Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
495/08.4TBMNC.G1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
PRESCRIÇÃO
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. A norma do artigo 1163 do C.C. aplica-se à situação prevista na alínea c) do artigo 1161 do mesmo diploma, em que incumbe ao mandatário comunicar, com prontidão, a execução do mandato ou, se o não tiver executado, a razão porque o não fez e não à situação da al. d) deste artigo, que respeita à prestação de contas, que pressupõe um acto positivo do mandatário.
2. O prazo prescricional conta-se a partir da cessação do contrato de mandato e não enquanto estiver em execução.
3. A doutrina e a jurisprudência, elegeram o venire contra factum proprium como uma modalidade de abuso de direito, assente na boa-fé, tuteladora da confiança das pessoas, nas suas relações jurídicas. Baseia-se, essencialmente, nos comportamentos contraditórios das pessoas.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães

M… demandou J… e J… pedindo que fossem condenados a prestar-lhe contas dos mandatos que lhe foram conferidos por si e seu ex-marido desde 1979 a 1992 e a pagar-lhe o saldo apurado, acrescido dos respectivos juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento e ainda os juros de 5% nos termos do artigo 829-A do C.Civil.
Defenderam-se por impugnação e o réu J… ainda por excepção peremptória de prescrição, porque já tinha ultrapassado o prazo para exercer o direito, suscitando ainda a litigância de má-fé da autora.
A autora respondeu à excepção e ao pedido de litigância de má-fé.

Realizado o julgamento com a observância do formalismo legal foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, absolvendo o réu J… do pedido e condenou o réu J… a prestar contas à autora entre o período de 1979 a Agosto de 1992 relativamente à administração dos bens que lhe pertenceram e ao seu marido, absolvendo a autora do pedido de litigância de má-fé.

Inconformado com o decidido, o réu J… interpôs recurso de apelação, formulando conclusões.
Houve contra-alegações que pugnaram pelo decidido.

Das conclusões do recurso ressaltam as seguintes questões, a saber:
1 Impugnação na vertente do facto.
1.1Alteração da resposta negativa para positiva ao ponto de facto dado como não provado da decisão recorrida nos seguintes termos: “Que as contas foram prestadas extrajudicialmente pelo 2.º R. J… à A., anualmente, no mês de Agosto, acompanhadas dos documentos de suporte e que foram aceites e aprovadas por esta”.
2 Impugnação na vertente do direito
2.1 Se as contas se devem considerar aprovadas, tacitamente, nos termos do artigo 1163 do C.Civil
2.2 Se está prescrito o direito de exigir a prestação de contas relativamente ao tempo compreendido entre 1979 e 1988.
2.3 Se a autora actuou com abuso de direito na vertente do venire contra factum proprium depois de ter passado mais de 29 anos entre o início do mandato e mais de 16 anos entre a sua cessação e propositura da acção.

Vamos conhecer das questões enunciadas.
1.1 O apelante insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto, porque entende que dos depoimentos das testemunhas M…, J…, M… e C… se depreende que as contas foram prestadas, anualmente, à autora e ao seu ex-marido, tendo havido erro de julgamento neste ponto concreto da matéria de facto.

