Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7562/15.6T8VNF.G1
Relator: LINA CASTRO BAPTISTA
Descritores: JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
TRIBUNAL COMPETENTE
RESPONSABILIDADE CIVIL
AUTO-ESTRADA
CONCESSIONÁRIO DE AUTO-ESTRADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: À luz da legislação vigente, a jurisdição administrativa é competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público ou de direito privado, desde que atuem no exercício de prerrogativas de poder público ou sujeitos às disposições ou princípios de direito administrativo.
Decisão Texto Integral: SUMÁRIO

À luz da legislação vigente, a jurisdição administrativa é competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público ou de direito privado, desde que atuem no exercício de prerrogativas de poder público ou sujeitos às disposições ou princípios de direito administrativo.

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Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I—RELATÓRIO

A, residente em Vila do Conde, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “A, S.A.”, sociedade com sede em Matosinhos, pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a indemnização global de € 5 396,04, acrescida de juros de mora vincendos, contados à taxa legal de 4 % ao ano, desde a data da citação até efectivo pagamento.
Alega, em síntese, que, no dia 29 de junho de 2014, pelas 02h 00m, ocorreu um acidente de viação na Auto Estrada A7, ao quilómetro número 28,400, na freguesia de Castelões, concelho de Vila Nova de Famalicão, em que foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula n.º FF, pertencente à Autora e por ela conduzido, e uma raposa.
Expõe que, seguindo no sentido Nascente-Poente, pelo corredor de tráfego situado mais à direita da pista de tráfego da Auto Estrada A7, a uma velocidade de cerca de 90 Km/hora e com os seus faróis frontais comutados na posição de médios, embateu numa raposa de médio porte, a qual se colocou, aos saltos e aos corcovos, à frente do veículo por si tripulado, cortando a sua linha de trânsito.
Diz que, como consequência direta e necessária do acidente, resultaram danos vários no veículo automóvel referido, no valor global de € 1 823,64; o veículo sofreu desvalorização no seu valor real, no valor de pelo menos € 750,00; ela sofreu danos em consequência da forçada paralisação do veículo, no valor de € 200,00; teve despesas várias, no valor de € 56,00 e sofreu danos não patrimoniais, no valor de 2 500,00.
Afirma que no local da deflagração do acidente, entre o nível do solo e o primeiro arame que constitui a malha metálica, situada na margem direita da faixa de rodagem, existia um buraco, com 1,00 metros de comprimento e 0,40 metros de altura. Bem como que a Ré nunca fez nada para fechar o supra-referido buraco, existente na rede de vedação.
Defende que o acidente de trânsito ficou a dever-se a culpa exclusiva da Ré, a qual agiu com inconsideração e negligência.
A Ré veio contestar, impugnando a generalidade da matéria de facto alegada na Petição Inicial e suscitando a intervenção principal provocada de “Companhia de Seguros T”.
Remata pedindo que a presente ação seja julgada não provada e improcedente, com a sua absolvição do pedido.
Por despacho de fls. 69 e ss., a Instância Local Cível de Vila Nova de Famalicão julgou-se incompetente em razão da matéria para decidir o litígio, declarando serem competente os Tribunais Administrativos e Fiscais, absolvendo o Réu da instância.
Inconformada com esta decisão, a Autora interpôs recurso, terminando com as seguintes
CONCLUSÕES
1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos presentes autos, que julgou Incompetentes os Tribunais Comuns, para conhecer do objecto da presente acção, que julgou competentes os Tribunais Administrativos, para conhecer do objecto da presente acção e que absolveu a Ré A, S.A. da Instância;
