Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
976/03-2
Relator: ANTÓNIO GONÇALVES
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/02/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Nos termos do disposto no art.º 1014.º do CPC "a acção de prestação de contas ... tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se".
2. O julgamento das contas que o Tribunal terá de fazer recai sobre a real situação económica final da falência decretada, incidirá sobre a real consistência do saldo encontrado e resultante da receitas e das despesas comprovadas na conta-corrente exibida por quem as presta, assim como e também comportará um juízo sobre a exactidão ou insuficiência de cada uma das verbas que se incluem nas receitas ou débitos descritos.
3. E, se é assim, neste enquadramento jurídico-processsual não está vedado ao Juiz averiguar a exactidão e rigor das verbas contestadas e julgar o mérito das contas assim apresentadas; porém, terá esta operação de se enquadrar no contexto de uma decisão segundo o seu prudente arbítrio e as regras da experiência... como manda o disposto no n.º 5 do art.º 1017.º do C.P.Civil.
4. Sabido que são conceitos jurídicos diferentes prudente arbítrio e poder discricionário, não será prudente e é uma atitude de pouca ponderação que se faça um juízo sobre a licitude, validade ou eficácia dos negócios jurídicos documentados e referenciados na apresentação das contas, que se vá repudiar os actos jurídicos ou conjecturar sobre honorários de advogado que aquelas contas assinalam e corporizam.
5.
Porque o seu posicionamento está distante dos interesses assumidos na falência pelos credores, falido e Ministério Público (“res inter alios acta allis neque nocere neque prodesse potest”), antes de se decidir sobre a redução dos honorários sobre actos praticados na falência, ter-se-á que dar oportunidade ao advogado de se poder defender da impugnação que mereceram por parte do Digno Agente do Ministério Público e só então a atinente decisão poderá ter lugar.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

O Sr. Liquidatário Judicial, nas contas que apresentou, incluiu o montante de 612.587$00 correspondente a honorários e despesas devidos à Sr.ª Dr.ª Helena ... pela sua intervenção nos apensos n.°s 164-G/97 e 164-I/97, em representação da massa falida.

Os credores e a falida nada disseram.

O Digno Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido da redução daquele montante para 517.100$00, correspondentes a 450.000$00 de honorarios, 20.500$00 de despesas de expediente e 46.600$00 de despesas de deslocações.

Decidindo sobre as contas apresentadas pelo Sr. Liquidatário Judicial (art° 223°, n.° 2 do C.P.E.R.E.F.), o Ex.mo Juiz julgou boas para todos os efeitos legais as contas apresentadas pelo Sr. Liquidatário Judicial, com a ressalva dos honorários devidos à Sr.ª Dr.ª Helena ..., que fixou em 780.000$00, acrescidos de 20.500$00 de despesas de expediente e de 46.600$00 de despesas de deslocações.

Inconformada com esta sentença recorreu a Sr.ª Dr.ª Helena ... que alegou e concluiu do modo seguinte:
A) - Ao presente recurso deverá ser fixada a espécie de apelação;
B) - A sentença, que recaiu sobre a prestação de contas efectuada pelo Liquidatário Judicial, não se podia pronunciar sobre os honorários pagos à recorrente, pelo que, ao fazê-lo cometeu a nulidade prevista na alínea d) do artigo 668.º do Código de Processo Civil;
C) - Mesmo que assim não se entenda, o que não se concede e só por mera cautela de patrocínio se encara, a sentença proferida nos autos de prestação de contas é nula, pois foram tomadas providências contra a recorrente, sem que esta tenha sido citada para aqueles autos, quando não se está perante qualquer dos casos excepcionais previstos na lei, em que tal é admissível;

