendo a decisão administrativa todos os elementos do ponto de vista subjctivo, com a concreta imputação da prática da infracção a título de negligência, sempre estaria sanada apontada nulidade.
Como se defende no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-12-2017, proferido no Proc. n.º 746/17.4T8LSB.L1-4 a este propósito «O auto de notícia deve, por conseguinte, considerar-se perfeito com a relação dos factos da infração e os elementos constantes dos normativos citados, entre os quais se não incluem os relativos à culpa. Como também referem Manuel M Roxo e Luís C. Oliveira, “Ob. Cit.”, pág. 50 a “para além do relato dos factos que constituem os pressupostos do elemento objectivo da infracção, devem ser também reportados os factos que evidenciem o elemento subjectivo”, mas a “sede própria para apreciar da culpabilidade ( ... ) é após a conclusão da fase instrutória do processo e não no auto de notícia. É aliás, o que resulta dos princípios gerais do processo penal: a culpa não pode ser presumida, nem previamente determinada pelo agente autuante. A questão da culpabilidade é apreciada, com propriedade, na sequência do apuramento de factos sobre os elementos constitutivos do tipo de contraordenação e sobre a participação do arguido nesses factos (artigo 368.°, n.º 2, do CPP); ( ... ) não incumbe ao agente autuante qualificar a culpa do arguido ou fazer juízos sobre a respetiva intensidade, nem graduar a coima ( ... ). Admitir o contrário, significaria permitir ao inspetor autuante o exercício de funções instrutórias, violando a proibição prevista quanto à inibição desse exercício funcional no processo (artigo 16.° da Lei n.º 107/2009)”»
Compulsados os autos constatamos que com a notificação a que alude o art.º 50.º do RGCO lhe foi enviada cópia do auto de notícia e o aditamento de fls.5, documentos, documentos esses dos quais constam de forma clara e precisa os motivos de facto e de direito (normas aplicáveis) subjacentes à imputação da contra-ordenação.
Como melhor se explica na decisão recorrida “…avulta que à recorrente foram, para aquele fim, comunicadas as circunstâncias objectivas da infracção imputada – em particular de circunstanciação, em matéria de tempo, modo e lugar -, bem como realizado o correspondente enquadramento jurídico – com indicação das normas aplicáveis e classificação da infracção -, o que foi acompanhado, ainda, de expressa alusão à punibilidade da conduta a título de dolo e de negligência – com indicação discriminada da moldura abstracta das coimas a cada um dos casos aplicáveis -, bem como realizada, até, referência aos termos de uma eventual condenação como reincidente e à aplicabilidade de sanção acessória de publicidade – tudo com o devido enquadramento normativo. ---
Subentende-se, a partir das razões aduzidas no recurso interposto, entender a recorrente que aquela notificação deveria conter uma espécie de pré-julgamento em que a autoridade administrativa adiantasse, desde logo, por que forma enquadrava, especialmente do ponto de vista subjectivo, a conduta imputada, ou seja, se a infracção foi cometida a título de dolo ou de negligência, com explicitação das razões para se estribar num ou noutro sentido. ---
Não é, porém, assim. ---
Com efeito, o concreto enquadramento das condutas tem sede própria, que é a da decisão administrativa com que culmina o procedimento, após ter sido facultada a possibilidade de exercício do direito de defesa, nos termos prescritos pelo artº 50º do RGCO, que mais não é do que concretização do princípio constitucional ínsito no artº 32º, nº 10 da CRP.
Por fim, apenas uma pequena nota para dizer que a decisão administrativa também não padece de qualquer nulidade, pois da sua leitura resulta inequívoco que contém a descrição dos factos, em termos objectivos e subjectivos, que são imputados à arguida, com a indicação das provas obtidas, a indicação das normas segundo as quais se pune a infracção e a fundamentação da decisão, permitindo à arguida exercer cabalmente o seu direito de defesa.
Não se vislumbra que tenha sido cometida qualquer nulidade, razão pela qual improcede nesta parte o recurso.

3– Da inaplicabilidade da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto
Defende a Recorrente a inaplicabilidade da Lei n.º 27/2010, de 30/08 uma vez que tem como actividade principal o comércio de sumos e outras bebidas e produtos alimentares e a mencionada lei apenas se aplica à organização dos tempos de trabalho dos indivíduos que exercem a actividade no sector do transporte rodoviário.
Desde já diremos que não colhe esta argumentação, pois a Recorrente tem por objecto social o comércio, importação, exportação, representação e distribuição de cervejas, sumos e outras bebidas e produtos alimentares. Ainda que a Recorrente não tenha como actividade principal a actividade de “distribuição”, o certo é que esta também faz parte da sua actividade, sendo evidente que corresponde ao transporte de mercadorias que comercializa.
A Lei 27/2010 estabeleceu o regime sancionatório aplicável à violação das normas respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos, na actividade de transporte rodoviário, transpondo essa Directiva nº 2006/22/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, alterada pelas Directivas n.ºs 2009/4/CE, da Comissão, de 23.01, e 2009/5/CE, da Comissão, de 30.01.
Fez-se constar no preâmbulo da referida lei, o seguinte: “estabelece o regime sancionatório aplicável à violação das normas respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos, na actividade de transporte rodoviário”
Por outro lado, a Directiva n.º 2006/22/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, visa não apenas uma harmonização das condições de trabalho na Comunidade e para a promoção de regras homogéneas, mas igualmente, se não essencialmente, combater a fadiga dos condutores, assim conduzindo a uma maior segurança rodoviária, bem como salvaguardar a livre concorrência entre as empresas, conforme consta dos considerandos nº 4 e 5 da Directiva.
De tudo isto resulta que a lei se aplica a qualquer transporte rodoviário e não apenas aos casos em que esse transporte rodoviário constitua o objecto social das sociedades (como por exemplo, as empresas de transportes). Para tanto basta que tenha sido realizado um transporte rodoviário através da utilização de veículos equipados com tacógrafo, isto é qualquer deslocação de um veículo equipado com tacógrafo efectuada total ou parcialmente por estradas abertas ao público, como sucede no caso dos autos.
Em suma, a Lei n.º 27/2010, de 30/08 aplica-se e abrange toda a actividade de transporte rodoviário, bastando que tenha sido realizado transporte rodoviário através da utilização de veículos equipados com tacógrafo, como sucedeu no caso em apreço.

