Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2559/16.1T8VNF.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
ENCERRAMENTO DO PROCESSO
CESSÃO DE RENDIMENTOS AO FIDUCIÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Tendo sido requerida a exoneração do passivo restante e inexistindo património do insolvente a liquidar, no despacho inicial daquele incidente deve ser declarado o encerramento do processo de insolvência.

II – Se, porém, só posteriormente à prolação do despacho inicial se vem a constatar a insuficiência da massa insolvente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa, deve o juiz logo que tenha conhecimento dessa situação declarar o encerramento do processo.

III – As alterações ao CIRE, operadas pelo Decreto Lei n.º 79/2017, de 30 de junho, inovaram em matéria de fixação do momento relevante para determinar o termo inicial do período da cessão de rendimentos, ao estabelecer que o «encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível.» (n.º 7 do art. 233.º do CIRE).

IV – A norma transitória prevista no art. 6º, n.º 6 do citado Dec. Lei n.º 79/2017, reporta a 1 de julho de 2017 o início do período da cessão do rendimento que, por força da ausência de encerramento do processo e apesar de ter sido já proferido despacho de exoneração do passivo restante, ainda não tinha começado.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

1.1. No Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão – Juiz 1 - do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, nos autos de insolvência em que foi declarada a insolvência de S. P., este apresentou requerimento, em 3 de fevereiro de 2017, no qual requereu a fixação do «início do período de cessão no dia da data da Assembleia de credores, ou se assim não se entender, nos 10 dias subsequentes à realização da mesma, nos termos do artigo 239º, n.ºs 1 e 2 do CIRE» (cfr. fls. 165 a 167).
*
1.2. Datado de 13 de julho de 2017, a Mmª Juiz a quo proferiu o seguinte despacho (cfr. fls. 168):
«Requerimento de fls. 165/166:
Nos termos do disposto no artigo 239º, nº 2, do CIRE, o início do período inicial de
cinco anos conta-se a partir do encerramento do processo de insolvência
E diga-se ainda que nenhum prejuízo advém para o devedor uma vez que o período de cessão ainda não tendo tido início, não se encontrava obrigado, até tal data, a ceder qualquer quantia, ao que acresce que entre o despacho que concedeu liminarmente a exoneração do passivo e o despacho que encerrou o processo, mediaram apenas 6 meses.
Face ao exposto, indefere-se o requerido, por falta de fundamento legal.
Notifique.
(…)»
*
1.3. Inconformado com esta decisão, o requerente S. P. dela interpôs recurso e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (cfr. fls. 169 a 173):

1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido a fls., que entendeu que o inicio do período de cessão de 5 anos fixado ao aqui Recorrente se contava da data do encerramento do processo de insolvência, decisão de que se discorda e cuja revogação, por isso, se propugna.
2. Com efeito, o aqui recorrente solicitou a concessão da exoneração do passivo restante aquando do articulado constante do sistema Citius com a referência 22581297.
3. Na assembleia de credores, o Sr. Administrador de Insolvência apresentou o relatório elaborado nos termos do artigo 155.º do CIRE, tendo exposto aos credores o seu parecer no sentido de que nada tinha a opor à concessão da exoneração do passivo restante requerido pelo próprio insolvente.
4. Os presentes autos não foram encerrados nesta data, em virtude de ter sido ordenada a liquidação do activo existente na massa insolvente.
5. Por despacho de fls., foi proferido o despacho Inicial de Exoneração de Passivo Restante e Nomeação de Fiduciário, relativamente ao qual não foi interposto qualquer recurso, pelo que, transitou em julgado.
6. Por despacho datado do dia 06/07/2017, ao qual foi conferida a respectiva publicidade a fls., os presentes autos foram encerrados.
7. Salvo melhor opinião em contrário, entende-se que, o período de cessão deverá ter início de contagem não a partir da data da publicação do anúncio de encerramento dos presentes autos, nem tão pouco na data da prolação do despacho de concessão da exoneração do passivo restante, mas, ao invés, retroagir à data da assembleia de credores ou nos 10 dias seguintes, tal como estatui o n.º 1 do artigo 239.º do CIRE “não havendo motivo para indeferimento liminar é proferido despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes”.
