Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2906/17.9T8BCL-S.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: RESPONSABILIDADES PARENTAIS
MENOR
AUDIÇÃO
SUPERIOR INTERESSE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/01/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

Em sede de processo de incumprimento do exercício das responsabilidades parentais não é de ouvir a menor atualmente com 10 anos de idade, se essa diligência para efeitos probatórios não vai ao encontro do respeito pelo seu superior interesse, e nem se mostra indispensável.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I RELATÓRIO.

F. V. intentou contra A. C. processo de incumprimento das responsabilidades parentais na vertente das visitas, tendo por referência o regime provisório de regulação das responsabilidades parentais em vigor, relativamente às filhas de ambos M. C., nascida em -/10/2010, M. V., nascida em -/2/2012, e M. L., nascida em -.09.2014.
Termina pedindo, além do mais, que sejam ordenadas cautelarmente as diligências para assegurarem a execução efetiva do regime fixado quanto aos contactos e se declare violado o direito de visitas e de contactos e se condene a requerida em multa.
Não se tendo obtido acordo, as partes apresentaram alegações, tendo a progenitora requerido que a menor M. C. fosse ouvida pelo Tribunal.
Em 24/2 o progenitor apresentou o requerimento referência 11157373, com resposta da progenitora a 11/3 –requerimento referência 11212484- e com nova resposta do progenitor a 16/3 –referência 11225360.

Em 7/4 foi proferido o seguinte despacho:
“Incumprimento das Responsabilidades Parentais
Na perspetiva de delimitar o objeto do processo e permitir às partes – se assim o entenderem – restringir a prova que pretendem produzir, consigna-se que as questões a apreciar com interesse para a decisão passam por:
- determinar se nos dias 16 a 21, 23 e 24 de outubro de 2019 e 1 a 4 de novembro de 2019, a menor M. L. não esteve com o progenitor nem este conseguiu falar pelo telefone com a menor neste período;
- determinar se nos meses de outubro e novembro de 2019 o progenitor apenas falou com a menor M. L. ao telefone por uma vez;
- determinar se nos dias 29 de novembro a 2 de dezembro de 2019, a menor M. C. não esteve com o progenitor nem este conseguiu falar pelo telefone com a menor neste período;
- determinar se nos dias 18 e 19 de dezembro de 2019, as menores M. C. e M. L. não estiveram com o progenitor;
- determinar se nos dias 31 de dezembro de 2019, 1, 8, 9, 15 e 16 de janeiro de 2020, a menor M. L. não esteve com o progenitor nem este conseguiu falar pelo telefone com a menor neste período;
- determinar se nos dias 6 a 9, 11 e 12 de março de 2020, a menor M. L. não esteve com o progenitor;
- determinar se entre os dias 12 de março e 8 de maio de 2020, as menores não estiveram com o progenitor;
- determinar se nos dias 13 e 14 maio de 2020, as menores M. C. e M. V. não estiveram com o progenitor;
- determinar se nos dias 15 a 17 de maio de 2020, as menores não estiveram com o progenitor;
- determinar se nos dias 20 e 21 de maio de 2020, a menor M. C. não esteve com o progenitor;
- determinar se nos dias 27 e 28 de maio de 2020, as menores não estiveram com o progenitor;
- determinar se as menores não estiveram com o progenitor no seu dia de aniversário;
- demonstrando-se a ausência de convívio e/ou contacto, que razões estiveram na base dessa ausência de convívio e/ou contacto.
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Admito os róis de testemunhas apresentados pelas partes.
As testemunhas são a apresentar – art.º 39º, n.º 8 do RGPTC.
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As partes serão ouvidas nos termos do disposto no art.º 29º, n.º 1, als. a) e b) do RGPTC.
O art.º 5º, n.º 1 do RGPTC dispõe que “A criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse.”.
Na concretização do princípio de audição e participação da criança, o art.º 35º, n.º 3 do RGPTC dispõe que “A criança com idade superior a 12 anos ou com idade inferior, com capacidade para compreender os assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é ouvida pelo tribunal, nos termos previstos na alínea c) do artigo 4.º e no artigo 5.º, salvo se a defesa do seu superior interesse o desaconselhar.”.
Os factos em apreciação nos presentes autos reportam-se ao período compreendido entre outubro de 2019 e maio de 2020, tinha a menor M. C. 9 anos de idade.
Está em causa determinar se houve incumprimento do regime fixado e, na afirmativa, quais as causas do incumprimento, e não se “a menor tem uma personalidade vincada e de discernimento que entra em colisão com a personalidade do pai” ou “se em relação a várias questões do seu interesse, se manifesta contra a vontade do pai, tendo ela uma vontade própria e independente”.
Para mais quando a menor, à data dos factos em apreciação, repete-se, tinha 9 anos de idade.
Expor a menor – agora com 10 anos – novamente, ao conflito parental, desta feita em ambiente institucional, poderá colidir, salvo melhor opinião, com o seu superior interesse, sem que se vislumbre utilidade relevante para a decisão da causa.
Neste contexto, indefere-se o requerido.
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Requerimento com a Ref. 10981740:
Considero não escritos os art.os 2º a 23º do articulado, por constituírem resposta às alegações apresentadas pela requerida, articulado que o incidente de incumprimento previsto no art.º 41º do RGPTC não comporta.
Requerimentos com as Refs. 11212484 e 11225360:
Os requerimentos em causa são irrelevantes, tendo em conta o objeto do processo, motivo por que se determina o seu desentranhamento.
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Custas dos incidentes a que deram causa por requerente e requerida, com taxa de justiça que se fixa no mínimo legal, dada a simplicidade da questão suscitada.
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Julgamento no dia 13.05.2021, pelas 9h30m, com continuação pelas 13h30m, se necessário.
Notifique, sem prejuízo do disposto no art.º 151º, n.º 2 do CPC.”
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Inconformada, veio a progenitora/requerente interpor recurso apresentando alegações com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“I.- DA NÃO AUDIÇÃO DA MENOR:
1.- A decisão ora em crise está ferida de nulidade, porquanto a mesma refere que os factos em apreciação dizem respeito ao hiato temporal compreendido entre 10/2019 e 05/2020, em que a menor tinha 9 anos de idade.
2.- Sucede que a factualidade em questão nestes autos estende-se a 09/02/2021, dia de aniversário do progenitor, circunstância essa em que a menor tinha 10 anos de idade e, uma vez que a fundamentação para não ouvir a menor assenta em erro manifesto, tal decisão é nula.

