Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2059/13.1TBBRG-C.G1
Relator: ANTÓNIO SANTOS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I- Sendo o valor do salário mínimo nacional aquele que o próprio legislador considera como sendo o necessário para assegurar a subsistência do trabalhador com o mínimo de dignidade - permitindo um nível de vida decente - exigível , deve também ser ele o utilizado como critério para efeitos do artº 239º, nº 3, alínea a), do CIRE.
II - Em razão do referido em I, o rendimento disponível que o devedor fica obrigado a ceder aos credores através de um fiduciário não deve em circunstância alguma coarctar a possibilidade de o devedor continuar a dispor de um rendimento de valor igual a pelo menos um salário mínimo nacional.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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1.Relatório.
Aquando da sua apresentação à insolvência [que declarada foi por decisão/sentença de 26/3/2013] , vieram J… e T…, requerer a admissão e o deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, declarando então ambos e nos termos do disposto no artigo 236°, nº 3, do CIRE, preencherem os requisitos necessários à concessão do referido beneficio e, bem assim, estarem dispostos a observar todas as condições exigidas.
Pronunciando-se sobre os pedidos de exoneração do passivo restante deduzidos pelos requerentes/insolventes J… e T…, e ao invés do que sucedeu com o Administrador de Insolvência [ que em sede do Relatório elaborado ao abrigo do disposto nos artºs 155º e 156º, ambos do CIRE ,veio dizer que nada obstava ao seu deferimento, uma vez que se mostravam indiciados/assentes todos os necessários pressupostos legais ] , vieram os credores B… e Banco…,SA, aduzir que se impunha o respectivo indeferimento, pois que, desde logo, incumpriram os requerentes com o dever de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, nos termos do artº 238º,nº1,alínea d), do CIRE.
1.1. - Finalmente, por decisão de 17/09/2013, veio o Exmº Juiz titular a deferir o pedido de exoneração do passivo restante, decidindo que :
“ Pelo exposto, admitindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante ( com exclusão dos créditos mencionados no art° 245°, n° 2 ) formulado pelos insolventes , determino que , durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do presente processo de insolvência , seja cedido ao fiduciário abaixo nomeado todo o rendimento disponível dos insolventes , com exclusão dos créditos a que se refere o artº 115º, e , para o conjunto dos requerentes/insolventes, de duas vezes ¾ do IAS em vigor no corrente ano (isto é, actualmente, o valor correspondente a € 628,84, por mês), e nos anos subsequentes, durante o período de cessão, durante o período de cessão ( art° 239°, n° 3, al. als. a) e b)). “
1.2. - Porque da decisão indicada em 1.1. discordam ambos os insolventes, inconformados, vieram os dois da mesma recorrer/apelar, o que fizeram formulando nas pertinentes alegações as seguintes conclusões:
1. O valor estabelecido no despacho recorrido como rendimento indisponível, é insuficiente para assegurar uma sobrevivência condigna aos insolventes;
2. O artigo 46º nº 2 do CIRE estabelece que os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta.
3. Apesar da cessão do rendimento considerado disponível ser um acto voluntário o certo é que o montante cedido resulta de imposição judicial, pelo que sempre terá aplicação o referido normativo.
4. Limiar de Pobreza, segundo a OCDE, é o rendimento considerado minimamente suficiente para sustentar uma pessoa em termos de alimentação, habitação, vestuário, cuidados de saúde, etc.
5. Sendo certo que o rendimento anual utilizado para medir o limiar da pobreza em Portugal foi, em 2011, de 4.994€ (quatro mil novecentos e noventa e quatro euros) .
6. Verifica-se assim, que o rendimento estabelecido pelo Tribunal a quo, no valor anual de 3.773,04€ (três mil setecentos e setenta e três euros e quatro cêntimos) para cada um dos insolventes os coloca abaixo do limiar da pobreza.
