Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7664/13.TBBRG-A.G1
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/18/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: a) Mesmo que não tenha havido “confissão” em sentido técnico-jurídico, nada impede que o depoimento de parte seja atendido e valorado relativamente a todos os factos em causa, de acordo com a livre convicção do julgador: art. 452º nº 1 do CPC e art. 361º do CC.
b) Nessa medida, também nada obsta à junção dos documentos após a prestação do depoimento de parte, se com eles se visa confrontar o depoente e retirar credibilidade às declarações prestadas.
c) Em tais circunstâncias, estamos perante a ocorrência posterior a que alude a parte final do nº 3 do art. 423º do CPC.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - HISTÓRICO DO PROCESSO
1. B., L.d.ª instaurou ação contra C., SA, pedindo a sua condenação a pagar-lhe diversas quantias, a título de indemnização relativa a um sinistro ocorrido num imóvel da Autora, que ruiu parcialmente devido a obras efetuadas pela Ré num seu imóvel contíguo ao da Autora.
No seu articulado inicial, arrolou a Autora 6 testemunhas e juntou 15 documentos.
A Ré contestou e os autos seguiram os seus trâmites.
Uma testemunhas arroladas pela Autora era o Dr. D.
Veio a Ré a informar que o Dr. D. era seu Administrador pelo que, na primeira sessão da audiência de julgamento veio ele a depor em termos de depoimento de parte, e não na qualidade de testemunha.
A Autora apresentou então requerimento pretendendo a «junção aos autos de sete documentos, cuja junção decorre da necessidade de clarificação dos depoimentos prestados em audiência, nos termos e para os efeitos do nº 3 do art. 423º e do 417º do CPC.».
A M. mª Juíza indeferiu tal requerimento.

2. Inconformada, vem a Autora apelar para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«I. Por despacho oral de 16 de Julho de 2015, indeferiu o juiz a quo a junção aos autos dos documentos, juntos com o requerimento da A. e aqui recorrente, datado de 30 de Junho de 2015, com a refª 20040928, o que não pode admitir-se.
II. Na primeira sessão de julgamento, que teve lugar no dia 26 de Junho de 2015, foi ouvido o Dr. D., que se encontrava indicado até à data como testemunha, por parte da A. e da Chamada E., sendo que veio a ser inquirido como parte, por exercer afinal, funções de Administrador da Ré, facto desconhecido até ao momento.
III. Resultou flagrante às partes que o depoimento de parte da Ré foi notoriamente contraditório com o depoimento prestado de D. enquanto testemunha, no âmbito do processo que sob o nº 1916/10.1 TBBRG correu termos na extinta Vara de Competência Mista deste Tribunal, processo onde também se discutiram os factos principais que fundamentam os presentes autos.
IV. Tal contrariedade não poderia ser equacionada com base em contradita por se tratar de um depoimento de parte, pelo que outra solução não haveria, por parte da recorrente, se não juntar documentação que repusesse a veracidade dos factos, conforme resulta do disposto no artigo 521º do C.P.C., afigurando-se essencial à descoberta da verdade material, e como única solução face à enxurrada de considerações dúbias, e quiçá não verdadeiras, levadas ao conhecimento do tribunal por parte da representante da R..
VI. A fundamentação apresentada em despacho, para o indeferimento não pode proceder sob pena de subversão do princípio da descoberta da verdade material decorrente de uma interpretação demasiado restritiva do nº 3 do artigo 423º do C.P.C, princípio basilar do sistema jurídico, que impende sobre todos: partes e tribunal.
VII. A tal dever estaria sujeito o representante da R., pelo que só perante a contrariedade deste princípio e abuso da boa fé da A., surge a necessidade de junção de documentos, como sendo a carta enviada pela mandatária da A. à mandatária da R., a reproduzir o acordado verbalmente, ou seja, que nunca foi efectuado qualquer acordo que ressarcisse a A. dos danos sofridos bem como uma série de documentos, até aquele momento irrelevantes na defesa, que atestam não ter tido a A. qualquer intervenção na organização dos trabalhos de reconstrução do prédio e no agendamento desses trabalhos e nos atrasos que isso provocou.
VIII. Só após afirmação por um representante da Ré, de que tais atrasos eram afinal culpa da A. e das suas alegadas exigências, até aí não referenciadas de forma relevante, é que surge a necessidade imperiosa de contrariar o depoimento daquele com junção em audiência, e após o seu depoimento, dos referidos documentos, sendo este o único meio possível, não se entendendo que se o mesmo fosse testemunha pudesse ser efectuada a contradita do seu depoimento, e que por ter sido afinal inquirido como parte, não possa contrariar-se as suas declarações através da junção dos documentos.
IX. O despacho do tribunal a quo alicerça-se em fundamentos gerais, não atendendo aos factos concretos, nem à necessidade em específico da junção somente naquele momento da prova documental, nem ao facto de não haver oposição de nenhuma das partes, sendo que estranhamente o Tribunal a quo acabou por deixar apensos por linha os documentos ao processo.
X.O despacho de recusa de admissão de prova documental requerida pela A., por contender com os pressupostos do mérito da causa e princípios inerentes do processo civil, como sendo o princípio da colaboração para a descoberta da verdade material, bem como pela inobservância do disposto no nº 3 do artigo 423º da C.P.C., deverá ser revogado e consequentemente serem admitidos os sete documentos cuja junção requereu a A./recorrente. Assim se fazendo Justiça!»

