Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
218/12.3TAPRG.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: CRIME
DIFAMAÇÃO
EXPRESSÃO OFENSIVA
PENA
REABERTURA DA AUDIÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) Nos crimes contra a honra, tal como acontece em muitos outros, há um patamar mínimo exigível de carga ofensiva, abaixo do qual não se justifica a tutela penal.
II) As palavras «invejosa» e « comilona», escritas, como no caso destes autos, nos âmbito de desavenças familiares, em que uma das partes se queixa de o pai da família favorecer economicamente uma filha, não têm a carga ofensiva necessária para merecer a tutela penal
Serão materialmente injustas, revelarão uma personalidade pouco cortês, mas não ultrapassam o patamar de simples expressões azedas, acintosas ou agressivas.
III) Já o mesmo não sucede com a palavra «chula».
É que ao usar-se esta expressão, quer-se significar, vulgarmente, uma pessoa que explora economicamente prostitutas e, por isso, tal imputação ofende a honra do visado, porque, objectivamente, com ela se imputa um comportamento e um modo de vida que constitui crime.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
No 2º Juízo do Tribunal Judicial de Peso da Régua, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc.nº 218/12.3TAPRG), foi proferida sentença que decidiu (transcreve-se):
a) Condenar o arguido Joaquim J. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, previsto e punido no artigo 180. o do C6digo Penal na pena de 90 dias de multa;
b) Condenar o arguido Joaquim J. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, previsto e punido no artigo 180. o do C6digo Penal na pena de 90 dias de multa;
c) Condenar o arguido Joaquim J. pela prática, em autoria material e na forma consumada, pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.°, n. (1 1 do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multai
d) Em CÚMULO JURÍDICO, condenar o arguido na pena única de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros);
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No que respeita à responsabilidade civil, decide julgar-se parcialmente procedente, por provado nessa medida, o pedido de indemnização civil, deduzido pela assistente/demandante, e, em consequência;
f) Condenar o demandado Joaquim J. a pagar à demandante Fátima M. uma indemnização no montante global de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), a titulo de danos não patrimoniais, acrescidos os juros de mora, à taxa legal, desde a notificação até ao integral pagamento da mesma.
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O arguido Joaquim J. interpôs recurso desta sentença, alegando, em resumo:
- são verdadeiras as imputações que constam da sentença;
- a sentença é nula por ter condenado por factos diversos dos constantes da acusação;
- as expressões chula, invejosa, comilona consubstanciam apenas uma crítica que não põe em causa a honorabilidade da visada, não integrando a prática dos crimes por que foi condenado;
- a pena aplicada peca por excessiva;
- não pode haver lugar à indemnização cível, sendo o montante desta, em todo o caso, excessivo.
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Respondendo, a magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido e a assistente Fátima M. defenderam a improcedência do recurso.
Nesta instância, a sra. procuradora-geral adjunta emitiu parecer no sentido de ser declarada nula a sentença por não ter sido averiguado plenamente a situação económica do arguido, devendo ser ordenada a reabertura da audiência para tal efeito.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. No dia 29 de Janeiro de 2012, o arguido, do telemóvel com o nº …, pelas 22:05:46 horas, enviou uma mensagem para o telemóvel do pai da assistente, com o nº …, com o seguinte teor: "Já decidiu o dia que quer ir para o laboratório douro fazer teste paternidade. lá lhe disse que quero saber se sou seu filho ou seu irmão. O seu nome e o meu já estão no laboratório, só basta ir lá comigo. Se não quiser diga já, assim meto já a aÇão no tribunal. Ate porque por todo o mal que me tem feito justifica o teste e estou a fazer um favor já que pediu que o marcasse. Fiquei também a saber que foi você quem pagou e paga a casa a essa chula, invejosa, comilona que vive consigo. Q.";
2.O autor das mensagens é o arguido, irmão da assistente;
3.O arguido assina Q., diminutivo pelo qual é conhecido pelos membros da família e amigos;
4.O arguido ao referir-se à pessoa que vive com o pai e a quem o pai alegadamente pagou e paga a casa está a referir-se à assistente, sua irmã;