7. Acresce ainda que a jurisprudência tem vindo a utilizar como referência o critério consignado no processo executivo, com a garantia de um rendimento equivalente ao salário mínimo para o devedor.
8. Tal rendimento tem sido considerado como essencial para garantir uma sobrevivência condigna, conforme Ac. TRC no proc. nº 1254/12.5TBLRA-F.C1, de 12.03.2013 e Ac. TRG no proc. 1230/12.8TBVVD-B.G1, de 18.06.2013, in www.dgsi.pt
9. Até porque, é de conhecimento geral que, mesmo sem qualquer tipo de luxo, as despesas referentes a renda de um imóvel, água, luz, gás e telefone, alimentação, vestuário e saúde, a que acrescem as de transporte (mesmo que público), ultrapassam certamente a quantia de 628,84€ que foi fixada aos insolventes como rendimento indisponível.
10. De resto, a fixação de um rendimento indisponível exageradamente diminuto, poderá ter um efeito perverso para os próprios credores, com o insolvente a procurar trabalhos com remuneração não declarada.
11. O valor de 628,84€ excluído da cessão é manifestamente insuficiente para a sobrevivência dos insolventes, devendo fixar-se, em substituição deste, a quantia equivalente a um salário mínimo nacional para cada um dos insolventes.
TERMOS EM QUE, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado e em consequência ser o despacho recorrido substituído por outro que estabeleça como rendimento disponível do casal, todo o que ultrapassar dois salários mínimos nacionais.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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1.3.- Delimitando-se o âmbito do recurso pelas conclusões [ daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória, delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal ad quem ] das alegações dos recorrentes ( cfr. artºs. 635º, nº 3 e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho , e tendo presente o disposto no artº 5º, nº1 e 7º,nº1, ambos deste último diploma legal ), e sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, a questão a apreciar e a decidir é só uma :
- a) Aferir se a decisão o tribunal a quo incorre em error in judicando, ao fixar na quantia de 628,84€ o quantum do rendimento disponível que, nos termos da alínea b), i , do nº 3, do artº 239º, do CIRE, fica excluída da obrigatoriedade de cedência - pelos insolventes - ao fiduciário, devendo antes fixar-se, em substituição daquela, a quantia equivalente a um salário mínimo nacional para cada um dos insolventes.
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2.- Motivação de Facto.
No âmbito da decisão apelada mostra-se fixada a seguinte factualidade :
2.1.- Por decisão de 27 de Março de 2013 foram J… e T…, declarados insolventes.
2.2.- O processo teve início em 26 de Março de 2013 por requerimento apresentado pelos próprios.
2.3.- Os requeridos são casados entre si, no regime supletivo de comunhão de adquiridos.
2.4.- O respectivo agregado familiar é composto pelos mesmos.
2.5.- O insolvente marido encontra-se desempregado, sem rendimentos, encontrando-se a insolvente mulher desempregada, mas auferindo um subsídio de desemprego no valor de € 469,80/mês.
2.6.- O insolvente marido foi sócio-gerente da sociedade P…, na qual a insolvente mulher era trabalhadora, sociedade essa que veio a ser declarada insolvente em por sentença de 26 de Março de 20l3, já transitada em julgado.2.7.- A insolvência dos requeridos decorre, essencialmente, da insolvência da sociedade referida em 2.6. , relativamente à qual os insolventes prestaram garantias pessoais, no âmbito de contratos de financiamento à sociedade, que não vieram a ser cumpridos, despoletando a execução das garantias pessoais prestadas pelos insolventes.
2.8.- Foram reclamados e reconhecidos créditos sobre a insolvência no valor de € 164.063,08, de capital, e € 5.305,34, de juros moratórios, num total de € 169.368,42.
2.9.- Tais créditos constituíram-se e venceram-se (entraram em incumprimento) nas datas indicadas na informação constante de fls. 121, que aqui, para todos os efeitos, se considera integralmente reproduzida.