O tribunal fundamentou a resposta negativa a esta matéria de facto impugnada por falta de credibilidade dos depoimentos. A M… porque não soube explicitar as razões que a levaram a afirmar que vira e ouvira o réu J… a apresentar as contas na reunião de família que houve em Agosto de 1992. Quanto ao depoimento da testemunha J…, ex-marido da autora, revelou-se titubeante, mostrando-se relutante em responder a algumas perguntas formuladas pelo mandatário da autora, obrigando o tribunal a intervir várias vezes e cheio de contradições e incoerências. E invocou a declaração junta fls. 49, apenas assinada pelo ex-marido, que se as contas tivessem sido prestadas à autora e tivesse concordado com elas também a assinaria. E destacou o depoimento do filho da autora e da testemunha D… para explicar o conflito que se instalou na família devido à falta de dinheiro nas contas que veio a descobrir em 1992. Foi em face da conjugação destes depoimentos com os documentos juntos aos autos que o tribunal deu como provados uns factos e não provados outros, principalmente os impugnados.
E da análise da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, julgamos que não foi feita prova de que as contas foram prestadas, anualmente, à autora. Tudo convergia na pessoa do ex-marido, a quem o irmão J… lhe dava conta dos negócios e dos pagamentos que fazia. As conversas relatadas pelas testemunhas M…, C… e M… referiam-se ao réu J… e ao seu irmão e nunca à autora. Esta estava presente mas não lhe era dirigida a palavra para explicar o que quer que fosse. Tudo era focado no ex-marido da autora. E compreendia-se que assim fosse, porque, na altura, o papel da mulher, na administração do património do casal, era muito secundário. O homem era o centro do poder e quase não podia ser questionado. Apesar de a legislação ter sido alterada a partir do ano de 1977, com as alterações ao C.Civil, só veio a reflectir-se muito mais tarde nas relações entre marido e mulher. Daí que se compreenda o comportamento do ex-marido da autora que preferiu esconder e não investigar a situação de falta de dinheiro nas contas, para salvaguardar a sua posição perante o irmão, sacrificando os interesses da família, passando uma declaração unilateral ao seu irmão, dizendo-lhe que com ele estava tudo cumprido, aceitava as contas. O certo é que esse documento já exprime uma não prestação e aceitação das contas por parte autora que foram apresentadas ao declarante. E o que se discute na matéria de facto impugnada é a falta de apresentação das contas à autora e não ao seu ex-marido, que acabou por confessar que lhe foram prestadas e aceites por si. Daí que o seu depoimento tenha sido muito importante, para se compreender a cumplicidade e a falta de isenção desta testemunha no que diz respeito ao seu irmão J…, com o qual mantinha e queria manter uma boa relação. Foi preciso o tribunal insistir, várias vezes, para “sacar” algumas afirmações que seriam óbvias ao senso comum, no que diz respeito à revogação tácita do mandato, em Agosto de 1992, à mudança de banco, retirando o irmão da conta, por imposição da autora, que já desconfiava do cunhado.
Em face de tudo isto, e numa perspectiva de prova relativa e não absoluta, julgamos que a matéria de facto provada e não provada corresponde à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, pelo que é de manter.

