Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
631/11.3TBBCL-C.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PLANO DE INSOLVÊNCIA
CRÉDITO FISCAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1) O artigo 192.º n.º 2 do CIRE pretende impedir que, por força da violação do princípio do tratamento igualitário dos credores, estes, perante o plano proposto, face ao tratamento desigual, venham a ser prejudicados pelas medidas propostas, mas já não que sejam beneficiados;
2) O objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores e, uma vez que o património do devedor é a garantia comum dos créditos é aos credores que cumpre decidir quanto à melhor efectivação dessa garantia.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I. RELATÓRIO
A) Nestes autos de Insolvência em que é insolvente “Fábrica, Lda.” realizou-se a assembleia de credores para discussão e votação do plano de insolvência, tendo os credores que totalizam 75,005%votado favoravelmente e pelos credores Fazenda Nacional e J.., SA foi requerido um prazo de 10 dias para votarem por escrito, o que foi deferido.
Pela Fazenda Nacional, representada pelo Ministério Público foi apresentado o requerimento de fls. 20 e segs., onde vem votar contra o plano de insolvência.
B) Foi proferido a decisão de fls. 24 onde foi decidido homologar o plano de insolvência.
C) Inconformado com esta decisão, veio o recorrente Estado - Fazenda Nacional, interpor o presente recurso, o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo (fls. 9).
Nas suas alegações, o apelante formula as seguintes conclusões:
1. O Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, votou por escrito, contra a aprovação do plano de insolvência, por não estarem verificados os requisitos constantes da informação prestada pela Direcção de Serviços de Gestão de Créditos Tributários de fls. 505 e 506, designadamente:
a) o Plano de Insolvência ao contemplar um perdão parcial de 50% de juros, coimas, custas e outras prestações da mesma natureza constituídas ou vencidas até ao final da data fixada para as reclamações de créditos, sendo certo que na proposta relativa ao pagamento dos créditos da Segurança Social não existe perdão para coimas e custas, nem existe moratória no princípio de pagamento das prestações que começam no mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência, estabelecendo um tratamento de forma diversa entre os credores para o qual necessitaria de cumprir os requisitos previstos no n.º 2 do artigo 192.º do C.I.R.E., dado que neste caso não existe o necessário consentimento legal expresso do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e por não ter sido dado consentimento pela Administração Tributária para o mesmo efeito, pelo que a manutenção desta proposta, com esta diferenciação entre créditos públicos da mesma natureza e grau hierárquico, ofende o princípio de igualdade de tratamento entre os credores estabelecido consagrado no artigo 194.º do C.I.R.E. se não for prestado o consentimento do credor afectado.
b) a não previsão de substituição da gerência contraria os termos do n.º 3 do artigo 196.° do C.P.P.T. e a proposta de garantia prestada por terceiros não especificada se respeita o disposto no artigo 199.° do mesmo diploma legal, na medida em que a constituição de garantias idóneas a apresentar pelo A.I. deve ser efectuada no respeito do prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência, para a sua constituição junto do órgão de execução fiscal competente que avaliará da idoneidade e suficiência das mesmas, ou da necessidade do seu reforço;
c) a inexistência de menção à manutenção de responsabilidade pelo pagamento da totalidade das dividas pelo devedor e responsáveis legais após cumprimento do plano e a consequência que os mesmos ficam exonerados do pagamento das dividas da insolvência remanescentes de acordo com a alínea c, do artigo 197.º do C.I.R.E., no caso dos créditos por dividas tributárias ofende o disposto nos n.º 2 e 3 do artigo 30.º da L.G. T. que estipula que o princípio de indisponibilidade dos créditos fiscais prevalece sobre qualquer legislação especial;
d) a referência à derrogação genérica das normas tributárias e mais especificamente da Lei Geral Tributária, exorbita manifestamente o âmbito destes autos, na medida que pretende condicionar totalmente a aplicação de toda uma disciplina e domínios legais diversos dos contemplados na douta sentença, designadamente o disposto no n.º 1 do artigo 192.º do C.I.R.E.
e) Sem prescindir, todas as dívidas fiscais (avultadas) posteriores à declaração de insolvência e resultantes da continuação em actividade da insolvente, as mesmas se devem considerar dívidas da massa insolvente para efeitos do artigo 51.º n.º 1 alínea c), do C.I.R.E. e, como tal devem ser pagas.
