Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
50/17.8YRGMR
Relator: ANABELA TENREIRO
Descritores: INVENTÁRIO
CONFERÊNCIA PREPARATÓRIA
ADIAMENTO
COMPOSIÇÃO DE QUINHÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I--O adiamento da conferência preparatória, no processo de inventário, tem carácter excepcional uma vez que depende da verificação cumulativa de dois requisitos: faltar um interessado e haver razões para considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões (cfr. art. 47.º, n.º 5 do RJPI).
II—A declaração, pelos interessados presentes na conferência, que não há razões para considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões, para efeitos de adiamento da conferência, determina o prosseguimento desta diligência, não obstante faltar um dos interessados.
III-A justificação da ausência de um interessado bem como a falta, na conferência preparatória, do respectivo mandatário, não constitui, face à lei, motivo de adiamento, sendo que não é aplicável o disposto no artigo 151.º do C.P.Civil, preceito subsidiário, afastado por norma especial.
IV-O diploma que aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário, a Lei n.º 23/2013 de 5 de março, inspirada na anterior Lei n.º 29/2009 de 29 de junho, introduziu uma relevante inovação na disciplina anterior, prevista no artigo 1353.º do C.P.Civil e no art. 35.º da Lei n.º 29/2009: enquanto que, no regime pretérito, a lei exigia a regra da unanimidade dos interessados para a deliberação sobre a composição dos quinhões hereditários, o sorteio das verbas ou lotes e respectivos valores e a venda dos bens da herança, actualmente, basta a aprovação por uma maioria de dois terços dos titulares do direito à herança e independentemente da proporção de cada quota (cfr. art. 48.º, n.º 1 do RJPI).
V-A regra da maioria de dois terços concretiza os objectivos do legislador no sentido de garantir a simplificação e a celeridade do processo de inventário que, no anterior regime, era, em muitos casos, reconhecidamente moroso.
VI-Tendo presente a liberdade de conformação do legislador ordinário e a não afectação do núcleo dos direitos da igualdade e da propriedade privada, constitucionalmente protegidos, conclui-se que a referida inovação legislativa deve ser considerada materialmente conforme com a Constituição da República Portuguesa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I—RELATÓRIO
C requereu no Cartório Notarial de Cabeceiras de Basto, na qualidade de filho de M, falecida em 11/05/2013 no estado de casada com A, falecido em 08/04/2003, ambos com último domicílio na Casa da Ramada, Arco de Baúlhe, Cabeceiras de Basto, a partilha dos bens deixados por herança.
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A Exma. Sra. Notária proferiu, em 20/06/2016, a fls. 351, o seguinte despacho :
No que concerne ao requerimento que deu entrada nos presentes autos no passado dia 30 de maio pelo cabeça de casal, indefere-se o pedido para dar sem efeito a conferência preparatória à conferência preparatória da conferência de interessados do passado dia 18 de maio, com base no seguinte:
- Quanto à questão de "considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões", facto que foi declarado pelos presentes na referida conferência, o artigo 47° n.º 5 do novo Regime Jurídico do Processo de Inventário, declara inequivocamente e expressamente que a referida conferência pode ser adiada" por determinação do notário ou a requerimento de qualquer interessado, por uma só vez, se faltar algum dos convocados e houver razões para considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões", ou seja, devem verificar-se cumulativamente os dois seguintes requisitos: faltar um interessado e houver razões para considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões. Considerando que o primeiro requisito se verificou, foram os restantes presentes questionados sobre o segundo requisito, os quais responderam de forma negativa.
Assim, e não existindo razões concretas para se considerar viável qualquer acordo, e considerando que o adiamento da realização da conferência tem assim um carácter excecional, decidiu a notária, e no estrito cumprimento da lei, a realização da mesma. De igual modo, a falta de mandatário não constitui fundamento por si só, para o referido adiamento. Os ilustres juizes de direito Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita, em " Manual do Processo de Inventário à luz do Novo Regime", Coimbra Editora, página 124, afirmam que o legislador intencionalmente afastou a aplicação subsidiária do Código do Processo Civil quanto ao artigo 151°, excluindo qualquer outra causa de adiamento que não seja a prevista na cumulação dos dois requisitos atrás mencionados A apresentação da justificação médica por parte do cabeça de casal relevou para efeitos de não aplicação da multa prevista no artigo 47° n° 2 do referido regime.
Relativamente à retificação de verbas, relembra-se o cabeça de casal que em oito de março do corrente ano foi notificado da decisão sobre o incidente de reclamação à relação de bens, onde foi expressamente referido e advertido que deveria precisar a identificação dos imóveis procedendo à sua melhor identificação, nomeadamente efetuando as devidas correspondências matriciais, tendo sido concedido um prazo de vinte dias. Em vinte e oito de maio o cabeça de casal veio requerer mais vinte dias para recolha de documentação, não especificando que documentação faltava e iria juntar! Por tal facto e entendendo-se que a documentação fundamental estava já no processo, apenas seria necessário efetuar correspondências e melhor identificação das verbas, não se vislumbrou qualquer razão justificadamente atendível para prorrogação do prazo, contudo, mais uma vez nesse despacho de oito de abril foi o cabeça de casal advertido que a relação corrigida deveria ser entregue até antes da data da marcação da conferência preparatória à conferência de interessados, marcada para o dia 18 de maio, dever que o cabeça de casal nunca cumpriu, nem justificou devidamente, mesmo tendo sido advertido que estaria a incumprir as suas funções!
Aliás, até hoje, e mesmo alegando prontamente o cabeça de casal que as alterações que foram efetuadas na conferência preparatória estão erradas e sem suporte documental, estranha-se então porque não indicou nem provou até agora quais as corretas, como lhe foi requerido mais que uma vez.
