Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
621/07.0TBPVL.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: CONTRADIÇÃO
RESPOSTAS AOS QUESITOS
ANULAÇÃO DE JULGAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/07/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA A SENTENÇA
Sumário: I - As respostas aos quesitos são contraditórias quando têm um conteúdo logicamente incompatível, isto é, quando não podem subsistir ambas utilmente.
II – Se o autor, tal como os restantes colegas que procediam à recolha do lixo, era visível para o condutor do veículo quando procedia ao sucessivo e continuado atravessamento da estrada, a que não é também alheio o facto do local do acidente ser uma recta com cerca de 300 metros de comprimento e estar bem iluminado, quer pela luz pública acesa, quer pelos pisca-piscas e pirilampos intermitentes do camião de recolha do lixo, não pode dar-se como provado, sob pena de contradição, que o referido condutor “foi colhido de surpresa pelo aparecimento súbito e inesperado do autor”.
III - Um veículo a circular à velocidade de 70 km/h percorre 19,45 metros num segundo. Assim, não pode dar-se como provado, sob pena de contradição, que o autor iniciou a travessia da via da direita para a esquerda, no momento em que o DR se encontrava a 4/5 metros de distância, sabendo-se que o embate ocorreu a cerca de 1,80m do limite direito da faixa de rodagem, apesar do autor ter iniciado aquela travessia em passo apressado, mas carregando um saco do lixo, pelo que o mesmo demoraria, no mínimo, um segundo a percorrer 1,80 metros, quando o veículo já estaria vários metros à frente.
IV – Tendo a decisão da matéria de facto, no que tange à dinâmica do acidente, assentado maioritariamente nos depoimentos testemunhais que foram gravados, mas não tendo o autor impugnado, nos termos do art. 685º-B, a decisão de facto proferida com base em tais depoimentos, não constam do processo todos os elementos que permitam superar a situação decorrente das apontadas contradições, pelo que se impõe a anulação do julgamento nos termos do nº 4 do art. 712º do CPC.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
E… intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, para efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, contra COMPANHIA DE SEGUROS… , S.A., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de €. 33.750,00, acrescida dos juros de mora desde a citação até integral pagamento, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu até ao momento e os que vier ainda a sofrer a liquidar em execução de sentença decorrentes de acidente estradal de que foi vítima.
Alegou, no essencial, que quando se encontrava a trabalhar na Rua dos Moinhos Novos, freguesia de Amparo, em Póvoa do Lanhoso, procedendo à recolha do lixo, atravessando a via de um lado para o outro várias vezes seguidas, tal como outros trabalhadores seus colegas, e estando nesse mesmo local devidamente sinalizado, com os quatro pisca-piscas e três pirilampos intermitentes o camião de recolha do lixo municipal, foi colhido pelo veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula 23-01-DR, propriedade de Carlos… e conduzido sob as suas ordens e direcção por José… , que o tripulava com excesso de velocidade e sem a atenção exigível, tendo sofrido em consequência os danos que descreve, de que se quer ver ressarcido, sendo responsável pela sua satisfação a seguradora ré, por força do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel celebrado com o proprietário do veículo atropelante.
Contestou a ré, imputando ao autor a culpa na ocorrência do acidente por ter entrado na faixa de rodagem de forma inesperada e sem previamente se certificar que aí circulava qualquer veículo, certamente por na altura se encontrar com uma taxa de álcool no sangue de 1,82 g/l, e impugnando, por desconhecimento, as lesões invocadas.
Replicou o autor para manter a posição inicialmente assumida.
Saneado o processo e fixados os factos que se consideraram assentes e os controvertidos, teve lugar, por fim, a audiência de discussão e julgamento.
Na sentença, subsequentemente proferida, foi a acção julgada improcedente e a ré absolvida do respectivo pedido.
Inconformado com o assim decidido, recorreu o autor para esta Relação, encerrando o recurso de apelação interposto com as seguintes conclusões (transcrição):
«A.
DADO POR PROVADO QUE:
- O autor, enquanto funcionário dos Serviços de Limpeza da Câmara Municipal da Póvoa de Lanhoso, encontrava-se a trabalhar naquele local;
- Atravessando a via de um para o outro lado e vice-versa, vezes seguidas;
- O mesmo sucedendo com outros trabalhadores seus colegas.
