Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3536/16.8T8VCT.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZOS
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O direito fundamental à identidade pessoal previsto no artigo 26º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, onde se inclui o direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da verdade biológica da filiação, não é compatível com o estabelecimento de limites temporais à sua investigação.

II - O estabelecimento do prazo de 10 anos previsto no artigo 1817, nº 1), do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º da Lei 14/2009 de 01/04, é materialmente inconstitucional por violar o artigo 26º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.

III - Procedendo a apelação e constando dos autos os elementos necessários importa conhecer da questão da paternidade nos termos do disposto no nº 2 do artigo 665º do Código de Processo Civil.

IV – Tendo o Autor alegado e provado a existência de relações de sexo entre o Réu e a sua mãe durante o período legal de concepção e a causalidade dessas relações relativamente ao seu nascimento assiste-lhe o direito a ver reconhecida e declarada a sua paternidade.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

J. P. intentou a presente acção de investigação de paternidade contra J. A., alegando, em síntese, que foi registado na Conservatória do Registo Civil de Ponde de Lima como filho de B. P., sem que nada ficasse a constar quanto à paternidade. Mais alega que nunca a mãe lhe revelou a identidade de seu pai biológico e que só há 4 meses, regressado da Venezuela, onde estava emigrado, é que a mãe lhe contou que o pai era o Réu, com quem tinha namorado e de quem veio a engravidar.
Com estes fundamentos veio pedir que se declare que o Réu é seu pai, ordenando-se o averbamento de tal paternidade no seu assento de nascimento.
O Réu contestou invocando a caducidade da acção, pois o Autor atingiu 18 anos em Abril de 1983, pelo que nos termos do artigo 1817º do Código Civil, o prazo para propor a acção esgotou-se em Abril de 1993.
O Réu impugnou também a matéria de facto alegada pelo Autor, alegando ainda que a mãe do Autor sempre propalou que este era filho do Réu e que também o Autor o afirma desde que frequentou o ensino primário até à presente data.
O Autor replicou pugnando pela improcedência da excepção.
Foi dispensada a realização de audiência prévia, proferido despacho saneador que relegou para final o conhecimento da excepção de caducidade, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Veio a efectivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva, que se transcreve:
“Pelo exposto, decido julgar procedente a excepção de caducidade invocada pelo autor e, em consequência, absolver o réu J. A. do pedido.
Custas pelo autor.
Registe e notifique.”
Inconformado, apelou o Autor da sentença, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“Conclusões:

1. O tribunal a quo olvidou um facto que é deveras essencial para a decisão da causa: a perícia feita e que determinou a probabilidade acima dos 99% do recorrido ser pai do recorrente.
2. O recorrente não pode ver-lhe ser negada a filiação com base numa norma que, pese embora a controvérsia existente, viola claramente os princípios constitucionais.
3. Os prazos especiais descritos no artigo 1817 do c.c. não podem de forma alguma prejudicar o que porventura resulte do prazo geral, sob pena de grave atropelo de lógica.
4. A lei ordinária terá de respeitar sempre o princípio constitucional da igualdade, para não descriminar os filhos nascidos fora do casamento.
5. As normas previstas nos n.º 1 e 3 do artigo 1817 do C.C. violam o artigo 26 da CRP que consagra o direito à identidade pessoal, conjugado com o artigo 25, n.º 1 da CRP referente à garantia da integridade moral.
6. O direito do recorrente (filho) ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão do direito fundamental à identidade pessoal.
7. As acções de investigação da paternidade instauradas pelo filho, não estão, nem podem estar, sujeitas a prazos de caducidade.
8. O que interessa para o caso é que o filho não tem um pai juridicamente reconhecido.
9. A paternidade biológica já não pode, hoje em dia, ser abafada e transformada numa espécie de paternidade clandestina, sem a tutela pela do direito.
10. A identidade genética é dada pela ascendência biológica.
11. Os direitos fundamentais da pessoa ligados à verdade biológica devem prevalecer sobre o estabelecimento de prazos de caducidade para as acções de filiação.
12. O estabelecimento de filiação é um direito constitucional - artigo 26 da CRP
13. O Tribunal Constitucional já declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do artigo 1817 n.º 1 do C.C. para a propositura da acção de investigação da paternidade com base na investigação biológica pura, referindo que a acção pode ser proposta a qualquer momento, independentemente do prazo.