Sem prescindir,
3.- A douta decisão indeferiu a audição da menor por entender que tal audição, ao decorrer em ambiente institucional, estaria a colidir com o seu superior interesse.
4.- Com efeito, o Mmo. Juiz a quo ao fundamentar a rejeição da audição da menor, fundamentando ser em ambiente institucional, quando tal audição é sempre em ambiente institucional, está a substituir-se ao legislador, contrariando a própria Lei.
5.- Note-se que tal indeferimento não pode ser encarado apenas como o indeferimento de um meio de prova, mas antes como a violação de um direito da criança e, por tais motivos, sentido uma decisão violadora de tal direito, estará a mesma, inerentemente, ferida de nulidade.
6.- O art. 3.º, n.º 1 da Convenção sobre os Direitos da Criança estabelece-se que «todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.»
7.- Em abono da verdade, o direito de audição da criança surge como expressão do direito à palavra e à expressão da sua vontade, mas funciona igualmente como pressuposto de um efetivo direito à participação ativa da criança nos processos que lhe digam respeito, no âmbito de uma cultura judicial que afirme a criança como sujeito de direitos.
8.- Dessa feita, afigura-se essencial a audição da menor para que a mesma possa expressar a sua opinião, quanto à factualidade discutida nos presentes autos incidentais, por forma a que, na ponderação da decisão, que atenta fundamentalmente ao superior interesse da mesma, tenha em consideração a sua posição e interesses.
9.- Seguindo tal aresto, a douta decisão é nula por a mesma ser violadora do direito da menor, consagrado ao art. 5.º do RGPTC.