8. O artigo 239.º, n.º 2 do CIRE prevê que “o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência… o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido…”
9. Salvo melhor opinião em contrário, a razão pela qual o artigo 239.º, n.º 2 do CIRE estabelece que o período da cessão é subsequente ao encerramento do processo de insolvência vem previsto no artigo 230.º, n.º 1, al. e) do mesmo diploma, que impõe ao juiz que declare o encerramento do processo de insolvência, quando tal encerramento não haja ainda sido declarado, no despacho inicial de exoneração do passivo restante referido na al. b) do artigo 237.º do CIRE.
10. A lei não prevê a ilegalidade de não serem simultaneamente proferidos os despachos inicial de exoneração do passivo restante e do encerramento do processo de insolvência começando de imediato a insolvente a ceder ao fiduciário o rendimento disponível de acordo com o decidido naquele despacho.
11. Porém, in casu, assim sucedeu: os despachos em causa não foram proferidos em simultâneo, pelo que, salvo o reiterado respeito, por interpretação extensiva do disposto no artigo 239.º, n.º 2 do CIRE, o período de cessão e a referida cedência do rendimento disponível pode legalmente e de facto ocorrer, independentemente da prolação do despacho de encerramento, após o despacho inicial- neste sentido Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão datado de 22-05-2013, processo n.º 1220/08.5TBBCL-J.G1 e Tribunal da Relação de Évora, no Acórdão datado de 20-06-2013, processo n.º 5422/10.6TBSTB-H.E1, onde se fez a seguinte jurisprudência: “ A data do início do período de cessão poderá começar a contar-se da data do despacho inicial...”
12. Ora, os presentes autos não foram encerrados por insuficiência de bens na data da realização da Assembleia de Credores porque entendeu-se nesta, serem de realizar diligências investigatórias e de liquidação por parte do Sr. Administrador de Insolvência, diligências essas que resultaram na inexistência de bens passiveis de apreensão e de resolução nos termos do artigo 120.º do CIRE.
13. Salvo entendimento diverso, o início do período de cessão deverá ter o seu início na data da assembleia de credores ou nos 10 dias subsequentes, sob pena do requerente ficar prejudicado, pois, ao invés, de ficar sujeito a um período de cessão de 5 anos ficará sujeito a um período muito maior.
14. Assim, atento o supra exposto, deverá ser revogado o despacho recorrido e ser fixado o inicio do período de cessão no dia da data da Assembleia de credores, ou se assim não se entender, nos 10 dias subsequentes à realização da mesma, nos termos do artigo 239.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE.
15. A douta decisão impugnada não pode, pois, manter-se, pois violou o disposto no art.º 239.º do CIRE.
*
1.4. Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
*
1.5. O recurso foi admitido por despacho de 20 de setembro de 2017 como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo (cfr. fls. 179).
*
1.6. Foram colhidos os vistos legais.
*
II. Objecto do recurso

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a única questão que se coloca à apreciação deste tribunal consiste em saber quando se iniciou o período da cessão do rendimento disponível.
*
III. Fundamentação de facto.

Os factos materiais relevantes para a decisão do presente recurso são os que decorrem do relatório supra – que por brevidade aqui se dão por integralmente reproduzidos –, a que acrescem os seguintes:

1. O ora recorrente solicitou a concessão da exoneração do passivo restante aquando da apresentação do articulado da contestação, em 5.05.2016 (cfr. fls. 22 a 30).
2. Por sentença proferida em 9.05.2016, foi declarada a insolvência de S. P. (cfr. fls. 31 a 34).
3. Foram aprendidas à ordem da massa insolvente duas quotas sociais, descritas no auto de apreensão de bens cuja certidão consta de fls. 80.
4. Na assembleia de credores, realizada em 21/06/2016, o Administrador de Insolvência apresentou o relatório elaborado nos termos do artigo 155.º do CIRE, no qual propôs a liquidação do activo, mais referindo que nada tinha a opor à concessão do pedido de exoneração do passivo restante (cfr. fls. 81 a 84).
5. Os presentes autos não foram encerrados nesta data, em virtude de ter sido ordenada a liquidação do activo existente na massa insolvente (cfr. fls. 81 a 84).
6. O pedido de exoneração do passivo restante foi deferido nessa assembleia de credores, tendo sido determinado que o rendimento de cessão seja fixado no montante que exceda o valor de 1 (um) salário mínimo nacional, num total de doze meses por ano (cfr. fls. 81 a 84).