5.A assistente viveu e vive, desde sempre, com os seus pais, mesmo depois de casar;
6.A assistente vive com os seus pais, o seu marido e duas filhas, não vivendo mais ninguém com eles;
7.A assistente adquiriu, por compra e venda, um imóvel em (…), tendo contraído empréstimo bancário para a sua aquisição, cuja prestação mensal é paga através dos seus rendimentos e do marido;
8.A assistente provém ao seu sustento, marido e filhas, contribuindo para as despesas da casa mensalmente;
9.No dia 29 de Janeiro de 2012, o arguido, do telemóvel com o nº…, pelas 22:07:18 horas, enviou a mensagem acima descrita para o telemóvel da sua mãe, com o nº …;
10.No dia 31 de Janeiro de 2012, o arguido, do telemóvel com o n.º …, pelas 12:45:59 horas, enviou a mensagem acima descrita para o telemóvel da assistente, sua irmã, com o nº…;
11.O arguido afirma nas mensagens que envia para seus pais e assistente que a mesma
12.Devido à descrita actuação do arguido, o que tem desgostado a assistente, que se sente envergonhada e enxovalhada na sua honra e dignidade;
13.A denunciante é pessoa conhecida e respeitada por toda a gente que com ela convive nesta cidade, pois que nela nasceu, estudou e sempre trabalhou, nomeadamente nos Serviços de C. e actualmente na Secretaria da (…) de (…);
14.As expressões referidas foram proferidas, por escrito, pelo arguido livre E conscientemente, com o manifesto intuito de atingir a assistente na sua honra e dignidade, bem como na consideração social que desfruta no meio social em que vive;
15.Os mencionados epítetos foram, através de mensagens escritas por este, proferidos pelo arguido repetidamente, de livre vontade e conscientemente, foram recepcionados, lidos e percebidos por quem os leu, nomeadamente os pais de assistente e ela própria, bem como quem estava com a mesma no momento em que recepcionou a mensagem, e que dado o seu visível transtorno, a acabou por visionar;
16.Ao agir assim, o arguido fê-lo com manifesto propósito de atingir a assistente na sua honra e dignidade, bem como na consideração social que desfruta no meio em que vive, desiderato que logrou plenamente alcançar, não ignorando que a sua conduta era criminalmente proibida e punida por lei.
17.A demandante ao ouvir tais epítetos e expressões sentiu-se e sente-se profundamente vexada, humilhada e triste:
18.Mesmo, depois disso, até ao presente, sempre que se lembra das expressões de demandado, seu irmão, dá por si a sentir revolta interior e tristeza;
19.Até pelas repercussões que tais expressões atingem, como atingiram, o seio familiar da assistente, bem corno entre os seus amigos, onde elas tiveram divulgação;
20.O arguido intentou urna acção de condenação contra a assistente e enviou-lhe a carta junta a folhas 159 a 160, destes autos, cujo teor se dá como reproduzido.
»No que concerne aos antecedentes criminais do arguido, provou-se ainda que:
21.Do certificado do registo criminal do arguido, não consta a menção à condenação anterior de ilícitos criminais.
»No que concerne à condição económica e social do arguido, mais se provou que:
22.O arguido é casado e pai de um filho de 04 anos, em fase pré-escolar;
23.O arguido reside em casa paga que está em nome do filho;
24.O arguido é (…), na (…), auferindo o rendimento mensal de € 950,00 mensais;
25.O arguido tem o 7.° ano de liceu.
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Considerou-se não provado que:
• Vivendo constantemente amargurada, não conseguindo furtar-se a frequentes momentos de abatimento moral, diversas vezes expressos em incontida choro;
• No descrito em 19. onde notoriamente passou a ser vista por todos como uma "coitada" e como uma pobre sem defesa, que é impiedosamente humilhada pelo seu irmão;
• O arguido tenha enviado por lapso a mensagem acima mencionada à assistente;
• A assistente, durante o ano de 2009 e princípios de 2010, pediu emprestados ao arguido cerca de € 500,00 mensais que o arguido lhe entregou, sem qualquer tipo de garantia, por se tratar da sua irmão e esta repetidamente lhe dizer que lhos iria pagar;
• Tempos passaram e a assistente nada lhe pagou, muito embora o arguido lhe tivesse pedido por escrito, publicamente e em voz alta a quantia que lhe entregou, num total de € 5.000,00, não tendo a assistente negado tal quantia, apenas dizendo "não te conheço" ;
• A ofendida passa pelo arguido e família - designadamente por sua mulher e filho - com total à vontade, sem denotar qualquer mágoa ou consternação tendo até o arguido sido já ameaçado de agressão física, tendo este de retirar do local e até "fingir" não ouvir e não perceber da ofendida o gesto de mão no ar como quem diz "vais pagá-las".