- Nesse mesmo local e devidamente sinalizado, com os quatro pisca-piscas e três pirilampos intermitentes, em funcionamento, encontrava-se o camião de recolha do lixo municipal.
- No local a via tem a largura de 7 metros, com passeios de ambos os lados com 2 metros de largura.
- O local do acidente é uma localidade, dentro da vila da Póvoa de Lanhoso, com um correr de mais de 200 metros de comprimento com casas de habitação de um e de outro lado da via, deitando directamente para ela.
- O local do acidente é uma recta com cerca de 300 metros de comprimento e o piso da estrada encontrava-se seco.
- No local a velocidade está limitada a 50 Km/h.
- O autor no momento do embate transportava um saco de lixo na mão.
- O autor tal como os demais colegas de trabalho era perfeitamente avistável para o condutor do automóvel, quando procediam ao sucessivo e continuado atravessamento da estrada.
- O autor apenas trajava calças fluorescentes.
- O condutor do DR circulava a cerca de 70 Km/h.
- O condutor do automóvel conhecia perfeitamente o local por onde circulava.
- O condutor do automóvel não travou, nem reduziu a velocidade, apenas tendo travado após o atropelamento.
- Após o embate o corpo do autor foi projectado para a frente pelo ar, tendo caído a cerca de 15 metros para além do local do atropelamento.
- Apesar de ser de noite, o local do acidente estava bem iluminado, quer pela luz pública acesa, quer pelas referidas luzes do camião do lixo,
A CONCLUSÃO SÓ PODE SER A DE QUE:
- A CONDUTA DO CONDUTOR DO AUTOMÓVEL É CAUSAL DO ACIDENTE.
B.
DAR POR PROVADO QUE:
- Foi o condutor do DR surpreendido pelo aparecimento súbito do autor, o qual saindo inesperadamente e em passo apressado do passeio do lado direito, atento o sentido do veículo, iniciou a travessia da via da direita para a esquerda, no momento em que o DR se encontrava a 4/5 metros de distância, É DAR POR PROVADA UMA IMPOSSIBILIDADE e cair EM CONTRADIÇÃO COM OUTRA MATÉRIA DADA POR PROVADA, já que, como acima se alega:
- A uma velocidade de 70 Km’s/hora, dada por provada, o DR percorria 19,44 metros, por segundo.
- Ora se em 1 segundo percorre 19,44 metros,
Nunca se poderia dar por provado que o DR estava a 4/5 metros de distância do Autor quando este, partindo do passeio, com 2 metros de largura, para a estrada ainda nela percorreu 1,80 metros até ser atropelado.
- É que, num segundo o DR andou 19,44 metros, ou seja, no segundo seguinte àquele em que o Autor, carregando um saco do lixo, partiu do passeio, já o DR andara 19,44 metros para a frente.
MAIS:
- Com a matéria de facto dado por provada e acima indicada nunca se pode falar em surpresa para o condutor do automóvel.
C.
É VERDADE QUE FOI DADO POR PROVADO QUE:
- O autor antes de efectuar a travessia da faixa de rodagem, não olhou para ambos os lados.
- Aceitamos que esta conduta do Autor, apesar de, permanentemente, atravessar a via, de um lado para o outro e vice-versa em trabalho, é, à partida, também causal do acidente.
Porém,
- A descrita conduta do condutor do DR é escandalosamente causal, em muito maior grau do que a conduta do Autor.
- Como é possível que, nas circunstâncias dadas por provadas, uma pessoa adulta possa andar pelo ar, projectado por um automóvel, a uma distância de 15 metros para além do local do embate ??? !!!

A conclusão parece evidente:
- Atentas as circunstâncias dadas por provadas - e que Vªs Excªs facilmente entendem, porque, muitas vezes, nos confrontamos com trabalhos de recolhas de lixo – a velocidade máxima de 50 Km’s/hora ali permitida, nunca poderia ser a usada pelo condutor do DR,
Ou seja,
- Atentas as circunstâncias dadas por provadas, nunca um condutor diligente andaria a uma velocidade superior a 30 Km’s/hora e, ainda assim, atento às sucessivas deslocações na via dos trabalhadores da recolha do lixo.
