Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
739/12.8TBVCT-B.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS A MENORES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – O valor da prestação devida ao menor e a cargo do Estado (FGADM) pode ser superior, igual ou inferior ao da prestação judicialmente fixada e não satisfeita pelo obrigado.
II – O montante da prestação de alimentos fixada e não paga pelo devedor é apenas um dos pressupostos legais a levar em linha de conta na fixação da prestação que o FGADM deve assegurar.
III – Daí que o legislador tenha prescrito que nessa decisão o tribunal deve atender ainda à capacidade económica do agregado familiar e às necessidades específicas do menor - artº 3º, nºs 1 e 5 do Dec.Lei nº 164/99, de 13.05, na redacção dada pela Lei nº 64/2012, de 20.12.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:


I – RELATÓRIO

O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS), na qualidade de gestor do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores (FGADM) veio interpor recurso da sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, por fixado, «a título definitivo, a pensão de alimentos em € 110,00 (cento e dez euros), a suportar pelo Fundo de Garantia a Alimentos a partir do próximo mês de Julho (art.º 4º, nº 5 do decreto-lei nº 164/99, na redacção introduzida pela Lei nº 64/2012).».

Nele formulou as seguintes conclusões:
I. Na douta decisão recorrida, considerou-se provado que “b) No âmbito do processo de Regulação do Poder Paternal que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Ponte de Lima, sob o nº 606/07.7 TBPLM, por sentença proferida em 28.11.2008, transitada em julgado, foi decidido … fixar uma prestação alimentícia a favor do menor a prestar pelo pai, no montante de € 80,00 mensais, …, com actualização anual.”.
II. Feita a actualização da prestação de alimentos fixada judicialmente em 28 de Novembro de 2008 ao progenitor incumpridor, nos termos constantes daquela sentença, verifica-se que a mesma à data da decisão em crise seria no valor G 85,69 euros (cfr. doc. 1).
III. Como se disse supra, na mesma foi decidido fixar, “… a título definitivo, a pensão de alimentos em _ 110,00 (cem euros), a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos …”.
IV. Verifica-se, assim, que pelo o Tribunal a quo foi agora atribuída uma prestação alimentar a ser suportada pelo FGADM (G 110,00), de valor bem diferente do fixado judicialmente ao progenitor em incumprimento (G 85,69).
V. A obrigação legal de prestar alimentos pelo FGADM é diferente da obrigação judicial de os prestar, sendo que só existe obrigação judicial desde que o tribunal constitua alguém como devedor de alimentos, isto é, que condene alguém em determinada e quantificada prestação alimentar.
VI. Dos normativos que regulam a intervenção do Fundo, resulta que o Estado somente se substitui ao obrigado enquanto este não iniciar ou reiniciar o cumprimento da sua obrigação e pelo valor fixado judicialmente para esta.
VII. Tal significa que o FGADM não garante o pagamento da prestação de alimentos não satisfeita pela pessoa judicialmente obrigada a prestá-los, antes assegurando, face à verificação cumulativa de vários requisitos, o pagamento de uma prestação “a forfait” de um montante por regra equivalente – ou menor – ao que fora judicialmente fixado. – cfr. Remédio Marques, in “Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos A Menores”).
VIII. Quer isto dizer que o FGADM – tal como decorre quer da letra quer do espírito da lei - apenas assegura/garante o pagamento dos alimentos judicialmente fixados.
IX. O FGADM não poderá ser condenado no pagamento de uma prestação substitutiva de valor superior à fixada ao devedor originário.
X. Nos casos em que o FGADM paga ao menor/credor a prestação substitutiva de alimentos verifica-se uma situação de sub-rogação legal, concretamente prevista no nº 1 do art. 5º do DL 164/99, de 13 de Maio, com a redacção dada pela Lei 64/2012, de 20 de Dezembro de 2012, e não uma situação de exercício de direito de regresso contra o devedor da prestação alimentícia.