14. Na mesma linha de raciocínio, devem considerar-se inconstitucionais os demais números do mesmo artigo, uma vez que no seu núcleo está precisamente o mesmo direito à identidade e dignidade pessoal, ao bom nome, reputação e identidade genética, consagrados no artigo 26 da CRP cuja natureza é inalienável e imprescritível.
15. Os tribunais estão obrigados a recusar a aplicação de normas inconstitucionais, daí a necessidade do presente recurso, pois, em nosso humilde entendimento, o tribunal a quo procedeu dessa forma.
16. A Lei n.º 14/2009 de 01/04, com o óbvio propósito de ultrapassar a declarada inconstitucionalidade, veio alterar a redacção do referido artigo 1817 n.º 1 do C.C., todavia, prosseguiu a dissensão jurisprudencial, e com razão. ~
17. A acção de investigação de paternidade assenta no direito à identidade pessoal, no qual se insere o direito ao conhecimento da ascendência biológica., enquanto direito fundamental, tratando-se de um direito de personalidade imprescritível.
18. O direito à identidade pessoal incluiu não apenas o interesse na identificação pessoal e na constituição daquela identidade, como também enquanto pressuposto desta auto definição, o direito ao conhecimento das próprias raízes.
19. Não custa reconhecer que saber quem se é remete logo para saber quais são os antecedentes, onde estão as raízes familiares, geográficas e culturais, e também genéticas.
20. Como se justificou no Acórdão da Relação de Coimbra de 23/06/2009, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do n.º 1 do artigo 1817 do C.C. foi generalizadamente interpretada como significando a imprescritibilidade do direito de investigar a paternidade, ou seja, com o fim da sujeição a qualquer prazo.
21. A valorização dos direitos fundamentais da pessoa, como o de saber quem é e de onde vem, na vertente de ascendência genética, e a inerente força redutora da verdade biológica fazem-na prevalecer sobre os prazos de caducidade para as acções de estabelecimento da filiação.
22. Já depois das alterações introduzidas pelas Lei n.º 14/2009 de 01/04, a jurisprudência continuou a manter a mesma orientação, argumentando-se que os prazos de caducidade, sejam eles quais forem, traduzem uma restrição desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, mais precisamente ao direito à historicidade pessoal, pelo que também são inconstitucionais as demais normas do artigo 1817, com o alargamento dos prazos. ( Ac do STJ de 25/03/2010; Ac STJ de 08/06T2010; Ac Relação de Lisboa de 09/02/2010 e Ac. Relação do Porto de 15/03/2010)
23. As razões justificativas do estabelecimento de prazos de caducidade para as referidas acções assumem hoje menos peso no confronto com a nova dimensão do direito à identidade pessoal e ao direito à integridade pessoal, sobretudo devido aos desenvolvimentos da genética e ao movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens.
24. É clara a inconstitucionalidade material das normas dos artigos 1817, n-.º 1 e 4 do C.C. que estabelecem prazos de caducidade para a acção de investigação da paternidade, por violação do artigo 26, n.ª 1 da CRP.
25. Não se verifica a caducidade da acção intentada pelo recorrente, o que implica a revogação da decisão proferida pelo tribunal a quo, que tendo em conta o resultado do exame biológico, deverá ser substituída por outra que declare o recorrido pai do recorrente, ordenando -se o averbamento de tal paternidade no seu assento de nascimento”.
Pugna o Recorrente pela integral procedência do recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida por se ter fundado numa norma cuja inconstitucionalidade é indiscutível, e a substituição da mesma por outra que considere não verificada a caducidade da acção intentada pelo Recorrente e, consequentemente, declare o recorrido pai do Recorrente, ordenando -se o averbamento de tal paternidade no seu assento de nascimento.
O Réu contra alegou pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.
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Ponderando a possibilidade de vir a ser considerada a inconstitucionalidade da norma inserta no artigo 1817º nº 1 do Código Civil (na redacção dada pela Lei nº 14/2009 de 01/04) e consequentemente, não sendo de julgar verificada a caducidade, conhecer da questão da paternidade (cfr. artigo 665º nº 2 do CPC) foi proferido despacho determinando a audição das partes sobre tal questão nos termos do disposto no artigo 665º nº 3 do Código de Processo Civil.