7. O insolvente interpôs recurso desse despacho relativamente à exoneração do passivo restante.
8. Mediante acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 27 de outubro de 2016, foi determinada a anulação da decisão no que concerne à fixação do rendimento para cessão do fiduciário nomeado, por total ausência de fundamentação de facto, a fim de ser averiguada em concreto a situação patrimonial e familiar do insolvente.
9. Em obediência ao citado acórdão, pelo despacho de fls. 106 foi determinada a notificação do insolvente para alegar factos concernentes à sua situação patrimonial e familiar, documentalmente, tendo este apresentado o requerimento constante de fls. 107 a 133.
10. Em 11.01.2011, foi proferido despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente, no qual se fixou o rendimento indisponível em valor correspondente a um salário mínimo nacional, acrescido da quantia de € 495,00, multiplicado por dozes meses, iniciando-se com a decisão do processo do encerramento do processo (cfr. fls. 134 a 139).
11. O insolvente requereu, em 8/05/2017, o encerramento do processo de insolvência por inexistência na massa insolvente, porquanto as duas quotas sociais apreendidas diziam respeito a duas sociedades comerciais que haviam já sido declaradas insolventes (cfr. fls. 148 e 149).
12. Por despacho datado de 6/07/2017 foi determinado o encerramento do processo, com os efeitos previstos nos arts. 233º e 234º do CIRE, por não serem conhecidos bens do património do insolvente suscetível de pagar as custas e demais dívidas da massa insolvente (cfr. fls. 152 e 153).
*
IV. Fundamentação de direito

1.1 Sustenta o apelante/insolvente que a contagem do período de cessão do rendimento disponível deverá iniciar-se não a partir da data da publicação do anúncio de encerramento do processo de insolvência, nem na data da prolação do despacho inicial (positivo) do pedido de exoneração do passivo restante, mas, sim, retroagir à data da assembleia de credores ou nos 10 dias seguintes, como estatui o n.º 1 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante, CIRE), aprovado pelo Dec. Lei n.º 53/2004, de 18/03.
No dizer do apelante, a lei não prevê a ilegalidade de não serem simultaneamente proferidos os despachos inicial de exoneração do passivo restante e do encerramento do processo de insolvência, pelo que, por interpretação extensiva do disposto no artigo 239.º, n.º 2 do CIRE – e estribando-se em jurisprudência que cita (1) –, o período de cessão e a referida cedência do rendimento disponível pode ocorrer, independentemente da prolação do despacho de encerramento, após o despacho inicial (2).
Diversamente, na decisão recorrida perfilhou-se o entendimento de que a contagem do período de cinco anos da cessão do rendimento disponível se inicia a partir do encerramento do processo de insolvência, com conformidade com o disposto no art. 239º, n.º 2, do CIRE, além de que até à prolação desse despacho tal período não se tinha ainda sequer iniciado, pelo que não se encontrava o insolvente obrigado, até tal data, a ceder qualquer quantia.
1.2. O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores [art.º 1º, n.º 1, 1ª parte do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), aprovado pelo Dec. Lei n.º 53/2004, de 18/03].
Segundo o n.º 1 do art. 230º do CIRE, prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento: a) Após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 239º; b) Após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, se a isso não se opuser o conteúdo deste; c) A pedido do devedor, quando este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou todos os credores prestem o seu consentimento; d) Quando o administrador da insolvência constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente; e) Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237º.
Estipula o art. 235º do CIRE que “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.”.
Inexistindo motivos para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o juiz profere despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes a esta ou ao decurso dos prazos previstos no n.º 4 do artigo 236.º (3) (art. 239º, n.º 1 do CIRE).
O despacho inicial de exoneração do passivo restante «determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, (…) designado pelo período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, (…) designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência (…)» - art.º 239º, n.º 2 do CIRE.
O aludido despacho inicial de exoneração do passivo restante não representa qualquer decisão relativamente à concessão da exoneração do passivo restante, representando apenas a passagem a uma nova fase processual, denominada período de cessão, onde o devedor é sujeito a determinadas exigências durante cinco anos, findos os quais o juiz tomará decisão final sobre a concessão ou não da exoneração (art. 244º do CIRE) (4).
Prevê o n.º 4 do citado art. 239º do CIRE que, durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores (n.º 4).
Sendo interposto recurso do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante a realização do rateio final só determina o encerramento do processo depois de transitada em julgado a decisão (n.º 6 do art. 239º do CIRE).