XI. É certo que, não obstante constituírem realidades jurídicas distintas, o exercício quer do direito de sub-rogação, quer do direito de regresso pressupõe sempre, por parte do respectivo titular, o cumprimento da obrigação.
XII. No entanto, a sub-rogação, como forma de transmissão das obrigações, atribui ao sub-rogado solvens o mesmo direito do credor, enquanto que o direito de regresso é um direito nascido ex novo na esfera jurídica daquele que extinguiu, ou à custa de quem foi extinta a obrigação, e esta distinção é importante para o caso dos autos.
XIII. A prestação paga pelo FGADM é autónoma relativamente à do obrigado a alimentos, e, para a sua fixação, é necessária a verificação do incumprimento e da impossibilidade da sua satisfação por este último.
XIV. É que forçoso concluir que o FGADM, enquanto entidade sub-rogada, quando procede ao pagamento da prestação de alimentos, o faz no cumprimento de uma obrigação própria e não alheia, e, assim sendo, o Fundo deve substituir-se ao devedor originário apenas desde a notificação da decisão que determina a sub-rogação.
XV. Depois de pagar, o FGADM fica sub-rogado em todos os direitos do menor credor dos alimentos, sendo-lhe, pois, lícito exigir do devedor de alimentos uma prestação igual ou equivalente àquela com que tiver sido satisfeito o interesse do menor (credor), incluindo o direito de requerer execução judicial para reembolso das importâncias pagas.
XVI. Tal significa que o FGADM é apenas um substituto do devedor dos alimentos, pelo que a sua prestação não pode exceder a fixada para o mesmo.
XVII. Acresce que a sub-rogação não pode exceder a medida da sub-rogação total, porquanto, se o terceiro paga mais do que ao devedor competia pagar, ele não tem o direito de exigir do devedor o reembolso pelo excesso e só poderá exigir do credor a restituição do que este recebeu indevidamente.
XVIII. Dito de outra forma, não pode o terceiro, satisfazendo o credor, aumentar o montante do crédito contra o devedor – vide Vaz Serra in BMJ 37/56 – o que implica que, se o terceiro pagou mais do que era devido pelo devedor, no excesso não opera a subrogação e, portanto, o direito ao reembolso, como se retira do disposto no nº 1 do art. 593º do CC.
XIX. Se a prestação social pudesse ser fixada em valor superior não se justificaria racionalmente que a lei a fizesse depender do incumprimento pelo obrigado, antes deveria depender apenas e tão só as necessidades actuais do menor.
XX. Aceitar que a prestação fosse superior seria instituir-se, sem apoio normativo, uma prestação social em parte não reembolsável e ainda por cima sem que o credor a tenha de restituir como “indevida” no sentido do art. 10º do Decreto-lei 164/99, com a redacção introduzida pela Lei n.º 64/2012, de 20 de Dezembro.
XXI. Assim, não tem suporte legal a fixação de uma prestação alimentícia a cargo do FGADM de valor superior à fixada ao progenitor ora devedor, pelo que o FGADM apenas se deverá considerar obrigado a assumir essa mesma prestação em substituição do progenitor incumpridor, nos precisos termos em que a este foi aquela judicialmente fixada.
XXII. Não se pode, assim, concordar com o decidido pelo Tribunal a quo na parte em que se altera a prestação substitutiva de alimentos de responsabilidade do FGADM, por diferente da fixada judicialmente ao progenitor pai, demonstrando-se como impossível a satisfação da prestação por falta de preenchimento de requisito legal.
XXIII. Sendo que, caso se mantenha tal decisão, a obrigação e responsabilidade de prestar alimentos deixará de ser imputável ao progenitor incumpridor passando a ser única e exclusivamente da responsabilidade do FGADM, o que de todo se demonstra impossível pelas razões supra descritas.
XXIV. Ao decidir como decidiu, violou o Mmo. Juiz a quo, o disposto no nº 2 do art. 2º, e no nº 1 do art. 5º do DL 164/99, de 13 de Maio, ambos com a redacção dada pela Lei 64/2012, de 20 de Dezembro de 2012.