Ora,
- Se assim fizesse nenhum acidente teria ocorrido, quanto mais “ andar um cristão pelo ar numa viagem de 15 metros “ .
D.
- A sentença recorrida violou o disposto nos artºs 11º, 13º, 24º, 25º e 27º do Código da Estrada, artº 493º, 495º, 496º e 499º do Cod. Civil e 659º do CPC.»
A Ré contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões do recorrente (arts. 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3, do CPC, na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24.08, que é a aqui aplicável), a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões, tendo em consideração a sua precedência lógica:
- contradição na matéria de facto dada como provada;
- determinação da culpa no desencadear do acidente;
- valorização dos danos patrimoniais e não patrimoniais.

III - FUNDAMENTAÇÃO
A) - OS FACTOS
Na 1ª instância consideraram-se provados os seguintes factos (aqui reordenados numa ordem lógica e cronológica):
1. No dia 23 de Dezembro de 2006, pelas 22.30 horas, na Rua dos Moinhos Novos, ocorreu um acidente de viação entre o veículo 23-01-DR e o autor (peão).
2. O automóvel seguia no sentido Garfe - Póvoa de Lanhoso.
3. O autor, enquanto funcionário dos Serviços de Limpeza da Câmara Municipal da Póvoa de Lanhoso, encontrava-se a trabalhar naquele local.
4. Atravessando a via de um para o outro lado e vice-versa, vezes seguidas.
5. O mesmo sucedendo com outros trabalhadores seus colegas.
6. O autor tal como os demais colegas de trabalho era perfeitamente avistável para o condutor do automóvel, quando procediam ao sucessivo e continuado atravessamento da estrada.
7. Nesse mesmo local e devidamente sinalizado, com os quatro pisca-piscas e três pirilampos intermitentes, em funcionamento, encontrava-se o camião de recolha do lixo municipal.
8. Mais precisamente na hemi-faixa de rodagem direita da via, atento o sentido de marcha Póvoa de Lanhoso - Garfe, com a frente virada neste sentido.
9. No local a via tem a largura de 7 metros, com passeios de ambos os lados com dois metros de largura.
10. O local do acidente é uma localidade, dentro da vila da Póvoa de Lanhoso, com um correr de mais de 200 metros de comprimento com casas de habitação de um e de outro lado da via, deitando directamente para ela.
11. O local do acidente é uma recta com cerca de 300 metros de comprimento e o piso da estrada encontrava-se seco.
12. No local a velocidade está limitada a 50 km/h.
13. O autor atravessou a via do lado direito para o esquerdo, atento o sentido de marcha do DR.
14. O condutor do DR circulava com os faróis médios ligados, pela sua hemi-faixa direita atento o seu sentido de marcha.
15. O condutor do DR circulava a cerca de 70 Km/h.
16. Ao aproximar-se do prédio com o nº de policia 125 e quando passava pelo Camião de recolha do lixo que se encontrava parado na hemi-faixa de rodagem esquerda, atento o sentido Garfe - Póvoa de Lanhoso, a proceder à recolha do lixo desse mesmo lado;
17. Foi o condutor do DR surpreendido pelo aparecimento súbito do autor, o qual saindo inesperadamente e em passo apressado do passeio do lado direito, atento o sentido do veículo, iniciou a travessia da via da direita para a esquerda, no momento em que o DR se encontrava a 4/5 metros de distância.
18. O condutor do veículo, colhido de surpresa pelo aparecimento súbito e inesperado do autor, ao aperceber-se da presença deste na faixa de rodagem, ainda tentou desviar o veículo o mais que pôde para a sua esquerda.
19. Porém, não lhe foi possível evitar que o autor embatesse no canto direito da frente do DR, junto à óptica desse mesmo lado, embate esse que ocorreu a cerca de 1,80m do limite direito da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do DR.
20. O condutor do automóvel não travou, nem reduziu a velocidade, apenas tendo travado após o atropelamento.
21. O condutor do automóvel conhecia perfeitamente o local por onde circulava.
22. O autor no momento do embate transportava um saco de lixo na mão.
23. O autor apenas trajava calças fluorescentes.
24. Após o embate o corpo do autor foi projectado para a frente pelo ar, tendo caído a cerca de 15 metros para além do local do atropelamento.
