Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
468/07.4TBFLG.G1
Relator: RAQUEL REGO
Descritores: SERVIDÃO DE AQUEDUTO
ÁGUAS PÚBLICAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Contrariamente ao que se dispõe sobre a servidão legal de aqueduto onde se exige a prova do direito às águas – artº 1561º, nº1 –, a servidão constituída por usucapião não tem requisitos específicos.
II - Para a constituição, por usucapião, de uma servidão de aqueduto, não interessa provar que se tem direito à água, mas sim que se tem a utilização, nas condições e pelo tempo requeridos.
III - Não se vislumbra, por isso, que ocorra qualquer impedimento legal para que possa ser reconhecida uma servidão de aqueduto relativa a águas públicas cuja captação está devidamente autorizada pela entidade administrativa competente.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:


I – RELATÓRIO.

1. J… e mulher M… instauraram a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra J… mulher M…, todos com os sinais dos autos, pedindo a condenação dos RR:
- a reconhecer o seu direito de propriedade sobre as águas identificadas na respectiva petição;
- a reconhecer o direito de servidão de aqueduto através do rego a céu aberto a favor do seu descrito prédio e implantado no prédio dos Réus;
- a reconstruir o dito rego repondo-o na sua situação anterior ou seja, de forma a ser para ele derivada a água do Ribeiro ou Barroco, conduzindo-a até à presa e a proceder à limpeza do mesmo rego removendo as terras e entulhos que nele depositaram;
- a não praticar quaisquer actos que impeçam ou diminuam os seus direitos ou atentem contra eles;
- a pagar a quantia de €8.242,50 relativa aos prejuízos por si sofridos pela privação da água, não podendo regar os produtos semeados no Campo e ainda os que se vierem a apurar em liquidação de sentença.

2. Os Réus contestaram, não só por impugnação, mas também por excepção invocando a prescrição, pedindo a condenação dos Autores como litigantes de má fé em multa e indemnização a seu favor em quantia nunca inferior a €2.500,00.

3. Houve réplica e tréplica, foi dispensada a audiência preliminar e proferido despacho saneador que se pronunciou pela validade e regularidade de todos os pressupostos processuais, relegando para a sentença o conhecimento da excepção de prescrição.

4. Os autos seguiram os seus termos, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os Réus dos pedidos, como improcedentes também os incidentes de litigância de má fé.

