Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
439/04-1
Relator: HEITOR GONÇALVES
Descritores: REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
ACÇÃO DIRECTA
CONTRATO INOMINADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/03/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA
Sumário: I – Como resulta da motivação da sentença, verifica-se que o tribunal logrou o seu convencimento quanto autoria dos factos atribuída à arguida, a partir da carta que a arguida enviou à assistente, onde ameaçava cortar os cabos da TV, caso não fossem retirados do local no prazo de oito dias.
II – Cremos que o tribunal, ao assim concluir, não violou as regras da experiência nem deu propriamente um «salto no escuro», antes se mostra ter decidido, sem duvidas, regendo-se l por critérios de normalidade.
III – Efectivamente, se corte dos cabos foi efectuado na área privada da residência da arguida, corte esse que correspondia à ameaça que ela fizera cerca de oito dias antes, não pode causar qualquer estranheza que tribunal tenha chegado à conclusão a que chegou.
IV – Na verdade, não se podem confundir presunções ou situações de dúvida sobre factos com os raciocínios lógico-dedutivos, ou demonstrativos, elaborados pelo julgador a partir de «indícios» ou factos indirectamente relevantes para alcançar a verificação dos «factos juridicamente relevantes», pois tal como refere Karl Engisch, in Introdução ao pensamento Jurídico, pág. 87, “como a maioria das acções puníveis, no momento do processo, apenas são apreensíveis pelo tribunal através de diferentes manifestações (ou efeitos) posteriores, são principalmente as regras da experiência e conclusões logicamente muito complexas que tornam possível a verificação dos factos”.
V – Apesar de a anterior autorização dada pela arguida à assistente para a passagem dos cabos ter uma aparência de uma servidão, porque constitui uma limitação ou um ónus impostos sobre a propriedade da arguida, em benefício da assistente, os efeitos produzidos situam-se no domínio dos direitos creditórios, pelo que o contrato é obrigacional e não um contrato real.
VI – Na verdade, como ensinam os Prof. Pires de Lima e A. Varela, “ o facto, porém, de o artigo 1543° limitar as servidões aos encargos capazes de aproveitarem a um prédio (e não a uma pessoa) tem como resultado pratico que as servidões tradicionalmente chamadas servidões pessoais, ou têm regulamentação especial na lei, como o usufruto, o uso ou a habitação, e são reconhecidas, ou não têm, e, nesse caso, revestem pura natureza obrigacional” (C. Civil anotado, ed. 84, pág. 616).
VII – E como contrato inominado que é, uma vez que não se integra em nenhum aos constratos-tipo previstosna lei, tem de se reger peias disposições aplicáveis aos contratos em geral e, se necessário, pelas disposições do contrato nominado com que apresente mais fortes analogias (sobre esta matéria, cfr. Galvão Teles, Direito das Obrigações, 4ª ed, pág. 58).
VIII - Ora, nos termos do artigo 430º do C. Civil, «a resolução do contrato pode fazer-se mediante declaração à outra pane», declaração essa que foi feita pela arguida à assistente, porque a carta que lhe enviara continha expressamente a sua vontade de por termo à passagem dos cabos da TV pela sua propriedade.
IX – Por outro lado, apresentando esse contrato fortes analogias com o contrato de comodato previsto e regulamentado no artigo 1129º e segs. do Código Civil, designadamente quanto aos seus efeitos, dado serem ambos contratos obrigacionais e gratuitos, assistia à arguida o direito de exigir à assistente a desoneração do prédio, logo que lhe fosse exigido, porquanto, nesse domínio, nenhum prazo tinha sido convencionado (artigo 1137°, n°2, do C. Civil).
X – Operada a resolução do contrato, e sem que a assistente retirasse os cabos, passou a manutenção destes a ser abusiva, vendo-se assim legitimada a acção directa levada a cabo pela arguida, pois que nos termos do artigo 336°, n° 1, do Código Civil, «é licito o recurso à torça com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo”.
XI – Ora, considerando-se que os interesses que a arguida visou realizar não eram inferiores aos danos provocados nos cabos da assistente ( €35,00), assim como não lhe era exigível que tivesse de recorrer a meios judiciais para por cobro à referida acção abusiva por parte da assistente, porque isso implicaria, ainda que temporariamente, a inutilização prática do seu direito, impõe-se a sua absolvição.
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência na Relação de Guimarães