Durante o período da cessão o devedor assume, entre outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível ao fiduciário (art.º 239º, n.º 4), para os fins previstos no art. 241º, entre os quais, principalmente, a distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência [n.º 1, al. d)]. Ou seja, durante o período da cessão o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir é afetado ao pagamento ao pagamento das dívidas que restarem após a liquidação do ativo, sendo cedido ao fiduciário.
Durante esse período da cessão o devedor vai beneficiar de proteção perante os credores da insolvência, na medida em que estes não podem executar bens do devedor para satisfazerem créditos sobre a insolvência (art. 242º, n.º 1 do CIRE).
Decorrido o período da cessão, proferir-se-á decisão sobre a concessão ou não da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que for concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados (cfr. arts. 241.º n.º 1 e 245.º do CIRE), ressalvando os créditos enunciados no n.º 2 do art. 245º do CIRE.
1.3. Antes propriamente de analisarmos a questão concreta objeto da apelação importa tecer umas breves considerações sobre o instituto da exoneração do passivo restante.
O regime da exoneração do passivo restante, instituído nos arts. 235º a 248º do CIRE, específico da insolvência das pessoas singulares, é um instituto novo, ‘tributário da ideia de fresh start’, sendo o seu objectivo final a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica (5).
Nas palavras de Assunção Cristas (6), «apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente. O objetivo é que o devedor pessoa singular não fique amarrado a essas obrigações».
De acordo com o Ponto 45 do preâmbulo do CIRE, o «Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do ´fresh start` para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica».
1.4. A resposta à questão objecto do recurso tem sido praticamente uniforme na jurisprudência dos Tribunais superiores, no sentido de que o período da cessão só se inicia quando o processo de insolvência esteja encerrado, seja por liquidação integral da massa, seja por insuficiência desta ou por outra causa (art.º 230º do CIRE) (7).
E, no caso concreto, adiantando desde já a nossa posição não vemos razões para alterar esta jurisprudência.
Explicitando.
A construção jurídica que vem ensaiada pelo insolvente no recurso não se mostra suportada na redação que apresenta o n.º 2 do artigo 239.º do CIRE, pois dele decorre que o termo inicial do período de cessão do rendimento disponível do insolvente devedor se verifica aquando do encerramento do processo de insolvência. É este acto processual que determina o início da contagem do prazo fixo de cinco anos estabelecido para o período da cessão.
Igualmente, não se mostra alicerçada na letra da alínea b) do artigo 237.º do CIRE, pois este mais uma vez baliza o período da cessão aos “cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência”.
É, pois, tal despacho de encerramento do processo de insolvência que vai marcar o termo inicial do período de cinco anos para a cessão dos rendimentos que o tribunal dela não excecione nos termos do n.º 3 artigo 239.º do CIRE.
Vejamos, porém, as implicações decorrentes do estatuído na alínea e) do n.º 1 do art. 230.º do CIRE – segundo a qual “Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento”: “e) Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º” –, na medida em que o insolvente conclui que o despacho de encerramento do processo de insolvência deveria ter sido proferido simultaneamente com o despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, aquando da realização da assembleia de credores ou, o mais tardar, nos 10 dias seguintes, como estatui o n.º 1 do artigo 239.º do CIRE.
Resulta do normativo citado (art. 230º, n.º 1, alínea e), do CIRE), ser o próprio legislador que, implicitamente, admite e reconhece como traduzindo ocorrência processual regular (não anómala) a possibilidade de, em sede de prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, não declarar o juiz titular dos autos o encerramento do processo. Ou seja, implicitamente, é o próprio legislador que entende existirem circunstâncias que obstam a que, no despacho liminar do referido incidente a que alude a alínea b) do artº. 237º, do CIRE, seja declarado o encerramento do processo.
De igual modo, da alínea a), do n.º 1, do artº 230º, do CIRE [segundo a qual, prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento “após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 239º”], por interpretação “a contrario” podemos concluir que até ao encerramento da liquidação e rateio final não deve o juiz declarar o encerramento do processo (8).
Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, no âmbito da anotação à alínea e) do n.º 1 do art. 230º do CIRE (9), consideram que, “tendo sido requerida a exoneração do passivo restante, duas situações podem ocorrer: ou há património actual que deve ser liquidado, ou não há. Neste último caso, tanto pode suceder que a inexistência já seja conhecida à data do proferimento do despacho inicial, como não.