Assim, e considerando que a existência dos imóveis não está posta em causa, e que se tratou de meros elementos de identificação matricial e registral em falta, e que foram efetuados na dita conferência e por partes interessadas no processo, devido à falta de cumprimento dos deveres do cabeça de casal, o qual até agora nada mais juntou ou requereu, não se vislumbra ser motivo atendível para dar sem efeito a realização da referida conferência, sendo que foi o cabeça de casal que "fez tábua rasa" dos deveres que lhe foram impostos por lei no exercício do seu cargo.
O referido artigo 47.º n.º do R.J.P.I mencionado pelo cabeça de casal não parece que se possa enquadrar nesta questão, com o devido respeito, pois nenhuma destas questões referentes à identificação dos imóveis é suscetivel de influir na partilha ou determinação dos bens, pois no incidente à reclamação de bens nunca foram tais bens postos em causa. Em falta estavam apenas, e diga-se mais uma vez, elementos necessários para posterior identificação para efeitos de registo predial, não se percebendo como poderia o cartório enviar este processo para os meios processuais comuns, quando tais elementos a nível registral podem até posteriormente ser indicados pelas partes em declarações complementares no pedido de registo predial, pelos respetivos adjudicatários. As questões que se podem enquadrar no referido artigo são questões, por exemplo, previstas no artigo 30.º do referido regime - causas de oposição ou impugnação.
Quanto à questão da oportunidade de avaliação dos bens, nos termos do artigo 48° do RJPI, continua a não ser motivo atendível por lei, para o que está aqui em causa: adiamento da conferência preparatória, sendo que a possibilidade da notária requerer oficiosamente não foi considerada pela mesma, pois pelos valores que foram atribuídos e deliberados, em termos gerais, não parece ter sido ferida a repartição igualitária e equitativa dos bens pelos vários interessados.
Quanto ao legado dos bens móveis dever estar integrado no testamento no qual apenas foi expressamente legado o usufruto do imóvel, e salvo o devido respeito, não se compreende em que preceito legal o cabeça de casal baseia sua pretensão, dado que o código civil, no seu artigo 2258.º apenas indica que, na falta de indicação em contrário a deixa de usufruto deve considerar-se feita vitaliciamente, e o próprio artigo 2269° referente à extensão do legado esclarece, e aqui utilizando as doutas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela em "Código Civil Anotado, volume VI, Coimbra Editora, páginas 424 e 425, "na falta de declaração em contrário do testador, no legado do prédio não cabem nem os móveis, nem os semoventes ligados apenas economicamente ou funcionalmente - mas não materialmente-ao prédio, tal como no legado de móvel nem sequer cabem nele as coisas acessórias ligadas materialmente à coisa principal."
Não nos parece assim, se para legados da propriedade plena funciona o atrás mencionado raciocínio jurídico, porque motivo para os legados apenas do usufruto tal raciocínio seria subvertido sem qualquer apoio legal.
Quanto à alegação da inconstitucionalidade do artigo 48° do R.J.P.I. pelo cabeça de casal, foram neste cartório vários processos já terminados com a utilização da faculdade do artigo 48° n° 1, dado que nunca, e como neste processo em concreto, se considera ter existido qualquer limitação ao direito do herdeiro legitimário, pois O valor que lhe está reservado correspondente a um valor aritmético do património hereditário garante o princípio da igualdade, no preenchimento do seu quinhão hereditário, tendo os bens e valores respetivos atribuldos sido distribuídos de forma equitativa na conferência preparatória.
Pelos motivos expostos, indefere-se o pedido do cabeça de casal para dar sem efeito a conferência preparatória realizada no dia 18 de maio passado, para ordenar ao cabeça de casal a retificação da relação de bens, e a convocação de nova conferência.
Notifique-se em conformidade.
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Em 16/12/2016, a sentença homologatória da partilha adjudicou aos interessados os bens que compõem os respectivos quinhões.
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Inconformado com estas decisões, V, cabeça de casal, interpôs recurso, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
l.º- O aqui Recorrente não se conforma com a decisão constante do despacho posto em crise.
2.º-Com a reclamação deduzida pretendia o aqui Recorrente que fosse dada sem efeito a referida conferência preparatória da conferência de interessados realizada no dia 18/05/2016, por entender que a mesma teve lugar em violação dos direitos do Recorrente.
3.-Ora, como decorre da acta de conferência preparatória da conferência de interessados, estiveram presentes em tal conferência todos os interessados, à excecção do Recorrente e do mandatário deste, tendo sido junta justificação médica, referente ao cabeça de casal.
4.-Decorre ainda da referida acta que os presentes na referida Conferência referiram não existirem razões para que se pudesse considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões, para efeitos de adiamento da conferência,
5.º-Pelo que a mesma acabou por se realizada nos termos ali exarados, com a violação grosseira dos direitos de defesa e do contraditório do aqui Recorrente.
6.º-Assim, a primeira questão que aqui se suscita consiste em saber se existiam razões para concluir que não existiam razões para que se pudesse considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões, para efeitos de adiamento da conferência.
7.º-Ora, não estando presente um dos interessados, o aqui Recorrente, nem o seu mandatário, não tiveram os mesmos a oportunidade de se pronunciarem relativamente à composição dos quinhões por acordo e, por isso, não se pode concluir, sem mais, pela inviabilidade do dito acordo para efeitos de adiamento da conferência.
8.º-A segunda questão que aqui se suscita, e para nós a mais relevante, é se face à justificação das faltas do cabeça de casal, aqui Recorrente, e do seu mandatário, aqui signatário, estava a Dr.ª Notária habilitada/legitimada a realizar a conferência ou se pelo contrário deveria ter procedido ao seu adiamento.
