Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
318/12.0TBFAF.G1
Relator: ESTELITA DE MENDONÇA
Descritores: SEGURO AUTOMÓVEL
CADUCIDADE
INDEMNIZAÇÃO
SALVADOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/14/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - Provando-se que a autora comprou o veículo em 28.08.2008, celebrou com a ré o contrato de seguro referente a tal veículo com início em 10.09.2008 e termo em 31.08.2009, e tendo o sinistro ocorrido em 24 de Agosto de 2009, o contrato de seguro estava válido e regular nesta última data, não tendo caducado.
II - É pacífico que deve ser abatida à indemnização estabelecida a título da perda do veículo o valor dos salvados, pois a regra é a de que quem é o dono do veículo é também o dono dos respectivos salvados, pois que estes são ainda o que resta do próprio veículo.
III - Assim, excepto se lesado e seguradora convencionarem outra coisa (o que não se demonstra nos presentes autos), o valor dos salvados tem de ser abatido à indemnização a pagar, sob pena de haver um enriquecimento injusto por parte do lesado.
IV - Donde, por esta razão, há que abater à indemnização pela perda do veículo o valor real por que foram vendidos os salvados.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª secção civil do Tribunal da Relação de Guimarães:

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A…, residente no Lugar do …, freguesia de …, concelho e comarca de Cabeceira de Basto, intentou acção declarativa de condenação com processo sumário contra B… – Companhia de Seguros, SA, com sede na Rua …, nº …, Lisboa.
Alegou, para tanto e em síntese, que celebrou com a ré um contrato de seguro de danos próprios, tendo esta assumido a responsabilidade civil pelos danos sofridos pelo veículo de matrícula …-GH-…, de sua propriedade, e que, no dia 24-08-2009, o referido veículo, conduzido por C…, sofreu um acidente, que descreve, e cujos danos determinaram a sua perda total.
Alegou ainda que, comunicado o sinistro, foi atribuído pelos serviços da ré, o valor de € 22.500,00 a título de indemnização, deduzido o valor de € 2.000,00 relativo ao valor do salvado, o que a autora aceitou, ficando com o salvado, fixando-se então a indemnização em € 20.500,00. Alegou também que a ré não procedeu ainda ao pagamento da referida indemnização, pelo que a autora tem feito inúmeras diligências no sentido de obter o pagamento, no que despendeu tempo e dinheiro que representam um prejuízo não inferior a € 250,00.Acresce que em consequência da recusa da ré em proceder ao pagamento da indemnização fixada, sofreu muitas perturbações e alterações do seu quotidiano, o que constitui dano moral indemnizável em quantia não inferior a € 500,00.
Termina peticionando a condenação da ré no pagamento da quantia de € 23.116,48, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde a citação e até integral pagamento.
A Ré contestou alegando que à data do acidente a autora não era proprietária do veículo em causa, sendo proprietário do mesmo David Rodrigues, pelo que não é a autora parte legítima.
Alegou ainda a excepção de caducidade do contrato de seguro, dizendo, em síntese, que celebrou efectivamente em 2008 com a autora um contrato de seguro nos termos referidos pela autora, com início em 01-09-2008 e termo em 31-08 de cada ano, sendo renovável por períodos anuais sucessivos. Do referido contrato constava como segurada, tomadora, condutora habitual e proprietária do veículo a autora, tendo sido nesta última qualidade – a de proprietária – que a autora celebrou o contrato de seguro em causa e que a ré o aceitou celebrar, tendo a autora adquirido o dito veículo à empresa Azevedo Automóveis, Lda. em finais de Agosto de 2008.
Alegou que a autora alienou o veículo cerca de um mês após o início de vigência do contrato de seguro, pelo que nos termos do artigo 21º nº 1, do DL 291/07, de 21 de Agosto, o contrato de seguro caducou, não produzindo efeitos à data do acidente em causa.
A autora apresentou articulado de resposta, onde reitera que é proprietária do veículo e, portanto, parte legítima.
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Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade activa da autora, relegando-se para a sentença a apreciação da excepção peremptória de caducidade do contrato de seguro.
Foi seleccionada a matéria de facto assente e controvertida da qual reclamou a autora, embora sem sucesso.