Ora, se houver património a liquidar, não se vê como deva - ou possa - o despacho inicial declarar o encerramento do processo de insolvência, o qual só terá lugar após a concretização da liquidação e rateio.
Porém, não havendo bens, o processo de insolvência, qua tale, não faz mais sentido (…).
Pois bem, o que parece resultar da atual al. e) do n.º 1, é que a dedução e prosseguimento do incidente da exoneração não obsta ao encerramento do processo de insolvência de que depende, replicando-se – embora por meio distinto, uma situação substancialmente equivalente à que emerge do art. 39º (…).
Então, se à data do despacho inicial do incidente de exoneração há já elementos que revelem a inexistência de bens, é nele que o tribunal, por iniciativa própria, deve declarar o encerramento.
Mas se, acaso, omite essa declaração, deve então lançar mão de um despacho autónomo para o efeito, o qual não fica dependente de requerimento do devedor nem do administrador. E assim parece dever ser também quando só após o despacho inicial se vem a revelar a inexistência de activo a liquidar, competindo ao juiz decidir logo que tenha conhecimento da situação” (sublinhado nosso) (10).
Por conseguinte, a contagem do prazo fixo de cinco anos, previsto para a duração da cessão do rendimento disponível do devedor, não tem como referência a data em que é proferido o despacho liminar, mas sim a data de encerramento do processo de insolvência, que poucas vezes coincide com a data em que é proferido o despacho inicial. O período de cessão inicia a sua contagem na data do despacho inicial apenas quando se determina a insuficiência da massa, nos termos dos artigos 232.º e 230.º, n.º 1, al. e) do CIRE.
Tudo ponderado, afigura-se-nos que por referência aos elementos histórico, atualista, sistemático teleológico e até literal, a alínea e), do nº. 1, do artº. 230º, do CIRE deverá ser interpretada no sentido de que, apenas nos casos em que inexiste activo a liquidar, deve o processo de insolvência ser encerrado, proferido que seja o despacho liminar sobre o pedido de exoneração do passivo restante. Com efeito, não faz qualquer sentido uma declaração de encerramento do processo, com a inevitável cessação das atribuições do administrador da insolvência (art. 233º n.º 1, alínea b), do CIRE), num momento em que persiste ainda por realizar a proeminente função do administrador de insolvência, qual seja, a de promover e diligenciar pela alienação dos bens que integram a massa insolvente (arts. 55º, n.º 1, al. a) e art. 158º, ambos do CIRE) (11).
Mas se à data do despacho inicial do incidente de exoneração já existirem elementos nos autos que revelem a inexistência de bens, deve então na referida decisão e de imediato o Juiz titular declarar o encerramento do processo de insolvência.
Todavia, existindo bens que integram a massa insolvente, e estando ainda a decorrer a sua liquidação pelo administrador de insolvência, não se pode declarar o encerramento do processo e insolvência antes de concluída a liquidação, pois que se torna-se necessário aguardar pelo rateio final nos termos estabelecidos na alínea a), do nº. 1 do art. 230º do CIRE.
De igual modo, se após o despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante se vem a constatar-se a insuficiência dos bens apreendidos para a massa insolvente, deverá de imediato ser declarado o encerramento do processo, em conformidade com o estatuído nos arts. 232º, n.º 2 e 230º, n.º 1, alínea e) do CIRE.
Importa, por último, ter presente as implicações decorrentes da recente intervenção legislativa em sede do CIRE, estabelecidas pelo Dec. Lei n.º 79/2017, de 30 de junho, designadamente aferir se houve alguma inovação em matéria de fixação do momento relevante para determinar o termo inicial do período de cessão de rendimentos.
Com relevância para a matéria em análise, o citado diploma legal aditou o n.º 7 ao art. 233.º do CIRE, que regula os efeitos do encerramento do processo, estatuindo o seguinte: «O encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível
Com esta alteração legislativa pretendeu o legislador atribuir autonomia à al. e) do n.º 1 do art. 230.º do CIRE, devendo ser declarado o encerramento do processo de insolvência no despacho inicial de exoneração do passivo restante, quando tal não tenha ainda ocorrido, sendo certo que, existindo bens ou direitos a liquidar, os efeitos do encerramento se repercutem unicamente no início do período de cessão do rendimento disponível (12).