O Recorrente veio pronunciar-se no sentido de ser decidido declarar o Recorrido pai do recorrente tendo em consideração a prova pericial constante dos autos, ordenando-se o averbamento da paternidade no seu assento de nascimento.
O Recorrido veio apresentar requerimento mas não se pronunciou sobre a questão da paternidade, apenas tendo reiterado argumentos no sentido da constitucionalidade da norma e da verificação da caducidade.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).
A questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo Recorrente, é a de saber se a presente acção de investigação de paternidade caducou, sendo que tal questão se prende unicamente com a da inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 1817º nº 1 do Código Civil (aplicável à investigação de paternidade por remissão do artigo 1873º do mesmo diploma), na redacção dada pela Lei nº 14/2009 de 01/04, que estabeleceu o prazo de caducidade de 10 anos para o direito de acção de investigação da paternidade.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
3.1.Os factos

Factos considerados provados em Primeira Instância:

1. O autor nasceu no dia 09 de Abril de 1965, tendo sido registado na Conservatória do Registo
2. Civil de Ponte de Lima como filho de B. P., nada aí constando acerca da sua paternidade - certidão de fls. 9.
3. A mãe do autor era solteira e tinha à data do nascimento deste 25 anos - certidão de fls. 9.
4. Há cerca de 3/4 meses, o autor, que era emigrante na Venezuela, decidiu morar definitivamente em Portugal, estando a residir com a sua mãe.
5. Uma das irmãs do réu é madrinha de baptismo do autor.
6. O réu teve um relacionamento amoroso com a mãe do autor, mantendo com ela relações sexuais de cópula completa, durante os primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o nascimento do autor.
7. Foi na sequência dessas relações sexuais que a mãe do autor veio a engravidar
8. do réu, gravidez de que veio a nascer o autor.
9. Facto que é do conhecimento de muitas pessoas no local onde reside.
10. Entre a mãe do autor e o réu nunca existiu concubinato duradouro.
11. O réu emigrou para França quando a mãe do autor estava grávida e regressou a Portugal no ano seguinte.
12. A mãe do autor sempre afirmou que este era filho do réu.
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Factos considerados não provados em Primeira Instância:

- Desde muito novo que o autor questionou a sua mãe acerca da sua paternidade;
- A mãe sempre escondeu do autor quem era o seu pai;
- Sempre que o autor questionava a sua mãe, esta fugia ao tema mudando de conversa, ou dizendo-lhe que isso não interessava;
- O autor nunca aceitou tal explicação, pois na escola todos os seus colegas conheciam o pai de cada um, e ele desconhecia o seu;
- Aliás, perante o seu grupo de amigos, sempre indagou se alguém sabia quem era o seu pai, mas todos diziam que desconheciam quem era;
- O autor, ao longo de todos estes anos, acomodou-se a tal situação;
- Quando o autor regressou da Venezuela instou mais uma vez a sua mãe para dizer quem era o seu progenitor, ao que ela novamente se negou fazer;
- Foi então que se gerou uma discussão entre o autor e a sua mãe até que esta não teve outra hipótese se não revelar a identidade do pai do autor;
- Só então o autor soube que o réu é o seu pai;
- O relacionamento amoroso entre a mãe do autor e o réu perdurou mesmo após o nascimento daquele;
- No início do ano de 1964, o réu e a mãe do autor tiveram apenas duas relações sexuais, de forma fortuita e inopinada, ocorridas entre os meses de Fevereiro e Março de 1964, sem que nenhum relacionamento amoroso se tivesse estabelecido entre ambos, quer antes, quer durante, quer depois dessas duas únicas ocasiões;
- E as mesmas apenas aconteceram entre o réu e a mãe do autor dado a grande insistência e insinuação por parte da mãe do autor, uma vez que o réu tinha apenas 22 anos de idade e era pouco experiente e a mãe do autor, mais velha, já ter bastante experiência a nível sexual;
- De facto, quando o R. teve pela primeira vez (das duas únicas vezes) relações sexuais com a mãe do autor, a mesma não era virgem, já tinha tido relações sexuais com outros jovens, alguns amigos do réu;
- Nunca o réu prometeu à mãe do autor namoro ou casamento, até porque quando manteve relações sexuais com a mesma tinha namorada – o que era do conhecimento da mãe do autor;
- Foi em Agosto de 1964 que o réu emigrou para França, regressando 15 meses depois;
- Quando frequentava o ensino primário o autor já dizia que era filho do réu.