4- Da exclusão da responsabilidade da empresa
Defende a recorrente que em função da factualidade provada deveria ter sido absolvida da imputada infracção, por não estarem demonstrados os elementos do ilícito imputado, já que o motorista/condutor ao seu serviço justificou a falta do registo em dois dos 28 dias que antecederam a fiscalização, com o facto de ter estado nesses dias a auxiliar na condução e carga um outro trabalhador e noutro veículo da empresa.

Prescreve o art.º 25.º da citada Lei n.º 27/2010, de 30.08, que:

“1- Constitui contra-ordenação muito grave a não apresentação, quando solicitada por agente encarregado da fiscalização:
a) (...);
b) De cartão de condutor, das folhas de registo utilizadas e de qualquer registo manual e impressão efetuados, que o condutor esteja obrigado a apresentar;
c) (...)”.

Dispõe ainda o art. 13º da Lei n.º 27/2010, o seguinte:
“1 - A empresa é responsável por qualquer infracção cometida pelo condutor, ainda que fora do território nacional.
2 - A responsabilidade da empresa é excluída se esta demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o disposto no Regulamento (CEE) nº 3821/85, do Conselho, de 20 de Dezembro, e no capítulo II do Regulamento (CE) nº 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março.
3 - O condutor é responsável pela infracção na situação a que se refere o número anterior ou quando esteja em causa a violação do disposto no artigo 22º.
4 – (…)”

Da interpretação conjugada dos destes normativos legais, resulta que quando solicitado por agente encarregado de fiscalização, o condutor de veículo de transporte rodoviário deve apresentar o cartão de condutor de que for titular, as folhas de registo do dia em curso e dos 28 dias anteriores, sendo que a não apresentação de tais elementos constitui contraordenação muito grave, cuja responsabilidade recaí sobre a empresa.
Daqui resulta que as empresas passaram a ser responsabilizadas pelas infracções cometidas pelos motoristas, contudo de forma a excluir tal responsabilidade é-lhes facultada a possibilidade de alegar e provar não terem sido responsáveis pelo cometimento da infracção, devendo demonstrar que organizaram o trabalho de modo a que seja possível o cumprimento das imposições legais.
Para excluir responsabilidade pela prática de infracção cometida pelo motorista incumbe à empresa demonstrar que pôs à disposição do condutor todos os documentos necessários para que as entidades de fiscalização pudessem aferir da observância ou não das normas dos regulamentos, sendo da exclusiva responsabilidade do condutor não se ter feito acompanhar de tais documentos e/ou da sua não apresentação àquelas entidades.
Porém, a prova de que cumpriu o dever jurídico, que sobre si impendia, de organizar o trabalho de modo a que o motorista pudesse cumprir com a obrigação de trazer consigo e apresentar aos agentes de controlo os registos relativos à condução, no próprio dia e nos anteriores, ou que tenha empregue todos os meios ao seu alcance e organizado a sua actividade para que o seu motorista cumprisse os procedimentos relativos aos registos de actividade, não logrou obter êxito (cfr. pontos 1, 2, 4 e 6 dos pontos de facto não provados), pelo que podemos afirmar que a Recorrente não provou a sua ausência de culpa.
Não tendo a recorrente provado a ausência de culpa, já que não provou ter ministrado formação profissional adequada ao seu motorista para que este exercesse as suas funções de modo a cumprir a lei, ou que lhe deu ordens expressas para que circulasse com os discos do tacógrafo, ficaram assim por demonstrar os factos necessários à exclusão da responsabilidade objectiva.
Em suma, não tendo a arguida demonstrado e provado que organizou o trabalho de modo a que o condutor pudesse ter exibido os discos do tacógrafo utilizados nos 28 dias anteriores, é responsável pela prática da contraordenação e pelo pagamento da coima em que foi condenada.
Improcede o recurso sendo de confirmar a decisão recorrida.

Decisão

Por todo o exposto e nos termos dos artigos 50.º e 51.º do Regime Processual das Contra-Ordenações Laborais e de Segurança Social (Lei n.º 107/2009, de 14/09), acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente o presente recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo da arguida/recorrente, fixando a taxa de justiça em 3UC.
Após trânsito em julgado comunique à ACT com cópia certificada do acórdão.
31 de Março de 2022

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Maria Leonor Barroso
Antero Veiga