9.º-Salvo o devido respeito por opinião contrária, é entendimento do Recorrente que a conferência preparatória deveria ter sido objecto de adiamento face ao justo impedimento dos faltosos.
10.º-É que, como expressamente se refere na acta, o aqui Recorrente juntou justificação médica comprovativa da impossibilidade em estar presente na conferência.
11.º-Além disso, pese embora a ata não o refira, mas deveria referir, o mandatário do Recorrente, justificou igualmente a sua falta, como decorre do atestado médico junto aos autos.
12.º-Assim, tendo sido justificadas as faltas do Recorrente e do seu mandatário, a Dr.ª Notária tinha o dever de relevar as faltas para efeitos de adiamento da Conferência, como decorre da Lei Processual Civil, nomeadamente do artigo 151.º, números 4 e 5 do artigo 151.º do C.P. Civil e dos mais elementares princípios e normas em vigor, nomeadamente o exercício do contraditório por parte do Recorrente.
13.º-Pelo que deverão ser consideradas nulas e de nenhum efeito as deliberações daí resultantes, o que aqui se invoca.
14.º-Sem prescindir do atrás exposto relativamente à nulidade das deliberações tomadas na dita conferência em virtude desta diligência ter sido realizada em violação dos direitos do Recorrente, ainda que por mera hipótese. académica se admitisse que a mesma foi realizada sem preterição das formalidades e normas em vigor, no que não se concede,à cautela sempre se dirá que as decisões tomadas em tal conferência padecem de diversos vícios.
15.º-Assim, refere-se na acta da conferência de interessados que “Relativamente à relação de bens e dado que a relação apresentada em último lugar e após a decisão do incidente de reclamação à relação de bens, ainda não esclarece todas as questões suscitadas na identificação dos prédios, pretendem esclarecer:",
16.º-Fazendo-se depois uma série de rectificações às verbas relacionadas na relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, aqui Recorrente,
17.º-Ora, para além das rectificações promovidas não terem razão de ser, revelando-se erradas, o certo é que foram dadas por assentes pela Dr.ª Notária sem qualquer tipo de suporte probatório, nomeadamente documental ou outro que comprovasse as alterações promovidas pelos interessados presente,
18.º-Sendo que as alterações promovidas revestem-se de especial complexidade e relevância e, por isso, a respectiva aceitação/validação carece de suporte documental que as comprovem.
19.º-Apesar disso, a Dr.ª Notária, tendo por base apenas e tão só as declarações/esclarecimentos prestados pelos interessados lá decidiu, sem mais, validar as alterações promovidas em sede da referida conferência e apenas no âmbito desta diligência,
20.º-Tendo o aqui Recorrente apresentado nova relação de bens na sequência do despacho da Dr.ª Notária o que fez antes da realização da data da dita conferência, conforme determinado por despacho da Dr.ª Notária datado de 13/04/2016, impunha-se a notificação dos interessados para apresentarem, querendo, as reclamações que entendessem pertinentes, acompanhadas da respectiva prova, como decorre das normas legais em vigor.
21.º-Contudo, os interessados apenas se pronunciaram relativamente à nova relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, aqui Recorrente, na dita conferência, tendo-o feito na ausência justificada deste e do seu mandatário, sem qualquer suporte probatório e sem conceder ao aqui Recorrente o direito de se pronunciar em função da sua ausência justificada na conferência.
22.º-Tendo os interessados suscitado diversos esclarecimentos referentes à relação de bens apresentada que a nova relação de bens ainda não esclarecia todas as questões suscitadas, é nosso modesto entendimento que deveria ter sido notificado o cabeça de casal para dar integral cumprimento aos esclarecimentos e questões suscitadas.
23.º- É que enquanto não estiverem resolvidas as questões suscitadas que sejam susceptíveis de influir na partilha e determinados os bens a partilhar, o Notário não pode realizar a conferência preparatória da conferência de interessados, como decorre do disposto no n.ºl do artigo 47.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário.
24.º-Contudo, ainda que a Dra. Notária considerasse que estavam reunidas as condições para realizar a dita conferencia, deveria, no mínimo, ter dado a oportunidade ao cabeça de casal, aqui Recorrente, para se pronunciar relativamente às rectificações promovidas pelos interessados, adiando a referida conferência.
25.º-Acresce que, como aqui já referido, as rectificações promovidas pelos interessados presentes na conferência diz respeito a matéria de facto complexa, nomeadamente no que diz respeito à identificação, descrição e composição dos imóveis identificados nos autos,
26.º-Pelo que não tendo sido apresentada prova que suporte as rectificações promovidas, nem tendo o aqui Recorrente e o seu mandatário tido a oportunidade de se pronunciarem, face à decisão da Dr.ª Notária em não adiar a conferência, deveria no mínimo, abster-se de decidir e remeter os interessados para os meios judiciais comuns.
27.º-A Dr.ª Notária não fez nem uma coisa nem outra, promovendo as rectificações suscitadas pelos interessados presentes, sem recurso a qualquer elemento de prova e sem garantir o que o Recorrente exercesse o seu direito ao contraditório, diminuindo de forma drástica e decisiva as garantias de defesa deste,
28.º-Para além de ter feito tábua rasa do disposto no artigo 23.º do RJPI que estipula que é ao cabeça de casal que incumbe fornecer os elementos necessários para o prosseguimento do inventário.
29.º-Com o devido respeito, é para o Recorrente incompreensível os argumentos vertidos pela Dr.ª Notária no despacho objecto de recurso relativamente ao alegado incumprimento dos deveres do cabeça de casal.