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Observado o legal formalismo, procedeu-se a julgamento, e depois respondeu-se à matéria controvertida, de que não houve reclamações.

A final foi proferida sentença que decidiu julgar a acção parcialmente procedente, por provada, e, consequentemente, condenar a R. B… – Companhia de Seguros, SA, a pagar à Autora a quantia de € 20.500,00 (vinte mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até efectivo pagamento
Desta sentença apelou a Ré, oferecendo alegações e formulando as seguintes CONCLUSÕES:
I. Por não ter ficado provado ser proprietária do veículo seguro (a) na data de celebração, com a apelante, do contrato de seguro com a cobertura de danos próprios (10.09.2008) e (b) na data do sinistro (24.08.2009) a apelada não era, nem é, em nenhum daqueles momentos, titular do interesse seguro por aquele contrato, o que, por força do previsto no artº 43º/1 e 2 do RJCS, gerou a nulidade do mesmo e não confere à apelada, por não ter sofrido na sua esfera jurídica o prejuízo invocado e, portanto, por força do princípio indemnizatório consagrado nos artºs 128º e 130 do RJCS, o direito de reclamar da apelante o pagamento do capital seguro (indemnização), não sendo, pois, a apelada parte legítima para o fazer, o que tudo deverá levar à absolvição da apelante do pedido. Ao não o reconhecer o tribunal a quo fez, salvo o devido respeito, uma errada aplicação do previsto nos artºs 43º/1 e 2, 128º e 130º do RJCS, devendo a sua decisão ser revogada e substituída por outra que absolva a apelante do pedido.
Se assim se não entender:
II. O contrato de seguro celebrado com a apelante caducou na data da alienação do veículo seguro a C…, em nome do qual o mesmo esteve inscrito no registo automóvel de 25.08.2008 a 06.10.2009, pelo que também na data do sinistro (24.08.2009), data aquela que não ficou provado qual fosse, mas se sabe que foi anterior à data do sinistro em discussão nos autos, mostrando-se, pois, aquele contrato caducado na data deste sinistro. Ao não o reconhecer o tribunal a quo fez, salvo o devido respeito, uma errada aplicação do artº 406º do CC, do artº 10º/1 das condições gerais da apólice de seguro em apreço nos autos e no artº 21º/1 do DL. 291/07, de 21 de Agosto, o que deverá levar à revogação da sua decisão e à sua substituição por outra que absolva a apelante do pedido.
Sem prescindir:
III. Não ficou provado nos autos (a) nem o valor venal do veículo na data do sinistro, (b) nem o valor dos danos por aquele sofridos com o acidente, pelo que o tribunal recorrido ao fixar os danos a ressarcir no valor de € 20.500 baseou-se em factos não provados, violando, com tal, o artº 659º/2º do CPC e o artº 563º do CC, devendo, por tal motivo, a recorrente ser absolvida de pagar aquele valor.
IV. Ao valor de qualquer indemnização deverá sempre ser abatido o valor de € 5.000 recebido pela venda a terceiro dos salvados, porquanto, por força do princípio do indemnizatório previsto nos artºs 128º e 130º do RJCS, ele representa uma parte do prejuízo que o lesado não sofreu, não podendo este receber mais do que esse mesmo prejuízo. Ao não o fazer o tribunal recorrido violou os citados artºs 128º e 130º do RJCS, devendo, como tal, a sua decisão ser sempre alterada, por forma a diminuir qualquer indemnização do valor de € 5.000 dos salvados.
TERMOS EM QUE a presente apelação deverá ser julgada procedente, alterando-se a sentença recorrida conforme atrás concluído, com o que se fará JUSTIÇA !

