Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2892/17.5T8VNF-A.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: TOTALMENTE IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. O Regulamento (CE) nº 1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio tem o seu âmbito espacial de aplicação limitado aos casos em que o centro dos interesses principais do devedor está situado na Comunidade.

2. Assim, quando o requerido na Insolvência tem o domicílio e o centro da sua vida e dos seus interesses fora do território da UE, ao processo de insolvência contra ele instaurado num Estado-Membro da EU, como é o caso, aplica-se o Direito Internacional Privado desse Estado.

3. No caso concreto, tendo o requerido o domicílio e o centro da sua vida em Moçambique, mas sendo a causa de pedir complexa, abrangendo os factos de onde nasceu o direito de crédito do requerente, e emergindo este de uma livrança subscrita e avalizada pelo requerido, estando escrito no local de emissão do título em causa a palavra “Braga”, ao abrigo do princípio da causalidade (art. 62º,b CPC), conclui-se pela competência internacional dos Tribunais
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

O BANCO X, S.A. veio requerer a declaração judicial de insolvência de A. S..

O requerido deduziu oposição, e começou por excepcionar a incompetência internacional do Estado Português, por força do disposto no art. 62º,1 CPC, alegando não ter domicílio em Portugal, pois em 2014 deixou de residir em Portugal e passou a residir em Angola, e a partir de 2016 em Moçambique.

O Tribunal de primeira instância julgou a referida excepção de incompetência internacional improcedente, considerando os Tribunais Portugueses competentes para conhecer desta acção.

Inconformado com esta decisão, o requerido interpôs o presente recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo – art. 14º,5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Termina as suas alegações com as seguintes conclusões (transcrição):

I. O Tribunal a quo fez errada aplicação e interpretação do disposto nos arts. 7º, 17º e 294º do CIRE e 62º do CPC.
II. As regras de atribuição de competência internacional previstas no Código de Processo Civil são de aplicação subsidiária, nos termos do art. 17º do CIRE.
III. O CIRE tem norma de aplicação e atribuição de competência internacional própria. Tal norma reside e tem assento no art. 294º do CIRE, que se insere no Capítulo III do Título XV, respeitante às normas de conflitos.
IV. O art. 294º do CIRE tanto é aplicável aos processos relacionados com o Regulamento (CE) nº 1346/2000 (entretanto substituído pelo Regulamento (UE) nº 2015/848) como aos restantes processos de insolvência estrangeiros.
V. Este artigo diz-nos que se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos seus principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português!
VI. O que aliás se justifica e está em consonância com o princípio da coincidência (previsto na conjugação do disposto no art. 62º alínea a) do CPC e art. 7º do CIRE), pois o processo de insolvência é um processo de execução universal de bens (art. 1º do CIRE), norteado na sua lide para liquidação do património em benefício dos credores.
VII. E, como tal, o critério atributivo de competência internacional há-de ser EXCLUSIVAMENTE o do domicílio do devedor, só se justificado que o processo seja avocado para a jurisdição nacional em homenagem ao forum rei sitae.