Por outro lado, e sem prescindir,

II.- DA CONDENAÇÃO DA REQUERIDA EM CUSTAS PROCESSUAIS:

10.- A Requerida limitou-se a exercer o seu direito ao contraditório em relação ao Requerimento oferecido pelo Requerente em 24/02/2021, em que lhe imputava putativos incumprimentos do regime provisório da regulação de responsabilidades parentais.
11.- O Requerente tem por hábito lançar atoardas e suspeições sobre a Requerida, para toldar ou, pelo menos, colocar a dúvida no julgador sobre a sua seriedade e o seu discernimento.
12.- Com o aditamento do n.º 3 do art. 3.º do CPC, e a proibição de decisões surpresa, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.
13.- A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa.
14.- A Requerida não suscitou qualquer questão incidental. O Requerente imputou à Requerida um incumprimento do regime provisório de regulação das responsabilidades parentais, tendo a Requerida se defendido do mesmo, e esclarecendo os putativos incumprimentos.
15.- Assim, ao decidir o Tribunal a quo na condenação da Requerida em custas processuais, violou os preceitos legais ínsitos aos arts. 3.º, n.º3 do CPC e arts. 18.º e 20.º da CRP.”
Pede a revogação da decisão recorrida e substituição por outra que admita a audição da menor M. C. e, bem assim, não proceda à condenação da requerida em custas processuais, por esta ter exercido o seu direito ao contraditório.”
*
O Digno Magistrado do Ministério Público apresentou contra-alegações, com as seguintes
-CONCLUSÕES-

“I) A audição da criança ou do jovem nos processos que lhe dizem respeito é uma decorrência do princípio fundamental do superior interesse da criança e é também uma imposição do direito internacional, designadamente o art.º 12.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, os art.ºs 3.º e 6.º da Convenção Europeia Sobre o Exercício dos Direitos da Criança, o art.º 24.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e os art.ºs 41.º e 42.º do
Regulamento Bruxelas II bis (n.º 2201/2003).
II) Tal princípio tem como pressuposto a consideração de que a criança deve participar nas decisões que lhe dizem respeito, porém, no meu modesto entendimento, a audição da criança não constitui uma necessidade imperiosa e obrigatória.
III) Na verdade, a participação da criança serve o propósito de melhor definir o quadro vivencial que permitirá que ela cresça e se desenvolva em condições de harmonia e segurança, devendo, por isso, ser observada a sua audição se e na medida em que se revele útil e vantajosa para ela.
IV) O art.º 4.º, n.º 1, al. c), do RGPTC não define a partir de que idade é obrigatória a audição da criança, limitando-se a referir que deve ser ouvida “a criança com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em conta a sua idade e maturidade”, no entanto, da conjugação dos artigos 35.º, n.º 3, do RGPTC, 10.º e 112.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo e 1.º da Lei Tutelar Educativa, resulta a idade de 12 anos como sendo aquela a partir da qual a audição se torna obrigatória.
V) Mas tal não significa que não se possam ou não se devam ouvir crianças com idade inferior. Tudo dependerá do seu grau de maturidade para a compreensão dos assuntos em discussão. A maturidade não pode ser diretamente apontada a determinada idade. Existem diferentes formas e estádios de desenvolvimento, físico e cognitivo, que influenciam, em cada momento, a capacidade da criança para compreender o que a rodeia. Portanto, o direito da criança a ser ouvida terá que ser avaliado casuisticamente.
VI) No caso dos autos, constata-se que a criança M. C. tem 10 anos de idade, sendo que o Mm.º Juiz entendeu que a sua audição se revelava inconveniente para não a expor ao conflito parental. E bem.
VII) Realce-se que nos autos não está em causa qualquer questão relacionada com o exercício das responsabilidades parentais da menor, mas tão somente apreciar um eventual incumprimento de visitas/convívio. Pergunta-se: em que é que o interesse desta criança fica melhor salvaguardado com a sua participação nesta guerra (que não tem outro nome) que os pais decidiram empreender?!
VIII) Do que se cuida nestes autos é “apenas” de regular as responsabilidades parentais de três crianças. Tudo o resto é lateral, tudo o resto é pouco mais do que despiciendo, tudo o resto serve apenas para alimentar a guerrilha e acicatar os ânimos, com toda a carga negativa que tal postura transmite às crianças.
IX) Algo vai mal num processo quando os requerimentos e respostas das partes são mais numerosos (muito mais numerosos) do que os despachos de quem os aprecia. As partes continuam com articulados vertidos em toneladas de papel (contraditório de contraditório de contraditório de contraditório), num vórtice sem fim à vista.
X) Bem andou, pois, o Mm.º Juiz ao condenar as partes (e, neste caso concreto, a progenitora) em taxa de justiça.”
Entende por isso que deve ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida.
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O Tribunal pronunciou-se no despacho de admissão de recurso sobre as nulidades suscitadas nos seguintes termos: “A recorrente argui a nulidade da decisão recorrida.
Não vislumbramos, salvo melhor opinião, que a decisão padeça de qualquer nulidade.
A recorrente discorda da decisão mas daí não se segue que seja nula.