2. O Mmo Juiz “a quo” não se tendo pronunciado nem apreciado o aludido requerimento, na douta sentença agora posta em crise, tal implica necessariamente a nulidade da sentença, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 668.° n.° 1, alínea d) e 201.º, ambos do C.P.C."ex vi" 17.º do C.I.R.E., com as legais consequências.
3. A douta sentença não tendo apreciado os argumentos tecidos pela recorrente, entendemos que o plano de insolvência apresentado, aprovado e homologado, viola claramente os direitos do recorrente relativos aos créditos fiscais.
4. Dos autos não consta que a insolvente tenha aderido a qualquer plano de pagamento dos impostos em dívida; logo, tais dívidas apenas poderão ser pagas nos exactos termos do estatuído na Lei Fiscal e nos exactos termos considerados nos artigos 196. ° a 200.º ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
5. A relação jurídica tributária é enformada pelo princípio da indisponibilidade porquanto a incidência dos impostos, as taxas, as formas e tempos de pagamento bem como os benefícios fiscais são os estabelecidos na lei.
6. A diferenciação entre créditos públicos da mesma natureza e grau hierárquico, ofende o princípio de igualdade de tratamento entre os credores estabelecido consagrado no artigo 194.º do C.I.R.E. se não for prestado o consentimento do credor afectado.
7. Salvo lei expressa nesse sentido, não é possível ao Estado conceder perdões ou moratórias no seu pagamento - conforme artigos 103.º n. ° 2, da Constituição da República Portuguesa, 85.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 30.º n. ° 2 e 36.º n.º 3, ambos da Lei Geral Tributária.
8. Não podem, assim, os particulares decidir quanto ao regime de pagamento dos impostos.
9. As deliberações das Assembleias de Credores para Discussão e Votação de Plano de Insolvência terão sempre de respeitar os condicionalismos legais de pagamento das obrigações tributárias, sob pena de serem ilegais – artigos 294.º e 295.º, ambos do Código Civil.
10. O plano de insolvência aprovado com o voto contra da Fazenda Nacional não prevê um esquema de pagamento das dívidas fiscais que não se coaduna com o estabelecido nas leis tributárias, designadamente, artigo 196.º a 200.º ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
11. Consequentemente, a douta sentença que homologou o plano de insolvência violou o disposto em normas imperativas, designadamente, os artigos 103.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, 85.º n.ºs 1, 2, 3 e 196.º a 200.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 30.º n.º 2 e 36.º n.º3 da Lei Geral Tributária 192.º e ss e 215.º todos do C.I.R.E., 668.º n.° 1, al. d) e 201.º ambos do C.P.C.
Termina entendendo dever a sentença ser revogada.
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D) A apelada Fábrica.., Lda., apresentou contra-alegações onde entende dever o recurso ser julgado improcedente
E) Foram colhidos os vistos legais.
F) As questões a decidir neste recurso são as de saber:
1) Se a decisão que homologou o plano de insolvência é nula;
2) Se deverá manter-se a decisão que homologou o plano de insolvência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A) Considera-se provada a seguinte matéria de facto:
1) Nestes autos em que é insolvente “Fábrica.., Lda.”, na assembleia de credores para discussão e votação do plano de insolvência realizada em 13/07/2011, estando presentes credores que totalizavam 91,227% dos créditos reconhecidos, procedeu-se à votação, tendo os credores, que totalizam 75,005%dos créditos reconhecidos, votado favoravelmente;
2) Pelos credores Fazenda Nacional e J.., SA foi requerido um prazo de 10 dias para votarem por escrito, o que foi deferido, tendo a Fazenda Nacional, representada pelo Ministério Público votado contra o plano de insolvência;
3) A proposta do plano de insolvência apresentada pelo Administrador da Insolvência, que considera a empresa economicamente viável, consistia no seguinte:
I) – Redução dos créditos por perdão e moratória, nos seguintes termos:
A) Créditos comuns:
• Perdão de 50% dos créditos do capital do crédito reconhecido, perdão esse, subordinado à cláusula de «regresso de melhor fortuna».