VIII. E diga-se que o CIRE é claro ao afastar as demais regras previstas no art. 62º do CPC.
IX. De facto, tais regras apenas são chamadas à colação no número 2 do art. 294º e, mesmo aí, o legislador é peremptório ao apenas admitir a remissão e chamamento da regra prevista na alínea c) do art. 62º do CPC.
X. Sucede que, tal regra apenas é aplicável aos que não sejam detentores de estabelecimento em Portugal. Mas, a detenção e exploração de estabelecimento é uma actividade própria de comércio, pelo que é forçoso concluir que a norma apenas é aplicável a sociedades e/ou comerciantes, o que não é o caso do Réu (nem o Autor o alega)!
XI. Ainda que se abstraísse da necessidade deste requisito, sempre estaríamos aqui em sede da atribuição de competência internacional em razão do princípio da necessidade.
XII. Ora, não havendo bens do Réu em Portugal (como o próprio Autor alega e comprova e o Réu reconheceu), a sua declaração de insolvência não é necessária, nem útil à efectivação de qualquer direito!
XIII. Visando o processo de insolvência a execução universal de bens – que se sabe à partida inexistirem – a prossecução do processo é tendente a realizar uma inutilidade processual!
XIV. Mais, sendo o Autor um Banco como é, com inerente e reconhecida capacidade económica, nem sequer tampouco se nos afigura provável que tenha dificuldade apreciável na propositura de acção no estrangeiro!
XV. Tanto assim é, que o Banco Autor não invocou nada disso em sua defesa e centrou a mesma (em sede de resposta à excepção) na invocação do disposto no art. 62º alínea b) do CPC, ou seja, no princípio da causalidade!
XVI. O domicílio do Réu é o único critério que deve ser atendido, para efeitos de atribuição de competência internacional aos Tribunais Portugueses na declaração de insolvência, devendo essa atribuição ser negada sempre que o Réu não tenha domicílio em Portugal, nem seja proprietário de bens em território nacional.
XVII. Não se justifica, por isso, buscar quaisquer outros elementos de conexão, próprios da generalidade das acções declarativas, que possam atribuir competência concorrente internacional aos Tribunais Portugueses, para efeitos da declaração de insolvência.
XVIII. E para justificar que o legislador é coerente na afirmação do domicílio do Réu como critério ÚNICO e EXCLUSIVO de atribuição de competência internacional para conhecer da insolvência, veja-se o disposto no art. 63º alínea e) do CPC, onde o legislador afirma a COMPETÊNCIA EXCLUSIVA dos tribunais nacionais “em matéria de insolvência ou de revitalização de PESSOAS DOMICILIADAS EM PORTUGAL ou de pessoas colectivas ou sociedades cuja sede esteja situada em território português”.
XIX. Na verdade, tal norma – até pelo princípio da reciprocidade – justifica uma simetria de tratamento em sentido oposto, pois o “respeito da competência exclusiva estrangeira, quando prossiga fins colectivos comuns às normas de competência exclusiva do Estado do foro, também é postulado pelo bem comum universal. Enfim, o respeito da competência exclusiva estrangeira evita até certo ponto o surgimento de decisões contraditórias e de decisões não reconhecíveis noutro Estado em contacto com a situação, contribuindo para a harmonia internacional de soluções”.