3. A Ré não contra-alegou.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. A DECISÃO RECORRIDA foi do seguinte teor:
«Relativamente ao requerimento apresentado na última sessão pela Autora:
Nos termos do artº. 423º., nº. 3, os documentos só poderão ser apresentados para além dos momentos previstos nos nºs. 1 e 2 do mesmo preceito caso a sua apresentação não tenha sido possível até aos referidos momentos, bem como aqueles cuja apresentação só se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
De acordo com estes preceitos, e como se recorda no acórdão da Relação de Coimbra de 24/03/2015, quando a parte não junta o documento com o articulado respetivo, a par da alegação do facto probando e só mais tarde o faz, sujeita-se às condições estabelecidas na lei, sendo que, “naquela última situação (nº. 3 do referido artigo), deverá demonstrar a impossibilidade da apresentação até então ou que a mesma só se mostrou necessária em virtude de ocorrência posterior, só sendo atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade do requerente, num quadro de normal diligência, ter tido conhecimento anterior da situação ou da existência do documento”.
No caso, não se trata de documento superveniente, nem se pode falar aqui da ocorrência de nenhuma circunstância que só agora justifique a junção dos documentos em causa: a necessidade da sua junção, ou o interesse da sua junção, era visível ou poderia ser constatável em momento prévio, aquando da apresentação do respetivo articulado e, nessa medida, não há razões para a sua admissão nesta fase.
É certo que há a possibilidade de, por força da contradita, prevista no artº. 521º. do C.P.C., ser efetuada a junção de documentos para os efeitos previstos no artº. 552º., nº. 2 do C.P.C., mas a verdade é que a contradita é só para o caso da prova testemunhal – só pode ser admitida em caso de alegação de circunstância capaz de abalar a credibilidade do depoimento de uma testemunha – e, no caso concreto, não está em causa o depoimento de uma testemunha, mas sim o depoimento de parte.
Portanto, o depoimento de parte não justifica uma contradita e só no âmbito duma contradita poderiam ser admitidos os documentos cuja junção ora foi requerida (aqui se incluindo a própria gravação do depoimento também requerida).
Por estas razões se indefere ao requerido.»

5. O MÉRITO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 608º nº 2, ex vi do art. 663º nº 2, do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).
No caso, a QUESTÃO A DECIDIR cifra-se em saber se os ditos documentos devem ser admitidos.