25. Apesar de ser de noite, o local do acidente estava bem iluminado, quer pela luz pública acesa, quer pelas referidas luzes do camião do lixo.
26. O autor antes de efectuar a travessia da faixa de rodagem, não olhou para ambos os lados da Rua dos Moinhos, de modo a certificar-se de que a podia efectuar sem perigo para si e para o restante tráfego, que na altura se processava.
27. Nada impedia o autor de avistar o DR que circulava numa recta com os faróis médios ligados.
28. O autor encontrava-se com uma taxa de álcool no sangue de 1,82 g/l.
29. Tal facto foi determinante da sua perda de vigilância em relação ao meio envolvente e concretamente à aproximação do DR, já que as capacidades de atenção e de concentração do autor se encontravam, na altura, diminuídas.
30. Tal quantidade de álcool no sangue reduziu a acuidade visual do autor, quer para objectos em movimento, quer para objectos estáticos, perturbando igualmente as suas capacidades perceptivas e o seu tempo de reacção.
31. A presença de tal quantidade de álcool no sangue prejudicou-lhe a sua visão estereoscópica, razão pela qual o autor se achava, na altura, incapaz de avaliar correctamente a distância e a velocidade a que circulavam os veículos.
32. O autor nasceu no dia 17 de Janeiro de 1951.
33. O autor trabalhava como cantoneiro do ambiente e limpeza, na Câmara Municipal de Póvoa de Lanhoso.
34. Auferia o salário mensal de €. 470,00.
35. O trabalho do autor desenvolve-se durante 6 horas diárias.
36. Horário que lhe permitia amanhar, comandando e trabalhando com outros trabalhadores ao seu serviço, uma quinta.
37. Como consequência directa, necessária e adequada do acidente resultaram ferimentos vários por todo o corpo do autor, designadamente fractura exposta da perna esquerda.
38. Do local do acidente foi transportado de ambulância para o Hospital da Póvoa de Lanhoso.
39. Foi depois e nessa mesma noite transportado para o Hospital de São Marcos de Braga;
40. Onde foi submetido a uma primeira intervenção cirúrgica à perna esquerda.
41. Ali ficou internado até ao dia 5/01/2007, submetido a medicação.
42. O autor foi internado na Clínica de São Lázaro a 26/02/2007 para extracção do material de osteosíntese e teve alta no dia seguinte, com indicação de repouso absoluto no domicílio nos 15 dias seguintes.
43. Realizou fisioterapia a partir de 28/05/2007 até 30/09/2007.
44. Desde a data do acidente e até 18/12/2007 o autor esteve de baixa médica.
45. Após o acidente o autor tem recorrido aos serviços de um trabalhador agrícola para o auxiliar nas tarefas agrícolas da quinta que explora.
46. A data da consolidação das lesões foi fixada em 18/12/2007.
47. O autor ficou a padecer de uma IPP de 4,94%.
48. No momento do acidente, nos momentos que se seguiram, o autor pensou que ia morrer, temendo pela vida.
49. No tempo de internamento, nas intervenções cirúrgicas a que foi submetido, nos tratamentos, nas horas gastas nos percursos desde a sua terra até aos locais de assistência e na volta, onde percorre cerca de 50 km de cada vez, o autor passou por dores, angústias, medos e frustrações.
50. O acidente ocorreu nas vésperas do Natal de 2006, tendo o autor passado, quer a festa natalícia, quer a festa do Ano Novo internado no Hospital.
51. Desde sempre passou tais festividades na companhia da sua mulher, filhos e netos.
52. Nesses dias de internamento, particularmente na semana de festividades o autor sentiu profunda tristeza por não estar na companhia da sua família.
53. A companhia de seguros “G… ”, seguradora que assumiu a responsabilidade pelo acidente de trabalho, concluiu pela forma inserta a fls. 81 e 82 dos autos.
54. O DR é propriedade de Carlos… .
55. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 06-0900202430, o proprietário do veículo 23-01-DR transferiu para a ré seguradora a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros com aquela viatura.

B - O DIREITO
Da contradição na matéria de facto
No entender do recorrente, para declarar o autor único culpado na produção do acidente, o tribunal a quo baseou-se em factos dados por provados que são entre si contraditórios.