Não houve contra-alegações.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se os Tribunais Portugueses são competentes para conhecer deste processo de insolvência. Esta questão, como veremos, pressupõe uma outra, que é a de saber se tem aplicação ao caso em apreço o Regulamento (CE) nº 1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio.

III
A decisão recorrida considerou o seguinte:

Antes de apreciar a excepção invocada, cumpre dar com assente, por se tratar de um facto alegado pelo R e não impugnado pelo A., que o Réu não tem domicílio em Portugal desde 2014, tendo passado, em 2016, a residir a título permanente em Moçambique, na Rua …, Moçambique, onde ainda hoje tem o seu domicílio.
A competência para o processo de insolvência pertence ao tribunal da sede ou do domicílio do devedor, nos termos do art. 7º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Tem também competência o tribunal do lugar em que o devedor tenha o centro dos seus principais interesses, entendendo-se por tal aquele em que ele os administre, de forma habitual e cognoscível por terceiros – cfr. nº 2 da mesma norma.
Como vimos, o R. não tem domicílio em Portugal, antes residindo em Moçambique.
Os critérios de fixação da competência internacional dos tribunais portugueses encontram-se definidos nos artigos 62.º, 63.º e 94.º do Código de Processo Civil.
Dispõe o art. 62º do Código de Processo Civil que “Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real”.
A alínea a) consubstancia o princípio da coincidência, a alínea b) o princípio da causalidade e a alínea c) o da necessidade.
Cada um destes critérios de atribuição de competência é autónomo, ou seja, não é cumulativo, o que significa que desde que se verifique um deles, os tribunais nacionais serão competentes para apreciação e decisão da causa.
Centrando-nos na alínea b), o princípio da causalidade determina a competência dos tribunais portugueses sempre que algum dos factos integradores da causa de pedir tenha sido praticado em território nacional.
A causa de pedir apresentada pelo A. na petição inicial é complexa, consistindo na invocação dos factos que constituem o seu crédito e nos factos que permitem concluir pela situação de insolvência do R..
Quanto aos factos que constituem o crédito do A., este alega ser dono e legítimo possuidor de uma livrança no montante de € 4.269.171,31, subscrita em 07.04.2014 e avalizada por A. S., a qual se venceu em 14.10.2016 – cfr. art. 4º da petição inicial.
A livrança em causa (ou melhor, cópia da mesma) consta de fls. 10 e 11 dos presentes autos. Nesta, encontra-se escrito no Local de Emissão, a palavra “Braga”.
Assim sendo, pensamos poder concluir com segurança que os factos que constituem o crédito do A., ou seja, parte dos factos integradores da causa de pedir foram praticados em território nacional, concretamente, em Braga.
Chegados a esta conclusão, torna-se desnecessário e inútil, pensamos nós, pronunciarmo-nos sobre a eventual alteração da causa de pedir invocada pelo R., dada a alegação posterior do A. da relação jurídica subjacente (alegou que a livrança avalizada pelo requerido e identificada na petição inicial foi emitida para garantir o contrato de financiamento celebrado entre o Banco X e a P.I.A., S.A., com sede na Beloura … Sintra, o qual foi contratado e utilizado em Portugal), pois a análise da causa de pedir alegada na petição inicial é suficiente para determinar que parte dos factos (os relativos à livrança) foram praticados em território nacional, concretamente, em Braga.
São, assim, e em face do disposto no art. 62º al. b) do Código de Processo Civil (pelo princípio da causalidade) os tribunais portugueses competentes internacionalmente para conhecer e decidir a presente acção.
Deve improceder a excepção de incompetência internacional invocada pelo R..
A questão da utilidade do presente processo, levantada pelo R. atento o facto de este alegadamente não ter bens em Portugal, não releva para fins de prosseguimento dos autos e de apreciação ou não da acção, antes terá o seu tratamento normal, pois caso tal se verifique, (como em tantos outros casos) o processo será oportunamente encerrado por insuficiência da massa insolvente, nos termos do art. 230º, nº 1, al. d) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Termos em que decido pela improcedência da excepção de incompetência internacional invocada pelo R., considerando os tribunais portugueses internacionalmente competentes para conhecimento e decisão dos presentes autos”.

IV
Conhecendo do recurso.

A questão de competência internacional suscitada nestes autos é daquelas que emergem directamente do conceito de globalização da economia.
Vamos recorrer às palavras do Prof. Luís de Lima Pinheiro(1): “Em época de globalização da economia as actividades dos agentes económicos têm frequentemente uma dimensão transnacional. Na realização das suas actividades, estes agentes contratam com fornecedores e clientes estabelecidos no estrangeiro, abrem sucursais no estrangeiro e, em certos tipos de empresa transnacional, criam uma pluralidade de filiais em países estrangeiros. Esta é, justamente, a principal razão para a importância que hoje assumem as insolvências transnacionais. Suponha-se que uma sociedade com sede social e estabelecimento principal em Portugal, que desenvolve a sua actividade também em Espanha e França, onde possui sucursais, se mostra incapaz de pagar a generalidade das suas dívidas. Um banco espanhol pretende requerer a declaração de insolvência da sociedade. (…) Em casos como estes não se pode dar por adquirida a competência dos tribunais portugueses e a aplicabilidade do regime comum da insolvência vigente na nossa ordem jurídica. Do carácter transnacional da insolvência decorre todo um conjunto de questões específicas que importa resolver antes do mais, designadamente: a questão de saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a declaração de insolvência; em caso afirmativo, o problema da determinação da lei ou leis nacionais aplicáveis à insolvência; a questão de saber se a declaração de insolvência proferida em Portugal abrange os bens localizados no estrangeiro e, inversamente, se a declaração de insolvência proferida no estrangeiro abrange os bens situados em Portugal; ligada com a anterior, a questão dos efeitos que a decisão de insolvência proferida em Portugal produz noutros Estados e dos efeitos que a decisão proferida no estrangeiro produz em Portugal (reconhecimento de decisões estrangeiras)”.
E como explica o citado autor, pertence ao Direito Internacional Privado a espinhosa missão de dar resposta a estas questões.

