Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
706/12.1GCBRG.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: PERDA A FAVOR DO ESTADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I – Não é requisito da declaração de perdimento de objeto a favor do Estado que o mesmo tenha uma relação direta com o crime imputado ao arguido.
II – Devem ser declaradas perdidas a favor do Estado duas espingardas e respetivas munições, apreendidas ao arguido, provando-se que fez uso de uma delas para perpetrar uma ameaça de morte de um seu vizinho, com quem mantinha e ainda mantém uma relação de inimizade e de intenso conflito.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

I – RELATÓRIO

1. Nestes autos de processo comum n.º 706/12.1GCBRG.G1 do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga e após a realização da audiência de julgamento, o Exmº juiz proferiu a sentença que concluiu com o seguinte dispositivo (transcrição):

Pelo exposto decide-se:
1- Parte Criminal
1- Condenar o arguido João G... pela prática de um crime de ameaça agravado p. e p. pelos arts 153º nº1 e 155º nº1 a) do CP na pena de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos).
2- Condenar o arguido João G... pela prática de um crime de injúria p. e p. pelo art° 181º nº 1 CP na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos).
3- Em cúmulo jurídico das penas referidas em 1 e 2, condenar o arguido João G... na pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), num total de € 780,00 (setecentos e oitenta euros).
4- Nos termos do artº 109º/1 CP, declaram-se perdidos a favor do Estado as espingardas de caça e os cartuchos apreendidos à ordem dos presentes autos, os quais deverão ficar depositadas à guarda da PSP, que promoverá o seu destino (cfr. artº 78º da Lei nº 5/2006, de 23/02) (…)”.
2. Parte Cível
a) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante Artur P... a fls 82 e ss parcialmente procedente e, em consequência, condenar o demandado João G... a pagar ao demandante a quantia de €400,00 (quatrocentos euros).
b) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante Artur P... a fls 93 e ss parcialmente procedente e, em consequência, condenar o demandado João G... a pagar ao demandante a quantia de €600,00 (seiscentos euros), acrescida de juros de mora à taxa de 4%, contados desde a data da presente sentença até integral pagamento” (…)

2. Inconformado, o arguido João G... interpôs recurso, concluindo que a sentença deve ser revogada e, em consequência, absolver-se o arguido dos crimes de que vem acusado bem como do pedido de indemnização contra ele formulado e revogando-se ainda a declaração de perdimento das armas e cartuchos a favor do Estado.

O Ministério Público, representado pela magistrada no Tribunal Judicial de Braga, apresentou resposta concluindo que o recurso não merece provimento.

O assistente, Artur P..., formulou igualmente resposta concluindo que a sentença recorrida deve ser confirmada.

3. Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo que o recurso não merece provimento. Não houve resposta ao parecer.

Recolhidos os vistos do juiz presidente da secção e do juiz adjunto e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

4. Questão prévia

Da admissibilidade do recurso em matéria cível

Vem o arguido-demandado recorrer, além do mais, da condenação no pagamento ao demandante Artur P... a quantia de €400,00 (quatrocentos euros) e quantia de €600,00 (seiscentos euros), acrescidas de juros de mora à taxa de 4%, contados desde a data da presente sentença até integral pagamento.

Prescreve o artigo 400.º n.º 2 do Código de Processo Penal que o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada e estabelece o artigo 24.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro) que em matéria cível a alçada dos tribunais de 1ª instância é de € 5000 (cinco mil euros).

A quantia peticionada inicialmente já se continha claramente na alçada do tribunal recorrido e o valor que veio a ser fixado na sentença é manifestamente inferior a metade da alçada do tribunal de primeira instância, pelo que a decisão neste âmbito é irrecorrível.

O recurso não deveria ter sido admitido nesta parte e agora não pode prosseguir.

Sendo inquestionável que anterior decisão neste âmbito não constitui caso julgado formal, nem vincula o tribunal superior (artigo 414.º n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal), impõe-se a rejeição liminar do recurso na parte que se restringe à acção civil enxertada.

5. Questões a decidir

Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deve sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

Podemos sintetizar as questões a apreciar nos seguintes termos, pela ordem lógica de conhecimento: a) Erro de julgamento na decisão da matéria de facto; b) Medida da pena - razão diária da multa; c) Perdimento a favor do Estado das armas e munições.