30.º-É que, conforme aqui já referido e como decorre dos autos, o cabeça de casal apresentou a relação de bens corrigida, dando-lhe uma nova numeração, precisou a identificação dos bens imóveis, entre outras correcções, o que fez antes da data da realização da conferência,
31.º-Tudo em cumprimento do determinado pela Dr.ª Notária.
32.º-O Recorrente também não aceita, nem tão pouco compreende o vertido no despacho ora posto em crise na parte em que "acusa" o aqui Recorrente de após a realização da conferência não ter indicado nem provado quais as alterações promovidas à relação de bens que considera correctas, dizendo que este se limitou na reclamação deduzida a dizer que as alterações efectuadas na conferência estão erradas e sem suporte documental.
33.º-Ora, tal entendimento é contraproducente pois caso a Dr.ª Notária pretendesse que o cabeça de casal tomasse posição relativamente às diversas alterações à nova relação de bens suscitadas pelos Requerentes teria adiado a conferência não permitindo que a mesma se realizasse sem esclarecimento de todas as questões susceptíveis de influir na partilha e determinados os bens a partilhar,
34.º-Razão pela qual apresentou a reclamação que esteve na origem do despacho ora posto em crise.
35.º- Caso o Recorrente tivesse incumprido os seus deveres incumbia à Dra. Notária a sua remoção, o que nunca sucedeu, estranhando-se, até por isso, que o mesmo seja agora acusado de faltar ao cumprimento dos seus deveres.
36.º-Além disso, ao realizar a conferência na ausência justificada do aqui Recorrente e do seu mandatário, não permitiu que estes tivessem a oportunidade de requerer a avaliação dos bens, nomeadamente dos bens imóveis, destinada a possibilitar a repartição igualitária e equitativa dos bens pelos vários interessados, como lhes é permitido nos termos do n.º2 do artigo 48.º do RJPI.
37.º-Ora, o valor atribuído pelo cabeça de casal, aqui Recorrente, aos prédios inscritos na matriz corresponde ao respectivo valor matricial (n.º2 do artigo 26.º do RJPI), não correspondendo ao valor real ou de mercado dos mesmos, sendo que a deliberação tomada pelos Requerentes no que diz respeito à composição dos quinhões e determinação dos valores por que devem ser adjudicados, revela-se absolutamente desajustada e prejudicial para o Recorrente,
38.º-Não garantindo, ao contrário do vertido no despacho Recorrido, de forma alguma, uma partilha igualitária, o que viola os mais elementares princípios que regem esta matéria, com consagração constitucional.
39.º-Importa ainda referir que, é entendimento do Recorrente que tendo sido legado por testamento o usufruto da casa de família, identificada na verba 41, adjudicada ao Recorrente, todo o recheio que integra a mesma, composta pelos bens móveis identificados nos autos, deverá estar incluído em tal testamento,
40.ºPelo que, devem ser considerados igualmente legados ao Recorrente todos os bens móveis que compõem o recheio da casa de família.
41.º-Face ao supra exposto, as deliberações tomadas pelos Requerentes na dita conferência, cuja validade o Recorrente não reconhece, aqui as impugnando, atentas as razões supra expostas, também o não podem vincular pois pese embora o mesmo tenha sido notificado para estar presente, não lhe foi possível comparecer por razões imprevisíveis, devidamente documentadas e oportunamente comunicadas (n.º do artigo 48.º do RJPI, a contrario sensu).
42.º-Finalmente, o Recorrente entende que a norma prevista no n.ºl do artigo 48.º do RJPI é inconstitucional pois ao permitir que os interessados possam deliberar, por maioria de dois terços dos titulares do direito à herança, sobre matérias tão importantes e tão sensíveis como é o caso da designação das verbas que devem compor, no todo ou em parte, o quinhão de cada um deles e os valores por que devem ser adjudicados, como sucedeu no caso dos autos, limita de forma significativa os direitos do herdeiro que não esteja de acordo com tal deliberação.
43.º-Situação agravada pela impossibilidade do Recorrente e do seu mandatário estarem presentes em tal diligência e se pronunciar relativamente às questões aí suscitadas, ao contrário do considerado no despacho recorrido, verifica-se uma limitação e até uma negação dos direitos do Recorrente,
44.º-Impedindo-o, além do mais, de exercer o direito de ficar com outros bens, através de um processo de licitação.
45.º-Tendo em conta que a conferencia preparatória afigura-se como uma espécie de antecipação da partilha, podendo ser deliberado, além do mais, sobre a designação das verbas que devem compor o quinhão de cada herdeiro, a aprovação do passivo e da forma do cumprimento dos legados e demais encargos da herança, que inclusive pode colocar termo ao inventário, é de elementar justiça que essas deliberações, dada a sua absoluta importância, devam ser tomadas por unanimidade, pois ninguém pode ser obrigado a alienar (preenchimento a menos), a adquirir (preenchimento a mais), a aceitar como exacto valores que não reputa justos ou a ver preenchido o seu quinhão com bens que não deseja e compostos os dos demais co-herdeiros com outros em que tem interesse.
46.º-Ora, estas considerações justificaram a exigência formulada no então artigo 1353.º, n.º 2 e 3 do C.P. Civil, entretanto extinto aquando da revisão deste diploma.
47.º-Salvo melhor opinião, parece-nos que aquela unanimidade então expressamente exigida, não pode deixar de continuar a ser exigida no âmbito do actual Regime Jurídico do Processo de Inventário, pois de outra forma seria colocado em causa e até ferido de morte o direito a uma partilha igualitária entre todos os herdeiros e a sua participação individual em igualdade de circunstâncias, sem que uma maioria possa impor a um herdeiro bens que o mesmo não deseja ou retirar-lhe o direito de disputar bens que pretende ver-lhe adjudicados.