1. No processo comum singular 11132/02, do 4º Juízo Criminal de Braga, a arguida "A" foi condenada na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 3,00, pela prática de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212º, nº1, do Código Penal. Julgando-se parcialmente procedente o pedido civil deduzido pela demandante "C" -Companhia, S.A., a demandada/arguida foi condenada a pagar a indemnização de € 75,00, com juros de mora à taxa legal, desde a notificação para contestar até integral pagamento.
2. A arguida não se conformou com a sentença condenatória, pelo que dela interpôs o presente recurso, e nas conclusões que formulou suscita, no essencial e em síntese, as seguintes questões:
a) Na audiência não foi produzida qualquer prova de que tenha sido a arguida a pessoa que cortou os cabos da TV por Cabo. A arguida negou e nenhuma das testemunhas alegou saber quem foi o autor desses factos.
b) A carta registada enviada à "B", em que a arguida ameaça cortar os cabos, só por si era insuficiente para o tribunal formar a convicção que formou, pois as regras da experiência ditam que a maior parte das ameaças não são concretizadas;
c) O princípio in dúbio pró reo obriga em que a situação de dúvida seja decidida a favor do arguido.
d) O tribunal, ao dar como provado ter sido a arguida a autora do aludido facto, violou os artigos 32º, da C.R.P.; 212º, do C.Penal, e 127º e 129º, do C.P.Penal.

3. Na resposta, o Ministério Público defende a manutenção do julgado, pois entende que a impugnação da matéria de facto deduzida no recurso mais não é do que uma forma de pretender substituir a convicção formada pelo tribunal pela sua própria convicção.
4. Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, também no sentido da improcedência do recurso. Conclui que, não se verificando nenhum erro patente de apreciação da prova ou qualquer dos vícios da matéria de facto do artigo 410º, nº2, alíneas a), b) e c), do CPP, que esta instância oficiosamente podia conhecer, a matéria de facto tem de considerar-se fixada, tudo se reconduzindo à apreciação da prova pelo tribunal segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.

5. Factos considerados provados:
1. A 24.04.2001, a filha da arguida, Isa ..., subscreveu o contrato nº 17227 para fornecimento de TV por cabo.
2. Esse fornecimento era prestado pela assistente "B".
3. A arguida foi contactada no decurso do mês de Abril de 2001 pela assistente que lhe solicitou autorização para a passagem de cabos na fachada da sua residência, que se destinavam ao fornecimento de televisão por cabo na residência vizinha à da arguida (nº 22 da Rua...).
4. A arguida acedeu e para o efeito assinou uma declaração escrita, datada de 28 de Abril de 2001, a autorizar a colocação dos referidos cabos.
5. A assistente procedeu à sua colocação no decurso do mês de Maio de 2002.
6. Por carta registada com aviso de recepção datada de 23.05.2002, a arguida solicitou à assistente a retirada dos cabos, na qual a alertou que se os mesmos não fossem retirados no prazo de oito dias, ela própria procederia ao seu corte.
7. Em finais de Maio de 2002, como os cabos não foram retirados pela assistente, a arguida, mostrando-se indiferente à autorização dada, cortou-os, inutilizando-os, o que inviabilizou a recepção da televisão por cabo na residência vizinha à sua, o nº 22 da Rua ....
8. Com a sua conduta a arguida provocou um prejuízo à ofendida não inferior a € 75,00 (setenta e cinco euros), sendo 35,00 relativos ao valor do cabo e € 40,00 relativos a duas deslocações da equipa técnica para solucionar o problema.
9. A arguida quis cortar os cabos bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam, que os inutilizava e, desse modo, inviabilizava o acesso à televisão por cabo na residência vizinha da sua.
10. A arguida agiu voluntária e conscientemente, com perfeito conhecimento da censurabilidade da sua conduta.
11. A arguida aufere cerca de € 400,00 mensais enquanto operária numa fábrica de fibras.
12. A arguida vive com o marido que está reformado por invalidez que recebe uma pensão mensal de € 189,60 e com dois filhos, um de 20 e outro de 18 anos, ambos estudantes.
13. A arguida não tem antecedentes criminais.