2. A Recorrente entende que é a jurisdição comum a competente para se pronunciar sobre o mérito dos presentes autos;
3. A relação material controvertida opõe duas (2) pessoas colectivas de direito privado - uma sendo pessoa individual e uma sociedade comercial sociedade anónima;
4. Pese embora a Ré A, S.A. actue ao abrigo de com contrato de concessão, certo é que a actuação/omissão da referida Ré, nos presentes autos, não se caracterizou pelo exercício de poderes de autoridade, no sentido que é próprio da função administrativa;
5. No caso dos presentes autos está apenas em causa um mero acidente de viação que envolveu um veículo automóvel e um animal - raposa - a irromper na faixa de rodagem da Auto-Estrada;
6. Neste caso, a Ré A, S.A. não estava investida de qualquer jus imperii - direito público;
7. Pelo que a jurisdição competente para apreciar o mérito da acção não poderá deixar de ser a comum - Tribunais Comuns;
8. A Ré A, S.A. é uma sociedade comercial de direito privado, que foi constituída com um único objetivo: a obtenção de lucros no final de cada exercício;
9. A actuação/omissão da Ré A, S.A. não se caracteriza, assim, pelos parâmetros próprios da Administração Pública - prossecução do interesse público, mas tão-somente e apenas, pelos interesses económicos e egoísticos dos seus accionistas, que não têm como pano de fundo a prossecução de um serviço público, mas antes a de reduzir encargos e atingir objectivos mínimos com o menor número de encargos;
10. Aqui chegados, é manifesto que não existe, nem no plano material, nem no plano teleológico, qualquer razão de fundo que justifique a atribuição da Jurisdição Administrativa da Competência para se pronunciar e para decidir sobre o objecto e mérito dos presentes autos;
11. Precisamente, por que se está no plano de atuação jurídico-privatística e não no plano de atuação jurídico-administrativa;
12. A norma do artigo 4.°, n.º 1, alínea i) do E.T.A.F. não tem aplicação no caso dos presentes autos;
13. Pelo que, ao decidir de forma diversa, mal andou o tribunal de primeira instância - Instância Local de Vila Nova de Famalicão, comarca de BRAGA;
14. Impõe-se, assim, a prolação de douto acórdão que revogue a sentença de primeira instância;
15. E, em sua substituição, que declare que os tribunais comuns ­nomeadamente, a Instância Local de Vila Nova de Famalicão, comarca de BRAGA - são os competentes para conhecer do objecto da presente acção;
16. A sentença recorrida, salvo o devido respeito, violou as normas do artigo 38.°, da Lei de Organização do Sistema Judiciário; dos artigos 211.º, n.º 1 e 212.°, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa; do artigo 40.º, n.º, 1, da LOSJ; dos artigos 64.°, 96.°, al. a), 97.°, n.º 1, 278.°, n.º, 1, alínea a), 576.°, n.s. 1 e 2 e 578.°, do Código de Processo Civil; do artigo 1.°, n.º 5, da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro e do artigo 4.°, n.º 1, alínea i), do E.T.A.F.;
17. Deve, pois, ser revogada a sentença recorrida e, em sua substituição, deve ser proferido douto acórdão, que julgue competente o tribunal comum - no caso em apreço, a Instância Local de Vila nova de Famalicão, Secção Cível, J1, comarca de BRAGA - para conhecer do objecto da presente acção.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O presente recurso foi admitido como recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II—DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A questão a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, é a da competência material da Instância Central Cível de Vila Nova de Famalicão para apreciar e decidir a presente causa.