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3.2 O DIREITO

Sustenta o Recorrente que se não verifica a caducidade da presente acção de investigação da paternidade pois a norma inserta no artigo 1817º nº 1 do Código Civil (aplicável à investigação de paternidade por remissão do artigo 1873º do mesmo diploma), na redacção dada pela Lei nº 14/2009 de 01/04, que estabeleceu um prazo de caducidade de 10 anos para o direito de acção de investigação da paternidade, é materialmente inconstitucional.
Na decisão recorrida foi entendido não se verificar a inconstitucionalidade da referida norma, e estando há muito ultrapassado o prazo de dez anos aí previsto, foi julgada procedente a excepção de caducidade e absolvido o Réu do pedido.
A questão a decidir no presente recurso, e que já se delimitou, não constitui questão nova e relativamente à mesma vem-se dividindo a jurisprudência entre os que defendem a inconstitucionalidade material do artigo 1817º nº 1 do Código Civil (na redacção dada pela Lei nº 14/09 de 01/04) por impor um limite temporal ao direito de alguém ver reconhecida a sua paternidade (ou pelo menos por considerarem que o prazo de dez anos restringe de forma desproporcionada o direito à identidade pessoal previsto no artigo 26º nº 1 da Constituição da República Portuguesa) e os que entendem que o referido prazo não se mostra desproporcionado e não coarta nem restringe o direito à identidade pessoal, não sendo por isso aquele preceito materialmente inconstitucional.
Pensamos ser actualmente maioritária esta última posição que defende a constitucionalidade da norma, à semelhança do que foi o entendimento perfilhado pela 1ª instância que na decisão recorrida seguiu de perto o Acórdão desta Relação de 30/06/2016 (disponível em www.dgsi.pt).
Não é esse contudo o entendimento que perfilhamos.
Cumpre começar por referir que a actual redacção do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil foi introduzida pelo artigo 1º da Lei n.º 14/2009, de 1/04.
No regime consagrado anteriormente era estabelecido um prazo geral para a acção de investigação de maternidade e paternidade mais curto, dispondo-se que estas acções só podiam ser propostas durante a menoridade do investigante ou nos dois anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.
Ao longo dos anos foram várias as decisões que declararam a inconstitucionalidade dos prazos previstos no artigo 1817º do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei nº 496/77, que culminaram no acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006, de 10/01 que declarou tal inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
Tal acórdão, no entanto, apenas se pronunciou sobre o prazo de dois anos para investigar a paternidade, e não também sobre a possibilidade de se estabelecer um qualquer limite temporal para a acção de investigação da paternidade isto é, sobre a questão da imprescritibilidade das acções de filiação.
A alteração legislativa introduzida em 2009 alargou o prazo para 10 anos, mas não acabou com a controvérsia em torno da (in)constitucionalidade da caducidade do direito à investigação da paternidade continuando a colocar-se a questão da inconstitucionalidade material do artigo 1817º nº 1, do Código Civil.
Conforme já referimos parece-nos ser actualmente maioritária a posição dos que defendem a constitucionalidade da norma, designadamente na jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Podemos aqui citar o acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/2011, de 22/09, que decidindo em plenário - por sete votos a favor e seis contra - considerou que o prazo de 10 anos se revelava suficiente para assegurar a não aplicação de qualquer prazo de caducidade para a instauração pelo filho duma acção de investigação de paternidade, durante a fase da vida deste em que ele poderá ainda não ter a maturidade, a experiência de vida e a autonomia suficientes para sobre esse assunto tomar uma decisão suficientemente consolidada.
Contudo parte da doutrina e da jurisprudência vem continuando a entender que o nº 1 do artigo 1817º do Código Civil padece de inconstitucionalidade.