Certamente ciente das críticas apontadas às dificuldades de articulação dos arts. 230.º, n.º 1, al. e) e 232º, n.º 6 do CIRE e das desvantagens decorrentes da referência do início do período de cessão ao encerramento do processo (13), o legislador decidiu alterar o quadro legal então vigente, de modo a que o fundamento de encerramento da al. e) do n.º 1 do art. 230.º do CIRE se aplicará a todos os processos em que tiver sido requerida a exoneração do passivo restante, se bem que os efeitos desse encerramento, na hipótese de haver bens ou direitos a liquidar, produzir-se-ão apenas quanto ao início do período de cessão do rendimento disponível.
Tem-se em vista acautelar os interesses do devedor insolvente - colocando-o a salvo da demora em que frequentemente se traduz a atividade de liquidação e a própria tramitação do processo de insolvência -, sem que daí resultem prejuízos para os credores - pois o período de cessão nunca poderá ser inferior aos 5 anos fixados na lei.
Ressalvando o devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos não estarmos perante uma norma interpretativa, até porque se tomarmos em atenção a norma transitória (art. 6º, n.º 6 do citado Dec. Lei n.º 79/2017, de 30/06) constatamos que o legislador teve o cuidado de ressalvar que «[n]os casos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, em que não tenha sido declarado o encerramento e tenha sido proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, considera-se iniciado o período de cessão do rendimento disponível na data de entrada em vigor do presente decreto-lei», ou seja, no dia 1 de julho de 2017 (art. 8º do citado Dec. Lei n.º 79/2017).
Ora, no caso em apreço, aquando da prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante não foi (e bem) declarado o encerramento do processo de insolvência porquanto a fase da liquidação do activo ainda não se mostrava ultimada, sendo certo que só subsequentemente foi dada notícia nos autos, pelo próprio devedor insolvente, que as duas quotas sociais apreendidas diziam respeito a duas sociedades comerciais que haviam já sido declaradas insolventes (cfr. fls. 148 e 149), pelo que, após cumprimento do disposto no art. 232º, n.º 2 do CIRE, foi de imediato, por despacho datado de 6/07/2017, determinado o encerramento do processo, com os efeitos previstos nos arts. 233º e 234º do CIRE, por não serem conhecidos bens do património do insolvente suscetíveis de pagar as custas e demais dívidas da massa insolvente.
Assim, no circunstancialismo concreto dado que o início da contagem do prazo fixo de cinco anos, previsto para a duração do período da cessão do rendimento disponível do devedor insolvente, não tinha como referência a data em que foi proferido o despacho inicial, mas sim a data do encerramento do processo de insolvência (art. 239º, n.º 2 do CIRE), forçoso será concluir pelo acerto da decisão recorrida.
Ademais, no caso em apreço o insolvente nem sequer pode invocar em sua defesa que o atraso no encerramento do processo de insolvência lhe acarretou prejuízos, sob a alegação de que nesse período viu os seus rendimentos apreendidos à ordem da massa insolvente, pelo que deveria o mesmo ser imputado na contagem do período da cessão. Desde logo porque, conforme decorre dos autos – e é mencionado no despacho recorrido – , os seus rendimentos não foram apreendidos no decurso do processo de insolvência (14) e a cedência ao fiduciário do rendimento disponível apenas produziu efeitos a partir do encerramento do processo de insolvência e não antes. Mas mesmo que se tivesse verificado a apreensão de parte dos rendimentos do insolvente – o que, como se disse, não sucedeu, pelo que a hipótese é colocada para efeitos meramente argumentativos –, inexistiria fundamento legal para converter o período em que perdurou essa apreensão, ao abrigo do disposto no artigo 46.º do CIRE, em período de cessão do rendimento disponível nos termos e para os efeitos previstos no artigo 239.º, n.º 2 do CIRE, nomeadamente para a contagem do prazo de cinco anos aqui estabelecido (15).
Daí que se revele infundada a argumentação do insolvente de que, a considerar-se o início do período de cessão na data do encerramento do processo, ficará prejudicado, porque irá ceder rendimentos, não pelo período de cinco anos, mas por um período superior.
