Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
555/04-1
Relator: HEITOR GONÇALVES
Descritores: CRIME DE DANO
VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
LEGITIMIDADE PARA A QUEIXA
INDÍCIOS SUFICIENTES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/03/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE A DECISÃO RECORRIDA
Sumário: I – Sobre o crime de dano, existe na doutrina e na jurisprudência uma controvérsia que consiste em saber se o titular do direito de queixa pertence apenas ao proprietário ou também às pessoas que detêm um título que legitime o uso, gozo e fruição da coisa, designadamente o arrendatário.
II – Neste domínio, contrariando uma “tese mais compreensiva”, como a que sustenta Figueiredo Dias (As Consequências Jurídicas do Crime, 1993-669), o Prof. Costa Andrade entende que a orientação que restringe o direito de queixa ao proprietário é aquela que se lhe afigura como “a mais consonante com regime do dano relativo às constelações de conflito entre proprietário e inquilino” (cfr. Comentário Conimbricence, Código Penal, Tomo II, pág. 236-237).
III – No caso dos autos, segundo os factos indiciados, a denunciante não é uma coisa nem outra, pois quando muito, habitará a fracção por mera tolerância da proprietária, detendo a expectativa de vir a adquiri-la, pelo que não resulta que seja portadora de qualquer título que a legitime a defender a posse e a propriedade da fracção.
IV – Consequentemente, na perspectiva de qualquer uma das referidas teses, sempre a denunciante não pode ser considerada como a titular do direito de queixa, que é um requisito de procedibilidade da acção penal (artigos 113º, nº 1, do CP, e 49º, do CPP).
V – Quanto ao crime de violação de domicílio do artigo 190º nºs 1 e 3, do Código Penal, as coisas são bem diferentes, bastando que o ofendido habite o espaço, independentemente da relação jurídica que exista com o proprietário, para que, em relação a terceiros, a reserva da sua vicia intimidade privadas mereçam a tutela da lei.
VI – Indícios suficientes para efeitos de pronúncia (cfr. artigos 308º e 283º, do CPP) são os elementos de facto existentes no processo que, livremente analisados e apreciados, permitam a convicção do juiz de instrução de que, a manterem-se em julgamento, terão a virtualidade de conduzir à condenação do arguido ou, pelo menos, que essa condenação é mais provável que a absolvição.
VII – Ou seja, como no julgamento, também na pronúncia vale o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º, do CPP) e as regras da experiência, sendo é permitido ao juiz formar a sua convicção com base em todos os elementos de prova que não sejam proibidos por lei, com a particularidade de que não se pretende alcançar a certeza dos factos, mas apenas uma probabilidade séria de que ocorreram.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Os presentes autos 442/02, do 1º Juízo Criminal de Braga, iniciaram-se com uma queixa apresentada pela assistente "A", que imputou a "B" factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de violação de domicílio e de um crime de dano previsto e punível, respectivamente, pelos artigos 190.º n.º 1 e 3 e 212.º 1 ambos do Código Penal.
II- O inquérito veio a ser arquivado pelo Ministério Público, com o fundamento de a assistente não haver demonstrado ser moradora da respectiva habitação e dona das fechaduras, como tal, não ter legitimidade para apresentar queixa, pressuposto essencial para que fosse promovido o correspondente procedimento criminal nos termos do artigo 49º, do Código de Processo Penal.
III- Notificado desse despacho, a assistente requereu a abertura de instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal.
IV- Realizada a instrução e o consequente debate instrutório, decidiu-se pronunciar o arguido "B", pela prática de um crime de violação de domicílio previsto e punível pelo artigo 190.º, n.º 1 e 3 do Cód.Penal, e de um crime de dano, previsto e punível pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal, por se considerem indiciados os seguintes factos:

1. No dia 30 de Abril de 2002, durante a manhã, em hora não concretamente apurada, o arguido dirigiu-se à casa, onde residia "A", sita na Av. ..., Braga.
2. A referida habitação tinha sido arrendada por Laurinda... ao Instituto ..., e onde vivera com filhos e netos, designadamente a neta "A". Depois da sua morte, em 1991, a "A" continuou aí a residir.
3. Aí chegado, o arguido, mediante a fractura da fechadura da porta de entrada da casa, acedeu ao seu interior, e aí permaneceu, na ausência e contra vontade de "A". Acto contínuo o arguido mudou a fechadura da porta de entrada da habitação, não permitindo o acesso à mesma pela assistente.
4. Na mesma data, o arguido fracturou a fechadura da caixa de correio correspondente àquela habitação, procedendo de seguida à sua substituição por nova fechadura.
5. A fechadura da caixa do correio que o arguido fracturou havia sido colocada pela assistente e a suas expensas.
6. O arguido agiu com o propósito concretizado de violar a intimidade da assistente, que tinha o seu domicílio naquela casa, sabendo que agia sem o consentimento daquela.
7. Actuou, ainda, com o desígnio que logrou concretizar de destruir as fechaduras da porta de entrada da casa, bem como, da caixa de correio da assistente, sabendo que não eram sua pertença e que agia contra a vontade da sua dona.
8. O arguido agiu sempre livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.


V. Inconformado com o despacho de pronúncia, o arguido interpôs recurso, formulando, no essencial e em síntese, as seguintes conclusões:

a) Verifica-se erro notório na apreciação da prova, assim como insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto intimamente ligada ao princípio da livre apreciação da prova;
b) A queixa reportava-se a factos alegadamente ocorridos em 30 de Abril de 2002, sendo por isso necessário averiguar se a assistente era titular do direito de queixa, ou seja, se nessa data residia na habitação;
c) Foram incorrectamente apreciados os depoimentos das testemunhas Maria ..., Rosa ..., Maria ..., Maria ... e Maria ..., pois dos mesmos apenas se conclui que a assistente residiu na habitação enquanto frequentou o 12º ano e a Universidade do Minho;
d) O tribunal omitiu toda a prova documental apresentada pelo arguido;
e) Os documentos apresentados pela assistente não demonstram qualquer titularidade ou sequer ocupação sobre o imóvel.
f) Assim, impõe-se concluir pela inexistência dos indícios suficientes para a pronúncia do arguido pelos imputados crimes.

VI- Na resposta, quer o Ministério Público, quer a assistente, pugnam pela manutenção da decisão recorrida, por não ser merecedora de qualquer reparo.

Cumpre decidir:
O arguido "B" vem pronunciado pelos crimes de violação de domicílio, previsto e punido pelo artigo 190º, nºs 1 e 3, e de dano, previsto e punido pelo artigo 212º, nº1, ambas disposições do Código Penal, porquanto, para além do mais, se considerou suficientemente indiciado que, em 30 de Abril de 2002, entrou por arrombamento (fractura da fechadura da porta de entrada) na fracção autónoma 1º esquerdo, nº ..., em Braga, a qual tinha sido cedida de arrendamento pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (o proprietário) a Laurinda .... Mais se deu como indiciado que, na mesma data, o arguido fracturou a fechadura da caixa do correio daquela mesma habitação, sabendo que não lhe pertencia e que agia contra a vontade da sua dona e que tal conduta era proibida e punida por lei.
Essa factualidade não vem impugnada pelo recorrente. A sua discordância dirige-se à parte do despacho de pronúncia onde se consignou que a referida fracção fosse, na altura, habitada pela denunciante "A", neta da arrendatária Laurinda, falecida em 1991, e, consequentemente, sendo essa a razão por que afirma não ser a denunciante a titular do direito de queixa.

