Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
711/10.2TBVCT-A.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: ÓNUS DA PROVA
DEVER DE COLABORAÇÃO DAS PARTES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: - É lícito à parte requerer ao abrigo do artº 528º e 535º do CPC a notificação da contraparte ou de terceiros para facultar documentos e informações para, através dos mesmos, poder infirmar a prova de factos cujo ónus da prova recai sobre a parte contrária.
- Para que uma diligência probatória possa ser deferida, não é condição que a parte que a requeira tenha o ónus da prova dos factos a que se reportarão os documentos/informações pretendidas; devendo ser deferidas desde que legalmente admissíveis, pertinentes e não tenham cariz dilatório.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção cível deste Tribunal:

I – Relatório
A. veio intentar acção declarativa sob a forma ordinária contra Companhia de Seguros…, S.A., emergente de acidente de viação.
Alega, em síntese, que no dia 27 de Dezembro de 2008 ocorreu um acidente de viação em que foi interveniente o veículo por si conduzido e o ciclomotor de matrícula ...-GM-..., sendo a culpa na produção do acidente de imputar exclusivamente ao condutor do ciclomotor. Sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais. A responsabilidade emergente de acidente de viação pelos danos causados pelo GM tinha sido transferida para a R.
Pede, consequentemente, que a R. seja condenada a pagar-lhe:
. a indemnização global líquida de 38.293,10, acrescida de juros de mora vincendos contados à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até integral pagamento;
. a indemnização ilíquida que vier a ser fixada em decisão ulterior ou que vier a ser liquidada em execução de sentença.
A R. contestou, alegando que o veículo conduzido pelo A. , tinha à data do acidente o valor de 2.000,00 pelo que a sua reparação pelos danos que sofreu não era viável. O A., mercê das lesões corporais sofridas e dos subsequentes tratamentos, encontra-se totalmente curado. Conclui pela improcedência da acção.
O A. replicou.
Foi elaborado despacho saneador contendo factos assentes e base instrutória.
A R. no requerimento de prova que apresentou no final da contestação veio, designadamente:
”d. REQUERER, nos termos do disposto nos artigos 519º - A e 535º do CPC, que o Autor junte cópia das declarações de rendimentos que apresentou junto da Administração fiscal relativamente ao ano de 2007 e 2008;
e. REQUER, nos termos do disposto nos artigos 519º-A e 535º do CPC que à Repartição das Finanças da área de residência do Autor, seja ordenada se digne informar nos autos o seguinte:
a. se o Autor se encontra colectado e participou o início da actividade comercial de reparador de veículos automóveis, referindo ainda a respectiva data, bem como a data da cessação de actividade, se for caso disso;
b. se o Autor, no âmbito dessa actividade comercial e lucrativa declarou rendimentos líquidos anuais de valor não inferior a EUR 6.000,00;
c. se o Autor declarou rendimentos provenientes da actividade agrícola, seja exercida em nome próprio, seja exercida por conta de outrem, indicando ainda, em caso afirmativo, o valor dos rendimentos declarados, e juntando cópia das respectivas declarações de rendimentos”.
Sobre tal requerimento recaiu o seguinte despacho:
”Indefiro o requerido sob as alíneas d) a g) de fls. 134 a 135, uma vez que não incumbe à Ré fazer prova sobre os factos que os invocados documentos se destinariam a provar, porque a Ré não alegou qualquer dificuldade na obtenção dos referidos documentos e porque os institutos probatórios a que se referem os artigos em que estriba a sua pretensão constituem meios excepcionais de prova, verificado que se encontre determinado circunstancialismo, e têm em vista facilitar a prova do facto a quem tem o ónus de o provar – o que não é o caso.”