5. Inconformados, apelaram os AA, rematando as pertinentes alegações com seguintes conclusões:
(…)

6. Foram oferecidas contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão proferida.

7. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

1. Encontra-se registado a favor dos Autores J… e mulher M…, em G-1 Ap.30/060594, a aquisição do prédio rústico composto de terra de cultura com videiras e eucaliptal com 10.150 m2 denominado “Campo de Novelhos Grande” sito em Novelhos, freguesia de Sousa, concelho de Felgueiras, inscrito na matriz sob o artigo 11 e descrito sob o nº 320 [alínea A) dos factos assentes].
2. Os Réus são donos de um prédio rústico sito no lugar de Corredoura, freguesia de Idães, concelho de Felgueiras inscrito na matriz sob o artigo 1.141 [alínea B)].
3. O prédio descrito em 1) é regado durante todo o ano com a água derivada do barroco ou ribeiro localizado a norte – poente do mesmo [resposta ao artigo 1º da base instrutória].
4. A água é conduzida por um rego a céu aberto implantado no prédio identificado em 2) pelo seu lado poente e que o atravessa em toda a sua extensão norte [artigo 2º].
5. Esse rego, juntamente que tubos subterrâneos situados na estrema nascente do prédio identificado em 2), conduz a água até uma poça localizada na estrema poente do prédio descrito em 1) [artigo 3º].
6. Há mais de 20 anos os Autores, por si e antecessores, usam a água referida em 3) para rega do milho, vinha, erva e demais produtos hortícolas que cultivam no prédio identificado em 1) [artigo 4º].
7. Á vista de toda a gente, sem interrupção nem oposição, com a convicção de serem donos da água e de não prejudicarem ninguém [artigo 5º].
8. Há mais de 20 anos os Autores, por si e antecessores, utilizam o rego referido em 4) para a finalidade referida em 5) [artigo 6º].
9. Á vista de toda a gente, sem oposição ou interrupção, com a convicção de que podem usar o rego implantado no prédio identificado em 2) para a condução da água do ribeiro até à poça situada no prédio referido em 1) e de não prejudicarem ninguém [artigo 8º].
10. O rego tem a largura e profundidade de 20 cm [artigo 9º].
11. Em Janeiro de 2001, devido à força das águas, parte do rego ficou destruído [artigo 10º].
12. Desde momento não concretamente apurado a água deixou de chegar à poça do prédio referido em 1) [artigo 12º].
13. Os Autores cultivam o prédio referido em 1) com milho, erva e têm um pomar de macieiras [artigo 13º].
14. Na zona onde se situa o prédio identificado em 1) a média de produção anual por hectare corresponde a 8.000 kg de milho em grão, 50.000 kg de milho de silagem e 250 fardos de erva para o gado [artigo 14º].
15. Na zona onde se situa o prédio identificado em 1) a média de produção anual por hectare de maçãs corresponde a 20.000 kg [artigo 15º].
16. O preço do quilo do milho em grão ronda €0,20 [artigo 16º].
17. O preço do quilo da maçã ronda €0,30 [artigo 18º].
18. A circunstância referida em 12) determinou uma redução das colheitas de milho em percentagem não concretamente apurada [artigo 20º].
B. Há que ter presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e, ainda, que nos recursos apreciam-se questões e não razões;
Além disso, os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