Importa, contudo, fazer duas precisões.

Em primeiro lugar, porque nas conclusões 1 e 2, a recorrente sustenta que “1.- A decisão ora em crise está ferida de nulidade, porquanto a mesma refere que os factos em apreciação dizem respeito ao hiato temporal compreendido entre 10/2019 e 05/2020, em que a menor tinha 9 anos de idade.
2.- Sucede que a factualidade em questão nestes autos estende-se a 09/02/2021, dia de aniversário do progenitor, circunstância essa em que a menor tinha 10 anos de idade e, uma vez que a fundamentação para não ouvir a menor assenta em erro manifesto, tal decisão é nula.
Vejamos.
A menor M. C. nasceu no dia -.10.2010.

Como resulta do despacho que delimitou o objeto do processo, os factos em apreciação reportam-se o período compreendido entre 16.10.2019 e 28.05.2020.
Quanto ao aniversário do progenitor, está em causa o facto alegado no art.º 157º do requerimento inicial, com o seguinte teor “A gravidade dos factos é tal que nem no seu aniversário (dia 9 de Fevereiro de 2020), nem na passagem de ano 2019/2020, nem no dia do Pai, nem no dia da família as crianças estiveram todas com o seu Pai.”.
A recorrente não terá dado conta que, em concreto, estava em causa mais uma data anterior a 03.10.2020, data em que a menor completou 10 anos.
Portanto, mesmo que possa não ser muito relevante a precisão, ante o rigor que a recorrente pretende demonstrar, importa sublinhar que quando no despacho recorrido se diz que “Os factos em apreciação nos presentes autos reportam-se ao período compreendido entre outubro de 2019 e maio de 2020, tinha a menor M. C. 9 anos de idade.”, a afirmação é totalmente verdadeira.
Nem podia ser doutra forma, já que o presente incidente (apenso Q) foi instaurado em 29.05.2020 e não foi proferido qualquer despacho que determinasse a ampliação do objeto do processo a factos ocorridos em data posterior.
Em segundo lugar, porque no segmento I-C das alegações, a recorrente sustenta que “C.- EXPOR A MENOR NOVAMENTE AO CONFLITO PARENTAL:
A douta decisão é ainda nula porque a menor nunca foi ouvida.
Ora, se nunca foi ouvida, não será, pelo menos “novamente” sujeita a qualquer ambiente institucional.”.
O que diz o despacho recorrido é “Expor a menor – agora com 10 anos – novamente, ao conflito parental, desta feita em ambiente institucional, poderá colidir, salvo melhor opinião, com o seu superior interesse, sem que se vislumbre utilidade relevante para a decisão da causa.”.
Que a menor, lamentavelmente, está exposta ao conflito parental, todos sabemos. Basta conhecer o processo.
O que o Tribunal pretende é evitar que seja novamente exposta a esse conflito, desta feita em ambiente institucional.
Não vislumbramos, também aqui, qualquer nulidade.”
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir se:

-foi invocada alguma nulidade e na afirmativa se a mesma se verifica;
-se a menor M. C. devia ser ouvida pelo Tribunal;
-se o desentranhamento dos requerimentos deve implicar condenação em custas.
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III MATÉRIA DE FACTO.