É deste despacho que a R. interpôs o presente recurso, tendo apresentado as seguintes CONCLUSÕES:
“1. Na parte em que enuncia depender o pedido da Ré de circunstância que julga não estarem reunidas mas que, contudo, não enuncia, a decisão sob recurso é ininteligível e nula por falta de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 666.º n.º 3 do CPC.
2. Segundo o tribunal, a Ré apenas poderia requerer as provas indeferidas desde que fosse ónus seu produzir prova sobre tais factos.
3. Relativamente a uma parte - Autor ou Réu - que esteja onerada com a prova de um determinado facto, a contraparte exercerá o correspondente direito de defesa, seja procurando fazer prova do contrário, seja procurando apenas fazer contraprova da prova oferecida pela outra parte.
4. Quando a contraparte procura fazer prova do contrário, procura demonstrar que determinado facto que até aí se poderia considerar provado, não é verdadeiro.
5. Pelo contrário, quando a contraparte se limita a querer contraprovar determinado facto, a sua actividade probatória dirige-se unicamente a criar no espírito do julgador uma dúvida ou incerteza consistentes sobre factos que se poderiam considerar provados.
6. A Ré, ao requerer as provas indeferidas, procurava fazer prova do contrário, ou procurava pura e simplesmente contraprovar a prova do Autor (artigo 346.º do CC) relativamente aos números 108.º, 119.º, 120.º, 121.º, 122.º, 123.º e 124.º, todos da Base Instrutória.
7. A ”…contraprova não tem de seguir-se temporalmente à prova principal”, podendo até precedê-la. O seu fautor pretende então apenas precaver-se dos efeitos ou consequências da actividade probatória de quem se acha onerado com a prova dos factos.
8. Um dos mais elementares postulados do princípio da Igualdade das partes de que nos fala o artigo 3.º-A do CPC, é o de que o tribunal tem de assegurar às partes um estatuto de absoluta e substancial igualdade, designadamente no exercício de faculdades.
9. Tal significa, que sempre que o tribunal reconhece a uma das partes a faculdade de praticar determinado acto, ou solicitar determinada diligência, igual direito de praticar ou solicitar tem de ser reconhecido a quem se defende das investidas da outra parte, constituindo típicas e formais manifestações deste princípio os artigos 42.º n.º 2 e 512.º-A n.º 1 do CPC.
10. No âmbito do direito probatório, o princípio da igualdade assume particular relevo, porquanto é nesse domínio que mais sentido faz falar-se da igualdade de armas que são colocadas à disposição das partes, que em sede de discussão da matéria de facto, esgrimem, verdadeiramente, provas ou meios de prova.
11. O princípio da igualdade de armas visa assegurar na sua plenitude uma verdadeira igualdade entre as partes.
12. ”Corolários necessários do princípio da igualdade, quando conjugado com o direito fundamental de acesso aos tribunais, são os princípios do contraditório e da igualdade de armas, os quais assumem, no direito processual civil, particular relevância, se não mesmo a sua máxima expressão e sentido.
13. Na verdade, só com a plena consagração desses princípios processuais - que se não bastam com um conteúdo meramente formal, mas antes reclamam a verdadeira possibilidade de as partes disporem, em completa paridade, dos mesmos meios processuais, designadamente de produção de
prova, gozando assim de iguais possibilidades de reconhecimento das respectivas pretensões - se pode alcançar e realizar de forma efectiva quer o direito de acesso aos tribunais, quer uma verdadeira igualdade entre as partes.” - Ac. do TC n.º 497/96, de 20 de Março de 1996.
14. Assim sendo, impedir a Ré de utilizar quaisquer meios de prova processualmente previstos, apenas porque o ónus da prova sobre ela não recai, constitui uma formal violação do princípio da igualdade das partes, segundo o qual o tribunal deve assegurar a ambas as partes as mesmas condições, seja para exercer o seu direito à prova de um facto, seja para exercer o seu direito à contraprova ou à prova do contrário de determinado facto.
15. A decisão recorrida violou neste particular o disposto no artigo 3.º-A do CPC, o qual proíbe se impeça a parte, só porque não está onerada com o ónus da prova de um determinado facto, de quanto a ele requerer os meios de prova legalmente admissíveis, tendo em vista a prova do contrário ou a mera contraprova da prova do Autor.
16. As provas requeridas pela Ré reconduziam-se todas a informações de natureza fiscal, relativas à situação do contribuinte Autor perante a administração tributária.
17. Dispõe o artigo 64.º (Confidencialidade) da Lei Geral Tributária que ”Os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado.
18. Tal dever de sigilo ou reserva sobre a situação fiscal do contribuinte, só cessa mediante ”a) Autorização do contribuinte para a revelação da sua situação tributária; b) Cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes; c) Assistência mútua e cooperação da administração tributária com as administrações tributárias de outros países resultante de convenções internacionais a que o Estado Português esteja vinculado, sempre que estiver prevista reciprocidade; d) Colaboração com a justiça nos termos do Código de
Processo Civil e Código de Processo Penal.”
19. Ou seja, a impossibilidade de a Ré, só por si, sem o auxílio do tribunal, obter quaisquer dados relativos à situação tributária ou fiscal do Autor, decorre da própria lei.
20. Mesmo que a ré tivesse quaisquer elementos em seu poder, relativos à situação tributária do Autor, só com o seu consentimento os poderia utilizar no presente processo, a menos que o tribunal suprisse a falta da sua autorização.
21. O tribunal não está dependente das partes, no que respeita ao direito aplicável.
22. A Ré não tinha que invocar qualquer dificuldade na obtenção dos documentos em apreço, na medida em que a impossibilidade em lhes aceder é legal.”
O A. não contra-alegou.

