Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5240/12.7TBBRG.G1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: - Auferindo a Insolvente €720,00 mensais ilíquidos e recebendo pensões anuais ilíquidas de €6.592,74 e € 2.079,48;
- Vivendo na mesma habitação da Insolvente uma filha e três netos, auferindo a filha €488,00 ilíquidos mensais;

- Tomando uma outra filha e neto da Insolvente todas as refeições em casa desta, filha que aufere €290,00;

- Tendo a insolvente como despesas €525,00 de renda de casa e €150,00 de água luz e gás, e suportando ainda despesas de alimentação vestuário e saúde,

É adequado, em sede de exoneração do passivo restante, excluir do rendimento a entregar ao fiduciário a quantia de €900,00, destinada ao sustento minimamente digno da Insolvente e família.

Decisão Texto Integral: Relação de Guimarães – processo nº 5240/12.7TBBRG.G1
Relator – Antero Veiga
Adjuntos – Luísa Ramos
Raquel Rego

Acordam na 1ª Secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.


A recorrente Maria…, apresentou-se à insolvência e requereu a exoneração a exoneração do seu passivo restante, tendo declarado expressamente, nos termos do disposto no artigo 236º, nº 3, do CIRE, preencher os requisitos necessários à concessão de tal benefício.
Foi proferida sentença declarativa da insolvência e designada data para a assembleia de apreciação de relatório.
Em assembleia de apreciação do relatório, e no que tange ao pedido de exoneração do passivo restante, foi decidido proceder a diligências solicitadas pelo digno Procurador.
Na referida assembleia um dos credores pronunciou-se contra a concessão da exoneração do passivo restante entendendo que a situação foi provocada pela insolvente e um outro absteve-se - fls. 225.
A Srª Administradora da Insolvência pronunciou-se no sentido da concessão da exoneração do passivo restante.
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Nos termos do artigo 239º, do CIRE, foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante determinando-se:
“ Assim, nos termos do art. 239º do CIRE, o Tribunal determina que durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo, o rendimento disponível da insolvente – Maria… –, que será aquele que ultrapassar o valor mensal de 600,00 € (valor considerado razoável para a insolvente manter um nível de vida digno, tendo em conta as despesas que alegou – a insolvente não tem filhos menores a seu cargo e deverá adequar o seu nível de vida à sua atual realidade, nomeadamente quanto ao valor da renda que paga) – será entregue ao Sr. administrador da insolvência na qualidade de fiduciário.
Durante o período de cessão – os referidos 5 anos após o encerramento do processo – a insolvente fica obrigada a observar as imposições previstas no nº4 do art. 239º do CIRE…”
Inconformada a requerente interpôs recurso apresentando as seguintes conclusões:
I. Salvo diferente e melhor entendimento, o despacho em crise padece da nulidade prevista no art. 668º, n.º1 al. b) e n.º4, 156º, n.º2 do CPC ex vi art. 17º CIRE porquanto não contém a discriminação dos factos provados que serviram de base à decisão.
II. Nos termos do disposto no art. 659º, n.º2 do CPC que concretiza o princípio da fundamentação das decisões judiciais previsto no art. 158º do CPC e 205º da CRP, deve o Julgador, na elaboração da sentença, discriminar os factos considerados provados e, de seguida, aplicar as normas jurídicas subsumíveis ao caso.
III. Verifica-se, in casu, uma total ausência de fundamentos de facto o que determina a nulidade da decisão a qual aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais já que o Tribunal da Relação está impedido de conhecer cabalmente o recurso ora interposto porquanto só conhecendo os elementos de facto que determinaram tal decisão poderão averiguar se existiu, ou não, uma correta subsunção dos factos ao direito.
IV. Sem prescindir, entendendo-se que a referência “a insolvente não tem filhos menores a seu cargo” constitui fundamentação de facto – já que as restantes expressões são evasivas e conclusivas – importará, nos termos do disposto no art. 712º, n.º4 do CPC, que o Tribunal da Relação anule a decisão proferida pelo Tribunal a quo com fundamento na (óbvia) deficiência da mencionada decisão sobre concretos pontos da matéria de facto ou, até, quando entenda que deve ser ampliada.