A situação factual a atender é a que consta do relatório “supra” e que resulta dos autos recursivos e da consulta eletrónica do apenso Q.
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IV O MÉRITO DO RECURSO.

Face às questões levantadas pela recorrente cabe em primeiro lugar aferir se o despacho proferido e sob recurso incorreu em alguma nulidade.
O artº. 615º, nº 1, do C.P.C. dispõe quanto às causas de nulidade das sentenças e despachos (cfr. artº. 613º, nº. 3, C.P.C.).
O artº. 614º do C.P.C., também aplicável aos despachos por força do nº. 3 do artº. 613º, refere-se a casos de erros materiais, dizendo além do mais que se a decisão contiver quaisquer inexatidões devidas a omissão ou manifesto lapso, pode ser corrigida a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz –o que deve fazer, em caso de recurso, antes dele subir.
Do confronto das normas resulta que o manifesto erro não é por isso causa de nulidade da sentença.
Quanto à situação invocada o Tribunal recorrido já se pronunciou e esclareceu de forma motivada que não se verifica qualquer erro (-bem como qualquer nulidade) –quer no que respeita ao período em apreciação, quer no que respeita à menção da sujeição da menor “novamente” ao conflito parental. O aniversário do pai no ano de 2021 não está incluído nos autos, intentados em maio de 2020, portanto, quem incorre em erro é a recorrente. A menor tinha 9 anos de idade à data dos factos em discussão e 10 atualmente. O Tribunal não diz que a menor vai ser novamente sujeita ao conflito parental por ser ouvida em sede judicial; a menor já está envolvida num conflito parental, que seria ainda mais potenciado na mesma sujeitando-a a essa diligência. Mais uma vez a recorrente interpreta mal o sentido da decisão.
E do que se acaba de expor, também resulta claro que não se verifica nem verdadeiramente foi invocada qualquer nulidade.
Assim, improcede essa questão do recurso.
*
A questão fundamental diz respeito ao indeferimento da audição da menor M. C..
Excluído o argumento do fundamento do indeferimento ter assentado em lapso, o que deve ser apreciado é se as declarações da menor M. C. deviam ter sido admitidas.
Relativamente ao direito de participação e audição da criança nos processos que lhe dizem respeito, o princípio vigente encontra afirmação no artº. 4º, j), da Lei nº. 147/99 de 1/9, aplicável e replicado em sede tutelar cível face ao disposto no artº. 4º, nº. 1, c), da Lei nº. 141/2015 de 8/9 (RGPTC).
É sabida a orientação internacional neste sentido, os textos legais que o afirmam, destacando-se o artº. 12º da Convenção Sobre os Direitos das Crianças (ratificada pela Resolução da AR nº. 20/90); reconhece-se o direito da criança a poder exprimir livremente a sua opinião sobre assuntos que a afetem, sendo ponderada essa opinião, de acordo com a sua idade e maturidade; bem como o comando semelhante que emerge dos art.ºs 3º, al. b) e 6º, al.s b) e c), da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014, com acolhimento no nosso direito interno ordinário para o processo tutelar cível nos artº.s 4º, nº 1, al. c) citado e 5º, nºs 1 e 6, do RGPTC.
Ainda a destacar o artº. 24.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e os artºs. 41º e 42º do Regulamento Bruxelas II bis (nº. 2201/2003), como se dá conta nas contra-alegações de recurso.
Esta matéria tem sido amplamente tratada na doutrina e jurisprudência, pelo que nos dispensamos de maiores desenvolvimentos.
Igualmente a perspetiva quanto ao modo de aferição do conceito de superior interesse da criança tem sido tema de muitos textos e decisões, pelo que quanto a nós diremos que devem ser ponderados os fatores tendentes em geral a assegurar a garantia das condições materiais, sociais, morais e psicológicas do menor, que possibilitem o seu desenvolvimento estável e equilibrado, nomeadamente salvaguardando tanto quanto possível o estabelecimento de relações afetivas contínuas com ambos os progenitores, e a consequente participação interessada, coordenada e responsável de ambos no acompanhamento e educação do menor; isto sempre e necessariamente em termos casuísticos. Na Declaração dos Direitos da Criança aprovada em 20/11/59 pela Assembleia das Nações Unidas refere-se na base II que “A criança