Objecto do recurso:
Considerando que:
. o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso;
. nos recursos apreciam-se questões e não razões; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,
as questões a decidir são as seguintes:
. se o despacho recorrido é nulo;
. se deverão ser deferidas as diligências probatórias requeridas pela R.

II – Fundamentação
1ª questão:
Nos termos da alínea b) do nº 1 do artº 668º do CPC (aplicável aos despachos por força do disposto no nº 3 do artº 666º do CPC) é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Há nulidade quando falta em absoluto os fundamentos de facto e de direito da decisão, constituindo nulidade a falta de discriminação dos factos provados Conforme defendem José Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, vol 2º, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 669..
Ora, analisado o despacho recorrido, entendemos que o mesmo não enferma da nulidade apontada.
A recorrente alega que o despacho é nulo porque refere que as provas requeridas pela R. só deverão ser ordenadas em face de determinadas circunstâncias, mas não concretiza quais são essas circunstâncias.
Só a falta absoluta de fundamentação é que gera nulidade, o que não é manifestamente o caso. Mas no caso nem sequer se entende que ocorra deficiente fundamentação. O Mmº Juiz entende que não é de deferir o pretendido pela R. porque não recai sobre si o ónus da prova dos factos que as diligências pretendidas poderiam provar, pelo que não estando a R. onerada com esse ónus, não faria sentido, por desnecessário, que explicasse no seu despacho em que circunstancialismo em que a R. poderia requerer essas diligências de prova.

2ª questão:

Nos termos do disposto no art.º 513.º do CPC “a instrução tem por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova”. O direito à prova é um dos componentes do direito constitucionalmente consagrado, de acesso ao direito e aos tribunais para defesa de direitos e interesses legalmente protegidos ( art.º 20.º da CRP). Este direito faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados Conforme se defende no Ac. do TRP de 08/02/2011,proferido no processo n.º 6271/08, acessível em www.dgsi.pt., tanto para a prova dos factos principais da causa, como também para a prova dos factos instrumentais ou mesmo acessórios. E a utilização dos meios de prova não se destina apenas à prova dos factos que a parte tem o ónus de provar, como também para pôr em causa os factos que são desfavoráveis às suas pretensões que em princípio não terão o ónus de provar, o que constitui uma emanação do princípio do contraditório constante do artº 3.º do CPC Conforme se defende no Ac. do TRG, proferido no proc. nº 1673/10, no qual interviemos como adjunta e que não se encontra ainda publicado..
O exposto não significa que todas as diligências requeridas devam ser deferidas. Apenas o deverão ser desde que legalmente admissíveis, pertinentes e não tenham cariz dilatório.
A R. requereu a notificação do A. para apresentar as declarações de rendimentos que entregou na Administração fiscal relativas aos anos de 2007 e 2008.
Dispõe o nº 1 do artº 528º do CPC que “quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requererá que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento a parte identificará quanto possível o documento e especificará os factos que com ele quer provar”. E nos termos do nº 2 do mesmo preceito, “se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, será ordenada a notificação”.
O preceituado na norma referida constitui manifestação do princípio geral da cooperação constante do art.º 519.º do CPC. Se a parte requerente não pode obter, por si, o documento, haverá que apreciar se o documento e/ou a informação que pretende obter com a diligência pretendida são idóneos para a prova de factos de que o detentor tem o ónus da prova, ou que possam infirmar a prova de factos de que o detentor do documento tem o ónus Conforme se defende no Ac. do TRG já citado..