48.ºCaso assim se não entendesse, estaríamos a regredir no que respeita à defesa de um processo de inventário que pretende ser igualitário para todos os herdeiros, na perspectiva individual de cada um deles, não se revelando justo que alguns herdeiros, numa estratégia consertada possam impor a um herdeiro o modo de preenchimento do seu quinhão hereditário e possam impor os valores por que devem ser adjudicados, situação que para além de se revelar inconstitucional, não esteve no espírito do legislador.
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C e outros interessados apresentaram contra-alegações, sustentando, em resumo, que antes da audiência preparatória tiveram lugar outras diligências na qual se encontravam presentes todos os interessados, nas quais ficou inequivocamente demonstrado que não havia possibilidade de acordo, isto porque, o ora recorrente, tinha uma posição divergente dos restantes quatro interessados. Entendem os recorridos que a norma do citado art. 48º nº 1 não é inconstitucional porquanto os interessados são dadas as mesmas garantias na partilha que dava o processo de inventário judicial regulado nos arts. 1326º e seguintes do Cód. Proc. Civil, entretanto revogado.Por outro lado, o nº 1 do art. 48º pretende evitar que, um único herdeiro possa pôr entrave á partilha e protelar a consumação da mesma. No nosso ordenamento jurídico existem inúmeras situações em que as deliberações "tomadas por maioria qualificada” seja vinculativa para todos, como por exemplo nos processos de insolvência. A Exma. Notária limitou-se a cumprir o disposto no art. 47º do RJPI e consequentemente nenhuma ilegalidade foi cometida. Importa desde já referir que o recorrente não refere o motivo por que tais questões são complexas no que respeita á identificação dos bens e teve todo o tempo do mundo para esclarecer tais questões complexas! .... De qualquer modo as ditas questões complexas referem-se apenas e só á correspondência dos artigos antigos matriciais com os actuais, de modo "a haver correspondência com os constantes das respectivas descrições prediais, e assim como as respectivas áreas e confrontações actuais, de acordo, aliás com as certidões fiscais e as respectivas descrições prediais juntas aos autos pelo cabeça de casal, ou seja, de acordo com os documentos juntos aos autos pelo próprio recorrente. O cabeça de casal foi notificado para apresentar nova relação de bens para suprir as deficiências e erros atrás mencionados, de acordo com os documentos juntos, e não o fez. Que as questões resolvidas na conferência preparatória foram feitas apenas e só para facilitar o registo dos bens adjudicados e evitar futuras declarações complementares perante a Conservatória do Registo Predial, quando os adjudicatários dos bens pretendessem registar a seu favor os respectivos prédios. Em relação ao imóvel adjudicado ao recorrente do qual é usufrutuário nenhuma alteração foi efectuada, pelo que, o registo a seu favor não levantará quaisquer problemas. Alega o recorrente que em consequência de a partilha ser feita na sua ausência, a partilha não foi igualitária ficando ele prejudicado. ". Não escreveu uma linha sequer para demonstrar que ficou prejudicado. Nem tinha fundamentos para o fazer porquanto os valores atribuídos a todos os bens tiveram em vista uma partilha igualitária. É por demais evidente que se a testadora quisesse englobar no testamento os móveis e utensílios existentes na casa de morada teria referido isso mesmo e não o fez.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II—Delimitação do Objecto do Recurso
As questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:
-Do adiamento da conferência preparatória;
-Da rectificação da identificação de bens na conferência preparatória;
-Da extensão do usufruto de imóvel aos bens móveis que constituem o recheio;
-Da inconstitucionalidade da norma inserta no nº 1 do artigo 48º do RJPI.
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III—FUNDAMENTAÇÃO (pertinente para a decisão das questões suscitadas no recurso)
1-Em 29/09/2014, o cabeça de casal, V, apresentou a relação de bens junta a fls. 50 e segs.;
2-Foi notificado para juntar documentos em falta relativos ao passivo;
3-Os interessados C e mulher, G e mulher, A e marido e AM, apresentaram reclamação, acusando deficiente identificação dos imóveis, falta de bens e pronunciaram-se sobre o passivo (não aceitando parte das verbas) e direitos de crédito;
4-O cabeça de casal respondeu nos termos constantes de fls. 189 a 195 e apresentou relação de bens adicional a fls. 214 em consequência do reconhecimento da existência de determinados bens;
5-Em 08 de Março de 2016, proferiu-se decisão a fls. 290 a 293 sobre o incidente, concluindo-se que : “Desta forma, determino que os bens a relacionar são apenas os que foram atrás admitidos quanto à sua inclusão, com os valores apresentados na relação de bens chamando-se mais uma vez a atenção do cabeça de casal para o facto de dar uma nova numeração, por existirem verbas que foram excluídas e outras incluídas, precisar a identificação dos bens imóveis, e para facilitação da aprovação ou não do passivo em sede de conferência preparatória da conferência de interessados, relacionar as verbas do passivo com os documentos contabilísticos juntos ao processo. (…)
Concedo ao cabeça de casal o prazo de 20 dias para a apresentação da relação de bens em conformidade com o acima decidido, nos termos do n.º 5 do artigo 35.º do RJPI.”
6-Em 13 de Abril de 2016, proferiu-se despacho a designar o dia 18 de maio de 2016, pelas 9.30 horas para realização da conferência preparatória da conferência de interessados, considerando que estavam determinados os bens a partilhar-cfr. fls. 302.
7-Em consequência, o cabeça de casal apresentou nova relação de bens a fls. 335 e segs.