Contra-alegou a A. terminando com as seguintes CONCLUSÕES:
A) – A propriedade da autora sobre o veículo sinistrado não foi posta em causa pela ré;
B) Na verdade, a ré admite e aceita que na altura da celebração do contrato de seguro, a autora era efectivamente proprietária do veículo, conforme resulta dos artº 10º a 14º da contestação;
C) Na verdade, a ré apenas põe em causa a existência do contrato de seguro à data do acidente, invocando a sua caducidade, com o argumento de que a autora havia entretanto alienado o seu veículo;
D) Com base nesse argumento, a ré invocou que a autora terá deixado de ser proprietária, na sequência de uma venda a C…, o que não logrou provar;
E) No entanto, a ré ao alegar a excepção da caducidade, está a aceitar a propriedade do veículo a favor da autora;
F) Tendo em conta que a propriedade da autora foi aceite pela ré, a ré deve ser responsabilizada pelo não cumprimento da sua obrigação;
G) O quantum da indemnização, designadamente valor dos danos e do salvado, foi matéria dada como assente na alínea E) da especificação do douto despacho saneador, oportunamente proferido;
H) O facto de ter sido atribuído ao salvado o valor de €2.000,00, e de a autora ficar com a propriedade do mesmo, não é impeditivo que esta o pudesse alienar por um valor superior;
I) Não podendo em consequência de tal, vir agora a indemnização a ser objecto de redução.
Pelo que deve negar-se provimento, ao presente recurso, assim se fazendo uma correcta aplicação da Lei e a mais elementar JUSTIÇA.
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Delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações – artigos 684º, n.º 3 e 690º do Código de Processo Civil – das formuladas pelos Apelante resulta que são as seguintes questões que são colocadas à nossa apreciação:
- Saber se, por não ter ficado provado ser proprietária do veículo seguro (a) na data de celebração, com a apelante, do contrato de seguro com a cobertura de danos próprios (10.09.2008) e (b) na data do sinistro (24.08.2009) a apelada não era, nem é, em nenhum daqueles momentos, titular do interesse seguro por aquele contrato, o que, por força do previsto no artº 43º/1 e 2 do RJCS, gerou a nulidade do mesmo e não confere à apelada, por não ter sofrido na sua esfera jurídica o prejuízo invocado.
- Saber se o contrato de seguro celebrado com a apelante caducou na data da alienação do veículo seguro a C…, em nome do qual o mesmo esteve inscrito no registo automóvel de 25.08.2008 a 06.10.2009.
- Se o tribunal recorrido ao fixar os danos a ressarcir no valor de € 20.500 se baseou em factos não provados, pois não ficou provado nos autos nem o valor venal do veículo na data do sinistro nem o valor dos danos por aquele sofridos com o acidente.
- Se ao valor de qualquer indemnização deverá sempre ser abatido o valor de € 5.000 recebido pela venda a terceiro dos salvados, porquanto, por força do princípio do indemnizatório previsto nos artºs 128º e 130º do RJCS, ele representa uma parte do prejuízo que o lesado não sofreu, não podendo este receber mais do que esse mesmo prejuízo.
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Foram dados como provados os seguintes factos
A) No dia 24 de Agosto de 2009, pelas 16 horas, na Estrada Nacional 311, no Lugar de Bastelo, freguesia de Várzea Cova, concelho de Fafe, circulava o veículo ligeiro de marca Honda, com a matrícula …-GH-…, conduzido por C….
B) O veículo referido em A) está registado na Conservatória do Registo Automóvel do Porto, tendo a sua propriedade sido alvo das seguintes inscrições:
-em 25/08/2008, a favor de D…;
-em 25/08/2008, a favor de C…;
-em 06/10/2009, a favor de E…, com reserva de propriedade a favor de Banco …, S.A.; (certidão de fls. 31).
C) Por contrato de seguro titulado pela apólice com o n.º …, com início em 10/09/2008 e termo em 31/08/2009, renovável por períodos anuais sucessivos, a autora havia transferido para a ré, em relação ao veículo referido em A): -a responsabilidade civil por danos por ele causados; - os danos próprios do veículo em consequência de danos acidentais, incêndio, raio ou explosão, furto ou roubo; - os acidentes pessoais que resultassem em morte ou invalidez permanente, despesas de tratamento e despesas de funeral; -as despesas com protecção jurídica e assistência em viagem; (apólice e cláusulas juntas a fls. 32 e ss. 35 e ss. e 39 e ss., que aqui se dão por integralmente reproduzidas).