deve beneficiar de uma proteção especial e ver-se rodeada de possibilidades concedidas pela Lei e por outros meios, a fim de se poder desenvolver de uma maneira sã e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Na adoção de leis para este fim, o interesse superior da criança deve ser a consideração determinante”. Também a Convenção sobre os Direitos da Criança de 26/01/90 (ratificada pela Resolução da AR nº. 20/90) refere que “O erigir do interesse do menor em princípio fundamental enformador de qualquer decisão atinente à regulação do poder paternal releva de uma certa conceção do poder paternal quase pacificamente aceite na doutrina, portuguesa como estrangeira: o poder paternal entendido como um poder dever, um poder funcional. Não é pois um conjunto de faculdades conferidas no interesse dos seus titulares (os pais) e que estes possam exercer a seu bel-talante, mas antes um acervo de diretivas com um escopo altruísta, que devem ser exercitadas de forma vinculada, visando o objetivo primacial de proteção e promoção dos interesses do menor, com vista aos seu integral e harmonioso desenvolvimento físico, intelectual e moral”.
Discute-se a idade a partir da qual se devia estabelecer a obrigatoriedade de audição, tendo o nosso legislador optado por dizer no artº. 35º, nº. 3, do RGPTC que “A criança com idade superior a 12 anos ou com idade inferior, com capacidade para compreender os assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é ouvida pelo tribunal, nos termos previstos na alínea c) do artigo 4.º e no artigo 5.º, salvo se a defesa do seu superior interesse o desaconselhar.”
Sucede que este direito da criança deve ser encarado, tal como legalmente previsto, em duas vertentes: o direito de participação que implica o direito de exprimir a sua opinião; e de a ver valorada, de acordo com a sua idade e maturidade. Esta vertente assume particular relevo e a diligência respetiva deve obedecer ao disposto nos nºs. 2 a 5 do artº. 5º do RGPTC.
Outra situação diferente é a audição da criança, ou tomada de declarações, para efeitos probatórios a que se reporta o nº. 6 do mesmo artº. 5º, que formalmente deve obedecer ao disposto no nº. 7. Vejam-se neste sentido os Acs. da Rel. de Lisboa de 10/11/2020, e de 24/9/209 (www.dgsi.pt).
Na primeira situação a audição da criança com idade superior a 12 anos é, por regra, obrigatória, e nos demais casos é ouvida consoante a aferição que se faça da sua capacidade para compreender os assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade –cfr. o nº. 2 do artº. 4º RGPTC. E só não será ouvida quando a defesa do seu superior interesse o desaconselhar.
Na segunda situação a orientação para a tomada de declarações parte da justificação com base no interesse da criança, face a requerimento nesse sentido ou mediante comando oficioso; mas não será ouvida em audiência de julgamento se tal puder colocar em risco a sua saúde física e psíquica ou o seu desenvolvimento integral.
Parece-nos correto dizer que na primeira situação a criança maior de 12 anos e/ou com capacidade de compreensão face à sua maturidade, deve ser ouvida, e só não será se tal contender com o seu superior interesse. Na segunda situação ela será ouvida se o seu interesse assim o justificar. Veja-se a propósito o Ac. do STJ de 14/12/2016 (www.dgsi.pt).
No caso dos autos o que está em causa, a nosso ver, é esta segunda situação tão só, face ao litígio a dirimir neste apenso e aos temas em discussão; pretende a progenitora que o requereu, através das declarações da menor, (supostamente) contrariar ou justificar os factos que vêm imputados; todavia fá-lo sem a correta expressão ou concretização, como se destacou no despacho recorrido.
A M. C. tem 10 anos. A sua audição não é uma diligência obrigatória. O Mmº. juiz justificou o motivo do seu indeferimento. E a nosso ver tem razão. Para além do seu interesse não justificar a tomada de declarações neste particular, ouvi-la será sujeitá-la a um maior e desnecessário envolvimento no conflito parental. Como é evidente, o litígio é dos e entre os progenitores, e o Tribunal no seu papel de o dirimir deve evitar ao máximo expor e confrontar as crianças com as posições antagónicas dos pais na medida em que puder e dever fazê-lo. Ouvi-la nessas circunstâncias expunha a M. C. a fatores que por certo a afetariam emocionalmente.