Os demais factos não vertidos na decisão de facto revelaram-se uns conclusivos outros matéria de direito.
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Transcreve-se igualmente a motivação da decisão sobre a matéria de facto
A Convicção do Tribunal assentou na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, filtrada pelas máximas da experiência comum e das regras do direito probatório, aferindo-se do conhecimento de causa e isenção de cada um dos depoimentos prestados, de acordo com o artigo 127.° do Código de Processo Penal.
Foram igualmente ponderados os documentos de folhas 06 a 11 e 16 a 33 (fotografias de mensagem no telemóvel), 11 a 14 (fotocópia não certificada de Registo Predial), 15 (atestado emitido pela Junta de Freguesia de (…), 73 (informação da "Optimus"), 96 (informação Caixa Geral de Depósitos, S.A.), 128 (impressão fotográfica), 151 a 152 (declaração assinada pelo arguido), 159 a 161 (comunicação), 230 a 239 (documentos), 292 a 293 (declaração médica) e 255 (certificado do registo criminal do arguido).
Esclarecido sobre o direito em prestar declarações ou em não prestar declarações, o arguido prestou declarações, assumindo a ocorrência e autoria dos factos descritos de 1 a 4 e 9 a 11. Das suas declarações confirmam-se os utilizadores de cada um dos números de telemóvel identificados e, portanto, os destinatários das mensagens. Circunstância corroborada pelos documentos acima referidos de folhas 06 a 11 e 16 a 33, 11 a 14, 15, 73 e 96.
A demonstração dos factos 5 a 8 e 12 a 16 assenta nas declarações da assistente Fátima M. e das testemunhas António H. e Maria
Do conjunto das declarações da assistente e das testemunhas em apreço resulta que o arguido sabia perfeitamente que estava a enviar a mensagem com o teor apurado para o seu pai, a sua mãe (testemunhas) e sua irmã (a assistente); não se tratando de qualquer lapso.
Não colhe a argumentação do arguido quando refere que, com aquela mensagem, apenas visava o seu pai com a questão da paternidade e não a sua irmã.
Com efeito, querendo visar apenas o seu pai, em nada se justifica que tenha enviado a mensagem à sua mãe, nem tão pouco à assistente.
Além disso, a mensagem é composta por duas ideias estruturantes: uma dirigindo-se e referindo-se ao seu pai para realização do teste de paternidade no laboratório já escolhido, ou em alternativa, o recurso a uma acção judicial; outra dirigindo-se e referindo-se à sua irmã como uma uma “chula", “invejosa" e “comilona" .
A primeira parte justifica o arguido no facto de o pai, no contexto de desavenças familiares, ter dito que apenas tinha duas netas (as filhas da assistente). Entende, assim, o arguido que o seu pai não é o seu pai biológico.
A segunda parte justifica no facto de achar que a assistente sua irmã vive à custa dos pais e pelo facto de estes lhe pagarem a casa de (…).
Ora, cada uma das ideias referidas não tem conexão uma com a outra. O motivo e a fundamentação de cada uma delas revelam razões e motivações distintas. Sentindo-se o arguido revoltado (e revoltado como justificou por sentir diferença de tratamento em relação à sua irmã), s6 faz sentido se se aceitar que o mesmo pretendia atingir separadamente pessoas distintas.
Sempre se dirá que, se o arguido não pretendia referir-se, nem dirigir-se à assistente, não a teria referido na mensagem, nem enviado essa mensagem àquela, usando os adjectivos que usou.
Curiosamente, o arguido nega apenas o que está em discussão nestes autos e não a parte referente ao pai, que não lançou mão de qualquer mecanismo judicial para reagir contra a aludida mensagem.
A relação familiar entre o arguido, os seus pais e a assistente tem sido pautada por desavenças e momentos de conflito que evidenciam que nada disto aconteceu à toa, nem por engano do arguido.
Confessada a autoria pelo arguido da declaração de folhas 151 a 152, dúvidas não restam que o arguido agiu intencionalmente.
O arguido conhecia e sabia os factos que estava a praticar, em relação às pessoas concretas, nomeadamente, a assistente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei penal.
As declarações da assistente e das testemunhas referidas foram valoradas positivamente, como exposto, porquanto se revelaram mais credíveis, isentas e verosímeis, uma vez que consentâneas com as regras do normal acontecer das coisas.