D) A ré deu início a um processo interno relacionado com o sinistro que lhe foi participado relativo ao veículo referido em A), ao qual atribuiu o n.º 2009 003 0084 011107 N SANTO NL 001.
E) Os serviços da ré consideraram o veículo referido em A) em estado de perda total, tendo enviado à autora, que a recebeu, a carta junta a fls. 10 (que aqui se dá por integralmente reproduzida), datada de 08/09/2009, na qual lhe comunicou que “para efeitos de indemnização iremos considerar o valor de Eur. 22.500,00 quantitativo este correspondente ao valor venal da viatura antes do sinistro, deduzido o valor do salvado, que se fixa em Eur.: 2.000,00”, valor que a autora aceitou.
F) Desde 2009 a autora tem efectuado inúmeras diligências junto da ré no sentido de obter o pagamento do valor referido em E), pessoalmente e por telefone.
G) Em 28-08-2008, a autora declarou comprar a F… Automóveis, Lda., que declarou vender-lhe, o veículo automóvel referido em A).
i) O veículo referido em A) circulava no sentido Cabeceiras – Fafe e, ao fazer uma curva à sua direita, atento tal sentido de marcha, deparou-se com um veículo pesado na sua faixa de rodagem.
2) O que obrigou o seu condutor a desviar-se de tal veículo pesado, batendo com a roda traseira direita na tubagem existente na berma, para escoamento das águas, o que fez com que o veículo entrasse em despiste, tendo o seu condutor perdido o controlo do mesmo e este capotado.
3) O salvado do veículo foi vendido pelo valor de € 5.000,00.
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Cumpre agora decidir

1. O art. 428º n.º 1 do C. Comercial
Sustenta a apelante que por não ter ficado provado ser proprietária do veículo seguro (a) na data de celebração, com a apelante, do contrato de seguro com a cobertura de danos próprios (10.09.2008) e (b) na data do sinistro (24.08.2009) a apelada não era, nem é, em nenhum daqueles momentos, titular do interesse seguro por aquele contrato, o que, por força do previsto no artº 43º/1 e 2 do RJCS, gerou a nulidade do mesmo e não confere à apelada, por não ter sofrido na sua esfera jurídica o prejuízo invocado.
Comecemos por analisar o regime do art.º 428º n.º 1 do C. Comercial quando confrontado com o regime jurídico do contrato de seguro automóvel obrigatório.
Segundo a recorrente, uma vez que o veículo não é propriedade da segurada/contratante e esta celebrou o negócio por conta própria (Art.º 428º n.º 2 do C. Com.), o contrato é nulo porquanto a tomadora do seguro não tem nenhum interesse na coisa segurada.
Porém as coisas não são tão lineares como pretende a recorrente.
Na verdade, apesar do disposto no § 1º do Art.º 428º do C.Com., o Art. 2 do DL 522/85 de 31/12, depois de no seu n.º 1 determinar que a obrigação de segurar, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, impende sobre o proprietário do veículo (ou sobre o usufrutuário, o adquirente – no caso de venda com reserva de propriedade – ou sobre o locatário – no caso de locação financeira – ) estabelece no seu n.º 2: “Se qualquer outra pessoa celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente diploma, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior”.
Quer isto dizer, claramente, que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, pode ser celebrado, validamente, por quem não seja o proprietário do veículo cujo risco se segura, independentemente do interesse económico que informa o disposto no Art. 428º do C.Com., sendo certo que, no caso vertente, resulta que quem conduzia o veículo na altura do acidente era C… que é filho da A.
Enquanto o art. 429º contempla a declaração inexacta ou reticente com influência sobre a existência ou condições do contrato, acarretando o vício da anulabilidade, como se vem entendendo, já o art. 428º consagra um vício de maior gravidade, que se destina a cobrir um risco no património do tomador do seguro. Na verdade, destinando-se o contrato de seguro automóvel a transferir para a seguradora a responsabilidade que recairia sobre o segurado pelo ressarcimento das indemnizações provocadas pelo veículo, daqui decorre um seu concreto interesse, de natureza económica, no seguro contratado.