Citamos aqui, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 06/09/2011 e de 16/09/2014; também no sentido da inconstitucionalidade são os acórdãos desta Relação de Guimarães de 28/02/2013 e de 06/11/2014 e ainda o recente acórdão de 02/02/2017 onde se escreve que “o estabelecimento do prazo de 10 anos para instaurar acção de investigação de paternidade viola a exigência de proporcionalidade consagrada no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição e constitui, no estado actual do conhecimento científico, restrição injustificada do direito ao conhecimento das origens genéticas, pelo que é inconstitucional”, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Não obstante a referida jurisprudência do Tribunal Constitucional, perfilhamos o entendimento de que as acções de investigação de maternidade e de paternidade são imprescritíveis por visarem o reconhecimento de um direito fundamental à identidade pessoal, consagrado no art. 26º da Constituição da República Portuguesa.
A análise desta questão gira desde logo em torno direito à identidade pessoal consagrado no artigo 26º da Constituição da República Portuguesa.
Pode ler-se no já citado acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006 que “o direito à identidade pessoal inclui não apenas o interesse na identificação pessoal (na não confundibilidade com os outros) e na constituição daquela identidade como também, enquanto pressuposto para esta autodefinição, o direito ao conhecimento das próprias raízes. Tal aspecto da personalidade (…) implica, pois, a existência de meios legais para demonstração dos vínculos biológicos em causa (…) bem como o reconhecimento jurídico desses vínculos. (…) Deve dar-se por adquirida a consagração, na Constituição, como dimensão do direito à identidade pessoal, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, de um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade” (…) e “se tanto o pretenso filho como o suposto progenitor podem invocar este preceito constitucional, não é excessivo dizer-se que ele 'pesa' mais do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens”.
Temos para nós como certo que o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, estabelecido no nº 3 do dito artigo 26º da CRP, está interligado com o próprio direito à identidade biológica e pessoal.
Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição, 1993, página 179) falam justamente de um “direito à historicidade pessoal” e Rui Medeiros (Jorge Miranda - Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2ª edição, 2010, página 611) define a identidade pessoal como “aquilo que caracteriza cada pessoa enquanto unidade individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas por uma determinada vivência pessoal”, indica identidade a genética própria como uma das componentes essenciais do direito à identidade pessoal e refere ainda que “a identidade pessoal inclui os vínculos de filiação” e que “existe um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da paternidade e da maternidade”.
Afigura-se-nos que o exercício desse direito não pode estar sujeito a qualquer limite temporal, sob pena de violação do direito à identidade pessoal verdadeira, consagrado no referido artigo 26º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
E não é apenas o direito à identidade em si, à filiação, à paternidade que está em causa, mas também o direito à verdade biológica dessa identidade pelo que o reconhecimento do estado de filiação constitui um direito pessoalíssimo, indisponível e imprescritível, que deve ser exercitado sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros (acórdão da Relação de Guimarães de 28/02/2013, disponível em www.dgsi.pt).
Parece-nos pois que os argumentos que estiveram na base da declaração de inconstitucionalidade pelo acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006 continuam a manter toda a pertinência.
Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de Direito de Família, Volume II, Tomo I, 2006, página 139, citados no referido acórdão desta Relação de 06/11/2014) sustentam também que os tempos correm a favor da imprescritibilidade das acções de filiação, a propósito da caducidade do direito a investigar a paternidade, escrevendo que “não tem sentido, hoje, acentuar o argumento do enfraquecimento das provas; e não pode atribuir-se o relevo antigo à ideia de insegurança prolongada, porque este prejuízo tem de ser confrontado com o mérito do interesse e do direito de impugnar a todo o tempo, ele próprio tributário da tutela dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade. Diga-se, numa palavra, que o respeito puro e simples pela verdade biológica sugere claramente a imprescritibilidade”.