Pede o provimento do recurso declarando-se que o montante da prestação de alimentos a cargo do FGADM está limitado pelo valor da prestação fixada judicialmente ao progenitor do menor, e, consequentemente, devendo ser revogado o despacho recorrido na parte que estabelece uma prestação substitutiva de alimentos a pagar pelo FGADM superior à fixada judicialmente para o obrigado a alimentos.

Foram apresentadas contra-alegações pela recorrida V…, pugnando pela confirmação do julgado.

*
II – Delimitação do objecto do recurso; questão a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artigo 639º do Código de Processo Civil (doravante CPC).

A questão suscitada pelo recorrente IGFSS cinge-se a:
a) O Estado não pode ser condenado no pagamento de uma prestação ao menor superior ao montante da pensão alimentícia omitida pelo progenitor?

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


III – Fundamentos;

1. De facto;

A factualidade dada como assente na sentença recorrida é a seguinte:
a) C… nasceu no dia 04 de Agosto de 2003 e é filho de C… e V….
b) No âmbito do processo de Regulação do Poder Paternal que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Ponte de Lima, sob o nº 606/07.7 TBPTL, por sentença proferida em 28/11/2008, transitada em julgado, foi decidido atribuir o exercício do poder paternal sobre o menor C… à mãe, e fixar uma prestação alimentícia a favor do menor a prestar pelo pai, no montante de € 80,00/mensais, até ao dia 08 de cada mês, com actualização anual.
c) O menor vive com a mãe e com o companheiro desta, J….
d) A V… trabalha na Pastelaria Pastenet, auferindo o vencimento mensal de €85,00.
e) O seu companheiro está reformado, auferindo uma pensão de €303,00 mensais.
f) Aos rendimentos referidos, acresce uma prestação social a favor do menor, no montante de € 35,03/mensais.
g) As despesas do agregado familiar, com renda de casa, água, luz e gás, ascendem ao montante mensal médio de €363,00, a que acrescem despesas específicas do menor, com medicação e ATL, no montante de €110,00.
h) Entre o menor e a progenitora existe uma relação de grande afecto, revelando aquela grande capacidade e competência quanto ao exercício da parentalidade, e prestando ao menor um acompanhamento efectivo ao seu desenvolvimento.
i) O menor frequenta o 3º ano na Escola EB1 da Avenida, apresentando um diagnóstico de hiperactividade com défice de atenção, o que contribui para o seu insucesso escolar.
j) O Requerido não mantém qualquer contacto com o menor há mais de 7 anos, nunca pagou a prestação de alimentos a que ficou obrigado.
k) O Requerido está desempregado, beneficiando de uma prestação de RSI, no montante mensal de €178,15.
l) Vive sozinho nuns anexos da habitação cedida pelos seus pais, que lhe prestam também apoio ao nível da alimentação.
*****


2. De direito;

a) O Estado não pode ser condenado no pagamento de uma prestação ao menor superior ao montante da pensão alimentícia omitida pelo progenitor?