Do conjunto da prova a que vimos fazendo referência salienta-se que a assistente e o seu marido têm rendimentos próprios e que a sua vida pessoal e a educação das suas filhas é financeiramente suportada pelos próprios. Assim também em despesas domésticas.
A testemunha Catarina M. reforça a convicção dos factos 10 a
19. A testemunha depôs de forma isenta e escorreita.
Assim também quanto à testemunha Ana P.. Neste momento importa referir o seguinte.
Ficou claro que o estado emocional da demandante/ assistente relatado pela mesma resulta, actualmente, de um conjunto de circunstâncias que foram ocorrendo ao longo do tempo e respeitantes ao seu irmão. Nesse sentido vai igualmente a declaração médica de folhas 292 a 293 que refere que a assistente terá começado a tomar medicação em Janeiro de 2014.
Não obstante, nada impede que à data a demandante/ assistente se tenha sentido como triste e humilhada, tal como se dá como provado. Temos como assente que existia um convívio de anos com o arguido que se desfez. Assim sendo, a alteração dessa relação familiar associada à imputação dos nomes que se dão como provados é susceptível de gerar os sentimentos dados como provados.
O certificado do registo criminal do arguido atesta a inexistência de antecedentes criminais.
As suas declarações foram valara das para os factos da sua condição económica e social, nos termos que se dão como provados.
O facto 20 assenta nos documentos de folhas 159 a 160 e 230 a 239.
Ainda assim, sempre se dirá que os mesmos, estando em oposição com os factos que se dão como provados, resultariam como não provados. Acresce que a motivação que se expende sustenta aqueles factos provados e não os não provados.
Os depoimentos de Maria J. e Alberto Ó. não foram valorados positivamente. As testemunhas apresentam testemunhos muito opinativos e pouco objectivos, motivo pelo qual não mereceram credibilidade. Afirmam ter conhecimento directo dos factos que relatam, sendo que em relação muitos deles apenas têm conhecimento indirecto.
Ainda que admitindo que venham a Peso da Régua com regularidade, estranha-se que, sobretudo no caso de Alberto V., as testemunham afirmem que vêm Teresa C. todos os dias ir buscar comida ao almoço e que essa comida é também para as netas. Ou bem que estão em Vila Real ou bem que estão em Peso da Régua. E mesmo vindo cá (o que é diferente de residir cá), estranha-se que estejam sempre posicionados em jeito de ver com tanta certeza a rotina daquela família.
A impressão fotográfica de folhas 128 não assume qualquer importância nestes autos. Não identifica data, nem circunstância temporal. Ademais, nada impede que a assistente use uma prenda que o arguido lhe tenha oferecido. Sendo essa questão marginal aos factos em discussão.

FUNDAMENTAÇÃO
1 – A nulidade da sentença recorrida por ter condenado por factos diversos dos descritos na acusação e por o tribunal conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento – art. 379 nº 1 als. b) e c) do CPP
O fundamento da nulidade (transcreve-se):
O sr. juiz deu “como provados factos que não se encontravam alegados na acusação particular deduzida pela ofendida, desde logo a invocação de uma depressão nervosa sofrida pela mesma… (…) conforme se pode ver nas pags. 6 e 8 da parte da convicção do tribunal da douta sentença recorrida”.
Pouco há a dizer.
Lendo-se o elenco dos factos provados não se vê algum em que tenha sido considerado provado que a ofendida sofre de depressão nervosa.
O recorrente ao remeter para a fundamentação da convicção do julgador, confunde o princípio do acusatório, que tem consagração constitucional (art. 32 nº 5 da CRP), com o princípio da “investigação”.
O primeiro (o da acusação) apenas permite ao tribunal julgar dentro dos limites de facto que lhe são postos pela acusação. É a acusação que define e fixa, perante o tribunal, o objeto do processo. Essa a razão da nulidade cominada pelo art. 379 nº 1 al. b) do CPP, se a sentença condenar por factos diversos do que constam na acusação ou na pronúncia.
Diferentemente, o «princípio da investigação» diz-nos que o tribunal tem “o poder-dever de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e da defesa, o «facto» sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as bases necessárias à sua decisão” – Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pag. 148. É um princípio que diz respeito à «prova», não à delimitação do objeto do processo penal.