8-No dia 18 de maio de 2016, realizou-se a conferência preparatória estando presentes os interessados, à excepção do ilustre mandatário do cabeça de casal e do cabeça de casal, tendo sido junta, nessa data, justificação médica referente a este último.
9-Nessa conferência, os presentes questionados declararam que não há quaisquer razões para que se possa considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões, para efeitos de adiamento da conferência.
Declararam ainda que relativamente à relação de bens e dado que a relação apresentada em último lugar e após a decisão do incidente da reclamação à relação de bens ainda não esclarece todas as questões suscitadas na identificação dos prédios, pretendem esclarecer:
Assim, quanto à verba 30 o artigo rústico actual corresponde ao artigo 339 da antiga matriz.
Quanto à verba 31 retifica-se a confrontação a ponte no sentido de que é com casa e quintal da herança, e que corresponde aos artigos 396, 398 e 1360 da antiga matriz;
Quanto à verba 32 o artigo rústico actual corresponde ao artigo 1361 da antiga matriz;
Quanto à verba 33 denominado de Tarimbola mas também conhecido por “Campo da Quinta e da Cerdeira”, o antigo rústico actual corresponde aos artigos 416, 417,e 418 da antiga matriz.
Quanto à verba 34 o artigo actual corresponde ao artigo 690 da antiga matriz e tem a área de 80 mil metros quadrados, e não o que consta na relação de bens, por lapso evidente na colocação do ponto.
Quanto à verba 35 e verba 36 correspondem ambos a parte do 496 do artigo da antiga matriz. Na verba 35 a área correta é de 10560 metros quadrados e a verba 36 e não as que ficaram a constar na relação por lapsos evidentes na colocação dos pontos.
Quanto à verba 37 o artigo 1459 não existe actualmente, sendo da antiga matriz, pelo que deve ser actualmente participado à matriz por nela estar omisso. (…)”
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IV—DIREITO
A questão primordial que o Recorrente suscita no recurso consiste em saber se a conferência preparatória devia ter sido adiada por não ter estado presente, nem o seu mandatário, e não ser possível concluir, por esse motivo, que não haveria acordo quanto à composição dos quinhões.
Segundo o disposto no artigo 47.º, n.º 1 e 2 do Regime Jurídico do Processo de Inventário (Lei n.º 23/2013 de 05.03) o notário designa dia para a realização de conferência preparatória da conferência de interessados após resolvidas as questões que sejam susceptíveis de influir na partilha e quando estão determinados os bens a partilhar.
A conferência, nos termos do n.º 6 do referido preceito legal, apenas pode ser adiada, por determinação do notário ou a requerimento de qualquer interessado, por uma só vez, se faltar algum dos convocados e houver razões para considerar viável o acordo sobre composição dos quinhões.
Como bem refere a Sra. Notária, o adiamento da conferência preparatória tem carácter excepcional, dependendo da verificação cumulativa de dois requisitos: faltar um interessado e haver razões para considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões.
O segundo requisito exige, na sua formulação positiva, a verificação de pressupostos ou motivos sérios que permitam concluir pela viabilidade do acordo sobre a composição dos quinhões.
Assim, salvo o devido respeito, não se trata de saber se não existiam razões para que se pudesse considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões, mas sim se havia fundamento válido e credível para justificar o adiamento, por esse motivo.
Ora, tendo os interessados, a esse respeito, declarado, na conferência, que não havia razões para se concluir nesse sentido, não revestia qualquer utilidade, para efeito de se considerar viável um acordo, a opinião do cabeça de casal em sentido eventualmente contrário, que não se encontrava presente.
Acresce que não se vislumbrava, face àquelas declarações, motivo sério e ponderoso para legitimar o adiamento da conferência preparatória.
A justificação da ausência apresentada pelo Recorente bem como a falta, na conferência preparatória, do seu ilustre mandatário não constitui, face à lei, motivo de adiamento, sendo que não é aplicável o disposto no artigo 151.º do C.P.Civil, preceito subsidiário, afastado por norma especial.(1)
Insurge-se o Recorrente contra a rectificação das verbas sugerida pelos interessados presentes na conferência por entender que consubstanciava matéria complexa e que tal foi determinado pela Sra. Notária, sem suporte documental.
Na decisão do incidente sobre a relamação de bens, a Sra. Notária consignou que chamava, mais uma vez, a atenção do cabeça de casal para o facto de dar uma nova numeração, por existirem verbas que foram excluídas e outras incluídas, precisar a identificação dos bens imóveis, e para facilitação da aprovação ou não do passivo em sede de conferência preparatória da conferência de interessados, relacionar as verbas do passivo com os documentos contabilísticos juntos ao processo. (…)
Por conseguinte, apesar de existirem nos autos documentos essenciais que possibilitavam a correspondência entre os antigos e actuais artigos matriciais e a rectificação de lapsos evidentes, o cabeça de casal, na última relação apresentada, não regularizou essa situação, pelo que não se verifica qualquer nulidade nesse procedimento nomeadamente decorrente do desrespeito do contraditório pois já devia ter cumprido o que havia sido determinado pela Exma. Notária.
Por outras palavras, estando determinados os bens a partilhar, em consequência da decisão do incidente da reclamação, meras rectificações introduzidas relativas às actualizações matriciais e a correcção de lapsos manifestos, não são susceptíveis de influir na partilha nem determinam qualquer alteração da mencionada decisão sobre o acervo de bens a partilhar.
Salvo o devido respeito, não se concorda com o Recorrente quando declara que deveria ter sido concedido prazo aos interessados para reclamarem sobre a última relação apresentada, porquanto, esta relação, apenas se limitou a tentar cumprir o que havia sido decidido anteriormente sobre os bens que deviam ser objecto de partilha.