• Inexigibilidade de juros vencidos, juros vincendos, custas, coimas ou outras quantias dessa natureza e relacionadas com créditos constituídos ou vencidos até ao final da data fixada para a reclamação de créditos.
• Pagamento dos 50% do capital do crédito reconhecido em 120 prestações mensais e sucessivas, com vencimento no final do décimo segundo mês após o trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de insolvência.
B) Créditos da Segurança Social:
• Pagamento do capital na íntegra, coimas, multas e custas, bem como dos juros vencidos, mas com limitação destes a 20%, uma vez que o perdão dos 80% do valor dos juros vencidos é imprescindível à viabilização da empresa, quer pelo montante em consideração, quer pelo facto de o pagamento da primeira prestação ocorrer nos trinta dias seguintes ao trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de insolvência, o que requer que a empresa possa dispor de algum fundo de maneio logo nesse momento, para honrar os compromissos.
• Pagamento do capital em dívida em 150 prestações mensais, iguais e sucessivas, sendo as primeiras 24 prestações, reduzidas a metade do valor das restantes, atendendo ao período necessário a assegurar a viabilidade financeira da empresa.
• Para garantia da dívida reclamada e reconhecida os sócios constituirão hipoteca voluntária em primeiro grau, sobre os seguintes imóveis: artigos 497º; 504º; 596º e 814º de Vila Seca – Barcelos e artigos 695º; 699º e 726º de Torrados – Felgueiras, bens esses, propriedade dos sócios e não afectos à exploração da empresa, sendo os juros vincendos calculados à taxa de 3%.
• A hipoteca voluntária em primeiro grau, será registada no prazo de 60 dias após a data do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano.
• O pagamento da primeira prestação, será realizado nos 30 dias após a data do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano.
C) Créditos das Finanças:
• Perdão do montante de 50% dos juros vencidos, juros vincendos, custas, coimas ou outras quantias dessa natureza e relacionadas com créditos constituídos ou vencidos até ao final da data fixada para a reclamação de créditos.
• Pagamento do capital do crédito reclamado/reconhecido em 120 prestações mensais e sucessivas, com vencimento no final do décimo segundo mês após o trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de insolvência; com prestação de garantia real de terceiros (designadamente dos sócios).
D) Regularização da dívida dos credores relacionados com contrato de trabalho.
• Inexigibilidade de juros vencidos, juros vincendos, custas, coimas ou outras quantias dessa natureza e relacionadas com créditos constituídos ou vencidos até ao final da data fixada para a reclamação de créditos.
• Pagamento da totalidade do valor do capital do crédito reconhecido.
• Manutenção dos contratos de trabalho.
4) Por força do despacho de fls. 24, foi homologado o plano de insolvência.
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B) O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (artigos 660.º n.º 2, 684.º n.º 2 e 3 e 685.º-A n.º 1 e 2, todos do Código de Processo Civil).
Vejamos.
C) Nas suas alegações o apelante veio invocar a nulidade da “sentença”, referindo que votou contra o plano da insolvência e o tribunal não se pronunciou sobre esse requerimento.
Há que dizer que na decisão de fls. 24, objecto do presente recurso, não obstante ser exígua na sua apreciação e fundamentação, a mesma não tinha de se pronunciar individualmente sobre cada um dos votos a favor ou contra o plano de insolvência, mas apreciar as consequências da votação, como fez, para efeitos de decidir, como fez, sobre a homologação ou não do mesmo, pelo que, inexiste a invocada nulidade.