6. Matéria de facto

Para a fundamentação da presente decisão, torna-se imprescindível transcrever parcialmente a sentença objecto de recurso.

O tribunal recorrido julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição):

1. No dia 30 de Julho de 2012, cerca das 15h45m, o arguido João G... e o seu vizinho Artur P... encontravam-se nas respectivas propriedades, as quais confrontam nas suas extremidades, sitas em Adaúfe, nesta comarca de Braga.

2. Nesse dia, o arguido pedira à sua entidade patronal para sair mais cedo do trabalho, pois a esposa tinha-lhe telefonado, dando-lhe conta que o painel solar estava partido.
3. Ao aperceber-se da presença de Artur P..., com quem se encontrava e encontra desavindo, o arguido, por suspeitar que fora ele quem lhe partira o referido painel solar, subiu o muro de vedação e, em tom alto e de forma exaltada, disse-lhe: “Ó filho da puta, ó cabrão, foste tu que partiste o painel, vou-te matar!”
4. Então, o assistente retorquiu: “Se me quiseres matar, mata-me.”
5. Tendo Artur P... permanecido no local onde se encontrava, o arguido João G... dirigiu-se ao interior da sua habitação e, instantes depois, regressou, munido com uma espingarda de caça, calibre 12 mm, cano de alma lisa com 71 cm de comprimento de que é proprietário.
6. Segurando a arma com as mãos, o arguido apontou-a a Artur P..., que se encontrava a curta distância, dizendo, em tom sério: “ Tenho aqui vitaminas para te matar! Estás a ver? Esta é para ti!”
7. Perante a natureza das palavras proferidas e as potencialidades letais que atribuiu à arma que lhe foi apontada, Artur P...sentiu algum temor que, em data posterior, o arguido viesse a atingir a sua integridade física e vida, concretizando o mal anunciado, o que lhe causou alguma intranquilidade e desassossego, totalmente dissipados quando soube que as espingardas de caça de que o mesmo era portador foram apreendidas pela GNR.
8. Em consequência dos insultos de que foi vítima, o assistente Artur P... sentiu-se envergonhado e humilhado, tanto mais que os insultos ocorreram na presença do seu filho menor, à data com 6 anos de idade, e do seu amigo José F....
9. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as expressões por si proferidas, acompanhadas do gesto de exibir e apontar uma arma de fogo, eram adequadas a provocar medo ou inquietação e a prejudicar a liberdade de determinação de Artur P... e quis fazê-lo.
10. Pretendeu ainda atingir o bom nome, consideração, a honra e o carácter do assistente.
11. Sabia que as suas condutas eram proibidas por lei.
Mais se provou:
12. O arguido João G... não tem antecedentes criminais
13. É operador de máquinas, auferindo mensalmente cerca de €720,00.
14. É casado.
15. A esposa é doméstica, não auferindo qualquer rendimento.
16. Tem dois filhos (de 20 e 14 anos de idade), a cargo.
17. Vive em casa própria.
18. O assistente Artur P... é cortador de carnes por conta própria, auferindo mensalmente cerca de €1 000,00.
19. É casado.
20. A esposa ajuda-o, não auferindo qualquer salário.
21. Tem dois filhos (de 7 e 4 anos de idade), a cargo.
22. Vive em casa própria, encontrando-se a amortizar um empréstimo, pagando mensalmente cerca de €400,00.”

Quanto à matéria de facto não provada, consta na sentença recorrida:

Não se provou que os insultos de que o assistente Artur P... foi alvo tivessem sido escutados no parque de estacionamento situado no exterior do estabelecimento comercial -talho- de que é proprietário.

Não se provou que o assistente seja uma pessoa considerada no meio social em que vive e reputada como uma pessoa séria, trabalhadora e recatada, por todos tida como de porte moral e social irrepreensível.
Não se provou que, desde a data dos factos, o assistente tenha deixado de frequentar os locais da sua residência que confrontam com a do arguido, de forma a evitar conflitos semelhantes.
Não se provou que, em consequência do comportamento do arguido, o assistente tivesse ficado deprimido ou num estado de grande ansiedade que o tivesse impedido de dormir com o repouso adequado.
Não se provou que o assistente Artur P..., actualmente, ainda se sinta humilhado, envergonhado, inquieto e receoso em resultado do comportamento do arguido João G....