DECIDINDO:
Atenta a sua natureza adjectiva, entre as várias questões suscitadas perante este tribunal, começaremos por abordar a invocada nulidade da sentença.
As causas de nulidade da sentença ou de qualquer decisão são as que vêm taxativamente enumeradas no nº1 do artº 668º do Código de Processo Civil, ao tempo vigente.
A sentença será nula apenas quando: “a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido; f) Seja omissa no que respeita à fixação da responsabilidade por custas, nos termos do nº 4 do art. 659.”
“Os vícios determinantes da nulidade da sentença correspondem a casos de irregularidades que afectam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia)… São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afectada”.
No caso em apreciação, se bem entendemos, julgamos que a arguida nulidade vem sustentada na contradição entre os fundamentos e a decisão, na aplicação de normas que nada tinham a relacionar-se com os factos provados, na omissão de pronúncia quanto à propriedade dos recorrentes sobre o prédio, na condenação em objecto diverso e na fundamentação em factos não alegados.
Ensina Amâncio Ferreira (Manual de Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pg. 54) que «a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica, nem tão pouco a uma errada interpretação dela», acrescentando que aquele vício só ocorre quando «a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo Juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente».
Na sentença recorrida é manifesto que isso não se verifica, pois que o que se nos depara é uma construção jurídica – acertada ou não, é irrelevante para este vício – totalmente assente e atinente à factualidade dada como provada.
Como é bom de ver, não é pelo facto de se ter dado como provado que os AA exerceram poderes atinentes à propriedade, que ela ocorre automaticamente, o que foi, aliás, tratado na decisão em crise quando afirma que, não obstante assim ser, não há lugar à aquisição por usucapião.
Do mesmo modo, repete-se, a divergência entre os factos provados e a solução jurídica, pode consubstanciar um mero erro de julgamento, um error in judicando, mas nunca uma nulidade de sentença.
Invoca-se, também, a nulidade decorrente de condenação em objecto diverso, mas aqui sem qualquer pertinência posto que a sentença concluiu pela total absolvição.
Outro dos vícios invocados é o da fundamentação em factos não alegados, no caso, a natureza pública das águas. Acontece, todavia, que do relatório da sentença não consta qualquer facto que não conste dos articulados, sendo certo que os apelantes parecem confundir a qualificação jurídica que deles foi feita com a circunstância de tal qualificação não ter sido nunca abordada antes pelas partes da acção.
Finalmente, arguiu-se omissão de pronúncia quanto à propriedade dos recorrentes sobre o prédio, mas cremos tratar-se de falsa questão, posto que bem sabem os AA que nunca esse direito foi objecto de litígio, como decorre, aliás, da sua própria petição. Não foi alegado qualquer acto dos RR que sequer beslicasse tal direito, pelo que, a ser entendido como pedido autónomo e não como mero pressuposto do verdadeiro pedido, careciam até os mesmos autores de interesse processual em agir.
Por tudo isto, improcede a arguida nulidade da sentença.
Quanto ao mérito, vimos que o pedido formulado é, além do mais, o de reconhecimento do direito de propriedade sobre as águas e de servidão de aqueduto implantado no prédio dos Réus.
Relativamente à propriedade das águas, impõe-se apenas dizer que a sentença recorrida discorreu proficuamente sobre o respectivo regime juridico, concluindo pela natureza pública das mesmas e, consequentemente, pela insusceptibilidade de serem adquiridas por usucapião. Não há que acrescentar mais nada, para ela se remetendo.
Já não sufragamos a decisão no que concerne à servidão.
Como sabemos – artº 1543º do Código Civil – servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente.
As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família (nº1 do artº 1547º) e podem ter por objecto quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais (artº 1544º).
No caso sub judice, tendo os AA invocado a existência de uma servidão de aqueduto a favor do seu prédio e onerando o dos RR, provou-se que:
O prédio dos AA é regado durante todo o ano com a água derivada do barroco ou ribeiro localizado a norte – poente do mesmo e é conduzida por um rego a céu aberto implantado no prédio dos RR pelo seu lado poente e que o atravessa em toda a sua extensão norte.
Esse rego, juntamente com tubos subterrâneos situados na estrema nascente do prédio dos RR, conduz a água até uma poça localizada na estrema poente do prédio dos AA.
Há mais de 20 anos os Autores, por si e antecessores, usam a água referida para rega do milho, vinha, erva e demais produtos hortícolas que cultivam no seu prédio, à vista de toda a gente, sem interrupção nem oposição, com a convicção de serem donos da água e de não prejudicarem ninguém.
Há mais de 20 anos os Autores, por si e antecessores, utilizam o aludido rego para a finalidade referida, à vista de toda a gente, sem oposição ou interrupção, com a convicção de que o podem usar para a condução da água do ribeiro até à poça e de não prejudicarem ninguém.