Questão diversa é a de saber se deveria ou não ser homologado o plano de insolvência, o que se apreciará infra.
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Por força do disposto no artigo 212.º n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), “a proposta de plano de insolvência considera-se aprovada se, estando presentes ou representados na reunião credores cujos créditos constituam, pelo menos, um terço do total dos créditos com direito de voto, recolher mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções.”
Refere o apelante que “na proposta relativa ao pagamento dos créditos da Segurança Social não existe perdão para coimas e custas, nem existe moratória no princípio de pagamento das prestações que começam no mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Insolvência, estabelecendo um tratamento de forma diversa entre os credores para o qual necessitaria de cumprir os requisitos previstos no n.º 2 do artigo 192.º do C.I.R.E., dado que neste caso não existe o necessário consentimento legal expresso do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e por não ter sido dado consentimento pela Administração Tributária para o mesmo efeito, pelo que a manutenção desta proposta, com esta diferenciação entre créditos públicos da mesma natureza e grau hierárquico, ofende o princípio de igualdade de tratamento entre os credores estabelecido consagrado no artigo 194.º do C.I.R.E.”.
A este propósito, afigura-se-nos dever referir-se que no artigo 192.º n.º 2 do CIRE se estabelece que “o plano só pode afectar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados, ou interferir com direitos de terceiros, na medida em que tal seja expressamente autorizado neste título ou consentido pelos visados.”
Simplesmente, há que ter em conta que este normativo pretende impedir que, por força da violação do princípio do tratamento igualitário dos credores, que estes, perante o plano proposto, face ao tratamento desigual, venham a ser prejudicados pelas medidas propostas, mas já não que sejam beneficiados.
Expliquemo-nos melhor.
Se é proposto um plano em que se estabelece um perdão dos créditos e dos juros em 50%, para os credores A, B, C e D, cujos créditos representam, p. e., 80%, e de 10% apenas nos juros dos créditos do credor E, que representa, p. e., 20%, ninguém tem dúvidas que os critérios não são iguais para todos os credores e, no entanto, se o plano for aprovado por aqueles credores A, B, C e D, o crédito deste E não sairá prejudicado, no confronto de todos os créditos, não obstante ter um tratamento diferente dos demais.
Neste tipo de situações, não se poderá falar numa violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores dado que se verifica uma discriminação positiva do credor E, e se os credores negativamente discriminados aceitam tal situação, não deverá ser permitido ao credor beneficiado que impugne eficazmente aquele plano.
Cremos ser esta a perspectiva legal, nos termos do disposto no artigo 194.º do CIRE.
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Conforme se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 01/06/2010, relatado pelo Desembargador Carlos Moreira, disponível no endereço www.dgsi.pt, onde se apreciam as questões suscitadas neste recurso e, designadamente a questão da (im)possibilidade, por violação de normas imperativas tributárias, de, em processo de insolvência, os credores, no plano de insolvência, poderem acordar quanto à alteração das dívidas fiscais, vg., diferimento do início do seu pagamento e perdão dos respectivos juros de mora, refere-se que:
“A questão tem vindo ultimamente a ser colocada com frequência à apreciação dos tribunais superiores.
E, numa pesquisa a este respeito, conclui-se que a maioria da jurisprudência destes tribunais, tem vindo a adoptar, reiterada e sedimentadamente, a posição ora assumida no tribunal recorrido.
Por várias ordens de razões ou factores.
Em primeiro lugar considerando a natureza e as finalidades prosseguidas com o processo de insolvência e no qual foi atingido um elevado grau de desjudicialização e supletividade do seu regime legal, em benefício dos poderes conferidos aos credores.
Consoante o preâmbulo do DL 52/2004, de 18 de Março o «objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores» e, uma vez que o património do devedor é a garantia comum dos créditos «é aos credores que cumpre decidir quanto à melhor efectivação dessa garantia».