D) - A sentença recorrida não soube utilizar a Tabela de Honorários dos Advogados da Comarca de Viana do Castelo, pois o valor dos honorários da recorrente deveriam ter sido calculados tendo em atenção o que ali se dispõe para o processo sumário e não para os processos de falência;
E) - Os honorários apresentados são mais baixos do que os que resultam da aplicação da aludida tabela de honorários, pelo que nunca deveriam ter sido diminuídos;
F) - A sentença recorrida violou o princípio do dispositivo ao vir decidir, ao arrepio das partes, matéria sobre a qual estas estavam de acordo e sem que se vislumbre qualquer interesse digno de tutela jurídica, que a decisão tenha querido proteger;
G) - A sentença em causa violou o disposto nos artigos 3.º, 201.º 264.º, 265.º 668.º e 691.º todos do Código de Processo Civil.
Termina pedindo que seja provido o presente recurso e, por via disso:
1) - Reconhecer-se que a sentença proferida é nula, por ter sido cometida a nulidade, prevista na alínea d) do artigo 668.º do Código de Processo Civil.
2) - Mesmo que assim não se entenda, o que não se concede e só se encara por mera cautela de patrocínio, sempre aquela sentença deverá ser declarada nula, por ter tomado providências contra a recorrente, sem que a mesma tenha sido citada para os presentes autos;
3) - Ainda que assim não se entenda, deverá a sentença proferida ser substituída por outra, que julgue boas as contas apresentadas pelo Liquidatário Judicial e os honorários apresentados pela recorrente.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

A sentença recorrida considerou assentes os factos seguintes:
- A Sr.ª Dr.ª Helena ... apresentou uma contestação no apenso 164/97 e apresentou resposta a uma reclamação no apenso 164-1/97.
- Teve despesas com expediente no valor de 20.500$00 e despesas com deslocações no valor de 46.600$00 (cfr. fls. 95).

Aceitando como razoáveis os montantes apresentados quanto às despesas efectuadas, já no que diz respeito ao montante dos honorários, face ao estabelecido na Tabela de Honorários desta comarca, que fixa em 260.000$00 o limite mínimo dos honorários no processo de falência (com referência a 01.01.99), a requerimento do Digno Magistrado do Ministério Público entendeu o Ex.mo Juiz que o trabalho processual desenvolvido pela Sr.ª Advogada (apresentação de uma contestação e da resposta a uma reclamação) e admitindo-se que tenha sido desenvolvido algum trabalho extra-processual, traduzido em reuniões, etc., considerou adequadamente remunerado o montante de 780.000$00, correspondente ao triplo daquele montante mínimo, acrescido do montante das despesas acima mencionadas.
É desta decisão de que se recorre.

Passemos agora à análise das censuras feitas à sentença recorrida nas conclusões do recurso, considerando que é por aquelas que se afere da delimitação objectiva deste (artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, do C.P.C.

Decidida que está já que o recurso interposto é de apelação, a questão posta no recurso é a de saber se, no processo de prestação de contas apresentadas pelo Sr. Liquidatário Judicial nos termos do disposto no art.º 223°, n.° 2, do C.P.E.R.E.F., pode apreciar-se a adequação dos honorários do advogado interveniente no processo de falência em representação da massa falida.

I - Nos termos do disposto no art.º 1014.º do CPC "a acção de prestação de contas ... tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se".
Cabendo ao liquidatário judicial prestar contas da administração dos bens da massa falida perante os seus credores, impõe-se àquele administrador que faça uma descrição, clara e concisa, das receitas obtidas e das despesas que teve de fazer até à ultimação do processo de falência - as contas são elaboradas em forma de conta corrente, com um resumo de toda a receita e despesa destinado a retratar sucintamente a situação da massa falida ... ( art.º 222° do C.P.E.R.E.F.), isto é, há que indicar separadamente como se obteve a totalidade da receita, quais as quantias que se foram recebendo e donde provieram, assim como é forçoso declarar quais as diferentes despesas que se fizeram e a que fim se aplicaram as verbas respectivas (Prof. Alberto dos Reis; Processos Especiais; I; pág. 316); pág. 106).
Aos credores, falido e Ministério Público é permitido pronunciarem-se sobre a operação das contas (art.º 223.º, n.º 1 e 2, C.P.E.R.E.F.), ou seja, poderão deduzir oposição sobre a proposta oferecida pelo apresentante consignada na nota discriminativa das receitas e das despesas postas no respectivo escrito, onde se dá conta do modo como foram obtidos os ganhos e as perdas e ainda o resultado final da situação económica da massa falida.
Deste modo, apresentas as contas, a apreciação que o julgador terá de fazer neste contexto é a de averiguar se elas espelham a real situação contabilística da massa falida, isto é, se delas constam todos os dados atinentes às receitas e despesas executadas no decurso do processo em que se integram - o resumo final destina-se a revelar, de modo suscinto, a situação da massa falida, tornada assim facilmente perceptível (Carvalho Fernandes e João Labareda; C.P.E.R.E.F., Anotado; pág. 499).
Quer isto dizer que o julgamento das contas que o Tribunal terá de fazer recai sobre a real situação económica final da falência decretada, incidirá sobre a real consistência do saldo encontrado e resultante da receitas e das despesas comprovadas na conta-corrente exibida por quem as presta, assim como e também comportará um juízo sobre a exactidão ou insuficiência de cada uma das verbas que se incluem nas receitas ou débitos descritos - a finalidade do processo de prestação de contas é a do apuramento do saldo das contas; para tal apuramento, se necessário, deve o julgador recorrer ao prudente arbítrio e à sua experiência... (Ac. S.T.J. de 25.05.1995; C.J.; 1995; 2.º; pág. 106).
E, se é assim, neste enquadramento jurídico-processsual não está vedado ao Juiz averiguar a exactidão e rigor das verbas contestadas e julgar o mérito das contas assim apresentadas; porém, terá esta operação de se enquadrar no contexto de uma decisão segundo o seu prudente arbítrio e as regras da experiência... como manda o disposto no n.º 5 do art.º 1017.º do C.P.Civil.