Estão essencialmente em causa os factos nºs 6, 15, 17 e 18 (1ª parte) da matéria de facto segundo a ordenação feita no presente acórdão (nºs 16, 18, 46 e 47 da sentença recorrida), a que correspondem, respectivamente, as alíneas G [art. 10º da p.i.], H, S [art. 7º da contestação] e U [art. 14º da contestação] da base instrutória.
São do seguinte teor os factos nºs 6, 15, 17 e 18 (1ª parte):
- O autor tal como os demais colegas de trabalho era perfeitamente avistável para o condutor do automóvel, quando procediam ao sucessivo e continuado atravessamento da estrada (nº 6).
- O condutor do DR circulava a cerca de 70 Km/h (nº 15).
- Foi o condutor do DR surpreendido pelo aparecimento súbito do autor, o qual saindo inesperadamente e em passo apressado do passeio do lado direito, atento o sentido do veículo, iniciou a travessia da via da direita para a esquerda, no momento em que o DR se encontrava a 4/5 metros de distância (nº 17).
18 - O condutor do veículo, colhido de surpresa pelo aparecimento súbito e inesperado do autor, ao aperceber-se da presença deste na faixa de rodagem, ainda tentou desviar o veículo o mais que pôde para a sua esquerda (nº 18).
Segundo o recorrente, nunca se pode falar em surpresa para o condutor automóvel com a seguinte matéria de facto dada como provado:
- O autor, enquanto funcionário dos Serviços de Limpeza da Câmara Municipal da Póvoa de Lanhoso, encontrava-se a trabalhar naquele local (facto nº 3 supra).
- Atravessando a via de um para o outro lado e vice-versa, vezes seguidas (facto nº 4).
- O mesmo sucedendo com outros trabalhadores seus colegas (facto nº 5).
- Nesse mesmo local e devidamente sinalizado, com os quatro pisca-piscas e três pirilampos intermitentes, em funcionamento, encontrava-se o camião de recolha do lixo municipal (facto nº 7).
- No local a via tem a largura de 7 metros, com passeios de ambos os lados com dois metros de largura (facto nº 8).
- O local do acidente é uma localidade, dentro da vila da Póvoa de Lanhoso, com um correr de mais de 200 metros de comprimento com casas de habitação de um e de outro lado da via, deitando directamente para ela (facto nº 10).
- O local do acidente é uma recta com cerca de 300 metros de comprimento e o piso da estrada encontrava-se seco (facto nº 11).
- No local a velocidade está limitada a 50 km/h (facto nº 12).
- O autor no momento do embate transportava um saco de lixo na mão (facto nº 22).
- O autor tal como os demais colegas de trabalho era perfeitamente avistável para o condutor do automóvel, quando procediam ao sucessivo e continuado atravessamento da estrada (facto nº 6).
- O autor apenas trajava calças fluorescentes (facto nº 23).
- O condutor do DR circulava a cerca de 70 Km/h (facto nº 15).
- O condutor do automóvel conhecia perfeitamente o local por onde circulava (facto nº 21).
- O condutor do automóvel não travou, nem reduziu a velocidade, apenas tendo travado após o atropelamento (facto nº 20).
- Após o embate o corpo do autor foi projectado para a frente pelo ar, tendo caído a cerca de 15 metros para além do local do atropelamento (facto nº 24).
- Apesar de ser de noite, o local do acidente estava bem iluminado, quer pela luz pública acesa, quer pelas referidas luzes do camião do lixo (facto nº 25).
Em comentário ao nº 4 do art. 712º do CPC, observa Arantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil - Novo Regime, 3ª edição revista e actualizada, 2010, pág. 331, que “[a] decisão sobre a matéria de facto deve primar pela clareza de exposição. As dúvidas quanto ao que está ou não está provado devem ser resolvidas pelo tribunal na fase da audiência de discussão e julgamento, antes de terminarem os debates finais ou, mesmo depois, com a reabertura da audiência, nos termos do art. 653º, nº 1.
Entre os vícios que podem afectar a decisão da matéria de facto e cuja apreciação nem sequer está dependente da iniciativa das partes contam-se as respostas deficientes, obscuras e contraditórias”.