Aliás, a sufragar-se o entendimento por si propugnado, o período da cessão do rendimento disponível seria substancialmente inferior a cinco anos, pois lograria ver nele incluído o período compreendido entre os 10 dias subsequentes à elaboração da assembleia de apreciação do relatório e a data do encerramento do processo (correspondente a 371 dias), sem que nesse decurso temporal tivesse efetivamente cedido ao fiduciário o seu rendimento disponível com vista à afetação aos fins enunciados no art. 242º do CIRE, o que é de rejeitar.
O prazo de cinco anos estabelecido no n.º 2 do art. 239º do CIRE, constituindo o período que o legislador reputou adequado para assegurar aos credores uma razoável satisfação dos seus créditos, é fixo, não dependendo, portanto, do prudente arbítrio do juiz (16). Nessa medida, se em atenção aos interesses do devedor insolvente é de reputar como irregular ou ilegal a extensão da duração do período da cessão para além dos 5 anos, por outro lado tomando em conta os interesses dos credores do insolvente também não é de aceitar que esse prazo seja inferior aos indicados 5 anos.
Tomando, porém, em linha de consideração a referida alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 79/2017 de 30 de junho, que, no n.º 6 do seu artigo 6.º, estabelece um regime transitório – que determina que nos casos em que o encerramento do processo ainda não tenha sido declarado e tenha sido proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante (o que é o caso, visto o despacho inicial ter sido proferido em 11.01.2017 e o encerramento do processo apenas ter sido determinado por despacho de 6.07.2017), o período de cessão considera-se iniciado na data de entrada em vigor do citado Decreto-Lei, o que teve lugar no dia 1 de julho de 2017 –, forçoso será concluir que o período da cessão de rendimento deverá reportar o início dos seus efeitos a 1 de julho de 2017, e não apenas à data (posterior) da publicidade do anúncio do encerramento do processo de insolvência.
Impõe-se, por conseguinte, nessa parte uma retificação do decidido na 1ª instância, com a consequente procedência parcial da apelação, se bem que com fundamentação distinta da invocada pelo recorrente.
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 667º, n.º 3 do CPC):

I – Tendo sido requerida a exoneração do passivo restante e inexistindo património do insolvente a liquidar, no despacho inicial daquele incidente deve ser declarado o encerramento do processo de insolvência.
II – Se, porém, só posteriormente à prolação do despacho inicial se vem a constatar a insuficiência da massa insolvente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa, deve o juiz logo que tenha conhecimento dessa situação declarar o encerramento do processo.
III – As alterações ao CIRE, operadas pelo Decreto Lei n.º 79/2017, de 30 de junho, inovaram em matéria de fixação do momento relevante para determinar o termo inicial do período da cessão de rendimentos, ao estabelecer que o «encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível.» (n.º 7 do art. 233.º do CIRE).
IV – A norma transitória prevista no art. 6º, n.º 6 do citado Dec. Lei n.º 79/2017, reporta a 1 de julho de 2017 o início do período da cessão do rendimento que, por força da ausência de encerramento do processo e apesar de ter sido já proferido despacho de exoneração do passivo restante, ainda não tinha começado.
*
V. – DECISÃO

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar o recurso de apelação parcialmente procedente, ainda que com distinta fundamentação da invocada pelo recorrente, e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, fixando o início do período da cessão do rendimento em 1 de julho de 2017, em conformidade com a norma transitória estabelecida no art. 6º, n.º 6 do Dec. Lei n.º 79/2017, de 30 de junho.
Custas da apelação pelo apelante na proporção do respetivo decaimento, correspondente a 98,38% (17).
*
Guimarães, 9 de novembro de 2017

Alcides Rodrigues
Espinheira Baltar
Eva Almeida

1. Se bem que o invocado Ac. da RE de 20-06-2013, processo n.º 5422/10.6TBSTB-H.E1 (relator Mata Ribeiro Sílvio), in www.dgsi.pt., decidiu em termos que não se ajustam à posição propugnada pelo recorrente, ao decidir que a data do início do período de cessão poderá começar a contar-se da data do despacho inicial, mas apenas quando se determine a insuficiência da massa, nos termos do artº 232º e de acordo com o artº 230º n.º 1 al. e), ambos do CIRE, pelo que tendo sido ordenado que se procedesse a liquidação dos bens existentes o período de cessão só começa a contar da data do rateio final (cfr. artº 230º n.º 1 al. a) do CIRE), momento em que a lei prevê o encerramento do processo.