Na motivação da decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto, consta o seguinte:

A convicção do tribunal (de um qualquer tribunal) é formada dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que transpareçam em audiência das declarações e depoimentos.
O arguido João G... negou os factos de que estava acusado, reconhecendo, porém, que estava e está de relações cortadas com o assistente, bem como a existência de uma pequena discussão entre ambos no dia 30 de Julho de 2012, cerca das 15h45m (e não às 15h30m), no local a que se reportam os autos.
Na sua versão, alertado pela sua esposa que o informara que o painel solar estava partido, saiu mais cedo do local de trabalho e dirigiu-se à sua residência, tendo questionado o assistente sobre se estava contente com o que tinha feito. Acrescentou que o assistente riu-se e disse-lhe “não tens prova que fui eu!”
Então, limitou-se a entrar em casa, telefonou à GNR e pouco depois deslocou-se ao posto para apresentar queixa.
Admitiu que as armas que lhe vieram a ser apreendidas pertencem-lhe.
A verdade é que a versão do arguido viria a ser desmentida pela restante prova produzida em sede de audiência de julgamento.
Assim, a convicção do Tribunal quanto aos elementos constitutivos dos crimes e ao modo como foram cometidos baseou-se, antes de mais, nas declarações do próprio assistente Artur P..., que, não obstante ser parte interessada, descreveu, de forma serena e credível, os insultos e as ameaças de que foi alvo, as circunstâncias que rodearam a prática dos mesmos e as consequências que daí advieram, salientando que, desde a data dos factos até à apreensão das armas do arguido, sentiu receio, para além de se ter sentido ofendido pelas expressões insultuosas que lhe foram dirigidas, tudo em consonância com o que veio a ser dado como provado.
Em segundo lugar, levou-se em conta o depoimento da testemunha José F..., amigo do Artur P..., que o acompanhava à data dos factos, o qual, de forma igualmente serena, circunstanciada e segura, descreveu as ameaças e insultos que o arguido dirigiu ao assistente, de forma coincidente com as declarações deste último (as divergências são de pormenor e perfeitamente compreensíveis atento o tempo já decorrido).
Após salientar que o filho menor do assistente presenciou o ocorrido, frisou que o Artur P... ficou nervoso e amedrontado, pois comentava consigo que se “ele puxou da arma uma vez, podia puxar outra vez.”
A testemunha Manuel G..., agente da GNR, limitou-se a confirmar que apreendeu ao arguido duas espingardas de caça na sequência de uma busca efectuada à sua residência, as quais se encontravam no sótão.
Em terceiro lugar, baseou-se o tribunal no depoimento sincero e seguro da testemunha Carla S..., esposa do assistente, a qual, alertada pelos gritos do seu filho de 6 anos de idade (“mãe, mãe, anda cá depressa!”), viu ainda o arguido com uma arma na mão e o filho deste a tentar acalmá-lo.
Salientou ainda que o seu marido sentiu-se amedrontado e nervoso, embora, depois de saber que as armas do arguido foram apreendidas, tivesse ficado mais tranquilo, para além de ter ficado envergonhado.
Quanto às consequências do comportamento do arguido na pessoa do assistente, baseou-se ainda o tribunal nas mais elementares regras de experiência comum para dar como provado que o assistente ter-se-á sentido humilhado, envergonhado, amedrontado e inquieto (note-se, de resto, que, ao mesmo tempo que ameaçava de morte o assistente, o arguido apontou-lhe uma arma de fogo).
Importa, contudo, precisar, neste particular, dois aspectos.
Em primeiro lugar, a resposta do assistente às ameaças do arguido poderia inculcar a ideia de que o mesmo não teria sentido medo ou receio. Na verdade, pode dizer-se que ele respondeu ao arguido de forma aparentemente corajosa, utilizando expressões do género “Se me quiseres matar, mata-me” e outras similares. Não se deve dar demasiada importância ou significado a tal atitude, pois o que fundamentalmente o assistente não quis foi “dar parte de fraco”. Concluir, a partir de tal comportamento, que o assistente não sentiu medo ou receio é uma extrapolação que as regras de experiência comum não consentem, já que dificilmente alguém não sente medo quando lhe é apontada uma arma de fogo.
Em segundo lugar, não obstante o que acabou de se sublinhar, também é verdade que se notou em alguns depoimentos, e muito particularmente no depoimento da esposa do assistente, um empolamento do receio sentido pelo ofendido, tendo, nesta parte, o tribunal considerado inverosímil, por exemplo, que o assistente se tivesse sentido deprimido ou tivesse dificuldades em dormir.
A testemunha António S..., patrão do arguido, veio a tribunal explicar que, no dia a que se reportam os autos, o arguido terá pedido para sair mais cedo do posto de trabalho, o que fez às 15h30m, conforme confirmou no relógio de ponto, pelo que não poderia estar em casa a essa hora, como consta das acusações e é frisado por certas testemunhas. Esta discrepância quanto à hora da prática dos factos não tem qualquer relevância, quer porque o próprio arguido admite que, no dia a que se reportam os autos, teve uma conversa, no mínimo desagradável, com o ofendido, apenas a situando por volta das 15h45m (como de resto foi dado como provado) e não às 15h30, quer porque estamos a falar de uma diferença de poucos minutos.