Na ordem jurídica portuguesa vigoram dois regimes de Direito Internacional Privado nesta matéria: o regime comunitário e o regime interno. O primeiro consta principalmente do Regulamento (CE) n° 1346/2000, de 29/5, relativo aos Processos de Insolvência, que entrou em vigor em 31 de Maio de 2002. O segundo é composto das normas constantes sobretudo do Código de Processo Civil, sobretudo os arts. 62º e 63º.
É pacífico que em caso de conflito entre regras de direito internacional privado emanadas da União Europeia e normas de direito interno, aquelas têm primazia sobre estas (art. 8º CRP).
Posto isto, vejamos.

Dispõe o art. 59º CPC que “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.
As normas de competência internacional definem a susceptibilidade de exercício da função jurisdicional pelos tribunais portugueses, tomados no seu conjunto, relativamente a situações jurídicas que apresentam elementos de conexão com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras (2).
Os arts. 62º e 63º definem as situações em que a competência internacional dos tribunais portugueses tem origem legal. Como é sabido, essa competência pode ter origem também, quer em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais, quer no acordo das partes, os chamados pactos de jurisdição (cfr. art. 94º CPC).
Deixando agora de parte o art. 63º, que regula as situações em que os Tribunais Portugueses têm competência exclusiva, a remissão para os elementos de conexão referidos no artigo 62º CPC leva-nos à seguinte apreciação: Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
Como se afirma na decisão recorrida, temos aqui 3 critérios de atribuição da competência internacional com origem legal, aos Tribunais portugueses: os da coincidência (alínea a)), da causalidade (alínea b)) e da necessidade (alínea c)).
O critério da coincidência diz-nos que os Tribunais Portugueses serão internacionalmente competentes sempre que a acção possa ser proposta em Portugal, segundo as regras específicas da competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (art. 70º e seguintes CPC).

O critério da causalidade determina a competência internacional dos tribunais portugueses sempre que tenha sido praticado em território nacional o facto ou algum dos factos integradores da causa de pedir. Esta última referência diz respeito às causas de pedir complexas, compostas por vários factos, e em que a finalidade do legislador foi impedir a denegação da competência dos nossos tribunais sempre que um só dos factos, por mínimo que fosse, tivesse ocorrido em território estrangeiro (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil, II, fls. 29).

O critério da necessidade alarga as situações de competência internacional dos tribunais portugueses às situações em que o direito invocado apenas se possa efectivar por meio de acção proposta em território português, ou em que seja apreciavelmente difícil para o autor a sua propositura no estrangeiro.

O Tribunal recorrido fixou-se logo na alínea b), ou seja, no critério da causalidade, que determina a competência dos tribunais portugueses sempre que algum dos factos integradores da causa de pedir tenha sido praticado em território nacional.
E de seguida, afirma-se na decisão recorrida que “a causa de pedir apresentada pelo A. na petição inicial é complexa, consistindo na invocação dos factos que constituem o seu crédito e nos factos que permitem concluir pela situação de insolvência do R.. E quanto aos factos que constituem o crédito do A., este alega ser dono e legítimo possuidor de uma livrança no montante de € 4.269.171,31, subscrita em 07.04.2014 e avalizada por A. S., a qual se venceu em 14.10.2016 – cfr. art. 4º da petição inicial. A livrança em causa (ou melhor, cópia da mesma) consta de fls. 10 e 11 dos presentes autos. Nesta, encontra-se escrito no Local de Emissão, a palavra “Braga”.
E daqui concluiu a decisão recorrida que podia afirmar com segurança que os factos que constituem o crédito do A., ou seja, parte dos factos integradores da causa de pedir foram praticados em território nacional, concretamente, em Braga.