Salientamos também aqui os argumentos constantes da declaração de voto do Cons. Joaquim de Sousa Ribeiro, no já citado acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/2011, que aqui e com a devida vénia subscrevemos, no sentido de que “os interesses que tradicionalmente se alinha(va)m como apontando no sentido da fixação de prazos de caducidade (ou, até, de curtos prazos de caducidade) revelam-se, numa apreciação actualizada, como insubsistentes, ou, pelo menos, como despojados de uma dignidade de tutela a que seja de atribuir um mínimo de eficácia contrabalanceadora. Quanto ao "envelhecimento" ou perecimento das provas, já tudo foi dito a salientar que é um argumento hoje com escasso sentido, dada a disponibilidade de prova por ADN, com base em exame laboratorial sobre amostras biológicas do investigante e do investigado. Este meio de prova, não só perdura inalterável, até para além da morte do pretenso pai, não enfraquecendo com a passagem do tempo, como garante um índice de certeza muito próximo dos 100 %. A frequentemente esgrimida possibilidade de instrumentalização da acção para fins exclusivos de enriquecimento patrimonial - a tão propalada “caça às fortunas” - esteve na base do regime de caducidade, consagrado no Código Civil de 1966. Este regime, não só se posicionou em sentido contrário ao estabelecido no Decreto 2, de 25 de Dezembro de 1910, o qual permitia, salvas as excepções, a instauração da acção em vida do pretendo pai ou mãe, ou dentro do ano posterior à sua morte, como se afastou, em termos comparatísticos, do vigente na grande maioria das ordens jurídicas que nos são mais próximas (a espanhola, a italiana, a alemã e a brasileira, designadamente), as quais optam pela regra da não caducidade. (…) Para além de todas as considerações de carácter sociológico, quanto às mudanças operadas na estrutura e repartição dos bens de fortuna, que tornam menos convincente o argumento, é, pois, descabido e constitucionalmente claudicante fazer decorrer de eventuais motivações patrimoniais uma razão bastante para precludir a aquisição do estado pessoal que é condição de satisfação desse interesse. (…) São invocadas, por último, razões de certeza e de segurança jurídicas, que abonariam a favor da caducidade, uma vez que esta não permite o prolongamento da indefinição quanto ao estabelecimento do vínculo de filiação. E é perfeitamente natural a mobilização dessas razões, pois elas correspondem à teleologia geral e ao sentido operativo do instituto da caducidade. (…) Simplesmente, aquele interesse do investigado é, em grande medida, autotutelável, não se justificando que ele seja acautelado à custa do sacrifício de um bem pessoalíssimo da contraparte. (…) De todo o modo, a tutela de um interesse de segurança na estabilidade patrimonial não pode sobrepor-se à tutela do interesse no preenchimento completo dos dados de identificação pessoal, levando ao sacrifício total e definitivo de um bem eminentemente constitutivo da personalidade de um sujeito nascido fora do casamento. E, a não se entender que contra soluções desse tipo militam decisivas objecções de princípio, poderão ponderar-se alternativas, já alvitradas na doutrina, que deixem incólume a satisfação do direito à identidade pessoal, satisfazendo, ao mesmo tempo, pelo menos os interesses dos que já herdaram do pretenso pai. (…) Pode concluir-se que a natureza dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família reclama a sua vigência plena em todo o ciclo de vida do titular, harmonizando-se mal com soluções limitativas, inibidoras da sua plena realização por critérios de restrição temporal. Na medida em que a acção de investigação de paternidade é condição necessária à sua efectivação, o imperativo de tutela que na consagração constitucional destes direitos vai implicado resulta insatisfeito com a fixação de um prazo de caducidade para o exercício dessa acção, tanto mais que não se descortinam razões adequada e suficientemente justificativas para a sua imposição”.
Como argumento a favor da inconstitucionalidade do prazo de dez anos previsto no nº 1 do artigo 1817º do Código Civil podemos ainda invocar o facto de ser inferior (metade) do próprio prazo para interpor a acção previsto no artigo 309º do Código Civil que consagra como prazo ordinário de prescrição o de 20 anos; afigurando-se-nos ser de reconhecer em termos gerais que será mais fácil reclamar um direito patrimonial que um direito de personalidade.