Rompendo com o regime anterior, o novo diploma consagra um claro retorno ao princípio da falência liquidação em benefício dos credores em prejuízo da recuperação da empresa como era previsto nos artigos 1º, 2º e 3º do CPEREF;
Na verdade, esta última finalidade, de natureza manifestamente secundária, quasi incidental – artigo 195º nº 2 alínea b) do CIRE - só surge na medida em que é instrumento ao serviço do interesse dos credores.
Efectivamente, «Com o …CIRE… o fim da recuperação é subalternizado e a garantia patrimonial dos credores elevada a finalidade única, que orienta todo o regime… conferindo a soberania aos credores. É(são), neste ponto, paradigmático(s) o(s)… artºs… 52, 53, 56-2, 59…- José Lebre de Freitas in Pressupostos Objectivos e Subjectivos da Insolvência, Revista Themis da Faculdade de Direito da UNL, 2005, p.12.
O CIRE dá primazia à vontade dos credores, enquanto titulares do principal interesse que o direito concursal visa acautelar: o pagamento dos respectivos créditos.
Mas não em si mesmos, e das suas garantias, absolutamente considerados, antes em condições de igualdade, proporcionalidade e equidade, impostas essencialmente por virtude do prejuízo decorrente de o património do devedor não ser, à partida e na generalidade dos casos, suficiente para satisfazer os seus direitos de forma integral.
Este objectivo está plasmado logo no art. 1º do CIRE, onde se estabelece que «o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência (…)».
Assim e no que ao plano de insolvência concerne, nele os credores podem acordar quanto ao pagamento dos créditos e à liquidação da massa insolvente, desde logo com derrogação das normas do CIRE, posto que tal fique expressamente vertido no plano – artºs 193º e 197º.
Em segundo lugar há que atentar que o plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência – par conditio creditorum - sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas – artº 194º nº1.
Ora, «a razão objectiva porventura mais clara que fundamenta a diferença de tratamento dos credores assenta na distinta classificação dos créditos, nos termos em que está agora assumida, no art. 47º, do Código.
Para além disso, dentro da mesma categoria há motivos para destrinçar conforme o grau hierárquico que couber aos vários créditos. O que está vedado é, na falta de acordo dos credores, sujeitar a regimes diferentes credores em circunstâncias idênticas». - Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, de vol.II, pág. 45.
Certo é que este segmento normativo nenhuma alusão expressa faz com vista a excepcionar os créditos da Fazenda Nacional ou da Segurança Social.
Nesta conformidade, preceitua o art. 196º, a respeito do conteúdo do plano de insolvência, que:
«1- O plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências com incidência no passivo do devedor:
a) O perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula "salvo regresso de melhor fortuna";
(…)
c) A modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos.»
De notar que o nº 2 do mesmo artigo define aquilo que não pode ser afectado pelo plano de insolvência e ali não é feita nenhuma referência aos créditos da Fazenda Nacional e da Segurança Social, privilegiados ou não.
E ainda que o CIRE não impõe, para que o plano seja vinculativo, quer para o Estado – Fazenda Nacional - quer para a Segurança Social, a adesão ou autorização de tais credores quando os seus créditos sejam afectados.
Sendo ainda de salientar que, nos termos do art. 97º nº1 als. a) e b) do CIRE com a declaração de falência se extinguem os privilégios creditórios gerais e especiais acessórios de créditos sobre a insolvência de que sejam titulares o Estado e a Segurança Social, respectivamente constituídos mais de 12 meses antes da data do inicio do processo de insolvência e vencidos constituídos mais de 12 meses antes da data do inicio do processo de insolvência.
Pelo que aqueles credores, quanto a créditos naquelas circunstâncias, passam a ter o tratamento dos credores comuns e a correr, com estes, as contingências da liquidação da massa falida.