II - Sabido que são conceitos jurídicos diferentes prudente arbítrio e poder discricionário, não será prudente e é uma atitude de pouca ponderação que se faça um juízo sobre a licitude, validade ou eficácia dos negócios jurídicos documentados e referenciados na apresentação das contas, que se vá repudiar os actos jurídicos ou conjecturar sobre honorários de advogado que aquelas contas assinalam e corporizam
O exame crítico sobre os honorários da recorrente, poderia e deveria ter sido realizado em momento anterior àquele em que são apresentadas as contas e em contexto jurídico-processual também diferente - manda a boa prudência que a observação sobre os honorários de advogado apresentados deve logo ser efectivada aquando da sua apresentação e não reservar esta impugnação para o processo de prestação de contas; é que as contas que o mandatário judicial terá de também apresentar ao mandante envolvem ela igualmente alguma complexidade, salientando-se que duma peça processual (por exemplo uma contestação) que, formal e extrinsecamente, dela transpareça mera rotina forense, pode acontecer que por detrás da sua subscrição tenha havido um árduo labor de investigação jurídica e que tenha de ser atendido na cobrança dos respectivos honorários.
Deste modo, só irreflectidamente pode concluir-se que do exame literal de determinada peça processual, foi posto pouco esforço na concretização que ela expressa.

III – Convenhamos que, se assim foi entendido numa primeira abordagem da questão suscitada, a decisão que sobre ela poderia recair sempre teria de passar pela comunicação à Ex.ma Advogada recorrente desta discordância, a fim de que esta ilustre causídica pudesse fundamentar e sustentar o merecimento que o seu trabalho produziu.
O princípio do contraditório (ou da audiência), que tem a sua expressão mais generalizada no direito que tem toda e qualquer pessoa a ser ouvida antes de contra ela ser proferida decisão que a atinja na sua pessoa ou património, manifesta-se também no princípio estatuído no art.º 3.º, n.º 3, do C.P.Civil de que não é lícito ao Juiz, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Quer isto dizer que a recorrente, não pode ser surpreendida por uma decisão tomada pelo Juiz fora do contexto em que se posicionaram em juízo - o efeito surpresa é intrinsecamente malévolo e atentório do dever de lealdade que deve informar a actividade dos operadores judiciários (Abílio Neto; Código Processo Civil Anotado; pág. 54).
Porque o seu posicionamento está distante dos interesses assumidos na falência pelos credores, falido e Ministério Público (“res inter alios acta allis neque nocere neque prodesse potest”), ter-se-á que dar oportunidade à recorrente de se poder defender da impugnação que os seus honorários mereceram por parte do Digno Agente do Ministério Público e só então a atinente decisão poderia ter lugar.
A sentença recorrida enferma da nulidade prevista na alínea d) do artigo 668.º do Código de Processo Civil;

IV - Pelo exposto, julgando procedente o recurso, revoga-se a sentença recorrida na parte em que se pronunciou, reduzindo-os, sobre os honorários pagos à recorrente Sr.ª Dr.ª Helena ....

Sem custas (art.º 2.º, n.º 1, al. b), do C.C. Judiciais).

Guimarães, 2 de Julho de 2003.