As testemunhas José S..., Maria A... e Cláudio S... nada presenciaram, limitando-se a tecer considerações demasiado vagas e genéricas sobre a personalidade do arguido (de que é exemplo o uso de expressões hiperbólicas do género “é uma pessoa fantástica”, “espectacular”) por contraposição à personalidade do assistente (descrito como uma “pessoa fraca”, “que age pelas costas” e “utiliza uma linguagem porca”)
A mera audição destes depoimentos e o tipo de expressões utilizadas são suficientes para arrasar a sua credibilidade, sendo manifesta a grande animosidade das referidas testemunhas para com o assistente.
Por último, os depoimentos das testemunhas Maria G... (esposa do arguido) e João G... (filho do arguido), que negaram que o arguido tenha insultado ou ameaçado o assistente, não foram suficientes para infirmar a forte impressão deixada pelos depoimentos das testemunhas de acusação, quer porque foi demasiado evidente a sua preocupação em ilibarem-no a todo o custo, quer porque tais depoimentos são contraditórios entre si.
Na verdade, enquanto a esposa do arguido aludiu a uma discussão entre ela e o assistente no dia 30/07/2012, em momento anterior à chegada do marido (no decurso da qual, aludindo ao painel solar partido, o assistente lhe terá dito “Com que então fodi-te a puta da vida!”), o filho do arguido garantiu, por diversas vezes, que esteve toda a manhã em casa com a mãe, que não existiu qualquer discussão nem sequer troca de palavras entre ela e o assistente durante a manhã ou durante a tarde desse dia e que só se aperceberam que o painel solar estava partido da parte da tarde.
Por outro lado, enquanto a esposa do arguido disse que foi o seu filho que telefonou ao arguido a relatar-lhe o sucedido, o filho assegurou que foi a mãe quem lhe telefonou.
Para além das discrepâncias detectadas nestes depoimentos, deve ainda salientar-se que os mesmos, tal como o depoimento do arguido, contrariam as mais elementares regras de experiência comum.
Na verdade, de acordo com as declarações do arguido, da esposa e do filho, aquele terá questionado o ofendido se estava contente com o que tinha feito (reportando-se ao painel solar), o assistente ter-se-á rido e o arguido “virou costas e foi à vida dele”, sendo que “houve uma troca de impressões com o Sr. Artur, mas tudo baseado na calma.”
Ora, isto não só não está de acordo com as mais elementares regras de experiência comum como não faz qualquer espécie de sentido.
Na verdade, o arguido estaria tão calmo, tão calmo, que, ao lhe ligarem a contarem-lhe o sucedido, de imediato abandonou o seu local de trabalho, ainda com a roupa de trabalho (como também foi sublinhado) e deslocou-se à sua residência (não se percebe tamanha urgência a não ser que fosse para confrontar o ofendido com o facto de o painel solar estar partido, como de resto fez). Ainda de acordo com tal versão, ao ser confrontado com os danos no painel solar, o assistente ter-se-á rido, o que certamente exacerbou ainda mais os ânimos, que já estariam bastante exaltados. Perante isto, o arguido pura e simplesmente nada diz, vira costas e vai-se embora?...
A isto acresce que a arma com que presumivelmente o arguido terá ameaçado o ofendido veio efectivamente a ser encontrada e apreendida, o que também inculca a ideia que o assistente não inventou aquilo que relatou.
Foram ainda positivamente valorados pelo tribunal o auto de busca e apreensão de fls 41 e 42 e os autos de exame directo de fls 44 a 46.
O arguido juntou aos autos as fotografias de fls 146 e ss para provar que não poderia ter subido ao muro. A verdade é que o assistente explicou que, à data dos factos, o muro não se encontrava no estado que é retratado nas fotografias, as quais não serão contemporâneas da data dos factos, tendo descrito a forma como o arguido subiu ao dito muro. De resto, as fotografias juntas não comprovam a impossibilidade de o arguido ter subido ao muro em causa.
Por sua vez, a denúncia de fls 153 e ss apenas comprova que o aqui arguido se queixou contra o assistente por danos no painel solar, processo que, de resto, viria a ser arquivado.
Em suma: a conjugação de todos os elementos probatórios acima referidos inculca, pois, a ideia de que os factos ocorreram da forma como foram dados como provados, não se tendo suscitado ao tribunal a mais pequena dúvida a esse respeito.
A prova do elemento subjectivo é sempre indirecta e deve ser extraída dos demais elementos existentes nos autos e das regras de experiência comum. Desta perspectiva, pode certamente dizer-se que o arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, com intenção de amedrontar e ofender na sua honra e consideração social o assistente, bem sabendo que as suas condutas não eram permitidas.
No que concerne à situação sócio-económica do arguido e do assistente, as suas declarações, as quais se mostraram credíveis.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido, o CRC de fls 134.