Se o tomador manifestamente não tem interesse na celebração do contrato de seguro há uma evidente falta de legitimidade substancial do tomador no seguro do veículo, sendo de considerar, como se refere no ac. STJ, de 2007/03/22, de interesse público que não seja violado o princípio da legitimidade negocial. Daí que este vício integre uma verdadeira nulidade.
Ora, como determina o n.º 8 do referido diploma legal (DL 522/85), o contrato de seguro garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no Art. 2 e dos legítimos detentores e condutores do veículo.
Como se lê no relatório do DL 522/85 “A institucionalização do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel revelou-se uma medida de alcance social inquestionável, que com o decurso do tempo, apenas impõe reforçar e aperfeiçoar, procurando dar uma resposta cabal aos legítimos interesses dos lesados por acidente de viação ...”
Por isso mesmo, dada a relevância social do regime do seguro obrigatório enquanto meio de protecção directa dos lesados (e não dos segurados como alega a recorrente) “não é de estranhar que se tenha acolhido com a máxima amplitude o princípio da inoponibilidade das excepções contratuais gerais” ... “Daí que, neste campo do seguro obrigatório, de pouco valha já argumentar com a natureza e efeitos do carácter pessoal do contrato ... sendo certo, de qualquer modo, que a questão de a seguradora assumir o risco emergente de responsabilidade imputável ao condutor em nada colida com a circunstância de o outorgante no contrato de seguro ser qualquer outra pessoa; A responsabilidade coberta no seguro de veículo afere-se pela do condutor responsável civil – Art. 5 do DL 522/85 –, figure ou não no contrato com o tomador ou beneficiário do seguro.
Aquela relevância social de protecção dos lesados e “socialização do risco”, de expressão cada vez mais evidente – cof. actual DL 291/2007 de 21/8 – ... erguem-se como valores que bem podem justificar a legitimação do seguro efectuado por terceiros, para além do conceito de “interesse” subjacente ao preceito do C. Com. (lei geral), não repugnando aceitar a derrogação da norma pelas leis de Seguro Obrigatório, enquanto enformadoras dum regime especial”. (Cof. Ac. do S.T.J. de 16/10/2008).
Ora, resultou provado que “Por contrato de seguro titulado pela apólice com o n.º …, com início em 10/09/2008 e termo em 31/08/2009, renovável por períodos anuais sucessivos, a autora havia transferido para a ré, em relação ao veículo referido em A): -a responsabilidade civil por danos por ele causados; - os danos próprios do veículo em consequência de danos acidentais, incêndio, raio ou explosão, furto ou roubo; - os acidentes pessoais que resultassem em morte ou invalidez permanente, despesas de tratamento e despesas de funeral; -as despesas com protecção jurídica e assistência em viagem”;
Como o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, pode ser celebrado, validamente, por quem não seja o proprietário do veículo cujo risco se segura, independentemente do interesse económico que informa o disposto no Art. 428º do C.Com., no caso vertente, resulta que quem conduzia o veículo na altura do acidente era C… que é filho a A.
Não será, pois, pela falta de interesse da tomadora do seguro que o contrato aqui em causa é nulo, como pretende a recorrente.

2. A Caducidade do contrato de Seguro
Sustenta a Ré que o contrato de seguro celebrado com a apelante caducou na data da alienação do veículo seguro a C…, em nome do qual o mesmo esteve inscrito no registo automóvel de 25.08.2008 a 06.10.2009.
Baseia a A. a sua alegação no facto de o registo de propriedade do veículo referido em A), estar inscrito em 25/08/2008 a favor de C… e em 06/10/2009 a favor de E…, sendo certo que o acidente ocorreu no dia 24 de Agosto de 2009, para concluir que “se se considerar que na data em que celebrou o contrato de seguro com a apelante a apelada era, de facto, a proprietária do veículo seguro então o certo é que, de qualquer modo, na data do sinistro, a de 24 de Agosto de 2009, aquela já não era titular de tal propriedade, que, por algum meio, no entretanto, tinha alienado ao mencionado C…, o que levou este a inscrevê-la em seu nome no registo automóvel, assim se mantendo na dita data do sinistro.