Aliás, a dispensa da concordância de todos os credores para a homologação do plano de insolvência e a irrelevância da oposição infundamentada: artº 216º do CIRE de um qualquer deles para que o plano o vincule, constitui um meio importante para a facilitação da aprovação dos planos e a consecução dos desideratos por eles pretendidos – atendimento igualitário, proporcional e equitativo dos interesses dos credores e satisfação do interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado - os quais, de outro modo, poderiam ser travados com frequência.
Não sendo justo e razoável, na economia da idiossincrasia do CIRE e dos seus fitos, que o mesmo Estado, na sua vertente de Administração Fiscal, impondo que lhe fosse aplicado um regime jurídico diferente dos restantes credores, pudesse inviabilizar essas mesmas finalidades.
Em terceiro lugar na consideração da mais adequada interpretação - no que tange ao seu aspecto vinculativo e aos seus destinatários - que se deve fazer do disposto nas leis tributárias, atentos os elementos sistemático, teleológico e histórico da hermenêutica jurídica.
Na verdade, estabelece-se no 30º, nº2, da LGT, aprovada pelo DL n.º 398/98, de 17.12. que:
«O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.»
E prescreve o art. 36º, nº3:
«A administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei.»
Por seu turno dispõe o art. 85º do Código de Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo DL n.º 433/99, de 26-10:
1 - Os prazos de pagamento voluntário dos tributos são regulados nas leis tributárias.
2 - Nos casos em que as leis tributárias não estabeleçam prazo de pagamento, este será de 30 dias após a notificação para pagamento efectuada pêlos serviços competentes.
3 - A concessão da moratória ou a suspensão da execução fiscal fora dos casos previstos na lei, quando dolosas, são fundamento de responsabilidade tributária subsidiária.
4 - A responsabilidade subsidiária prevista no número anterior depende de condenação disciplinar ou criminal do responsável.»
Ora, e por um lado, há, desde logo, que atentar que a imperatividade de tais normas não tem cariz absoluto, pois que, nos termos do art. 196.º, n.ºs 1, 4 e 5, do CPPT:
1 – As dívidas exigíveis em processo executivo poderão ser pagas em prestações mensais e iguais, mediante requerimento a dirigir, no prazo de oposição, ao órgão da execução fiscal.
4 – O pagamento em prestações pode ser autorizado desde que se verifique que o executado, pela sua situação económica, não pode solver a dívida de uma só vez, não devendo o número das prestações em caso algum exceder 36 e o valor de qualquer delas ser inferior a 1 unidade de conta no momento da autorização.
5 – Nos casos em que se demonstre notória dificuldade financeira e previsíveis consequências económicas para os devedores, poderá ser alargado o número de prestações mensais até 5 anos, se a dívida exequenda exceder 500 unidades de conta no momento da autorização, não podendo então nenhuma delas ser inferior a 10 unidades da conta.
E que, nos termos do artº 180º do mesmo diploma:
«1 - Proferido o despacho judicial de prosseguimento da acção de recuperação da empresa ou declarada falência, serão sustados os processos de execução fiscal que se encontrem pendentes e todos os que de novo vierem a ser instaurados contra a mesma empresa, logo após a sua instauração.
2 - O tribunal judicial competente avocará os processos de execução fiscal pendentes, os quais serão apensados ao processo de recuperação ou ao processo de falência, onde o Ministério Público reclamará o pagamento dos respectivos créditos pelos meios aí previstos, se não estiver constituído mandatário especial.»
O que tudo significa que estando em curso o processo de insolvência o pagamento das dívidas fiscais do insolvente fica sujeito ao regime do CIRE.
Por outro lado e não se pondo em causa o carácter imperativo destas normas, há que convir que a melhor interpretação clama no sentido de que elas só têm o seu campo de aplicação na relação tributária, em sentido estrito, ou seja, no domínio das relações entre a administração tributária, agindo como tal, e os contribuintes.
Mas não já no contexto de processo especial, como é o processo de insolvência, onde, como se viu, a posição e actuação da Fazenda Nacional se situa num plano perfeitamente distinto, ou seja - e em observância do tendencial princípio da igualdade entre os credores - despido do seu jus imperii, único factor que o colocaria numa situação de tratamento privilegiado perante os demais.