As respostas aos quesitos são contraditórias: “quando ambas façam afirmações inconciliáveis entre si, de modo a que a veracidade de uma exclua a veracidade da outra” (Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, Vol. III, 3ª ed., pág. 173); “quando têm um conteúdo logicamente incompatível, isto é, quando não podem subsistir ambas utilmente” (Ac. do STJ, de 04.02.97, proferido no Proc. nº 458/96, da 1ª Secção – Conselheiro Ribeiro Coelho –, in “Sumários do STJ”, nº 8, de Fevereiro de 1997, pág. 17); quando ocorre “oposição entre diversas respostas dadas a pontos de facto controvertidos ou entre tais respostas e os fatos considerados assentes na fase da condensação” (Abrantes Geraldes, ob. cit. pág. 332).
Ora, perante tal conceito doutrinal e jurisprudencial do vício processual da “contradição” acima referido, afigura-se-nos que, no essencial, assiste razão ao recorrente.
Na verdade, se o autor, tal como os restantes colegas, era avistável para o condutor do veículo DR quando procedia ao sucessivo e continuado atravessamento da estrada, a que não é alheio o facto do local do acidente ser uma recta com cerca de 300 metros de comprimento e estar bem iluminado, quer pela luz pública acesa, quer pelos pisca-piscas e pirilampos intermitentes do camião de recolha do lixo, quer ainda pelas calças fluorescentes que o autor trajava, não pode dar-se como provado, sob pena de contradição, que o referido condutor “foi colhido de surpresa pelo aparecimento súbito e inesperado do autor”.
Nem tão pouco pode dar-se como provado, sob pena de contradição, que o autor saiu “inesperadamente” do passeio do lado direito, atento o sentido do veículo, quando é certo que condutor do DR avistava o autor – tal como os outros trabalhadores - a atravessar de forma sucessiva e continuada a estrada.
Contraditório é outrossim dar-se como provado que o veículo DR circulava a uma velocidade de 70 km/h e que o autor iniciou a travessia da via da direita para a esquerda, no momento em que o DR se encontrava a 4/5 metros de distância.
É que se assim fosse, o DR teria necessariamente de circular a uma velocidade não superior a 15-20 km/h, sabendo-se que a uma velocidade de 70 km/h a distância percorrida por um veículo em 1 segundo é de 19,45 metros [70.000 metros : 3.600 segundos = 19,45 metros] - cfr. quadro de distâncias percorridas em 1 segundo a diferentes velocidades, em Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 3ª edição, pág. 544.
Ora, tendo presente que o embate ocorreu a cerca de 1,80m do limite direito da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do DR, e que o condutor do DR não travou, nem reduziu a velocidade, apenas tendo travado após o atropelamento (factos nºs 19 e 20), mesmo considerando que o autor iniciou em passo apressado a travessia da via da direita para a esquerda, carregando um saco do lixo (factos nºs 17 e 22), nunca o mesmo demoraria menos de um segundo a percorrer 1,80 metros, quando o DR já estaria vários metros à frente.
Nunca poderia, pois, o DR estar a uma distância de 4/5 metros no momento em que o autor iniciou a travessia da via da direita para a esquerda. Para que assim fosse necessário era que o DR circulasse a uma velocidade de 15 ou 20 km/h, sendo que no primeiro caso percorreria 4,16 metros e no segundo 5,55 metros.
O tribunal a quo fundamentou a decisão de facto nos seguintes termos:
“A convicção do tribunal, no que concerne à dinâmica do acidente, baseou-se no depoimento das testemunhas Luís… , motorista do camião de lixo, José… , operário de limpeza que juntamente com o autor procedia à recolha do lixo, e José… , condutor do veículo interveniente.
A testemunha Luís… encontrava-se no interior do camião do lixo, lugar do condutor, tendo presenciado de forma privilegiada toda a dinâmica do acidente. Assim, referiu que o autor se encontrava no passeio do lado esquerdo a recolher os sacos do lixo e, pretendendo atravessar a estrada em direcção ao camião, iniciou em passo apressado a travessia no exacto momento em que passava o veículo automóvel.
Acrescentou que, sem poder precisar, este veículo seguia a cerca de 70 k/h.