E continua: “Se na data em que celebrou o seguro a apelada era a proprietária do veículo seguro e depois passou a sê-lo aquele dito C… é porque, em data posterior à do início dos efeitos daquele contrato de seguro a propriedade sobre aquele veículo foi transmitida a terceiro, no caso o atrás identificado. Não sendo, pois, verdade, como pretende o tribunal recorrido, que a apelante não tenha provado a alienação do veículo depois da celebração do seguro, uma vez que de tal modo o fez que até logrou provar que, na data do sinistro, o veículo seguro até estava inscrito no registo automóvel em nome de terceiro, o dito C….
Termina dizendo que “resulta do nº 1 do artº 10º das condições gerais da apólice de seguro e do nº 1 do artº 21º do DL. 291/07, de 21 de Agosto que “O contrato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24 horas do próprio dia da alienação, salvo se for utilizado pelo próprio tomador do seguro para segurar outro veículo.” O contrato de seguro celebrado com a apelante caducou, pois, na data da alienação do veículo seguro, que não ficou provado qual fosse, mas se sabe que foi anterior à data do sinistro em discussão nos autos, mostrando-se, pois, aquele contrato caducado na data do dito sinistro”.
Dos factos provados consta que o veículo referido em A) está registado na Conservatória do Registo Automóvel do Porto, tendo a sua propriedade sido alvo das seguintes inscrições:
-em 25/08/2008, a favor de D…;
-em 25/08/2008, a favor de David Rodrigues;
-em 06/10/2009, a favor de E…, com reserva de propriedade a favor de Banco …, S.A..
Mais ficou provado que em 28-08-2008, a autora declarou comprar a Azevedo Automóveis, Lda., que declarou vender-lhe, o veículo automóvel referido em A).
Ora, como bem se diz na sentença recorrida, “cabia à ré, como facto constitutivo da excepção de caducidade invocada, provar, precisamente, a alienação do veículo por parte da autora após a celebração do contrato de seguro (artigo 342º nº 1, do Código Civil), o que, atenta a factualidade provada, não logrou conseguir…”.
Diz a Ré que “de tal modo o fez que até logrou provar que, na data do sinistro, o veículo seguro até estava inscrito no registo automóvel em nome de terceiro, o dito C…”.
Ora, não sendo, no nosso país, o registo constitutivo de direitos, mas meramente declarativo e condição de eficácia perante terceiros, o registo apenas faz presumir que o direito existe na esfera daquela pessoa, podendo ser ilidida a referida presunção mediante prova em contrário.
E, no caso vertente, a presunção registral foi ilidida uma vez que resultou provado que em 28-08-2008, a autora declarou comprar a F… Automóveis, Lda., que declarou vender-lhe, o veículo automóvel referido em A).
Ora sendo a compra e venda o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa a outra mediante um preço (art. 874 do C. Civil), a mesma tem como efeitos essenciais a) A obrigação recai sobre o vendedor de entregar a coisa vendida; b) A obrigação para o comprador de pagar o correlativo preço.
Na compra e venda, há a transmissão correspectiva de duas prestações: por um lado, a transmissão do direito de propriedade ou de outro direito; por outro lado, o pagamento do preço.
Sendo assim, no caso vertente, não ficou demonstrado que a A. vendeu o dito automóvel antes da data do acidente, antes tendo ficado demonstrado que o comprou em 28-08-2008, que celebrou com a Ré o contrato de seguro relativo ao veículo automóvel com início em 10/09/2008 e termo em 31/08/2009, pelo que, ocorrendo o sinistro, a 24 de Agosto de 2009, o contrato de seguro estava válido e regular.

3. O valor da Indemnização

Sustenta a apelante que “o tribunal recorrido ao fixar os danos a ressarcir no valor de € 20.500 baseou-se em factos não provados, pois não ficou provado nos autos nem o valor venal do veículo na data do sinistro nem o valor dos danos por aquele sofridos com o acidente”.
Vejamos.
Consta da matéria de facto o seguinte:
“Os serviços da ré consideraram o veículo referido em A) em estado de perda total, tendo enviado à autora, que a recebeu, a carta junta a fls. 10, datada de 08/09/2009, na qual lhe comunicou que “para efeitos de indemnização iremos considerar o valor de Eur. 22.500,00 quantitativo este correspondente ao valor venal da viatura antes do sinistro, deduzido o valor do salvado, que se fixa em Eur.: 2.000,00”, valor que a autora aceitou”.