2.10.- Foram apreendidos bens no valor total atribuído de € 69.030,00.
2.12.- Os insolventes não têm qualquer tipo de antecedentes criminais.
2.13.- Não beneficiaram, anteriormente, da exoneração do passivo restante
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3 - Motivação de Direito
3.1.- Terá o tribunal a quo incorrido em error in judicando, ao fixar na quantia de 628,84€ o quantum do rendimento disponível dos insolventes , que , nos termos da alínea b), i , do nº 3, do artº 239º, do CIRE, fica excluído da cessão ao fiduciário ?
Na decisão apelada, determinou o tribunal a quo que se justificava que ficasse excluído do rendimento disponível dos insolventes o montante de 628,84€ , nos termos do artigo 239º,nº3, do CIRE, sendo tal valor aquele que permitia assegurar o sustento minimamente digno dos devedores e do respectivo agregado familiar.
Dissentindo da decisão do tribunal a quo, consideram porém os apelantes , no âmbito da instância recursória - respectivas alegações e conclusões , que se impõe antes a fixação de um valor de pelo menos 2 salários mínimos nacionais, sendo esta quantia aquela, e a única, que lhes permitirá assegurar o respectivo sustento e do seu agregado familiar, e em termos minimamente dignos.
A única questão que aqui e agora importa apreciar é, portanto, aferir se o montante a excluir do rendimento disponível dos insolventes é tão só aquela que foi fixada pelo a quo, ou , ao invés, uma outra, compreendida entre o apontado valor e a correspondente a pelo menos duas vezes a retribuição mínima mensal garantida ( € 485,00 - cfr. DL nº 143/2013, de 31/12 - x2 ).
No âmbito da fundamentação da decisão apelada, recorda-se, aduziu o Exmº Juiz a quo, no essencial, a argumentação, de direito, que a seguir se transcreve , parcialmente :
“ (…)
No que toca à questão de qual seja a porção do rendimento excluída da cessão para garantir o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar, pondera-se neste normativo, mormente nas suas alíneas b), ii) e iii), a necessidade de conjugar, por um lado, os interesses dos credores, cuja satisfação o processo de insolvência visa enquanto execução universal (art° 1°, n° 1) e, por outro lado, a necessidade de acautelar o princípio da salvaguarda e garantia da dignidade humana, ínsito no art° 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Adoptada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948) e art° 1 ° e 59°, n" 1, al. a), da Constituição da República Portuguesa. Esta ponderação há-de ser densificada com a consideração de que o procedimento de exoneração do passivo restante constitui já, por si, independentemente do montante excluído da cessão, uma compressão da expectativa legítima dos credores a obter pagamento. Na verdade, como já acima se salientou, sendo cumprido o período de exoneração sem incidentes e vindo, a final, a ser proferido despacho de exoneração, fica o devedor liberto da parte restante, não paga na liquidação e no decurso do período de cessão e portanto subsistente, dos créditos sobre a insolvência, sem excepção dos que não tenham sido reclamados (art° 245°). Por isso, o benefício final em causa justifica, ou torna proporcional, um maior sacrifício imposto ao devedor. Certamente por isso, na definição do que fosse o sustento mínimo digno do devedor, não colocou o legislador um limite mínimo de rendimento excluído, ao contrário do que fez no contexto do processo executivo (art°s 824° e 824°-A, ambos do C.P.C.),ainda que se tenha vindo a utilizar esse critério jurisprudencialmente.
De todo o modo, conforme já foi debatido e decido no Tribunal Constitucional, quanto ao direito fundamental a um mínimo de sobrevivência, “ em caso de colisão entre o direito do credor e o direito do devedor a uma pensão que lhe garanta uma sobrevivência condigna, deve o legislador, para tutela do valor supremo da DPH [ Dignidade da Pessoa Humana ] sacrificar o direito do credor, na medida do necessário e, se tanto for preciso, mesmo totalmente, não permitindo que a realização deste direito ponha em causa a subsistência do devedor “. E, acrescenta o signatário, de igual modo deverá proceder o intérprete e aplicador do Direito.