Desta factualidade decorre, sem margem para dúvida, que o prédio dos AA beneficia de uma servidão de aqueduto, constituída por usucapião, atento o lapso de tempo, a publicidade, o ânimus e a pacificidade com que exerceram os respectivos actos – cf. artºs 1287º e 1296º do Código Civil.
Entendeu, porém, a Srª juiz a quo que, tendo ficado apurado que a água não é propriedade dos AA, não lhes pode ser reconhecido o direito de servidão de aqueduto.
Não podemos concordar.
Contrariamente ao que se dispõe sobre a servidão legal de aqueduto onde se exige a prova do direito às águas – artº 1561º, nº1 –, a servidão constituída por usucapião não tem requisitos específicos.
Aliás, José Cândido de Pinho in “As Águas no Código Civil” (Almedina, 1985, pag.194) refere exactamente que não deve confundir-se servidão resultante de usucapião com servidão legal, uma vez que, como sabemos, nesta última a lei limita-se a atribuir efeitos jurídicos ao facto humano.
Também de acordo com Tavarela Lobo, Manual do Direito de Águas, 2ª ed., vol. II, pág. 383, não é necessária a prova da titularidade do direito sobre a água para se obter o reconhecimento de uma servidão de aqueduto por usucapião.
Do mesmo modo se decidiu no acórdão da Relação do Porto, de 03 de Março de 1998, CJ Tomo II, pag.189, onde se fez constar que «para a constituição, por usucapião, de uma servidão de aqueduto, não interessa provar que se tem direito à água, mas sim que se tem a utilização, nas condições e pelo tempo requeridos».
E o caso em apreço é paradigmático de que a solução não poderá deixar de ser essa. Na verdade, a Lei 58/2005 e o DL 226-A/2007 consagram a possibilidade de as águas públicas serem utilizadas por particulares, sendo de realçar que os autores juntaram até aos autos (cf. fls. 240 e 241) prova de que estão autorizados a captá-las.
Não se vislumbra, por isso, que ocorra qualquer impedimento legal para que possa ser reconhecida uma servidão de aqueduto relativa a águas públicas cuja captação está devidamente autorizada pela entidade administrativa competente.
Pode até acontecer que essa autorização venha a ser retirada e de novo concedida em momento posterior, mantendo-se o direito de servidão mesmo que em determinado período temporal a água por ali não circule, sem prejuízo, claro está, da respectiva extinção, reunidos os respectivos pressupostos legais.
Portanto, em face da factualidade provada, não pode deixar de ser reconhecido o direito de servidão de aqueduto que impende sobre o prédio dos RR a favor do dos AA, revogando-se a sentença nesta parte.
Outros pedidos foram formulados e, assim, pretendem os apelantes que os apelados sejam condenados:
- a reconstruir o dito rego, repondo-o na sua situação anterior, ou seja, de forma a ser para ele derivada a água do Ribeiro ou Barroco, conduzindo-a até à presa e a proceder à limpeza do mesmo rego removendo as terras e entulhos que nele depositaram;
- a não praticar quaisquer actos que impeçam ou diminuam os seus direitos ou atentem contra eles;
- a pagar a quantia de €8.242,50 relativa aos prejuízos por si sofridos pela privação da água, não podendo regar os produtos semeados no Campo e ainda os que se vierem a apurar em liquidação de sentença.
No domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos, o princípio geral emerge do artº 483º, segundo o qual «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
São, pois, pressupostos deste dever indemnizatório, a violação de um direito ou interesse alheio, a ilicitude, o vínculo de imputação do facto ao agente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Todavia, como é bom de ver, os recorrentes não lograram provar que os recorridos praticaram quaisquer actos ilícitos, nomeadamente que destruíram parte do rego, que o aterraram com folhas e vides e que, por via disso, impediram que a água atingisse o prédio dos AA, ocasionando prejuízos agrícolas derivados da falta de rega. Falece, por isso, qualquer responsabilidade civil.
E, sendo assim, a reconstrução do rego de forma a ser para ele derivada a água do Ribeiro ou Barroco, conduzindo-a até à presa e a limpeza do mesmo rego removendo as terras e entulhos que nele depositaram, terão de ser, então, feitas pelos apelantes no âmbito dos chamados adminucula servitutis.
Como sabemos, no que se refere à definição do conteúdo da servidão, o nº2 do artigo 1565º do Código Civil estabelece que “em caso de dúvida quanto à extensão ou modo do exercício, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente”, o mesmo é dizer, no que concerne à servidão de aqueduto, que neles se conta a faculdade de passar no prédio serviente para a inspecção, consertos e melhoramentos necessários.


III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente a apelação, condenando os RR a reconhecer o direito de servidão de aqueduto através do rego a céu aberto a favor do prédio dos AA e implantado no prédio dos Réus, ambos devidamente identificados nos autos, mantendo em tudo o mais a sentença recorrida.
Custas por ambas as partes na proporção do decaimento, que se fixa em 80% para os AA e 20% para os RR.

Guimarães, 20 de fevereiro de 2014
Raquel Rego
António Sobrinho
Isabel Rocha