3. Colhidos os vistos, cumpre decidir:
Este recurso é dirigido exclusivamente à impugnação da matéria de facto provada constante dos pontos 7 a 10 da sentença recorrida. A recorrente começa por referir que, tendo ela negado a prática dos factos e porque nenhuma testemunha declarou saber quem foi o seu autor, o tribunal, ao considerá-los como provados, foi além da prova produzida em audiência. Argumenta depois que, encontrando-se a convicção da Sr.ª Juíza alicerçada no depoimento da testemunha Diana R..., o qual resultou do que ouvir dizer a um vizinho da arguida, que não foi chamado a depor, foi violado o disposto no artigo 129º, do CPP. Finalmente, sustenta que o princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, da C.R.P., não autorizava o tribunal a atribuir a autoria dos factos à arguida a partir da carta que a mesma enviou à assistente, onde ameaçava cortar os cabos, porquanto, segundo as regras da experiência, normalmente a pessoa que profere uma ameaça não é aquela que a vem a concretizar.
Em primeiro lugar, não podemos deixar de reconhecer razão à recorrente quanto à invalidade do depoimento produzido pela testemunha Diana R..., visto que se trata de um depoimento indirecto valorado pelo tribunal fora das circunstâncias previstas no artigo 129º, nº1, do CPP. Com efeito, na motivação da matéria de facto, o tribunal consigna a importância que deu a esse meio de prova para poder concluir que a arguida cortou os cabos da TV no dia 6 de Junho de 2002, mas porque não chamou a depor o vizinho da arguida que terá dado essa informação à testemunha, assim como também não verificou a impossibilidade de o mesmo ser ouvido, afectou o direito do contraditório, princípio que caracteriza a estrutura acusatória do processo criminal (cfr. nº5, do art. 32º, da C.R.P.).
O uso e valoração no julgamento da matéria de facto de qualquer meio de prova proibido faz incorrer a sentença em erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410º, nº2, al. c), do CPP, o qual determina o reenvio do processo para novo julgamento sempre que impossibilite decidir da causa – artigo 426º, nº1, do mesmo código. Neste caso, o facto que se pretendia averiguar consistia em saber se os cabos da assistente que passavam pela varanda da residência da arguida tinham sido cortados. Ora, como este facto foi admitido pela própria arguida, a qual, a uma pergunta do Ministério Público, referiu: - “Eu quando cheguei a casa vi o fio cortado”, torna-se inútil proceder à repetição do julgamento.

Quanto à autoria dos factos atribuída à arguida, vê-se pela motivação que o tribunal logrou o seu convencimento a partir da carta que a arguida enviou à assistente, onde ameaçava cortar os cabos da TV, caso não fossem retirados do local no prazo de oito dias. Cremos que o tribunal, ao assim concluir, não violou as regras da experiência nem deu propriamente um «salto no escuro», antes se mostra ter decidido, sem dúvidas, regendo-se por critérios de normalidade. Se o corte dos cabos foi efectuado nua área privada da residência da arguida, corte esse que correspondia à ameaça que ela fizera cerca de oito dias, não pode causa qualquer estranheza que o tribunal tenha chegado à conclusão a que chegou. Não se podem confundir presunções ou situações de dúvida sobre factos com os raciocínios lógico-dedutivos, ou demonstrativos, elaborados pelo julgador a partir de «indícios» ou factos indirectamente relevantes para alcançar a verificação dos «factos juridicamente relevantes». Como refere Karl Engisch, in Introdução ao pensamento Jurídico, pág. 87, “como a maioria das acções puníveis, no momento do processo, apenas são apreensíveis pelo tribunal através de diferentes manifestações (ou efeitos) posteriores, são principalmente as regras da experiência e conclusões logicamente muito complexas que tornam possível a verificação dos factos”.
Pelo exposto, entendemos que a decisão proferida sobre a matéria de facto não merece a censura que a recorrente lhe faz. Consequentemente, as conclusões de recurso improcedem.