Relativamente aos restantes factos não provados, cumpre dizer que não se produziu em audiência qualquer outra prova que permitisse dar como provados outros factos para além dos que, nessa qualidade, se demonstraram.

7. No recurso de impugnação da decisão em matéria de facto, a análise envolve uma reapreciação autónoma do juízo valorativo e da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados.

A questão a resolver restringe-se por isso a saber se ocorreu erro no julgamento de facto ou seja, se houve valoração indevida de elementos de prova.

Impõe-se em todo o caso sublinhar uma vez mais que “o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127.º do CPP. Não pode ignorar-se que a apreciação da prova assenta, fora das excepções relativas a prova legal, na convicção do julgador e nas regras da experiência, nem também pode esquecer-se o que a imediação dá em 1.ª instância e o que o julgamento da Relação não permite, como as reacções dos depoentes ou de outros, as hesitações, as pausas, os gestos, as expressões faciais, enfim, todas as particularidades de todo um evento que é impossível de reproduzir” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2012 proc. 1243/10.4PAALM.L1.S1, www.dgsi.pt ).

No caso destes autos, o recorrente não concretiza com rigor os factos ou eventos que considera incorrectamente julgados mas questiona a decisão quanto a todos os factos constantes dos pontos 5 e 6 da matéria de facto provada e invoca discordância quanto à apreciação da prova feita pelo tribunal, no que diz respeito a segmentos das declarações do assistente, dos depoimentos das testemunhas José F..., Carla , Manuel G..., António S... e ao teor do documento da entidade patronal do arguido, que menciona e/ou transcreve na motivação.

Serão portanto estas as concretas provas que este tribunal de recurso deve analisar, juntamente com outras que entenda relevantes (artigos 412.º n.º 3, n.º 4 e n.º 6 do Código do Processo Penal).

Vejamos.

Na decisão recorrida consta que a convicção segura do tribunal sobre a matéria de facto provada resultou fundamentalmente da conjugação do teor das declarações do próprio assistente, como os depoimentos de José F... e da mulher do ofendido, Carla S....

Em nossa apreciação e depois de termos procedido à audição integral dos respectivos registos áudio, o ofendido relatou todos os acontecimentos relevantes de um modo plausível e coerente. Também a testemunha José F... evidenciou segurança quanto aos factos directamente percepcionados. Por ultimo, ainda se poderá contar com as declarações de Carla Santos, confirmando a detenção da arma.