A prova deste facto resultou de documento, por um lado, de confissão da A. (o ter aceite os referidos valores) tendo até sido levado á alínea E) dos Factos Assentes no despacho saneador, de que a Ré não reclamou.
Além disso, a Apelante não impugnou a matéria de facto nos termos previstos no art. 712 do C. P. Civil.
Sendo assim, como é, bem andou a 1.ª instância ao dar como provado o valor venal da viatura antes do sinistro em Eur. 22.500,00, a que deverá ser deduzido o valor do salvado de 2.000,00.

4. O valor do salvado
Sustenta a apelante que ao valor de qualquer indemnização deverá sempre ser abatido o valor de € 5.000 recebido pela venda a terceiro dos salvados, porquanto, por força do princípio do indemnizatório previsto nos artºs 128º e 130º do RJCS, ele representa uma parte do prejuízo que o lesado não sofreu, não podendo este receber mais do que esse mesmo prejuízo.
Foi dado como provado que a apelante fixou o valor do salvado em Eur.: 2.000,00”, valor que a autora aceitou, mas que, o salvado do veículo foi vendido pelo valor de € 5.000,00.
Posta assim a questão, o que importa averiguar é se deverá ser abatido ao valor da indemnização pela perda total (os referidos Eur. 22.500,00) o valor de € 5.000, valor da efectiva venda do salvado, ou apenas os € 2.000 que a Ré considerou.
Na óptica do tribunal recorrido o valor a deduzir ao valor total da indemnização é o de € 2.000.
A argumentação do senhor juiz é a seguinte: “De referir que o facto do salvado ter sido vendido pelo valor de € 5.000,00 torna-se irrelevante posto que a ré aceitou, ao remeter à carta referida em E), que o salvado ficasse na posse da autora e pelo referido valor de € 2.000,00, o que autora aceitou, pelo que o facto desta ter conseguido um valor superior pelo sua alienação, não pode constituir fundamento para redução da indemnização”.
Afigura-se-nos que não tem razão o senhor juiz a quo.
É pacífico que deve ser abatida à indemnização estabelecida a título da perda do veículo o valor dos salvados.
A regra é sem dúvida a de que quem é o dono do veículo é também o dono dos respectivos salvados, pois que estes são ainda o que resta do próprio veículo. Assim, excepto se lesado e seguradora convencionarem outra coisa (o que não se demonstra nos presentes autos), o valor dos salvados tem de ser abatido à indemnização a pagar, sob pena de haver um enriquecimento injusto por parte do lesado.
Na verdade, se o valor venal do veículo antes do acidente era de €23.500, se o valor da indemnização paga pela Ré for de €20.500 e se a A. vendeu o salvado por €5.000, na realidade a A. recebe €25.500, mais do que o valor venal do veículo antes do acidente.
Ora, o lesado tem o direito de ser reconstituído na situação anterior à lesão (art.º 562 do C. Civil onde se diz que “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação).
Por outro lado, a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art.º 563 do C. Civil, no qual está expressamente consagrada a teoria da diferença).
Donde, por esta razão, tem razão a Apelante nesta parte, havendo que abater à indemnização pela perda do veículo o aludido valor dos salvados.
Logo, abatendo €5.000,00 a €23.500,00 restam apenas €18.500,00 (dezoito mil e quinhentos Euros), valor a que a A. tem direito.
O que o Apelado diz em contrário disto, carece assim, quanto a nós, de validade.

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Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, confirmando-se a sentença recorrida, excepto na parte em que decidiu condenar a ré B…, COMPANHIA DE SEGUROS, SA, a pagar à Autora a quantia de € 20.500,00 (vinte mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até efectivo pagamento, quantia essa que se fixa em €18.500,00 (dezoito mil e quinhentos Euros) pelas razões acima expostas.
Custas da apelação e na 1ª instância, pela Apelante.

Guimarães, 14 de Novembro de 2013
José Estelita de Mendonça
Conceição Bucho
Antero Veiga