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III – DIREITO
A competência é a medida de jurisdição de um tribunal e a infração das regras de competência em razão da matéria, da hierarquia ou de competência internacional gera incompetência absoluta (Cf. art. 64.º e ss. do Código de Processo Civil Doravante designado apenas por C.P.Civil.).
São corolários do poder administrativo a independência da Administração perante a Justiça e a existência de um foro administrativo próprio. Daí surge, como consequência, o facto de os tribunais comuns serem incompetentes para se pronunciarem sobre questões administrativas e o facto de se entregar essa competência contenciosa aos tribunais administrativos.
É pacífico que a competência, em razão da matéria, se deve aferir face à relação jurídica que se discuta na ação, tal como desenhada pelo autor.
Nos presentes autos, a Autora invoca a ocorrência de um conjunto de danos decorrentes de um embate numa raposa de médio porte enquanto transitava na Auto-Estrada A7, alegadamente por culpa exclusiva da Ré, por ter agido com inconsideração e negligência.
A Ré “A, S.A.” é uma sociedade anónima de capitais privados que, nos termos alegados pela Autora, e aceites pela Ré, é concessionária da Auto-Estrada A7, por força de contrato de concessão (de obra pública) celebrado com o Estado, ao qual se aplica o regime do Decreto-lei n.º 248-A/99, de 06/07, alterado pelo Decreto-lei n.º 44-E/2010, de 5/5, tendo a concessão por objeto a conceção, projeto, construção, financiamento, exploração e conservação, em regime de portagem, de lanços de auto-estradas e conjuntos viários do norte de Portugal.
A concessão de obra pública é estabelecida em regime de exclusivo relativamente às auto-estradas que integram o seu objeto (Base III) e é também de domínio público, pois as zonas das auto-estradas e dos conjuntos viários a elas associados e que constituem o estabelecimento físico da concessão integram o domínio público do concedente (Base VII).
Estamos, portanto, em face de uma atuação de uma pessoa coletiva de direito privado, mas agindo ao abrigo de prorrogativas e disposições legais de direito público, alegadamente geradora de danos patrimoniais e não patrimoniais, em sede de responsabilidade extracontratual.
Ora, o art. 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002 Com as alterações decorrentes das Leis n.º 4-A/2003, de 19/02, 107-D/2003, de 31/12, 1/2008, de 14/01, 2/2008, de 14/01, 26/2008, de 27/06, 52/2008, de 28/08, 59/2008, de 11/09, 166/2009, de 31/07, 55-A/2010, de 31/12 e 20/2012, de 14/05., de 19 de fevereiro, determinava, na versão dada pela Lei n.º 4-A/2003 Redação vigente à data do acidente dos autos., de 19/02, que "Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídico administrativas e fiscais.” Por seu turno, o art. 4.º, n. 1, alínea i), do mesmo diploma legal dispunha, na redação da Lei n.º 59/2008, de 11/09, que "Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto: (...) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público.”
Interpreta-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/06/2009 Proferido no Processo n.º 1186/07.9TBVNO.C1.S1, tendo como Relator Pereira da Silva e disponível em www.dgsi.pt no dia de hoje. que aqui se incluem os casos de responsabilidade extracontratual por atos de gestão pública e/ou por atos de gestão privada, praticados no exercício da função pública.
O âmbito de aplicação desta disposição legal ficou clarificado a partir da entrada em vigor da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro Com as alterações decorrentes da Lei n.º 31/2008, de 17/07., relativa à Responsabilidade Civil do Estado e demais Entidades Públicas.
Tal como se explica no Ac. do S.T.J. de 14/01/2014 Proferido no Processo n.º 871/05.4TBMFRE.L1.S1, tendo como Relatora Maria Clara Sottomayor e disponível em www.dgsi.pt no dia de hoje., "Resulta desta nova lei, que a jurisdição administrativa pode conhecer, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, de litígios entre particulares. Necessário será que as ações ou omissões geradoras de responsabilidade sejam levadas a cabo «no exercício de prerrogativas de poder público», ou que sejam «regulados por disposições ou princípios de direito administrativo», isto é, desde que as pessoas coletivas de direito privado atuem em moldes de direito público deve aplicar-se às suas ações e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado. (...) Efetivamente, nos termos do artigo 1.º, n.° 5, da Lei n.° 67/2007, são dois os fatores determinativos do conceito de atividade administrativa: 1- o exercício de prerrogativas de poder público, o que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade; 2 - respeitar a atividades que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, o que significa que os respetivos exercícios deverão ser reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.”