É, assim, neste enquadramento normativo, que deverá ser dirimido o conflito de interesses entre os credores, por um lado, e o devedor, por outro lado, devendo ocorrer uma apreciação casuística das diversas situações possíveis e concretizadas no processo. No caso, constata-se que os insolventes são casados entre si, sem dependentes, tendo um rendimento bruto, conjunto, para todo o agregado, de € 469,80/mês, proveniente do subsídio de desemprego da insolvente mulher. Neste contexto, considerando que é facto notório, dispensado de prova, que os insolventes se têm que alimentar e vestir, assim como manter um estado saudável, e providenciar pela alimentação, saúde e educação da sua filha menor, entende o Tribunal que se deverá ponderar o recurso ao critério ínsito no art° 824°, nº 4, do C.P.C., recorrendo ao valor do Indexante de Apoios Sociais (IAS) 7, instituído pela Lei n.º 53-B/2006, de 29 de Dezembro, que veio substituir a Retribuição Mínima Mensal Garantida (RMMG) enquanto referencial determinante da fixação, cálculo e actualização das contribuições, das pensões e outras prestações sociais, por mais adequado à situação económico financeira e social da insolvente. Deste modo, e atendendo a que o IAS se fixou, para o ano de 2012 (mantendo-se inalterado no corrente ano de 2013, conforme decorre da lei do orçamento de estado, Lei 66-B/2012, de 21/12), em € 419,22, correspondendo 3/4 desse montante a € 314,42, entende o Tribunal fixar o rendimento excluído da cessão em duas vezes 3/4 do IAS em vigor no corrente ano (isto é, actualmente, o valor correspondente a € 628,84, por mês) e nos anos subsequentes, durante o período de cessão, para o conjunto dos requerentes/insolventes, uma vez que, sendo casados, vivem em economia comum.
Pelo exposto, admitindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante (com exclusão dos créditos mencionados no art° 245°, n° 2) formulado pelos insolventes, determino que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do presente processo de insolvência, seja cedido ao fiduciário abaixo nomeado todo o rendimento disponível dos insolventes, com exclusão dos créditos a que se refere o artº 115°, e , para o conjunto dos requerentes/insolventes, de duas vezes 3/4 do IAS em vigor no corrente ano (isto é, actualmente, o valor correspondente a € 628,84, por mês), e nos anos subsequentes, durante o período de cessão (art° 239°, n° 3, al. als. a) e b))".
Ora bem.
Com interesse para a decisão da apelação, diz-nos o art. 239.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) que:
“ 2. O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência (…)
3. Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
(…)
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
(…) “
Integrando o acabado de transcrever - parcialmente - nº 3, do artº 239º, do CIRE, diversas outras excepções ao comando que dispõe que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, não se indicaram elas apenas porque, in casu, aquela que nos interessa é tão só a supra indicada e respectiva alínea b, i.
Ora, como referência à excepção que nos importa dissecar, e como é entendimento uniforme de todos aqueles que à presente matéria dedicam algum do respectivo tempo, é ponto assente que não nos diz/informa no CIRE, o legislador, qual o valor considerado razoável para o sustento minimamente digno para o devedor e do seu agregado familiar, apenas se podendo extrair do conteúdo da referida alínea b), i, do nº 3, do artº 239º, que ( qual critério objectivo) não poderá ele, por regra, a não ser em situação concreta devidamente fundamentada, ultrapassar o montante máximo equivalente a três vezes o salário mínimo nacional.(1)
Daí que, na ausência de um critério objectivo capaz de preencher o conceito indeterminado e conclusivo escolhido pelo legislador, apenas poderá ele ser aferido de uma forma necessariamente casuística, impondo-se que o julgador, caso a caso e perante os elementos disponíveis, fixe qual o valor que, para aquele devedor e respectivo agregado familiar, deve escapar à obrigatoriedade de entrega/cedência ao fiduciário, porque imprescindível ele para continuar a garantir - devedor e respectivo agregado familiar - o seu sustento e de modo minimamente digno e portanto aceitável.