Daí que a nulidade em apreço se tenha de reportar aos «factos» que o tribunal deu como «provados» e não aos elementos de prova de que o tribunal se socorreu para a sua decisão.
Improcede, pois, a nulidade.
2 – O arguido, em três sms, referiu-se à assistente como sendo «chula, invejosa, comilona». Um foi enviado ao pai da assistente e do arguido, outro à mãe e o terceiro à própria assistente.
A questão do recurso está em saber se aquelas palavras ofendem, de modo penalmente relevante, a honra da assistente. Nos crimes contra a honra, tal como acontece em muito outros, há um patamar mínimo exigível de carga ofensiva, abaixo do qual não se justifica a tutela penal.
Na motivação do recurso o arguido distrai-se com questões laterais, como a tentativa da prova da verdade dos factos (cfr. art. 180 nº 2 do Cod. Penal), quando tal prova sempre seria impossível, porque as expressões em causa não contêm «factos» mas «juízos» do arguido sobre a assistente. Escreveu-se em sentença de 8 de Julho de 1986 do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que “deve distinguir-se com precisão entre «factos» e «juízos de valor». Se a materialidade dos primeiros pode ser provada, os segundos não podem em nenhum caso prestar-se a uma demonstração da sua exatidão”.
Vejamos, então.
Tem sido jurisprudência desta Relação de Guimarães que “existem expressões, comunitariamente tidas como obscenas ou soezes, que, objetivamente, atingem a honra do visado, a não ser que se demonstre que este as emprega usualmente e aceita sempre receber a carga de ofensividade que é inerente a elas”. Neste sentido veja-se os acórdãos de 30/11/2009, proferido no recurso 574/06.2TAVVD.G1, relatora Nazaré Saraiva; de 3-11-2014, recurso 187/12.0GBVRM.G1, relator Tomé Branco; e de 10-07-2014, recurso 800/11.6GAFAF.G1, com o mesmo relator deste, todos disponíveis no sítio do ITIJ (nesses recursos estavam em causa expressões como «filho da puta» e «cabrão»).
É certo que o atentado à honra não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez ou mesmo com a grosseria. Como se escreveu em acórdãos muito citados da Relação do Porto, relatados pelo agora conselheiro Manuel Braz “é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente incomodada por outra “pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função” – acs. de 12-6-02, Recurso 332/02 e de 26-11-03, Proc. 0315188.
As palavras «invejosa» e «comilona», escritas, como no caso destes autos, no âmbito de desavenças familiares, em que uma das partes se queixa de o pai da família favorecer economicamente uma filha (cfr. facto provado nº 4), não têm a carga de ofensiva necessária para merecer tutela penal. Serão materialmente injustas (não é isso que está em causa nos crimes contra a honra), revelarão uma personalidade pouco cortês, mas não ultrapassam o patamar de simples expressões azedas, acintosas ou agressivas.
Porém, o caso é diferente com a palavra «chula».
Com o epíteto «chulo» quer-se significar, vulgarmente, uma pessoa que explora economicamente prostitutas. É uma imputação que ofende a honra do visado, porque, objetivamente, com ela se imputa um comportamento e um modo de vida que constitui crime (cfr. art. 170 do Cod. Penal). Trata-se de uma expressão que, como se refere nos acórdãos acima mencionados é “comunitariamente tida como obscena ou soez, que, objetivamente, atinge a honra do visado…”.
Por isso não podia o arguido deixar de ser condenado pelos crimes em causa.
3 – A pena
Alega o recorrente nesta parte:
Também a pena que lhe foi aplicada, peca por excessiva e não teve em conta as condições económicas do recorrente; as quais são bastante precárias, olvidando o sr. juiz a quo que o recorrente paga todas as despesas do lar designadamente luz, água, gás, empregada doméstica e alimentação, saúde e vestuário dele e do seu filho menor de 4 anos…”.
Ao assim alegar, invocando só a sua situação económica e os seus encargos pessoais, o recorrente está a limitar a impugnação da pena ao montante fixado para cada dia de multa, pois a situação económica apenas releva para esse efeito, não para a determinação dos dias de multa Relembre-se os ensinamentos do Prof. Figueiredo Dias:
No procedimento para a determinação concreta da pena segundo o sistema dos dias-de-multa, o primeiro ato do juiz visa fixar, dentro dos limites legais, o número de dias de multa, em função dos critérios gerais de determinação concreta (medida) da pena”. (...) Significa isto “que a fixação concreta do número de dias de multa ocorre em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, nos termos do art. 71 nº 1 concretizadas no nº 2 do mesmo preceito”.