A tese do recorrente assenta no afastamento das regras de atribuição de competência internacional previstas no Código de Processo Civil, por serem de aplicação subsidiária, nos termos do art. 17º do CIRE, já que este tem norma de aplicação e atribuição de competência internacional própria. Tal norma reside e tem assento no art. 294º do CIRE, que se insere no Capítulo III do Título XV, respeitante às normas de conflitos. Este artigo diz-nos que se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos seus principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português!
Desde logo, permita-se-nos começar por notar uma flagrante contradição no pensamento do recorrente: é que, ao contrário do que agora afirma em sede de recurso, aquando da oposição que apresentou e ao excepcionar a incompetência internacional dos tribunais portugueses, escreveu (arts. 33º e ss do seu articulado) o seguinte: “entendemos ser de salientar que não é aqui de aplicar o disposto no art. 294º e ss do CIRE”. Para além de não estarem preenchidos os pressupostos de aplicação dessa norma, o certo é que o processo particular de insolvência que está aí previsto destina-se apenas a pessoas ou empresas que tenham domicílio ou sede noutro Estado membro da EU, já que esse capítulo do CIRE está em linha com o Regulamento (CE) 1346/2000 do Conselho de 29/5/2000 relativo aos processos de insolvência”.
Ora, os arts. 271º a 274º CIRE são qualificados pelo próprio legislador como disposições executoras do Regulamento (CE) nº 1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio.
Donde, o Regulamento sobre Insolvência não prejudica, em princípio, a aplicação pelos tribunais portugueses do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Em caso de conflito, prevalecem as normas do Regulamento, que é uma fonte do Direito hierarquicamente superior à lei ordinária na ordem jurídica interna (art. 8º CRP).
Tal Regulamento foi adoptado pelo Conselho da União Europeia, ao abrigo da competência que lhe é atribuída pelos arts. 61°/c e 65° do Tratado da Comunidade Europeia, com a redacção dada pelo Tratado de Amesterdão.
E, indo directamente ao que agora mais nos interessa, que é o âmbito espacial de aplicação do referido Regulamento, e dando de novo a palavra ao Prof. Lima Pinheiro (3), “o Regulamento não delimita o seu âmbito de aplicação no espaço no texto normativo. Seguindo uma técnica legislativa criticável, o critério de delimitação é enunciado no seu Preâmbulo: de acordo com o Considerando n.° 14 o Regulamento aplica-se “exclusivamente aos processos em que o centro dos interesses principais do devedor está situado na Comunidade”.
Sabendo nós que, no caso em apreço, se pode dar como assente, por se tratar de um facto alegado pelo réu e não impugnado pelo autor, que o réu não tem domicílio em Portugal desde 2014, tendo passado, em 2016, a residir a título permanente em Moçambique, na Rua …, Moçambique, onde ainda hoje tem o seu domicílio, está excluída a aplicação do Regulamento Comunitário supra identificado. E excluídas estão as normas constantes do CIRE que se destinam a dar-lhe execução, nomeadamente o art. 294º.

Em conclusão, aos processos de insolvência instaurados num Estado-Membro sobre devedores que não têm o centro dos principais interesses na União Europeia, como é o caso do ora requerido, aplica-se o Direito Internacional Privado de cada Estado.
Assim, bem andou o Tribunal recorrido ao aplicar ao caso as normas de direito internacional privado constantes do CPC, concretamente acolhendo o caso ao critério da causalidade, e concluindo pela competência internacional dos Tribunais Portugueses, num raciocínio jurídico escorreito, legal e jurisprudencialmente justificado.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, neste Tribunal da Relação de Guimarães, decide-se julgar o recurso totalmente improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 23/11/2017

Relator
(Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto
(Alcides Rodrigues)
2º Adjunto
(Joaquim Luís Espinheira Baltar)


1. Artigo publicado no Website da Ordem dos Advogados: O Regulamento Comunitário sobre Insolvência — uma introdução – www.oa.pt)
2. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado.
3. Artigo citado supra