Face ao teor das alegações de recurso, de mencionar ainda que, como já decorre da remissão para as disposições legais, embora a audição das crianças esteja sujeita a diferentes regras consoante uma ou outra daquelas situações mencionadas, obviamente está sempre envolvida no “ambiente institucional”. Não é isso que está realçado no despacho proferido, como já vimos; o fundamento do despacho é evitar que menor seja exposta ao conflito parental, agora (ou também) em sede judicial. E, face à dimensão deste mesmo conflito refletida nos autos, é a favor da criança qualquer decisão que, salvo caso de maior importância ainda sob o ponto de vista da satisfação dos seus direitos, a “poupe” dum maior envolvimento nas quezílias parentais.
No caso do processo de incumprimento, tudo passa ou começa por se saber se objetivamente há uma conduta violadora da decisão/regime, no caso de visitas, a vontade e consciência de assim atuar. Já a demonstração da motivação do progenitor que assim atua, a verificar num segundo passo, sendo legítima a sua alegação, trata-se de um desiderato que pode ser obtido por outros meios de prova; sem prejuízo do julgador, noutra fase do processo, ainda poder “reverter” a sua posição quanto à audição da menor face à faculdade prevista no artº. 5º, nº. 6, RGPTC, e de qualquer modo por força dos princípios da jurisdição voluntária aplicáveis (artº. 12º do RGPTC, e 986º do C.P.C.).
Note-se que quanto a recorrente invoca a sua “justificação” para o requerimento que faz para se ouvir a menor, centra-se na personalidade da filha face à personalidade do pai, o que não assume relevo de maior em sede de incumprimento. Já nas suas alegações apresentadas no processo foca argumentos que pode provar por outros meios.
Não enferma por isso a decisão de qualquer nulidade, nomeadamente por não ser violadora de nenhuma norma imperativa –veja-se a propósito o Ac. da Rel. de Guimarães de 19/10/2017 (www.dgsi.pt). Nem a diligência requerida se mostra útil, nem necessária para a prossecução do superior interesse da menor, sendo inclusive contrária ao mesmo.
Pelo exposto, improcede esta questão.
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Quanto ao mais suscitado no recurso, se bem compreendemos o alcance da motivação apresentada, a recorrente apenas se insurge quanto à sua condenação em custas, não colocando em causa se o (seu) requerimento devia ou não ter sido desentranhado. Nesse contexto, o sentido das alusões ao princípio do contraditório e às decisões surpresa só pode ter alcance se o que se pretende afirmar é a necessidade que a recorrente teve de responder ao requerimento (também determinado desentranhar) do progenitor.
Salvo o devido respeito, não parece assistir razão à recorrente quanto ao argumento da necessidade de apresentar uma posição, pois que em primeiro lugar o progenitor nada havia requerido em concreto, em segundo lugar a sua posição podia ter sido precisamente pugnar pela inadmissibilidade daquele requerimento do progenitor (que deu causa à sua resposta), e para a eventual aceitação do mesmo, então exercer o contraditório (subsidiariamente) –não foi o que fez.
Não está em causa qualquer eventual violação do contraditório previsto no artº. 3º, nº. 3, C.P.C., portanto não está em causa qualquer violação de preceitos constitucionais, designadamente os invocados e plasmados nos artºs. 18º e 20º da Constituição da República Portuguesa.
Relativamente ao desentranhamento de requerimentos ou documentos, tal constitui um incidente que deve importar a condenação nas custas respetivas, por isso, a decisão mostra-se correta (artº. 7º, nºs. 4 e 8, do RCP).

Conclui-se assim pela improcedência do presente recurso.
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negar provimento à apelação e manter o despacho recorrido.
Custas do recurso pela recorrente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, C.P.C.).
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Guimarães, 1 de julho de 2021.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Jorge dos Santos
2º Adjunto: Maria da Conceição Bucho

(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)