Ao ser decretada a insolvência, este binómio – Estado/Contribuinte - sofre como que uma transmutação ou metamorfose: o contribuinte transformou-se no insolvente e o Estado um “mero” credor, sujeito às regras do regime do CIRE, uma das quais é a de que deve estar em pé de igualdade com os demais credores.
Na verdade através do CIRE, criou-se um mecanismo especial, para uma situação peculiar e para uma específica categoria de intervenientes processuais: os insolventes e os seus credores.
Sendo que, pelo que se disse, as regras fiscais supra aludidas, atenta a sua essência e ratio, simplesmente não têm campo de aplicação, neste campo, o que, se o legislador do CIRE tal pretendesse, facilmente nele o poderia ter consignado.
Na verdade e como impressiva e expressivamente já se expendeu: «O Estado soberano que elaborou as leis que protegem os seus créditos de impostos e de contribuições à Segurança Social — com prazos, garantias e exigências próprias — é o mesmo Estado soberano que fez o CIRE, pelo que, aquando da elaboração deste, conhecia bem a existência daquelas.
Daí que se não possa pensar que pretendeu um sistema absolutamente conflituante e que se anula à partida, pois que se se mantivessem num Plano de Insolvência todas aquelas regras que usualmente blindam os créditos do Estado, nenhuma empresa seria recuperável e o CIRE não serviria para nada.» - Ac. da Relação do Porto de 02.02.2010,p. 1671/08.5TJVNF-D.P1.
Neste sentido cfr ainda os Acs. do STJ 04.06.2009 dgsi.pt, p. 464/07.1 TBSJM-L.S1, de 13.01.2009, p. 08A3763 –citados na sentença – e de 02-03.2010, p. 4554/08.5TBLRA-F.C1.S1; Acs. da Relação de Lisboa de 30.10.2008, p. 8662/2008-2, de 05.02.2009, p. 10934/2008-6, de 06.07.2009, p. 644/06.7TYLSB-H.L1-7, e de 25.02.2010, p. 1.192/2007.3TYLSB-I.L1-8 e da Relação do Porto de 09.02.2010 p. 1589/06.6TBMCN-F.P1.
E nem se diga que esta interpretação acarreta uma inconstitucionalidade orgânica e material porque violadora dos artºs 103º nºs 2 e 3 e 165º nº1 al.i) da Constituição.
Nos termos do nº 2 do art. 103º da Constituição «os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes».
Ora os credores, no plano de insolvência, não criam ou modificam qualquer imposto, nem alteram ou derrogam, no âmbito de uma qualquer relação fiscal ou de procedimento tributário, qualquer norma da LGT ou do CPPT, limitando-se, como se disse, a regular a forma de pagamento daqueles, concretos, créditos sobre a insolvência e actuando no âmbito de uma relação jurídica especial estabelecida entre os credores da insolvente e esta.
Por outro lado não existe tal violação de normas fiscais imperativas uma vez que a sua derrogação, na sua génese, não se verifica por vontade das partes ou dos credores, mas em observância de um regime especial criado pelo próprio legislador e plasmado no CIRE, o qual, em termos de hierarquia das leis se situa no mesmo plano das normas fiscais – Ac. do STJ de 02-03.2010 supra citado e Ac. da Relação do Porto de 16.03.2010, dgsi.pt, p. 112/09.5TYVNG.P1.”
E nem se diga que a alteração prevista no n.º 3 do artigo 30.º da LGT, introduzida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, veio alterar a posição que se defende.
Como muito bem se refere no acórdão desta Relação de Guimarães de 18/10/2012, relatado pela Desembargadora Catarina Gonçalves, não tendo sido alterada a redacção do n.º 2 do artigo 30.º da LGT, dai resulta que a indisponibilidade do crédito por impostos não é absoluta, dado que, além do mais o artigo 36.º n.º 3 do mesmo diploma, nos casos expressamente previstos na lei, a administração tributária pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias e, como decorre do art. 42º, pode autorizar o pagamento em prestações.