Vamos fixar a matéria de facto consignada na decisão recorrida que passamos a transcrever:
1) A A. é emigrante residindo, desde 1979, na Holanda, para onde emigrou com o seu então marido.
2) Em 31 de Julho de 1987, o primeiro R. foi constituído procurador da ora A. e do seu ex- cônjuge (J…), nomeadamente para, em nome deles, comprar quaisquer bens imóveis pelo preço e condições que bem entender, em virtude do ex-casal se encontrar ausente do território nacional.
3) O 2º R. é irmão do ex-marido da A. e foi designado para movimentar a conta emigrante nº 5630266 sediada no extinto BPA, conta essa da A. e do seu ex-marido, desde que estes foram residir para a Holanda em 1979.
4) O 2º R. movimentava o dinheiro da conta emigrante para a conta à ordem com o nº 2286734, também do BPA.
5) Nesta última conta, o 2º R. intervinha na sua movimentação na qualidade de co-titular.
6) O 2º R. emitiu várias ordens de débito sobre essa conta para pagamento de despesas resultantes da edificação da casa pertencente à A. e ao então marido, bem como outras despesas de cujo pagamento era encarregue.
7) O 2º R. foi, posteriormente, constituído procurador de ambos, a 11 de Agosto de 1987, para proceder à alienação de um prédio sito no loteamento de S. Mamede, na freguesia de Troviscoso, desanexado do prédio rústico inscrito na matriz predial sob o art. … e descrito na Conservatória sob o nº ….
8) O 2º R. era funcionário do BPA na agência de Monção e geria as contas bancárias que a A. e seu marido tinham na dita instituição bancária.
9) Nas contas bancárias sitas no BPA, a A. e o seu então marido depositavam parte das verbas resultantes do seu trabalho designadamente entre Janeiro de 1978 e Junho de 1992.
10) No início de 1991, a A. decidiu que queria regressar a Portugal, tendo começado a pedir toda a documentação escolar do filho João Alexandre necessária à equivalência de estudos em Portugal.
11) Em meados de 1992, a A. comunicou ao seu marido que queria regressar a Portugal.
12) O seu então marido referiu-lhe então que não podiam regressar porque as suas contas bancárias estavam desprovidas de fundos.
13) Em representação da A. e do seu então marido, o 2º R. alienou em 16 de Dezembro de 1987, um prédio sito no loteamento de S. Mamede, na freguesia
de Troviscoso, desanexado do prédio rústico inscrito na matriz predial sob o art…. e descrito na Cons. Do Reg. Predial sob o nº …, pelo preço de 180 mil escudos.
14) Em 17 de Fevereiro de 2005 foi revogada a procuração em nome do 1º R.
15) J… emitiu uma declaração datada de 2 de Agosto de 1993 dando conta de que o seu irmão, 2º R. deixou de ser seu gestor de negócios em 15/08/1992, encontrando-se saldadas as contas de tal gestão desde essa data.
16) A A. divorciou-se do seu ex-marido por sentença de 23 de Março de 2007, proferida pelo Tribunal de Haia.

2.1 O apelante alega que as contas devem ser consideradas prestadas, aprovadas, tacitamente, ao abrigo do disposto no artigo 1163 do C.C., face à inacção da autora, desde a revogação do mandato em 1992, em que o silêncio deve produzir efeitos jurídicos no sentido da aprovação do mandato executado pelo apelante.

A norma invocada aplica-se à situação prevista na alínea c) do artigo 1161 do C.C. em que incumbe ao mandatário comunicar, com prontidão, a execução do mandato ou, se o não tiver executado, a razão porque o não fez. Se o mandante, face à comunicação do mandatário nada disser, durante um período considerado razoável, dentro dos usos, é considerado ratificado o mandato, isto é, aprovada a sua conduta.

Mas esta situação é distinta do dever de prestar contas consagrado na al. d) do artigo 1161 do C.C. Pois, findo o mandato, o mandatário é obrigado a prestar contas ao mandante, apresentar o saldo positivo ou negativo, da gestão realizada a coberto do contrato de mandato. E é esta a situação que se discute nos autos. Se o apelante cumpriu, perante a autora, o dever de lhe prestar contas do mandato que lhe foi conferido. E este facto não pode ser considerado tacitamente prestado porque decorreram vários anos entre o fim do mandato e a propositura da respectiva acção. Pois, pressupõe um acto positivo de prestação de contas por parte do mandatário, o que não ocorreu perante a autora, como resulta da matéria de facto provada e não provada. Daí que não se possa concluir, tacitamente, que as contas foram aprovadas, porque nem sequer foram apresentadas.

2.2 O apelante suscita a prescrição do direito de exigir a prestação de contas relativamente ao período de tempo decorrido entre 1979 e 1988.
O mandante tem o direito de exigir a prestação de contas, a qualquer momento, na vigência do contrato e após a sua cessação, como resulta da al. d) do artigo 1161 do C.C. Se o contrato de mandato for de execução continuada, como é o caso dos autos, o prazo prescricional conta-se a partir da sua cessação e não enquanto está pendente a sua execução. Pois é com a cessação que impende sobre o mandatário a obrigação de prestar contas. Durante a execução do mandato, o mandatário só está obrigado a prestar contas quando lhe forem exigidas pelo mandante.
Assim não prescreveu o direito de exigir a prestação das contas relativamente ao período de tempo compreendido entre 1979 e 1988.