Naturalmente que o interesse individual na condenação, o intenso desentendimento com o arguido por questões de “vizinhança” e o relacionamento familiar são circunstâncias que podem toldar o discernimento do declarante ou da testemunha e devem fazer recear pela credibilidade do depoimento. Contudo, tribunal não se encontra adstrito a uma desvalorização absoluta das declarações ou do depoimento das pessoas com intervenção directa nos eventos relevantes e com interesse directo numa determinada decisão. O juízo de valoração em relação ao conteúdo dos depoimentos dependerá - tal como sempre acontece - de elementos tão díspares como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso ou a emoção exteriorizada.

No caso concreto e tanto quanto se pode apreender através do registo da prova, a fidedignidade e a credibilidade da narração do assistente e da testemunha José F... , quer pela forma, quer pelo conteúdo, resistem a essas eventuais dúvidas criadas a partir da existência de um interesse pessoal na condenação do arguido, da verificação de sentimentos de profunda desavença ou de um hipotética motivação de represália por outros factos anteriores.

Improcede a argumentação do recorrente que pretende infirmar a decisão recorrida com fundamento na circunstância de nenhuma das pessoas inquiridas ter descrito e individualizado a arma empunhada pelo arguido. Com efeito, numa situação imprevisível, sob intenso nervosismo e sério risco para a pessoa visada, revela-se perfeitamente compreensível que essa mesma pessoa não visualize e memorize com pormenor as características precisas da arma de fogo.

Uma vez assente que o arguido empunhou uma espingarda e tendo sido apreendidas duas espingardas na sequência de busca na casa de morado arguido, revela-se razoável inferir que a ameaça foi executada com uma dessas duas armas. Tendo em conta a descrição do assistente segundo a qual se trataria de uma “arma de fogo de dois canos”, consideramos também como razoável a opção do tribunal recorrido ao estabelecer a descrição da arma utilizada a partir dos elementos constantes do exame pericial e referentes à arma que reúne essa característica específica.

Salvo melhor entendimento, são ainda irrelevantes as considerações do arguido recorrente sobre o encandeamento cronológico dos factos, pretendendo convencer que não teria havido “tempo” para o arguido ter subido ao muro delimitador da propriedade por duas vezes, empunhado a arma e proferido as palavras ameaçadoras.

Em primeiro lugar, impõe-se notar a natural falibilidade do testemunho sobre o decurso do tempo. No caso destes autos, todos as indicações e cálculos, quer de António Costa Silva, quer das restantes testemunhas, se baseiam em intervalos de tempo com uma amplitude significativa e muito imprecisa (de que é exemplo a indicação de “até” 30 minutos para a deslocação do arguido desde o local de trabalho até à residência).

Em segundo, e decisivamente, o recorrente assenta a argumentação em pressupostos que na realidade estão longe de se terem sequer como indiciados, como sejam a circunstância de as armas naquela ocasião se encontrarem devidamente acondicionadas no sótão, de terem decorrido cinco minutos enquanto o arguido subiu a primeira vez ao muro, de terem decorrido outros cinco minutos para o arguido “ir buscar a arma” . Não há ainda demonstração segura de que o telefonema do assistente para a GNR tenha ocorrido às 16 horas.

Por fim, se é certo que se desconhece de que forma o arguido acedeu ao muro, também não se pode considerar como improvável que uma pessoa, por escada ou outro meio, aceda a um muro com uma altura próxima de dois metros, mesmo transportando uma espingarda.

Em conclusão, não encontramos no processo de formação da convicção do tribunal recorrido qualquer erro de racionalidade ou infracção de regras de experiencia comum. Ao mesmo tempo, também é inequívoco que as provas indicadas pelo arguido recorrente não nos impõem uma solução diferente da que foi alcançada na sentença recorrida.

Improcede assim o recurso de impugnação da decisão em matéria de facto.

8. Enquadramento jurídico-penal e consequências dos factos

Os factos provados revelam que o arguido cometeu os crimes de ameaça agravado e de injúria por que vem acusado e condenado.

Os factores concretos de medida da pena, enunciados de forma exemplificativa no artigo 71º nº 2 do Código Penal, compreendem quer circunstâncias referentes à execução do facto, quer relativas à personalidade do agente e, por último, as circunstâncias que relevam da conduta do agente anterior e posterior ao facto.