Podemos ainda referir que na actualidade vem assumindo cada vez maior relevo o direito de cada um ao conhecimento das suas origens e é reconhecida a importância que tal conhecimento tem no próprio desenvolvimento da personalidade humana. É nesta linha evolutiva que o actual Regime Jurídico do Processo de Adopção (aprovado pela Lei 143/2015, de 8 de Setembro) vem permitir ao adoptado o direito de aceder ao conhecimento das suas origens. De facto, resulta do preceituado no artigo 6º de tal regime que “os organismos de segurança social, mediante solicitação expressa do adoptado com idade igual ou superior a 16 anos, têm o dever de prestar informação, aconselhamento e apoio técnico no acesso ao conhecimento das suas origens” (nº 1) e que “as entidades competentes em matéria de adopção devem conservar as informações sobre a identidade, as origens e os antecedentes do adoptado, durante pelo menos 50 anos após a data do trânsito em julgado da sentença constitutiva do vínculo da adopção. Por último, e no sentido também da inconstitucionalidade da norma, ao prever um prazo de dez anos (após a maioridade ou emancipação), é o facto de considerarmos que tal prazo continuará sempre a ser um prazo curto e insuficiente para permitir ao filho tomar uma decisão ponderada e consolidada sobre a investigação da paternidade, sendo certo que a forma como encaramos a família e o seu significado, bem como a importância que atribuímos ao conhecimento das nossas origens assume um sentido diferente nas diversas fases da nossa vida, designadamente após o nascimento dos nossos filhos e das questões que estes próprios nos colocam sobre as suas origens.
Procede assim a presente apelação, sendo de revogar a decisão recorrida declarando-se inconstitucional a norma contida no artigo 1817º nº 1 do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 01/04, e, por consequência, julgando-se improcedente a excepção de caducidade deduzida pelo Réu.
Afastada a aplicação da referida norma e não se verificando, por isso, a caducidade da acção, importa apreciar se em face da matéria de facto provada se mostra demonstrada a paternidade.
De facto, o artigo 665º do Código de Processo Civil consagra a regra da substituição ao tribunal recorrido estipulando no seu nº 2 que se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, daquelas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.
No caso concreto impõe-se revogar a decisão recorrida e conhecer da questão da paternidade uma vez que dos autos constam os elementos necessários.
Para o efeito procedeu-se à audição das partes nos termos do nº 3 do referido artigo 665º.
Analisados os factos provados a conclusão a que chegamos é a de que o Autor provou, nos presentes autos, o vínculo biológico de filiação; com efeito, alegou e provou os dois factos necessários para esse efeito: relações de sexo entre o Réu e a sua mãe durante o período legal de concepção (o Réu teve um relacionamento amoroso com a mãe do Autor, mantendo com ela relações sexuais de cópula completa, durante os primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o nascimento do Autor) e a causalidade dessas relações relativamente ao seu nascimento (foi na sequência dessas relações sexuais que a mãe do Autor veio a engravidar do Réu, gravidez de que veio a nascer o Autor). Ou numa palavra: relações de sexo causais (cfr. José da Costa Pimenta, in “Filiação”, 1993, página 149).
Assim, demonstrada a paternidade resta afirmar que ao Autor assiste o direito a ver reconhecida e declarada a sua paternidade.
Procede pois e na integra o presente recurso.
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - O direito fundamental à identidade pessoal previsto no artigo 26º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, onde se inclui o direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da verdade biológica da filiação, não é compatível com o estabelecimento de limites temporais à sua investigação.
II - O estabelecimento do prazo de 10 anos previsto no artigo 1817, nº 1), do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º da Lei 14/2009 de 01/04, é materialmente inconstitucional por violar o artigo 26º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
III - Procedendo a apelação e constando dos autos os elementos necessários importa conhecer da questão da paternidade nos termos do disposto no nº 2 do artigo 665º do Código de Processo Civil.
IV – Tendo o Autor alegado e provado a existência de relações de sexo entre o Réu e a sua mãe durante o período legal de concepção e a causalidade dessas relações relativamente ao seu nascimento assiste-lhe o direito a ver reconhecida e declarada a sua paternidade.
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IV. Decisão

Em face do exposto, na procedência da apelação, acordam os Juízes desta Relação em revogar a decisão recorrida, declarando inconstitucional a norma contida no artigo 1817º nº 1 do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 01/04, e, consequentemente, julgando improcedente a excepção de caducidade invocada pelo Réu, em declarar que J. P., nascido a 09 de Abril de 1965, registado como filho de B. P., é, também, filho do Réu J. A., mais devendo após trânsito ser diligenciado na 1ª Instância pela remessa à Conservatória do Registo Civil de certidão desta sentença para averbamento da paternidade no assento de nascimento do Autor.
Custas pelo Recorrido.
Guimarães, 09 de Novembro de 2017
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária


(Raquel Baptista Tavares)
(Margarida Almeida Fernandes)
(Margarida Sousa)