5.1. JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
No que toca ao momento de apresentação de documentos como meio de prova, prescreve o art. 423º do CPC:
• a regra é a da sua junção com o articulado em que se aleguem os factos que eles se destinem a provar (nº 1).
• como 1ª exceção, podem ainda ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, ficando a parte sujeita a condenação em multa se não provar que os não pôde apresentar antes (nº 2).
• como 2ª exceção, podem ainda os documentos ser apresentados até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento, no caso de a respetiva apresentação não ter sido possível até àquele momento, ou nos casos em que a apresentação se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior (nº 3).
Já vimos que a questão da junção de documentos foi suscitada no decurso da audiência de julgamento.
Uma das testemunhas arroladas pela Autora era o Dr. D.; porém, tendo a Ré informado que ele era seu Administrador, veio ele a ser ouvido em termos de depoimento de parte, e não de testemunha.
Ao requerer a junção dos documentos, a Autora invocou expressamente o nº 3 do art. 423º do CPC e alegou que o Dr. D., inquirido a toda a matéria por depoimento de parte, havia já prestado depoimento na qualidade de testemunha no âmbito do processo nº 1916/10.1TBBRG da extinta Vara de Competência Mista daquele Tribunal, processo onde se discutiram os factos principais que fundamentam os presentes autos (à data, era ele diretor financeiro e administrativo da Ré).
De seguida, a Autora elencou quais as declarações do Dr. D. num e noutro dos processos para demonstrar em que consistia a contradição.
Em ambos os depoimentos haveria ainda contradição com o teor dos sete documentos que agora se pretendia juntar, que eram do seu conhecimento, para além das declarações de parte da Autora.
Assim, requereu a junção dos 7 documentos pela “necessidade de clarificação dos depoimentos prestados em audiência.”
Resulta daqui que a Autora alude claramente à parte final do nº 3 do art. 423º do CPC, documentos “cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior”.
Daí que não se possa concordar com a decisão recorrida quando refere que não se pode falar de ocorrência posterior, pois como refere a Recorrente, a necessidade de junção dos documentos só ocorreu por força do depoimento de parte prestado em audiência.
E daí, também, que não haja que fazer apelo ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (de 24.03.2015, processo 4398/11.7T2OVR-A.P1.C1) pois, como resulta da leitura do mesmo, a justificação para junção tardia dos documentos era aí outra: tratava-se de uma escritura pública de partilhas e “a recorrente justificou a apresentação dos referidos documentos, no início da audiência de discussão e julgamento, em virtude da “análise mais detalhada de certidão predial junta com a p. i.” e da subsequente e consequente “consulta e análise de documento no Arquivo Distrital e requisição de certidão recentemente obtida”.
Também nada impede a junção de documentos para contrariar o declarado em sede de depoimento de parte.
É certo que a primeira vocação do depoimento de parte é a de provocar a confissão, considerada a rainha das provas.
Porém, mesmo não tendo havido “confissão” em sentido técnico-jurídico, nada impede que o depoimento de parte seja atendido e valorado relativamente a todos os factos em causa, como expressamente se consigna no art. 452º nº 1 do CPC e art. 361º do CC.
Esse depoimento passa então a ser valorado de acordo com a livre convicção do julgador e constitui, nas palavras de Remédio Marques uma prova atípica: «Para além da “prova privilegiada” extraída de uma confissão judicial __ que impõe ao juiz a atribuição de um certo valor probatório, vinculando-o __ e a livre apreciação da prova fundada na prudente convicção do julgador, temos ainda a possibilidade de, atenta a exclusão da ciência privada e o respeito pelo contraditório e a defesa, o juiz poder retirar elementos de convicção de todo o material probatório que lhe é apresentado, incluindo a valoração de declarações favoráveis ao próprio depoente inseridas naturalmente num fundo mais vasto.». [1]
Inexistindo qualquer obstáculo de índole processual para que se atenda e valore o depoimento de parte em termos de livre convicção na parte em que ele não for confessório, também nada impede que o mesmo possa ser confrontado com documentos destinados a retirar credibilidade às declarações prestadas.
Daí que nada obste à junção dos documentos, cuja razão de ser é a de retirar credibilidade às declarações prestadas em sede de depoimento de parte e, por isso, só se torna necessária depois do depoimento prestado.

6. SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
a) Mesmo que não tenha havido “confissão” em sentido técnico-jurídico, nada impede que o depoimento de parte seja atendido e valorado relativamente a todos os factos em causa, de acordo com a livre convicção do julgador: art. 452º nº 1 do CPC e art. 361º do CC.
b) Nessa medida, também nada obsta à junção dos documentos após a prestação do depoimento de parte, se com eles se visa confrontar o depoente e retirar credibilidade às declarações prestadas.
c) Em tais circunstâncias, estamos perante a ocorrência posterior a que alude a parte final do nº 3 do art. 423º do CPC.

III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, pelo que se revoga a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que defira à pretendida junção dos documentos.
Custas pela parte vencida a final, atento o provimento da apelação e a ausência de contra-alegações.
Guimarães, 18.02.2016

(Relatora, Isabel Silva)

(1ª Adjunto, Heitor Gonçalves)

(2º Adjunto, Carlos Carvalho Guerra)

[1] João Paulo Remédio Marques, “A aquisição e a valoração probatória de factos (des)favoráveis ao depoente ou à parte”, in revista Julgar, nº 16, Janeiro-Abril de 2012, Coimbra Editora, pág. 160.
No mesmo sentido, Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª edição, 2008, Coimbra Editora, pág. 506.
Esta vem sendo também a orientação jurisprudencial, como se extrai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 05.05.2015 (processo 607/06.2TBPMS.C1.S1), disponível em www.gde.mj.pt: «O depoimento de parte prestado por um dos litisconsortes que se revele não possuir a virtualidade de servir como confissão, ainda que reduzido a escrito no momento em que é prestado, pode/deve ser livremente apreciado pelo julgador, no momento da apreciação de toda a prova produzida para a, ou na, formação do seu juízo conviccional.».