Como se escreveu na decisão recorrida, “Contra o arguido, depõe a intensidade do dolo, que reveste a modalidade de dolo directo, uma vez que representou os factos correspondentes aos tipos de crime de que está acusado e agiu com a intenção de os realizar. Depõe a favor do arguido, o tempo já decorrido desde a data dos factos sem notícia de qualquer outro comportamento desviante, o facto de se encontrar familiar, profissional e socialmente inserido, bem como a inexistência de antecedentes criminais, afigurando-se o respectivo comportamento criminoso como meramente ocasional e isolado.

Não é possível valorar qualquer confissão ou arrependimento.
Quanto ao crime de ameaça, depõe contra o arguido João G... a circunstância de o ofendido ter sentido efectivamente medo e receio e de as palavras ameaçadoras terem sido acompanhadas da exibição de uma arma de fogo.
No que concerne ao crime de injúrias, deve realçar-se que foram duas as expressões proferidas e das mais graves, tendo-o sido na presença de terceiros, o que evidencia uma afectação, em grau elevado, do bem jurídico protegido pela norma.”

Sopesando em conjunto os elementos enunciados, concluímos, como na decisão recorrida, que as penas de noventa dias de multa pelo crime de ameaça agravado e de sessenta dias de multa pelo crime de injúria se revelam adequadas para corresponderem às exigências de tutela dos bens jurídicos e às concretas necessidades de prevenção especial, assim como ainda consentidas pela culpa exteriorizada nos factos pelo arguido.

Por ultimo, também consideramos a pena única de cento e vinte dias de multa como adequada ao conjunto dos factos e aos elementos da personalidade do arguido.

Conforme o disposto no n.º 2 do artigo 47.º do Código Penal, a razão diária da multa será fixada entre o montante de € 5 e de € 500, de acordo com a situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

A norma do Código Penal não indica os critérios para a determinação daquela situação económica relevante, nem sequer sugere algum princípio de orientação. Em qualquer caso e como tem sido salientado persistentemente pela jurisprudência, a condenação de natureza criminal tem necessariamente de constituir um sacrifício real ao arguido, de modo a criar-lhe um sentimento de segurança, utilidade, punibilidade e justiça, sob pena de esvaziamento das finalidades punitivas.

Assim, considerando a amplitude dos rendimentos no nosso país, o mínimo legal de 5 € deverá corresponder a pessoas que vivem numa situação de indigência ou de total carência de rendimentos próprios e o máximo legal de 500 €, no pólo oposto, àquelas pessoas, em número diminuto, detentoras do que vulgarmente se define como rendimentos extremamente elevados, de “grandes fortunas”, ou considerados como os “mais ricos” da nossa sociedade.

Da matéria de facto provada ressalta que o arguido exerce a actividade profissional de operador de máquinas, aufere mensalmente cerca de € 720. É casado, a mulher não tem qualquer rendimento e o casal tem dois filhos, de 14 e 20 anos de idade.

Tendo em conta o nível médio de rendimentos auferidos na nossa sociedade, a amplitude da moldura legal e apesar da difícil situação económica do agregado familiar, não se poderá considerar excessiva a fixação da razão diária da pena de multa do arguido num valor de seis euros e cinquenta cêntimos, ainda muito próximo do limite mínimo legal.

Em face de tudo o exposto, concluímos que as penas de multa aplicadas nestes autos se encontram fixadas em medida justa e equitativa.

9. Cumpre apreciar em seguida se se deve manter a decisão de perdimento a favor do Estado das duas armas e das munições apreendidas ao arguido.