2. Usualmente o que tem sido discutido na jurisprudência é a questão de saber se o início do período da cessão pressupõe efetivamente a prolação do despacho de encerramento do processo de insolvência ou, diversamente, se a cedência do rendimento disponível do devedor pode reportar-se ao momento da prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante. No recurso interposto o apelante vai ainda mais longe, ao propugnar que o início do período da cessão deve retroagir à data da realização da assembleia de apreciação do relatório ou, pelo menos, aos 10 dias subsequentes a esta, por serem estes os momentos definidos por lei para a prolação do despacho inicial.
3. Este último segmento foi introduzido pelo Dec. Lei n.º 79/2017, de 30 de junho.
4. Cfr. Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2017, 7ª ed., Almedina, pág. 344.
5. Cfr. Catarina Serra, O Regime Português da Insolvência, 5ª edição, Almedina, 2012, pp. 154/155.
6. Cfr. Exoneração do devedor pelo passivo restante, Themis, 2005, p. 167.
7. Cfr., entre outros, Ac. RE de 11/05/2017 (Relator Bernardo Domingos; Ac. RE de 9/02/2017 (Relator Mário João Canelas Brás); Ac. RP de 07/11/2016 (Relator Oliveira Abreu); Ac. RC de 07/06/2016 (Relator Arlindo Oliveira); Ac. RE de 20/06/2013 (Relator Mata Ribeiro); Ac. RG de 7/05/2015 (Relator António Santos); Ac. RG de 3/11/2016 (Relator António Sobrinho); Ac. RC de 28.10.2014 (Relator Moreira do Carmo) e o Ac. RP de 28/11/2013 (Relator Amaral Ferreira); em sentido contrário, porém, o Ac. RE de 28/09/2017 (Relatora Isabel de Matos Peixoto Imaginário); Ac. RC de 18/10/2016 (Relator Fonte Ramos) e o Ac. RG de 21/05/2013 (Relator Edgar Gouveia Valente), todos consultáveis in www.dgsi.pt.
8. Cfr. Ac. RG 7/05/2015 (António Santos), in www.dgsi.pt.
9. Cfr., Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, reimpressão, 3ª ed., Quid Iuris, Lisboa, 2015, pp. 827/829.
10. Cfr. Em sentido similar, Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2ª ed, 2017, Almedina, p. 596/599, o qual conclui que “a existência de bens na massa para liquidar impeça que o Juiz decrete o encerramento no despacho inicial”, razão por que inevitável é o art. 230º, n.º 1, alínea e) do CIRE, dever “ser objecto de interpretação restritiva”, tudo apontando que tenha ele surgido para “situações em que se verifica a insuficiência e bens do insolvente e este beneficia do deferimento do pagamento das custas”.
11. Cfr. Ac. RG 7/05/2015 (Relator António Santos) e Ac. RP de 07/11/2016 (Relator Oliveira Abreu), ambos consultáveis in www.dgsi.pt.
12. Cfr. Ac. RE 28/09/2017 (Relatora Isabel de Matos Peixoto Imaginário), in www.dgsi.pt.
13. De que, a título meramente exemplificativo, enunciamos as explicitadas por Cláudia Oliveira Martins, in Especificidades do Processo de Insolvência de Pessoas Singulares, ebook do CEJ, in www.cej.pt.
14. Do auto de apreensão, cuja certidão consta de fls. 80, foram apenas apreendidas duas quotas sociais.
15. Cfr., neste sentido, o recente Ac. da RE de 26.10.2017 (Relator Vítor Sequinho dos Santos), in www.dgsi.pt., nos termos do qual a apreensão, a favor da massa insolvente, de uma parte do salário do insolvente nos termos do n.º 1 do artigo 46.º do CIRE, não se confunde com a cessão do rendimento disponível prevista do artigo 239.º do mesmo código, pelo que tendo sido determinada e efetuada a apreensão de uma parte do salário do insolvente ao abrigo do disposto no artigo 46.º do CIRE, não poderá o tempo de duração dos correspondentes descontos ser, posteriormente, contabilizado no prazo previsto no n.º 2 do artigo 239.º do mesmo código
16. Cfr., Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, p. 858.
Considerando para o efeito a data do início do período da cessão propugnado pelo apelante (pelo menos 10 dias após a realização da assembleia de credores, ou seja, 1/07/2016), a data desse início fixada no presente acórdão (1/07/2017) e a data do despacho que declarou o encerramento do processo (6/07/2017).