V. Não está o Julgador dispensado de indicar e discriminar qual a factualidade relevante para a boa decisão da causa, indicando os factos essenciais dados por assentes tendo sempre presente as várias soluções de direito e jurisprudenciais em respeito, porém, do princípio do dispositivo.
VI. Ora, in casu, o Julgador não indicou nem discriminou qual a factualidade relevante para a boa decisão da causa e a considerar-se que foi indicada a mesma é manifestamente insuficiente para a decisão, tanto mais que a Recorrente alegou na sua petição inicial factos que comportam despesas a ter em conta pelo julgador e, bem assim, factos relevantes para apreciação de sustento mínimo e da composição do agregado familiar da Recorrente.
VII. Quanto entendeu o Tribunal a quo que a Recorrente deverá entregar todo o rendimento superior a € 600,00 ao fiduciário, considerando, além do mais, que desse modo manteria um nível de vida digno.
VIII. Não se conforma a Recorrente com o modo de cálculo do rendimento disponível para efeitos de cessão, porquanto o montante de € 600 fixado pelo Tribunal a quo não é suficiente para garantir o sustento mínimo de um agregado familiar composto por 7 pessoas, mesmo contabilizando o salário dos restantes membros adultos do mesmo.
IX. Nos termos do disposto no art. 4º do Decreto Lei n.º 70/2010 de 16 de junho deverá considerar-se que o agregado familiar da Recorrente é composto por 7 pessoas, incluindo 4 menores de tenra idade, devendo englobar-se os rendimentos auferidos pelos elementos laboralmente ativos para efeitos de cálculo do “sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar”.
X. O rendimento que ora se determinou a respetiva cedência é superior ao que estava a ser penhorado em sede de processo executivo e que motivou a Recorrente a apresentar-se à insolvência por não ter capacidade de dispender de tal valor para efeitos de pagamento de dívidas.
XI. Importará, ainda, ter em atenção as despesas de vestuário e educação do agregado familiar que, pese embora alegadas, não foram quantificadas requerendo-se que o seu cálculo seja efetuado à luz da equidade.
XII. Deverá, igualmente, ser considerado o valor de € 150,00 relativo a despesas com água, luz e gás e, ainda, do valor da renda mensal da casa (€ 525,00) com condições dignas para as sete pessoas que compõem o agregado familiar.
LEGISLAÇÃO VIOLADA
Com o seu entendimento, o Tribunal a quo viola, entre outras disposições, o disposto nos artigos 712º, n.º4, 668º, n.º1, b) e n.º4, 156º, n.º2, 158º todos do CPC, art. 205º da CRP e era. 4º do DL 70/2010 de 16 de junho.
TERMOS EM QUE
Deve ser anulado o despacho recorrido ou, caso assim se não entenda, ser revogado o mencionado despacho devendo ser substituído por outro que determine o rendimento disponível em valor que assegure a dignidade do devedor e do agregado familiar.
Nas contra-alegações a exmª Magistrada do MºPº pugnou pela manutenção do julgado.

Colhidos os vistos há que conhecer do recurso.

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As questões colocadas:
- Nulidade por falta de fundamentação de facto – art. 668º, n.º1 al. b) e n.º4, 156º, n.º2 do CPC ex vi art. 17º CIRE
- Caráter conclusivo das referencias de facto.
- Insuficiência do montante fixado para agregado de 7 pessoas.
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Relativamente à invocada nulidade, verifica-se que no despacho não se descrevem os factos necessários à decisão da causa de forma formal. Contudo na parte decisória refere-se tal factualidade, embora de forma incorreta, em parte por remissão para os autos, referindo “despesas que alegou”, e noutra parte referindo expressamente que a requerente não tem filhos menores a seu cargo. Nada se refere quanto aos rendimentos. Não se descriminam as despesas, e relativamente às pessoas a cargo, não se acolhe o entendimento da requerente quanto ao número de membros do agregado.