Mas atenção !.
Como bem se salienta no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa (2), importa não olvidar que “(…) não se trata agora de garantir que o devedor/insolvente mantenha o status económico e social que detinha – e que muitas vezes - ao dar um passo maior que a perna, dizemos nós - terá contribuído para a sua insolvência – mas sim , e apenas, de garantir que mantenha padrões de vida minimamente dignos”, ou seja , e como diz o conhecido provérbio francês "Pas d'argent , pas de Suisse" .
Ademais, importa não esquecer outrossim, que a exoneração do passivo restante não pode ser vista como a possibilidade de o insolvente se libertar, quase automaticamente, da responsabilidade de satisfazer as obrigações para com os seus credores durante o período da cessão, razão porque, “ É, por isso, razoável que o devedor (e o respectivo agregado) não mantenha o trem de vida que tinha anteriormente – e que o levou à insolvência – podendo baixá-lo substancialmente, ainda que salvaguardando sempre uma existência condigna”. (3)
Em suma, e como bem nota ainda o Tribunal da Relação de Lisboa (4), importa “ (…) ponderar-se por um lado que se está perante uma situação transitória, durante a qual o insolvente deverá fazer um particular esforço de contenção de despesas e de percepção de receitas de molde a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante, e por outro lado atender ao que é indispensável para, em consonância com a consagração constitucional do respeito pela dignidade humana, assegurar as necessidades básicas do insolvente e do seu agregado familiar “.
De resto, ao aludir a letra da lei a sustento “minimamente” digno, tal implica por si só o reconhecimento implícito do legislador de que, se necessário, obrigado está mesmo o devedor a ter de “mudar de vida”, libertando-se de todas as despesas que para o seu sustento digno não são absolutamente necessárias, justificando assim ele que é “merecedor” da nova oportunidade de reabilitação económica que lhe é concedida, qual ‘fresh start’ facultado às pessoas singulares insolventes e da qual resulta também o sacrifício dos credores ( cujos créditos acabarão, e por regra em parte significativa, por não serem cobrados).
Postas estas breves considerações, recorda-se que, como que objectivando o critério fixado na alínea b)-i), do nº3, do artº 239º do CIRE, muitas são as decisões dos tribunais de segunda instância que lançam mão do valor do salário mínimo nacional, pois que, em rigor, contém ele em si a ideia de que corresponde o quantitativo fixado à remuneração básica estritamente necessária indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador normal. (5)
De igual forma, quando instado a pronunciar-se sobre os limites da penhora e tendo em atenção o disposto no artº 824.º, n.ºs 1, alíneas a) e b), do CPC ( anteriormente à Redacção introduzida pelo DL nº 38/2003, de 8 de Março), entendeu sempre e uniformemente o Tribunal Constitucional (6), no âmbito de diversos Acórdãos proferidos , que “ salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o ‘mínimo dos mínimos’ não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo “ .
Bem a propósito, recorda-se também que, o mesmo Tribunal Constitucional e no citado Acórdão de 26/5/1999, decidiu expressamente “ julgar inconstitucional a norma do artigo 824º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, na medida em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante, cujo valor não seja superior ao do salário mínimo nacional então em vigor, por violação do princípio da dignidade humana contido no princípio do Estado de direito que resulta das disposições conjugadas dos artigos 1º, 59º, n.º2, alínea a e 63º, n.ºs 1 e 3, da Constituição.”