O tribunal recorrido fundamentou a decisão pela seguinte forma:

Estatui o art. 109º nº1 CP que “São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.”
Trata-se aqui de uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança, que tem como pressuposto, para além da prática de um facto ilícito-típico, a afirmação da perigosidade do objecto atendendo à sua natureza ou às circunstâncias do caso.
Assim concebida, tal providência, não se encontrando limitada, na possibilidade de aplicação, pela culpa do agente, só deverá, todavia, ser decretada se se revelar proporcionada à gravidade do ilícito-típico perpetrado e à perigosidade do objecto em causa (neste sentido vide Figueiredo Dias, Consequências Jurídicas do Crime, pg.628).
Há agora que considerar os seguintes aspectos: o crime de ameaça foi perpetrado mediante a exibição de uma espingarda de caça, o que desde logo é um elemento indiciador da inidoneidade do arguido para ser portador de licença de uso e porte de arma; assistente e arguido são vizinhos e continuam desavindos, sendo que os ânimos continuam bastante exaltados conforme se constatou em sede de audiência de julgamento.
Neste contexto, devolver as armas de fogo e os cartuchos apreendidos à ordem dos presentes autos ao arguido como que seria um “convite à tragédia”, já que comportaria um grande risco da prática de crimes semelhantes ao dos autos ou até de crimes muito mais graves.
Em conformidade com o exposto, ao abrigo do disposto no art. 109º nº1 CP, declaram-se perdidos a favor do Estado as armas e cartuchos apreendidos à ordem dos presentes autos.”

No acórdão de 12 de Abril de 2011, o Tribunal da Relação de Coimbra apreciou uma situação de facto de contornos semelhantes aos dos presentes autos, enfrentando também a questão de saber se deve ser declarada a perda de armas apreendidas, ainda que não tenham sido utilizadas directamente na prática do facto ilícito e típico.

Como aí se escreveu, a norma constante do artigo 109.º n.º 1 do Código Penal, “não exige como condição do seu funcionamento que os objectos apreendidos tenham uma relação directa com o crime imputado ao arguido, como sucede, por exemplo, com a arma utilizada num crime de roubo. A relação pode ser meramente indirecta, como sucede no caso vertente. O agente que é proprietário de arma de fogo e que ameaça dar um tiro em alguém, desde que essa ameaça seja credível ao ponto de, pelo menos, causar inquietação ao destinatário da ameaça (e portanto, constituindo crime), arrasta para o domínio de hipótese que deve ser acautelada a efectiva utilização de arma de fogo contra o visado. O facto de o agente ter na sua disponibilidade uma ou mais armas de fogo confere maior gravidade à ameaça, por a sua consumação se oferecer como plausível, reforçando as exigências cautelares tendentes a evitá-la, sendo essa circunstância suficiente, só por si, para justificar tanto a apreensão das armas como a sua ulterior perda, visto as armas de fogo constituírem por natureza objectos dotados de grande perigosidade e a sua perda não poder considerar-se desproporcionada à gravidade do ilícito cometido. Aliás, são precisamente estas duas circunstâncias – perigosidade do objecto e proporcionalidade – que condicionam a declaração de perda, que não é de modo algum limitada pela culpa do agente (só assim se justifica o teor do nº 2 do art. 109 do Código Penal)” (proc. 1488/08.7GBAGD.C1, Rel. Des. Jorge Jacob, in www.dgsi.pt).

Mostram os autos que o arguido fez uso de uma espingarda para perpetrar a ameaça de morte de um seu vizinho. Como se pode concluir, o arguido detinha naquele momento as duas armas e os cartuchos apreendidos. Nesta perspectiva, quer uma quer outra poderiam ter servido para a prática do tipo de ilícito.

Ao que tudo indica, mantém-se uma situação de inimizade e de intenso conflito entre famílias que moram próximo. Nestes termos e apesar da ausência de antecedentes criminais e da normal integração familiar e profissional, permanece um fundado receio de que o arguido, no âmbito dessa relação de desavença, venha a recorrer de novo à utilização da mesma ou de outra das espingardas na prática de um crime.

Em conclusão, os factos provados impõem a formulação de um juízo de perigosidade das armas e munições apreendidas e de proporcionalidade entre a gravidade do ilícito cometido e a perda a favor do Estado, devendo manter-se a decisão recorrida.

10. Uma vez que o arguido decaiu no recurso que interpôs, deve ser responsabilizado pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que deu causa (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro). De acordo com o disposto no artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, a taxa de justiça a fixar, a final, varia entre três e seis UC.

Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em quatro UC.

III- DISPOSITIVO

11. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em rejeitar liminarmente o recurso na parte que se restringe à acção civil enxertada e em julgar totalmente improcedente o recurso, mantendo na íntegra a decisão recorrida.

Condena-se o arguido nas custas do recurso, com quatro UC de taxa de justiça.