É inquestionável que os factos provados integram todos os elementos constitutivos do crime de dano do artigo 212º, nº1, do CP, uma vez que dos mesmos resulta que a arguida, voluntariamente, inutilizou os cabos da TV que sabia pertencerem à assistente. Porém, na mesma matéria de facto provada também se encontram fundamentos bastantes para se poder concluir, como se conclui, que a arguida actuou no exercício de um direito, e que por isso a ilicitude do seu comportamento se encontra excluída nos termos do artigo 31º, nº2, al. b), do Código Penal.
Vejamos:
Item nº3: A arguida foi contactada no decurso do mês de Abril de 2001 pela assistente que lhe solicitou autorização para a passagem de cabos na fachada da sua residência, que se destinavam ao fornecimento de televisão por cabo na residência vizinha à da arguida (nº 22 da Rua ...)- .
Item nº4: A arguida acedeu e para o efeito assinou uma declaração escrita, datada de 28 de Abril de 2001, a autorizar a colocação dos referidos cabos.
Item nº5: A assistente procedeu à sua colocação no decurso do mês de Maio de 2002.
Item nº.6: Por carta registada com aviso de recepção datada de 23.05.2002, a arguida solicitou à assistente a retirada dos cabos, na qual a alertou que se os mesmos não fossem retirados no prazo de oito dias, ela própria procederia ao seu corte.
Item nº7: Em finais de Maio de 2002, como os cabos não foram retirados pela assistente, a arguida, mostrando-se indiferente à autorização dada, cortou-os, inutilizando-os, o que inviabilizou a recepção da televisão por cabo na residência vizinha à sua, o nº 22 da Rua ....

Apesar de a autorização dada à "B" para a passagem dos cabos ter uma aparência de uma servidão, porque constitui uma limitação ou um ónus imposta sobre a propriedade da arguida, em benefício da assistente, os efeitos produzidos situam-se no domínio dos direitos creditórios, pelo que o contrato é obrigacional e não um contrato real. Como ensinam os Prof. Pires de Lima e A. Varela, “ o facto, porém, de o artigo 1543º limitar as servidões aos encargos capazes de aproveitarem a um prédio (e não a uma pessoa) tem como resultado prático que as servidões tradicionalmente chamadas servidões pessoais, ou têm regulamentação especial na lei, como o usufruto, o uso ou a habitação, e são reconhecidas, ou não têm, e, nesse caso, revestem pura natureza obrigacional” ( C. Civil anotado, ed. 84, pág. 616).
E como contrato inominado que é, uma vez que não se integra em nenhum dos constratos-tipo previstos na lei, tem de se reger pelas disposições aplicáveis aos contratos em geral e, se necessário, pelas disposições do contrato nominado com que apresente mais fortes analogias (sobre esta matéria, cfr. Galvão Teles, Direito das Obrigações, 4ª ed., pág. 58).
Ora, nos termos do artigo 436º, do Código Civil, «a resolução do contrato pode fazer-se mediante declaração à outra parte». Essa declaração foi feita pela arguida à assistente "B", porque a carta que lhe enviara continha expressamente a sua vontade de por termo à passagem dos cabos da TV pela sua propriedade. Por outro lado, apresentando esse contrato fortes analogias com o contrato de comodato previsto e regulamentado no artigo 1129º e segs do Código Civil, designadamente quanto aos seus efeitos, dado serem ambos contratos obrigacionais e gratuitos, assistia à arguida o direito de exigir à assistente a desoneração do prédio, logo que lhe fosse exigido, porquanto, nesse domínio, nenhum prazo tinha sido convencionado (artigo 1137º, nº2, do C.Civil).
Operada validamente a resolução do contrato e não satisfazendo a "B" a pretensão da arguida, a manutenção e passagem dos cabos pela propriedade desta considera-se abusiva, uma vez decorridos os oito dias indicados na carta. Ora, nos termos do artigo 336º, nº1, do Código Civil, «é licito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo”. A acção directa pode consistir na destruição de uma coisa e só não é lícita quando sacrifique interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar (cfr nºs 2 e 3, do mesmo preceito legal).
Consideramos que os interesses que a arguida visou realizar não eram inferiores aos danos provocados nos cabos da "B" ( €35,00), assim como não lhe era exigível que tivesse de recorrer a meios judiciais para por cobro à referida acção abusiva por parte da assistente, porque isso implicaria, ainda que temporariamente, a inutilização prática do seu direito. Aliás, a "B", dado o «anúncio» do corte dos tubos e o prazo que lhe foi concedido para a resolução do problema, não se pode achar surpreendida nem prejudicada pela actuação da arguida.
Impõe-se, pois, a absolvição da arguida, embora por fundamentos distintos dos invocados nas motivações e conclusões de recurso.

Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em revogar a decisão recorrida, absolvendo-se a arguida do crime que lhe vinha imputado na acusação e do pedido civil formulado pela demandante "B".
Sem custas.