Da extensão do usufruto de imóvel aos bens móveis que constituem o recheio
Sustenta ainda o Recorrente a extensão do legado do usufruto do imóvel aos bens móveis existentes no respectivo interior.
Nos termos do artigo 2269.º, n.º 1 do C.Civil, na falta de declaração do testador sobre a extensão do legado, entende-se que ele abrange as benfeitorias e partes integrantes.
Os bens móveis que integram o recheio da casa de família, identificada na verba 41, cujo usufruto foi legado ao Recorrente, são bens autonomizados, sem ligação funcional ou física com o imóvel, razão pela qual não fazem parte do legado.
Não tendo sido declarado expressamente que o recheio do imóvel integrava o usufruto do mesmo, é manifesto que o legado não abrange esses bens móveis.
Da Inconstitucionalidade do art. 48.º do RJPI
O Recorrente defendeu a inconstitucionalidade do artigo 48.º do RJPI, por permitir que os interessados possam deliberar, por maioria de dois terços dos titulares do direito à herança, sobre importantes matérias como a designação das verbas que devem compor o quinhão de cada herdeiro, a aprovação do passivo e a forma do cumprimento dos legados e demais encargos da herança, limitando, de forma significativa, os direitos do herdeiro que não esteja de acordo com tal deliberação e prejudicando uma partilha igualitária entre todos os herdeiros.
Sobre a aferição da conformidade das normas com a Constituição, Jorge Miranda explica que “Para se julgar da constitucionalidade das normas legais há que apurar, por conseguinte, quer os critérios da lei ordinária quer os da lei constitucional. O órgão de fiscalização da constitucionalidade terá de os procurar com rigor, utilizando todo o arsenal de interpretação e construção de que dispõe.”(2)
Acrescentando, com interesse para o caso sub judice, que haverá que respeitar a liberdade de conformação do legislador, desde que não se sobreponha aos princípios constitucionais materiais. (negrito nosso)
Segundo aquele autor, dos arestos mais significativos sobre o princípio da igualdade, resultam as seguintes linhas de orientação: 1) o princípio de igualdade essencialmente como equivalente a proibição do arbítrio; 2) a necessidade de indagação de um “fundamento material bastante” para as hipóteses de diferenciações de tratamento; 3) a adequação das diferenciações admissíveis aos fins prosseguidos pelas normas; 4) a dimensão material, e não apenas formal do princípio; 5) a relativa autocontenção do juiz constitucional perante a liberdade de conformação do legislador.
No Acórdão n.º 47/2010 do Tribunal Constitucional(3), salienta-se a orientação reiterada e uniforme da jurisprudência do Tribunal sobre esta temática consignando que “só podem ser censuradas, com fundamento em lesão do princípio da igualdade, as escolhas de regime feitas pelo legislador ordinário naqueles casos em que se prove que delas resultam diferenças de tratamento entre as pessoas que não encontram justificação em fundamentos razoáveis, perceptíveis ou inteligíveis, tendo em conta os fins constitucionais que, com a medida da diferença, se prosseguem.”
O diploma que aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário, a Lei n.º 23/2013 de 5 de março, inspirada na anterior Lei n.º 29/2009 de 29 de junho, introduziu uma relevante inovação na disciplina anterior, prevista no artigo 1353.º do C.P.Civil e art. 35.º da Lei n.º 29/2009.
Com efeito, enquanto que, no regime pretérito, a lei exigia a regra da unanimidade dos interessados para a deliberação sobre a composição dos quinhões hereditários, o sorteio das verbas ou lotes e respectivos valores e a venda dos bens da herança, actualmente, basta a aprovação por uma maioria de dois terços dos titulares do direito à herança e independentemente da proporção de cada quota.
Significa isto que, com a aplicação da regra da maioria de dois terços, apenas interessa saber o número de titulares do direito à herança, individualmente considerados, e não as respectivas quotas hereditárias.
Na conferência preparatória, os interessados na partilha, poderão chegar a um acordo sobre as referidas matérias, por maioria de dois terços dos interessados presentes, vinculando os ausentes, mesmo que as quotas hereditárias sejam desiguais (cfr. art. 48.º, n.º 1e 5 do RJPI).
Esta solução legislativa tem sido alvo de críticas por suscitar dúvidas quanto à sua conformidade com o princípio constitucional da igualdade (art. 13.º CRP) conjugado com o direito à propriedade privada (art. 62.ºCRP).(4)
Em resumo, sustenta-se que o quinhão hereditário do interessado não pode ficar sob o domínio de outrem através da intervenção da maioria dos contitulares no cerne do título.(5)
Em sentido contrário, outra tese argumenta que esta forma de deliberação não ofende o princípio da igualdade tendo em conta os objectivos do legislador de simplificação do processo de inventário e porque todos os interessados estão em pé de igualdade para que a deliberação seja tomada, cada um dos interessados deve ter a mesma posição de interessado para decidir e deliberar, em igualdade entre si, porque só assim pode esta ser assegurada.(6)
Afigura-se-nos que a hipótese da maioria dos herdeiros poder, de certa forma, impôr a atribuição de determinados bens da herança, eventualmente com menos interesse, aos herdeiros minoritários, poderá causar perturbação por passarem a ser titulares do direito de propriedade de bens, não desejados.
Todavia, a decisão maioritária sobre a partilha dos bens da herança não ofende, de forma grave, os princípios da igualdade e da propriedade privada, constitucionalmente protegidos.
A lei assegura um tratamento igualitário a todos os interessados nas várias fases do processo de inventário, garantindo, na deliberação tomada na conferência preparatória, uma intervenção decisória individualizada, por cabeça, mesmo que os respectivos quinhões não sejam iguais.