Pela nossa parte, ainda que outros critérios sejam utilizados [ v.g. na decisão apelada considerou-se adequado lançar mão do valor do IAS - Indexante de Apoios Sociais - criado em 2006 pela Lei n.º 53-B/2006, de 29 de Dezembro e que vigorando desde o início de 2007, veio substituir a Retribuição Mínima Mensal Garantida (RMMG) enquanto referencial determinante da fixação, cálculo e actualização das contribuições, das pensões e outras prestações sociais ] , temos por mais razoável - para efeitos do artº 239º, do CIRE - partir-se do montante do salário mínimo nacional como o limite/padrão que assegura a subsistência do devedor com o mínimo de dignidade.
É que, apesar de fixado, pela primeira vez, através do D.L. n.º 217/74, de 27 de Maio, e não obstante permanecer inalterado [ não actualizado ] desde Janeiro de 2011 ( cfr. DL nº 143/2010, de 31/12 ) , é suposto [ em razão da 131ª Convenção da OIT (7) e que orienta as normas para a fixação da RMMG ] que , de entre os elementos a tomar em consideração para determinar o nível dos salários mínimos, sejam atendidas “As necessidades dos trabalhadores e das respectivas famílias, tendo em atenção o nível geral dos salários no país, o custo de vida, as prestações de Segurança Social e os níveis de vida comparados de outros grupos sociais “.
De igual forma, tendo presente que as “Partes” da Carta Social Europeia (8) reconhecem como objectivo de uma política que prosseguirão por todos os meios úteis, nos planos nacional e internacional, a realização de condições próprias a assegurar o exercício efectivo dos direitos e princípios nela consignados, designadamente ( cfr. artº 4º) o Direito a uma remuneração justa, tendo-se igualmente comprometido a reconhecer o direito dos trabalhadores a uma remuneração suficiente que lhes permita assegurar, assim como às suas famílias um nível de vida decente , é assim a RMMG o critério ( em abstracto ) mais seguro e o adequado ( à falta de outro ) para efeitos de fixação do limite mínimo abaixo do qual passa já a estar em causa a satisfação das necessidades do devedor e do seu agregado familiar.
De resto, em razão da letra da lei, é o próprio legislador que, no próprio art. 239º, nº 3, alínea b), i), in fine, e ainda que com referência ao valor e limite máximo, vem socorrer-se expressis verbis do critério/padrão do RMMG.
Chegados aqui, e descendo agora ao mundo dos factos provados, vemos que é a matéria de facto provada demasiado sucinta e parca no que concerne à identificação dos encargos a que os apelantes estão “obrigados” a fazer face, mensalmente, e com vista à satisfação das respectivas necessidades básicas com a habitação, alimentação, saúde, vestuário, etc., apenas se sabendo que são casados entre si, que o respectivo agregado familiar é composto apenas pelos mesmos e que, encontrando-se ambos desempregados, apenas a insolvente mulher aufere um subsídio de desemprego no valor de € 469,80/mês.
No tocante , portanto, às eventuais despesas a suportar pelo agregado familiar dos apelantes, maxime com a respectiva habitação e inerentes despesas com água, luz, e gás, e , bem assim com a alimentação, saúde e vestuário , resta tão só presumir ( em razão das regras normais da experiência ) que certamente as suportarão ambos, fazendo-o de acordo com os padrões médios e em função de uma utilização normal dos referidos recursos, e na medida necessária e suficiente para assegurar as necessidades mínimas do casal.
Em razão do exposto, cabendo ao tribunal fazer uma apreciação casuística das situações submetidas a escrutínio, e inexistindo ( alegadas e provadas ) in casu quaisquer necessidades anormais a satisfazer pelos insolventes , temos assim que único critério/padrão que nos resta lançar mão é também ele o do valor do salário mínimo nacional, quantia mensal esta que muitas famílias portuguesas se viram “obrigadas” já , malgré tout , a considerar como a bastante para lhes assegurar um sustento minimamente digno.