O segundo ato do juiz na determinação da pena segundo o sistema dos dias-de-multa visa fixar, dentro dos limites legais, o quantitativo de cada dia de multa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais” – As Consequências Jurídicas do Crime, pags. 127 e 128.
No momento da determinação dos dias de multa, apenas há que “jogar” com os juízos sobre a culpa e as exigências de prevenção. Volta a citar-se: “tudo quanto respeite à situação económico-financeira do condenado “qua tale” deve ser expurgado de consideração nesta fase, apenas assumindo relevância na fixação do quantitativo diário da multa” (pag. 127)..
Na realidade, a simples afirmação, que consta da motivação do recurso, de que “a pena aplicada peca por excessiva”, sem se indicar se se discorda da medida das penas parcelares (todas ou alguma?), da medida da pena única, ou de todas (e quais as razões concretas) não pode ser entendida como uma verdadeira impugnação dos dias de multa fixados. É que, alegar não é só afirmar que se discorda da decisão recorrida, mas sim atacá-la, especificando não só os pontos em que se discorda dela, mas também as razões concretas de tal discordância. Como referem Simas Santos e Leal Henriques em Recursos em Processo Penal, pag. 47, “Os recursos concebidos como remédios jurídicos (...) não visam unicamente a obtenção de uma melhor justiça, tendo o recorrente que indicar expressa e precisamente, na motivação, os vícios da decisão recorrida, que se traduzirão em error in procedendo ou in judicando”.
Posto isto, na sentença recorrida foi fixado o montante diário de € 8,00.
De relevante para a fixação do montante diário da multa, constam da sentença os seguintes factos (volta a transcrever-se):
22.O arguido é casado e pai de um filho de 04 anos, em fase pré-escolar;
23.O arguido reside em casa paga que está em nome do filho;
24.O arguido é (…), auferindo o rendimento mensal de € 950,00 mensais;
€ 950,00 mensais, para um agregado familiar de três pessoas, dá um rendimento per capita inferior a € 320,00. Trata-se de um montante próximo do limiar da sobrevivência, ou mesmo abaixo dele, que, sem outros dados, justificaria o abaixamento do montante diário fixado.
Porém, os factos provados afiguram-se insuficientes para a decisão.
Desde logo, sendo o arguido casado, não informam se a sua mulher também trabalha e, em caso afirmativo, que rendimento aufere.
Por outro lado, a situação económica de alguém não se afere só pelo que ganha, ou diz que ganha, mas pelo conjunto de bens que usufrui como coisa sua, que podem revelar um estatuto económico diferente do que resulta quando considerado apenas o salário mensal.
O arguido tem carro próprio, ou dispõe dum como coisa sua? Note-se que no seu recurso alega ter “empregada doméstica”, a quem paga (fls. 339), o que, segundo a normalidade das coisas da vida, é incompatível com um estatuto económico no limiar da sobrevivência.
Tendo ao sr. juiz optado pela aplicação da pena de multa e não tendo ao seu dispor elementos que lhe permitissem fazer um juízo suficientemente seguro sobre a situação económica e financeira do condenado, impunha-se que que tivesse reaberto a audiência para produção de prova suplementar para a de terminação da sanção a aplicar, como expressamente preveem os arts. 369 nº 2 e 371 do CPP.
A reabertura da audiência poderá ser precedida da elaboração do relatório social a que alude o art. 370 do CPP, onde expressamente se solicite que o mesmo se pronuncie sobre aspetos referidos.
É o que se decide neste acórdão.
4 – A condenação cível
O recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada” – art. 400 nº 2 do CPP.
O valor da condenação cível foi de € 700,00.
Sendo de € 5.000,00 a alçada do tribunal recorrido (art. 24 da Lei 3/99 de 13-1 – LOFTJ, na redação do Dec.-Lei 303/07 de 24-8), não pode esta Relação conhecer do recurso nesta parte.
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Em resumo: ordena-se a reabertura da audiência apenas para o efeito da determinação do montante diário da multa, mantendo-se inalterado o mais decidido.
DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães ordenam que pelo mesmo sr. juiz que realizou o julgamento, seja reaberta a audiência para os fins indicados.
Sem custas nesta instância.