Por conseguinte, afigura-se-nos que, de acordo com a lei adjectiva, os interessados concorrem, em termos igualitários, à divisão do acervo hereditário, prevendo-se ainda uma prévia avaliação das verbas que hão-de compor o quinhão de cada um dos interessados, a requerimento dos interessados (não exigindo uma maioria para esse efeito) ou oficiosamente determinada pelo notário, por forma a ser cumprido o princípio de uma partilha equilibrada e igualitária.
Na hipótese de ser preenchido o quinhão hereditário com bens não desejados, por decisão da maioria (como também acontece no caso de serem atribuídos em contitularidade por falta de licitação-cfr. art. 58.º, n.º 1, al. b) do RJPI) não se pode concluir que a aquisição, por essa via, ofende, intoleravelmente, o princípio constitucional à propriedade privada plasmado no artigo 62.º, n.º 1 da CRP.
Segundo a referida norma da Lei Fundamental “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da constituição”.
O direito de propriedade, no parecer de Gomes Canotilho e Vital Moreira,(7) abrange pelo menos quatro componentes : a) a liberdade de adquirir bens; b) a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; c) a liberdade de os transmitir; d) o direito de não ser privado deles.
O Tribunal Constitucional densificou o conteúdo do direito à propriedade privada, no plano normativo-constitucional, que o Acórdão n.º 421/2009(8) sintetizou da seguinte forma : “O primeiro ponto firme é o da não identificação entre o conceito civilístico de propriedade e o correspondente conceito constitucional : a garantia constitucional da propriedade protege-no sentido que a seguir se identificará-os direitos patrimoniais privados e não apenas os direitos reais tutelados pela lei civil, ou o firme é o da dupla natureza da garantia reconhecida no artigo 62.º, que contém na sua estrutura tanto uma dimensão institucional-objetiva quanto uma dimensão de direito subjectivo. O terceiro ponto firme dirá respeito ao âmbito desta última dimensão, de radical subjectivo, que irá incluída na estrutura da norma jusfundamental. A esta dimensão pertence precisamente como direito “clássico” de defesa, o direito de cada um de não ser privado da sua propriedade senão por intermédio de um procedimento adequado e mediante justa compensação…”
No caso em apreço, não estamos perante qualquer desrespeito dos quatro componentes em que se desdobra o conteúdo do direito à propriedade privada, no plano constitucional.
Acompanhando a explicitação do mencionado Acórdão do Tribunal Constitucional, a garantia prevista no artigo 62.º, n.º 1 da CRP, na sua dimensão institucional ou objectiva implica, para o legislador ordinário, uma proibição de afectar o núcleo essencial do instituto infraconstitucional da “propriedade”, nos termos atrás definidos, e uma conformação do instituto com os princípios constitucionais.
Ora, a divisão do património hereditário, que consubstancia a finalidade primordial do processo de inventário, através de uma deliberação de dois terços dos titulares do direito à herança, atribuindo bens a herdeiros, não participantes nessa deliberação, tem cobertura constitucional.
E, independentemente da querela sobre a natureza da partilha (carácter meramente declarativo, constitutivo ou modificativo), a verdade é que, nos termos do art. 2119.º do C.Civil, os seus efeitos de cessação do estado de indivisão hereditária e de materialização dos bens de cada quinhão hereditário, retroagem também ao momento da abertura da sucessão(9).
Por outras palavras, e como refere Capelo de Sousa,(10) cada um dos herdeiros recebe directamente os seus direitos do defunto e não dos restantes co-herdeiros, razão pela qual não nos afigura exactamente correcta o argumento no sentido que, através dessa deliberação maioritária, o interessado adquire a titularidade do direito, por imposição de outrem.
Por outro lado, e este aspecto é essencial, a regra da maioria de dois terços concretiza os objectivos do legislador no sentido de garantir a simplificação e celeridade do processo de inventário que, no anterior regime, era, em muitos casos, reconhecidamente moroso.
No caso concreto, a deliberação foi tomada pela maioria de dois terços dos titulares à herança, tendo a repartição dos bens sido feita de forma equitativa, como resulta do mapa, sendo que o Recorrente não justificou, em termos credíveis, a sua posição divergente, limitando-se a declarar, de modo conclusivo, que as adjudicações o prejudicaram, não garantindo uma partilha igualitária.
Por todas as razões aduzidas, o recurso não merece provimento.
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V—DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, e em consequência, confirmam a decisão notarial e a sentença.
Custas pelo Apelante.
Notifique e registe.
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Guimarães, 25 de Maio de 2017

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(Anabela Andrade Miranda Tenreiro)



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(Francisca Micaela Fonseca da Mota Vieira)



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(Fernando Fernandes Freitas)




1- Cfr. Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita,Manual do Processo de Inventário à luz do Novo Regime, Coimbra Editora, página 124, citados pela Exma. Sra. Notária.
2- Miranda, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 5.ª edição, pág. 285.
3- In www.tribunalconstitucional.pt
4- Cfr. Cardoso, Augusto Lopes, vol. I, 6.ª edição, págs. 69 a 75.
5- Cfr. Cardoso, Augusto Lopes, ob. cit., págs. 71e 72.
6- Cfr. Costa, Alberto, A Partilha em Inventário, Incursão pelo Novíssimo Regimie Jurídico do Processo de Inventário, edição Vida Económica, pág. 82.
7- Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.º edição, nota VI, pág. 802.
8- In www.tribunalconstitucional.pt
9- Sousa, Rabindranath Capelo de, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 2.ª edição, pág. 359.
10- Ob. cit., pág. 358.