2.3 O apelante suscita o abuso de direito na modalidade do venire contra factum proprium porque decorrerem mais de 16 anos entre a cessação do contrato e a propositura da acção, cujo silêncio da autora gerou a confiança no apelante que já não iria exercer o direito de exigir a prestação de contas, depois de ter previamente consentido a destruição de todos os documentos que permitiriam ao apelante efectivar, pela segunda vez, a prestação de contas.
O instituto do abuso de direito, consagrado no artigo 334 do C.Civil, é uma cláusula geral, que tem por finalidade última temperar o exercício dos direitos subjectivos. Deve intervir em situações excepcionais, quando, do exercício de qualquer direito, sejam ultrapassados, de forma intolerável, inadmissível, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito. Que seja ferida a consciência jurídica, os valores fundamentais da ordem jurídica, socialmente dominantes.
A doutrina e a jurisprudência, ao abrigo deste instituto, elegeram o venire contra factum proprium como uma modalidade de abuso de direito, assente na boa-fé, tuteladora da confiança das pessoas, nas suas relações jurídicas. Baseia-se, essencialmente, nos comportamentos contraditórios das pessoas. Estas, depois de tomarem uma determinada atitude, perante os outros, devem ser coerentes, mantendo o mesmo comportamento para o futuro, evitando a lesão das expectativas geradas à volta do seu comportamento anterior.
O que é importante, para o caso desta modalidade de abuso de direito, é saber quando é que um comportamento é relevante, isto é, gera a confiança no outro, de molde a que acredite que não terá um comportamento contrário. E, em face desta crença, organiza a sua vida económico-social, esperando que o outro não altere o seu comportamento. O comportamento, gerador da confiança nos outros, tem de ser expresso e inequívoco, de molde a que seja vinculativo para a parte. Só nestas circunstâncias é que o outro acredita ou tem razões fortes para acreditar que vai honrar, no futuro, o seu compromisso. Não basta uma mera aparência para que se gere a confiança, para que se acredite que a actuação futura irá ser sempre nesse sentido. É necessária uma atitude concludente, inequívoca, assumida, expressamente, perante o outro, com uma força tal, que não deixe dúvidas, que no futuro não irá ser surpreendido com um comportamento contrário. Só assim se enquadra no princípio excepcional da cláusula geral do abuso de direito, que exige uma situação intolerável, inadmissível, violadora da consciência ético-jurídica da comunidade jurídica. Posição diferente leva à banalização do instituto do abuso de direito, vertido nesta modalidade, acabando por bloquear as relações jurídicas.

No caso em apreço, não foram provados factos no sentido de que a autora criou a confiança no apelante de que não exerceria o direito de exigir a prestação de contas e que consentiu que os documentos da prestação de contas fossem destruídos, ficando impossibilitado de as prestar pela segunda vez. Relativamente à autora não se provou que as contas tenham sido prestadas. Daí que não se tenha provado o alegado abuso de direito na vertente do venire contra factum proprium.

Concluindo: 1. A norma do artigo 1163 do C.C. aplica-se à situação prevista na alínea c) do artigo 1161 do mesmo diploma, em que incumbe ao mandatário comunicar, com prontidão, a execução do mandato ou, se o não tiver executado, a razão porque o não fez e não à situação da al. d) deste artigo, que respeita à prestação de contas, que pressupõe um acto positivo do mandatário.
2. O prazo prescricional conta-se a partir da cessação do contrato de mandato e não enquanto estiver em execução.
3. A doutrina e a jurisprudência, elegeram o venire contra factum proprium como uma modalidade de abuso de direito, assente na boa-fé, tuteladora da confiança das pessoas, nas suas relações jurídicas. Baseia-se, essencialmente, nos comportamentos contraditórios das pessoas.

Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante.
Guimarães, 23/04/2015
Espinheira Baltar
Henrique Andrade
Eva Almeida