“Ou seja, a indisponibilidade do crédito tributário a que alude a norma em questão significa apenas que a administração tributária não pode dispor livremente desse crédito e, portanto, ao contrário do que sucede com qualquer outro credor, não pode, em qualquer caso, em qualquer circunstância e por sua livre iniciativa, perdoar, reduzir ou alterar os créditos tributários.
Isso não significa, contudo, que esses créditos não possam ser objecto de perdão, redução, moratória ou qualquer alteração; significa apenas que estes actos estão sujeitos aos princípios da igualdade e da legalidade tributária, princípios estes que, aliás, dominam na legislação tributária (cfr. arts. 5º, 8º, 55º da LGT).
E compreende-se que assim seja.
De facto, atendendo à natureza dos créditos em questão (que, segundo o art. 5º da LGT visam a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas e promovem a justiça social, a igualdade de oportunidades e as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento), seria intolerável que o Estado impusesse aos respectivos sujeitos passivos o cumprimento das obrigações tributárias com aquelas finalidades para depois permitir que, caso a caso, independentemente de qualquer critério objectivo e em função de interesses ou critérios mais ou menos obscuros, a administração tributária pudesse livremente perdoar ou reduzir esses créditos, beneficiando determinados sujeitos passivos e contornando, por essa via, os objectivos da relação jurídica tributária e o princípio da igualdade a que está submetida.
Mas, como resulta expressamente da LGT e, designadamente, do nº 2 do seu art. 30º, o crédito tributário pode ser reduzido ou extinto, desde que seja respeitado o princípio da igualdade e da legalidade tributária e, nessa medida, nada obstará à homologação de um plano de insolvência que inclua essa redução ou extinção.
Com efeito, o perdão ou a redução de créditos no âmbito de um plano de insolvência validamente aprovado pelos credores (ainda que, com a oposição da administração tributária), não correspondendo a qualquer violação do princípio da legalidade tributária, também não viola o princípio da igualdade, porquanto este princípio pressupõe um tratamento igual para o que é igual e um tratamento desigual para o que é desigual.
Ora, estando em causa um sujeito passivo que se encontra em situação de insolvência é evidente que o mesmo não tem que receber tratamento idêntico àquele que, não se encontrando nessa situação, tem capacidade económica para cumprir pontualmente as suas obrigações. E a verdade é que o legislador consagrou um tratamento diferenciado para os insolventes através do regime que instituiu com o Código da Insolvência, impondo, designadamente, aos credores a sua vinculação a um plano de insolvência, ainda que os mesmos não tenham dado o seu acordo para o perdão ou redução dos respectivos créditos que conste desse plano.
É certo, por isso, que, ao ficar vinculada a um plano de insolvência que inclua o perdão ou redução dos seus créditos, a administração tributária não está a dispor do crédito tributário em violação ao disposto no citado art. 30º, nº 2; ao ficar vinculada a esse plano, a administração tributária apenas fica submetida ao regime especial que o legislador impôs à generalidade dos credores sempre que está em causa uma pessoa insolvente, sem que tal importe uma qualquer violação dos princípios da legalidade tributária e da igualdade.”
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Do exposto resulta que a apelação terá de improceder e, em consequência, manter-se a douta decisão recorrida.
D) Em conclusão:
1) O artigo 192.º n.º 2 do CIRE pretende impedir que, por força da violação do princípio do tratamento igualitário dos credores, estes, perante o plano proposto, face ao tratamento desigual, venham a ser prejudicados pelas medidas propostas, mas já não que sejam beneficiados;
2) O objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores e, uma vez que o património do devedor é a garantia comum dos créditos é aos credores que cumpre decidir quanto à melhor efectivação dessa garantia.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, tendo em conta o que antecede, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a douta decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante.
Notifique.
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Guimarães, 06/03/2012