Ao contrário do que defende o Mmº juiz da 1ª instância e com o devido respeito pela opinião contrária, entendemos que não é de relevar a quem cabe o ónus da prova dos factos que estão em causa. O que há que apreciar é se o documento que a parte pretende obter tem interesse para a decisão da causa como, aliás, se refere no art.º 528.º n.º 2 do CPC, seja para provar factos que deve provar, seja para se provar o contrário do alegado pela parte contrária ou apenas para lançar a dúvida sobre a veracidade dos factos alegados pela contraparte.
De acordo com o disposto no nº 1 do artº 535º do CPC incumbe ao tribunal por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objectos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade.

No caso dos autos a R. no requerimento de prova que apresentou com a sua contestação não refere logo quais os factos que pretende provar com as diligências probatórias que requer. Na conclusão 6ª do seu recurso refere-se aos artºs 108º, 119º, 120º, 121º, 122º, 123º e 124º da base instrutória. Os referidos artigos têm a seguinte redacção:
108º
“E (o A.) auferia o rendimento do seu trabalho de:
.a) ordenado-base euros 426,00
.b) subsídio de alimentação euros 92,00
Total euros 518,00?
119º
O A. presta, também, serviços para terceiras pessoas, no sector da agricultura, com um tractor agrícola, a lavrar terrenos e efectuar transportes de artigos agrícolas e florestais?
120º
Com o que cobra a quantia de euros 20,00, por cada hora de trabalho?
121º
O A., na sua casa de habitação, possui uma pequena oficina de automóveis?
122º
Onde faz biscates em reparação de automóveis de pessoas amigas, familiares e outros clientes?
123º
O que tudo lhe proporciona um rendimento do seu trabalho de, pelo menos, euros 500,00, por mês?
124º
Pelo que o rendimento global do trabalho auferido pelo Autor, com referência à data da deflagração do acidente, ascendia ao montante de (euros 518,00 + 300,00 euros + 500,00 euros) euros 1.318,00, mensais?”

Ora, tendo em conta o teor dos artigos que antecedem, os factos que a R. pretende contraditar têm inegável interesse para a decisão da causa, são pertinentes para o esclarecimento da verdade e as diligências requeridas não se afiguram ser dilatórias.
Os documentos pretendidos pela R. não podem ser obtidos por si, sendo expectável que o A. tenha na sua posse cópias das declarações de rendimentos que entregou à Administração fiscal. Também as informações que a R. pretende que a Administração fiscal preste não podem por aquela ser obtidas directamente, pelo que devem ser ordenadas as diligências probatórias requeridas, limitadas contudo ao ano de 2008, ano em que ocorreu o acidente e em que os rendimentos alegados terão sido auferidos.

Sumário:
- É lícito à parte requerer ao abrigo do artº 528º e 535º do CPC a notificação da contraparte ou de terceiros para facultar documentos e informações para, através dos mesmos, poder infirmar a prova de factos cujo ónus da prova recai sobre a parte contrária.
- Para que uma diligência probatória possa ser deferida, não é condição que a parte que a requeira tenha o ónus da prova dos factos a que se reportarão os documentos/informações pretendidas; devendo ser deferidas desde que legalmente admissíveis, pertinentes e não tenham cariz dilatório.

III – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que ordene a realização das diligências probatórias requeridas pela R. nas alíneas d) e e) do seu requerimento de prova, relativas ao ano de 2008.

Custas por ambas as partes, na proporção de 75% para o A. e 25% para a R.
Notifique.
Guimarães, 15 de Setembro de 2011
Helena Melo
Amílcar Andrade
José Rainho