Sobre a questão de fundo que o recurso suscita, prescreve o art. 1º da Lei nº 75/98 de 19 de Novembro, que «quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no art. 189° do Decreto-Lei nº 314/78. De 27 de Outubro, e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao inicio do efectivo cumprimento da obrigação».
Por seu turno, estipula o nº 2 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 164/99, de 13.05, que compete ao Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores assegurar o pagamento das prestações de alimentos atribuídas a menores residentes em território nacional, nos termos dos artigos 1º e 2º da Lei nº 75/98, de 19.11.
Ora, a fixação daquela prestação alimentícia é feita atendendo às actuais condições do menor e do seu agregado familiar podendo ser diferente da anteriormente fixada. Esta prestação nova não tem que ser necessariamente equivalente à que estava a cargo do progenitor, enunciando o art. 2° da Lei nº 75/98, de 19 de Novembro os critérios para a fixação do montante das prestações a pagar pelo Fundo, e definindo um montante máximo. A garantia de alimentos devidos a menores cria, pois, uma “nova prestação social”.
Da citada Lei nº 75/98 e do Dec.Lei nº 164/99, com as alterações introduzidas pela Lei nº 70/2010, de 16.06 e pela Lei nº 64/2012, de 20.12) decorre que a obrigação do Estado tem natureza subsidiária, é uma prestação nova e independente ou autónoma da do obrigado aos alimentos.
A prestação de alimentos incumprida funciona apenas como um pressuposto da responsabilização subsequente do Estado.
Como se sublinha no recente acórdão deste TRG, de 05.12.13, processo nº 758/09.1TBCBT-A.G1 (Relator Des. Manso Rainho), in dgsi.pt, cujo entendimento passamos a sufragar, sendo, aliás, posição jurisprudencial maioritária(1), “ do art. 2º da Lei nº 75/98 resulta claramente que o limite da prestação a suportar pelo Estado é um outro (nº 1), sendo que a obrigação alimentícia incumprida é apenas um dos fatores a valorizar para a fixação da prestação do Estado (nº 2).
E do art. 4º do DL nº 164/99 não pode senão inferir-se que o que interessa ao caso são as necessidades atuais do menor, e isto aponta para uma nova prestação não vinculada (para mais ou para menos) à do faltoso”.
(…)
É de forma condicionada às apontadas coordenadas, com destaque portanto para a circunstância de estarmos perante uma prestação social autónoma do Estado, que este ficará ou não sub-rogado em maior ou menor medida nos direitos do menor para com o faltoso”.
Esta interpretação sai reforçada pelo facto de a recente alteração ao assinalado Dec.Lei nº 164/99, operada pela Lei nº 64/2012, de 20.12, reiterar no seu artº 3º, nº 5, que na fixação das prestações a suportar pelo FGADM deve o tribunal atender, quanto ao seu montante, não só ao valor da prestação de alimentos atribuída, mas também à capacidade económica do agregado familiar e às necessidades específicas do menor.
Continua, portanto, a não se cingir meramente à prestação de alimentos fixada ao menor e a cargo do devedor/progenitor.
Em resumo, não questionando o recorrente a justeza do valor fixado - € 110,00 - no que concerne estritamente às necessidades do menor, pondo apenas em causa a possibilidade de tal valor poder ser imposto ao Estado, não temos senão que concluir que improcede a apelação.
Aliás, no que tange a esta específica questão, posição semelhante – de o montante que incumbe ao FGADM pagar poder ser superior, igual ou inferior ao da prestação judicialmente fixada e não satisfeita pelo obrigado - mostra-se plasmada nos Acórdãos do STJ de 04.06.2009 e de 07.04.11, respectivamente nos proc. nºs 91/03.2TQPDL.S1 e 9420/06.6TBCSC.L1.S1, in dgsi.pt.

Sintetizando:
I – O valor da prestação devida ao menor e a cargo do Estado (FGADM) pode ser superior, igual ou inferior ao da prestação judicialmente fixada e não satisfeita pelo obrigado.
II – O montante da prestação de alimentos fixada e não paga pelo devedor é apenas um dos pressupostos legais a levar em linha de conta na fixação da prestação que o FGADM deve assegurar.
III – Daí que o legislador tenha prescrito que nessa decisão o tribunal deve atender ainda à capacidade económica do agregado familiar e às necessidades específicas do menor - artº 3º, nºs 1 e 5 do Dec.Lei nº 164/99, de 13.05, na redacção dada pela Lei nº 64/2012, de 20.12.

IV – Decisão;

Em face do exposto, na improcedência da apelação, os Juizes desta 1ª secção cível decidem confirmar a decisão recorrida.

Sem custas por delas estar isento o apelante.

Guimarães, 6 de fevereiro de 2014
António Sobrinho
Isabel Rocha
Moisés Silva
________________________
(1) Neste sentido, vide os recentes Acórdãos deste TRG de 14.11.2013 e de 10.12.2013, respectivamente, proc. 699/11.2TBCBT-A.G1 e 290/08.0TBMNC-E.G1, in dgsi.pt.