A testemunha José… , condutor do veículo interveniente, referiu que o autor iniciou a travessia da via da direita para a esquerda, de modo repentino e quando o veículo se encontrava a cerca de 3 metros de distância, pelo que nem sequer conseguiu travar, tendo instintivamente desviado o veículo para a esquerda.
A testemunha José… , referiu que apesar de se encontrar no local do outro lado da via, o embate em si não o presenciou, tendo apenas visto os sacos do lixo que o autor trazia pelo ar, e tendo confirmado a configuração do local, posição dos veículos e danos.
Ora, conjugando o teor dos depoimentos prestados por estas testemunhas, com a participação do acidente junta aos autos e confirmada pelo agente que procedeu à sua elaboração em sede de audiência de julgamento, convenceu-se o tribunal que o acidente ocorreu, porque o autor saiu de forma súbita e inesperada do passeio do lado direito e em passo apressado inicia a travessia da via no momento em que o veículo DR se encontra a poucos metros de distância, não sendo possível ao seu condutor evitar o atropelamento.”
A decisão da matéria de facto, no que tange à dinâmica do acidente, assentou, pois, em grande parte, nas aludidas testemunhas, cujos depoimentos foram gravados. O autor, porém, não impugnou, nos termos do art. 685º-B, a decisão de facto proferida com base em tais depoimentos (cfr. art. 712º, nº 1, al. a), do CPC).
Não constam assim do processo todos os elementos que permitam superar a situação decorrente das apontadas contradições, por forma a fixar com segurança a matéria de facto provada e não provada, pelo que não resta outra alternativa que não seja a anulação do julgamento nos termos do nº 4 do art. 712º do CPC.
Devem, por conseguinte, ser anuladas, por que contraditórias as respostas às alíneas G [art. 10º da p.i.], H, S [art. 7º da contestação] e U [art. 14º da contestação] da base instrutória, a que correspondem os nºs 6, 15, 17 e 18 (1ª parte) dos factos provados de acordo com a numeração estabelecida no presente acórdão.
Face à existência de repostas contraditórias, com a anulação do julgamento, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões que preenchiam o objecto do presente recurso.

Concluindo:
I - As respostas aos quesitos são contraditórias quando têm um conteúdo logicamente incompatível, isto é, quando não podem subsistir ambas utilmente.
II – Se o autor, tal como os restantes colegas que procediam à recolha do lixo, era visível para o condutor do veículo quando procedia ao sucessivo e continuado atravessamento da estrada, a que não é também alheio o facto do local do acidente ser uma recta com cerca de 300 metros de comprimento e estar bem iluminado, quer pela luz pública acesa, quer pelos pisca-piscas e pirilampos intermitentes do camião de recolha do lixo, não pode dar-se como provado, sob pena de contradição, que o referido condutor “foi colhido de surpresa pelo aparecimento súbito e inesperado do autor”.
III - Um veículo a circular à velocidade de 70 km/h percorre 19,45 metros num segundo. Assim, não pode dar-se como provado, sob pena de contradição, que o autor iniciou a travessia da via da direita para a esquerda, no momento em que o DR se encontrava a 4/5 metros de distância, sabendo-se que o embate ocorreu a cerca de 1,80m do limite direito da faixa de rodagem, apesar do autor ter iniciado aquela travessia em passo apressado, mas carregando um saco do lixo, pelo que o mesmo demoraria, no mínimo, um segundo a percorrer 1,80 metros, quando o veículo já estaria vários metros à frente.
IV – Tendo a decisão da matéria de facto, no que tange à dinâmica do acidente, assentado maioritariamente nos depoimentos testemunhais que foram gravados, mas não tendo o autor impugnado, nos termos do art. 685º-B, a decisão de facto proferida com base em tais depoimentos, não constam do processo todos os elementos que permitam superar a situação decorrente das apontadas contradições, pelo que se impõe a anulação do julgamento nos termos do nº 4 do art. 712º do CPC.

IV - DECISÃO
Termos em que se decide anular a sentença proferida nos autos, nos termos do art. 712º, nº 4, do CPC, devendo a repetição do julgamento abranger os artigos da base instrutória cujas respostas foram consideradas contraditórias, podendo ainda o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.
Custas pelo vencido a final.
*
Guimarães, 7 de Julho de 2011

Manuel Bargado

Helena Gomes de Melo

Amílcar Andrade