Em conclusão, porque por um dado o critério decisivo para excluir rendimentos da cessão reside - di-lo expressamente o legislador - no que é necessário em termos de normalidade para assegurar o sustento minimamente digno do devedor, e , por outro lado e implicitamente para o mesmo legislador, há-de pelo menos o devedor continuar a dispor de um rendimento não inferior ao Salário mínimo nacional para poder desfrutar de um nível de vida decente, então faz sentido que o rendimento disponível que o devedor fica obrigado a ceder aos credores através de um fiduciário ponha em causa/afecte a possibilidade de o devedor continuar a dispor de um rendimento de valor igual a pelo menos um SMN.
Destarte, estando nos presentes autos em causa dois “devedores”, a quantia que, durante o período da cessão (que se prolongará por 5 anos - cfr. artº 235º do CIRE ) deve ficar excluída da cedência aos credores, deve corresponder/ equivaler a pelo menos dois salários mínimos nacionais [ 485,00 € - cfr. DL 143/2010, de 31/12 - em relação a cada um dos insolventes/requerentes (9 ) ] .
A apelação , portanto, deve proceder in totum.
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4.- Sumariando:
I- Sendo o valor do salário mínimo nacional aquele que o próprio legislador considera como sendo o necessário para assegurar a subsistência do trabalhador com o mínimo de dignidade - permitindo um nível de vida decente - exigível , deve também ser ele o utilizado como critério para efeitos do artº 239º, nº 3, alínea a), do CIRE.
II - Em razão do referido em I, o rendimento disponível que o devedor fica obrigado a ceder aos credores através de um fiduciário não deve em circunstância alguma coarctar a possibilidade de o devedor continuar a dispor de um rendimento de valor igual a pelo menos um salário mínimo nacional.
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5.- Decisão.
Pelo exposto acordam os Juízes na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em , na sequência do provimento do recurso de apelação:
5.1.- Revogar a decisão recorrida e, consequentemente, fixa-se a quantia indispensável ao sustento de ambos os insolventes no montante de 970,00€ mensais (correspondente a duas retribuições mínimas garantidas), ficando os mesmos obrigados a entregar ao fiduciário - durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência -, todo o rendimento que aufiram e que exceda a quantia referida.
Custas pela massa insolvente (cfr. arts. 303º e 304º do CIRE).
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(1) Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência, Quid Júris, pág. 295).
(2) De 8/11/2012, Proc. nº 2135/11.5YXLSB-D.L1-6, e disponível in www.dgsi.pt.
(3) Cfr. Ac. da Relação do Porto de 10/05/2011, Proc. 1292/10.2TJPRT-D.P1, in www.dgsi.pt.
(4) In Acórdão de 16/02/2012, proferido no Proc. nº 1613/11.0TBMTJ-D.L1-2, in www.dgsi.pt.
(5) Cfr., de entre muitos outros, o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/5/2013; os Acs. do tribunal da Relação de Guimarães de 3/5/2011 e de 25/10/2012; o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 12/6/2012 e o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10/9/2013, todos eles disponíveis in www.dgsi.pt.
(6) Vide o acórdão nº 318/99, de 26/5/1999, processo nº 855/98, o acórdão n.º 117/2002, de 23.04.2002, publicado no DR I-A, de 02.07.2002, e o Ac. n.º 96/2004, de 11.02.2004, publicado no DR, II, de 01.04.2004.
(7) In DR I Série, nº 138, de 19/6/1981 .
(8) De 03/05/1996 e assinada por Portugal, a que acresce que foi aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 64-A/2001, sendo ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 54-A/2001, e publicada no Diário da República I-A, n.º 241, 1º suplemento, de 17/10/2001, com início de vigência relativamente a Portugal a 1/7/2002.
(9) Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 31/01/2012, Proc. 3638/10.4TJCBR-G.C1, in www.dgsi.pt
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Guimarães, 17/12/2013
António Manuel Fernandes dos Santos
António Manuel Figueiredo de Almeida
Ana Cristina Oliveira Duarte