A conclusão é, portanto, a de que, à luz da legislação vigente, a jurisdição administrativa é competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público ou de direito privado, desde que atuem no exercício de prerrogativas de poder público ou regulados por disposições ou princípios de direito administrativo.
Aliás, tem sido esta a posição que vem sendo seguida a respeito desta questão concreta nesta Relação de Guimarães.
Cita-se, a título meramente exemplificativo, a decisão proferida no Processo n.º 119/14.0TBMDL-A.G1 Tendo como Relator António Figueiredo de Almeida e disponível em www.dgsi.pt no dia de hoje., do seguinte teor: “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. Compete aos tribunais administrativos a apreciação de litígios que tenham por objeto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público, importando verificar, apenas e tão só, se a mesma está, ou não, sujeita ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas. A submissão de entidades privadas ao regime de responsabilidade civil da administração verifica-se quanto às entidades concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo, que poderá ser um contrato de concessão de obras públicas ou de serviço público. A entidade privada concessionária de uma autoestrada, é notoriamente chamada a colaborar com a Administração na execução de uma tarefa administrativa de gestão, através de um contrato administrativo, pelo que as ações e omissões da ré concessionária se devem integrar e ser reguladas por disposições e princípios de direito administrativo.”
Bem como a decisão do Acórdão de 04/12/14 Proferido no Processo n.º 808/14.0TBFAF.G1, tendo por Relatora Maria Luísa Ramos e disponível em www.dgsi.pt no dia de hoje., do seguinte teor: “É da competência dos Tribunais Administrativos, em razão da matéria, a ação declarativa de condenação decorrente de responsabilidade civil da Ré concessionária de auto-estrada, por alegada negligência na vigilância de um troço de auto-Estrada, cuja gestão lhe estava concessionada pela Administração pública.”
Esta tem sido igualmente a tese decidida nos próprios Tribunais Administrativos, citando-se, uma vez mais a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 17/04/2015 Proferido no Processo n.º 02010/13.9BEBRG, tendo como Relatora Alexandra Alendouro e disponível em www.dgsi.pt no dia de hoje., onde - da mesma forma – se decidiu que “Os tribunais administrativos são materialmente competentes para julgar uma ação de responsabilidade civil extracontratual de uma sociedade anónima concessionária de auto-estrada, emergente de acidente de viação ocorrido em faixa de rodagem daquela, envolvendo um veículo e dois objetos (ferros), com fundamento na omissão de cumprimento de deveres de manutenção, vigilância e segurança decorrentes do inerente contrato de concessão celebrado entre a sociedade concessionária e o Estado, no quadro do DL n.º 248-A/99, de 6/7.”
No caso dos autos, e tal como se refere na decisão recorrida, “Ora, as entidades privadas concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (que poderá ser de concessão de obras públicas ou de serviço público), têm a sua atividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo.
Na verdade, a construção de uma autoestrada, a sua exploração, manutenção, vigilância e segurança, nomeadamente do tráfego, são tarefas próprias da administração do Estado. A concessão dessa obras e serviços públicos a uma entidade privada não significa que as respetivas atividades percam a sua natureza pública administrativa, pois o Estado não pode abrir mão dessa responsabilidade. Antes a outorga, por determinado período, a terceiro da esfera privada, a quem permite obter lucros económicos (através, nomeadamente, das portagens, estas também regulamentadas pelo Estado), mas regulando-a e fiscalizando-a, ao abrigo de normas jurídicas de natureza administrativa que ficam inscritas no contrato de concessão.”
A análise conjugada dos preceitos legais invocados, à luz da interpretação feita, leva-nos a concluir que o tribunal competente para a tramitação e decisão dos presentes autos será o Tribunal Administrativo territorialmente competente
Consequentemente, verifica-se uma infração das regras de competência material, com a consequente incompetência absoluta da Instância Local Cível de Vila Nova de Famalicão, Comarca de Braga, nos precisos termos defendidos na decisão recorrida.
A conclusão final é, portanto, a da total improcedência do recurso.
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IV—DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, e consequentemente, em confirmar a decisão dos autos.

Custas pela Apelante (art. 527.º do C.P.Civil).

Notifique e registe.
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(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)

Guimarães, 26 de janeiro de 2017

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(Lina Castro Baptista)


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(Maria de Fátima Almeida Andrade)


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(Alexandra Maria Rolim Mendes)