Como resulta da fundamentação do despacho impugnado, o crime de dano imputado ao arguido deve-se somente à circunstância de este ter fracturado a fechadura da caixa do correio, visto que se entendeu, e bem, que tal conduta, integrando a qualificativa prevista pelo nº3, do artigo 190º, do CP, não podia ser autonomizada como crime de dano, sob pena de violação do princípio non bis in idem.
Essa fechadura, bem como a respectiva caixa de correio, é, indubitavelmente, uma coisa móvel ligada materialmente à fracção habitacional, e, como tal, é sua parte integrante – artigo 204º, nº3, do Código Civil. Assim sendo, como nos parece que é, a pessoa ofendida, com a actuação ilícita do arguido, é o proprietário (Instituto ...) e não a denunciante "A".
Sobre o crime de dano, existe na doutrina e na jurisprudência uma controvérsia relacionada com o portador do bem jurídico em casos como o dos autos, que consiste em saber se o titular do direito de queixa pertence apenas ao proprietário ou também às pessoas que detêm um título que legitime o uso, gozo e fruição da coisa, designadamente o arrendatário. Neste domínio, contrariando uma “tese mais compreensiva”, como a que sustenta Figueiredo Dias (As Consequências Jurídicas do Crime, 1993-669), o Prof. Costa Andrade entende que a orientação que restringe o direito de queixa ao proprietário é aquela que se lhe afigura como “a mais consonante com o regime do dano relativo às constelações de conflito entre proprietário e inquilino” (cfr. Comentário Conimbricence, Código Penal , Tomo II, pág. 236-237).
No caso dos autos, segundo os factos indiciados, a denunciante não é uma coisa nem outra. Quando muito, poderá habitar a fracção por mera tolerância da proprietária e deter a expectativa de vir a adquiri-la. Ou seja, não resulta que seja portadora de qualquer título que a legitime a defender a posse e a propriedade da fracção. Consequentemente, na perspectiva de qualquer uma das referidas teses, sempre a denunciante não pode ser considerada como a titular do direito de queixa, que é um requisito de procedibilidade da acção penal (artigos 113º, nº1, do CP, e 49º, do CPP).
De todo o modo, tendo o arguido substituído a fechadura por uma outra, cremos que essa actuação se pode considerar como reparação integral do prejuízo, nos termos e para os efeitos do nº1, do artigo 206º, do Código Penal, pelo que, o procedimento criminal dependia de acusação particular, que no caso não foi deduzida – cfr. artigos 212º, nº3, e 207º, do Código Penal.
Pelo exposto, no que concerne ao crime de dano, impõe-se a revogação do despacho de pronúncia.

Quanto ao crime de violação de domicílio do artigo 190º, nºs 1 e 3, do Código Penal, as coisas são bem diferentes. Aqui, basta que o ofendido habite o espaço, independentemente da relação jurídica que exista com o proprietário, para que, em relação a terceiros, a reserva da sua vida e intimidade privadas mereçam a tutela da lei. Aliás, se não há a transferência do arrendamento para a ofendida por morte da titular, pelo menos indicia-se que a ocupação do andar tem sido feita por tolerância do proprietário, o Instituto ..., caso contrário não se compreenderia que, depois de tomar conhecimento da ocupação (designadamente através das cartas a que se reportam os documentos nºs 2 e 3) não tenha usado contra ela dos mesmos meios judiciais que usou contra o arguido para obter a restituição da posse, como também tenha recebido o pagamento de rendas.

Na perspectiva do recorrente, a prova produzida nos autos não permite concluir pela existência de indícios suficientes de que a assistente habitava e habita o questionado andar, afirmando que os depoimentos das testemunhas indicadas na decisão recorrida não mereciam a credibilidade que lhe foi atribuída. Assim e dado que se omitiu o valor dos documentos que juntou, a pronúncia traduz-se numa errada apreciação da prova.
Não assiste razão ao recorrente, como já se demos a entender.
Indícios suficientes para efeitos de pronúncia (cfr. artigos 308º e 283º, do CPP) são os elementos de facto existentes no processo que, livremente analisados e apreciados, permitam a convicção do juiz de instrução de que, a manterem-se em julgamento, terão a virtualidade de conduzir à condenação do arguido ou, pelo menos, que essa condenação é mais provável que a absolvição. Ou seja, como no julgamento, também na pronúncia vale o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º, do CPP) e as regras da experiência, e é permitido ao juiz formar a sua convicção com base em todos os elementos de prova que não sejam proibidos por lei, com a particularidade de que não se pretende alcançar a certeza dos factos, mas apenas uma probabilidade séria de que ocorreram.
Como nenhum desses princípios se mostra violado e a decisão é convincente e sem vícios, obviamente que não há motivos para a sua sindicância, na parte em que deu como suficientemente indiciado que a ofendida habitava o andar à data em que o arguido praticou os factos.
Aliás, se a assistente não habitasse o andar, que razão levaria o arguido a substituir as fechaduras da porta de entrada e da caixa do correio?

Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em revogar parcialmente a decisão recorrida, absolvendo-se o arguido da instância relativamente ao imputado crime de dano do artigo 212º, nº1, do CP, por falta de um requisito de procedibilidade da correspondente acção penal : o ofendido que a norma quis proteger com a incriminação não apresentou queixa.
No restante, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a pronúncia do arguido pelo crime de violação de domicílio, previsto e punido pelo artigo 190º, nºs 1 e 3, do Código Penal.

Pelo decaimento parcial, condena-se o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.