Não fica claro, por falta de elementos fácticos, qual a razão do montante fixado. Não se faz um relacionamento conclusivo (silogismo judiciário) entre a situação de facto da requerente (rendimentos, despesas – pessoais e de eventual agregado, considerando se for o caso outros rendimentos de outros membros - e o direito aplicável, donde pudesse retirar-se as razões do decidido.

Assim, por absoluta omissão da fundamentação de facto, a que o decidido se reconduz (patente quanto aos rendimentos) concluiu-se pela nulidade da mesma nos termos do artº 668º nº 1 al. b) do CPC.

Nos termos do artº 715º do CPC (665 do atual), a declaração de nulidade da decisão não obsta a que este tribunal conheça do objeto da apelação, desde que, para tanto, disponha dos necessários elementos, antes estando em tais condições obrigado a fazê-lo.

Assim, porque os elementos processuais nos habilitam a tal e com interesse para a causa mostram-se apurados os seguintes factos:

- A requerente exerce funções de auxiliar educativa auferindo € 720,00 mensais ilíquidos (€10.327,22 anuais ilíquidos). Recebe da caixa geral de aposentações uma pensão anual ilíquida de € 6.592,74 e do centro nacional de pensões a quantia anual ilíquida de € 2.079,48.

- A filha mais velha e seus três filhos vivem na mesma habitação. Esta filha aufere € 488,00 ilíquidos mensais.

- A filha mais nova da insolvente toma juntamente com o filho, todas as refeições em casa da insolvente. Esta filha aufere € 290,00, trabalhando em part-time.

- A insolvente tem como despesas € 525,00 de renda e € 150 de água luz e gás, mais despesas de alimentação vestuário saúde.

A factualidade resulta do alegado e do constante do relatório da Srª Administradora, não contestado, e demais elementos dos autos.
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Para calcular o rendimento disponível do devedor a que se refere o artº 239º, importa desde logo, subtrair aos rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor “o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional” - art. 239º, nº 3, al. b), i).

A lei fixa um limite máximo mas não um limite mínimo. Deve atender-se a toda a situação económica do requerente e seu agregado, de forma a não macular o princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, afirmado no art. 1º da CRP, tendo contudo em mente que se trata de uma situação transitória, “durante a qual o insolvente deverá fazer um particular esforço de contenção de despesas e de perceção de receitas de molde a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante…” RL de 16-02-2012, processo nº 1613/11.0TBMTJ-D.L1-2 publicado em www.dgsi.pt.” Vd ainda Ac. RG de 14/02/2013, Proc. 267/12.8TBGMR-C.G, e de 25/10/2012 processo nº 340/12.6TBGMR-D.G1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

Importa ter em consideração que a exoneração não pode transformar-se num expediente para a pessoa insolvente se eximir pura e simplesmente ao pagamento das suas dívidas. O mecanismo deve conciliar de uma forma minimamente equitativa os interesses do insolvente no fresh start e dos credores no pagamento dos créditos. O insolvente deve fazer um esforço, adequando o seu modus vivendi ao estado de insolvência a que está sujeito.

O insolvente devedor, só pode contar com o montante que lhe garanta a si e seu agregado, as condições minimamente dignas, devendo limitar a esses limites as suas despesas (abrangendo todo o tipo de despesas, inclusive as de habitação).

No caso presente, e quanto à despesa de habitação, a mais elevada das apresentadas, tendo em conta as pessoas que vivem no locado (cinco), não resulta claro, em face do atual mercado de habitação, que o valor da renda seja excessiva e posse sem quebra das condições minimamente dignas ser diminuída.

Considerando os rendimentos anuais da insolvente, considerando ainda que consigo reside uma filha e três netos, auferindo esta filha um rendimento de 488 €, sendo que a outra filha e seu filho apenas tomam refeições, auferindo esta igualmente uma quantia mensal de 290 €, e atendendo os normais custos de alimentação, vestuário, saúde e às despesas fixas demonstradas, fixa-se o valor em 900 €.
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Decisão:
Em face do exposto acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, fixando o rendimento disponível em 900€, no mais confirmando-se o decidido.
Sem custas
Antero Veiga
Luísa Duarte
Raquel Rego