Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4785/16.4T8GMR.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO PARA INSTAURAÇÃO DA ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO
VIOLAÇÃO DA EXIGÊNCIA DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/16/2017
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
. O estabelecimento do prazo de 10 anos para instaurar acção de investigação de paternidade viola a exigência de proporcionalidade consagrada no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição e constitui, no estado actual do conhecimento científico, restrição injustificada do direito ao conhecimento das origens genéticas, pelo que é inconstitucional.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

L. N. instaurou contra M. S., na qualidade de herdeira de J. S., os presentes autos de investigação da paternidade, peticionando que seja declarado que é filha do J. S..
Para tanto alega, e em síntese, que nasceu a 30 de Abril de 1948, tendo sido registada na Conservatória do Registo Civil apenas como filha de A. N., registada como A. R.; que a Autora é filha de A. R. e de J. S., filho de D. S., nascido a 18 de Janeiro de 1918, e falecido em Fafe, a 07 de Janeiro de 1963; que J. S. faleceu no estado de casado com a Ré M. S., e sem deixar descendentes nem ascendentes vivos; que a mãe da Autora faleceu a 22 de Dezembro de 2012; que J. S. e A. R. namoraram vários anos, tendo mantido relações sexuais de cópula completa nos primeiros 180 dias dos 300 que antecederam o nascimento da Autora; que a Autora foi concebida e nasceu fruto das relações sexuais mantidas entre J. S. e A. R.; que, aquando do nascimento, J. S. não declarou a paternidade da Autora nem a perfilhou, por se ter incompatibilizado com A. R., e depois por ter contraído casamento com a Ré; que, não obstante, J. S. sempre a reconheceu e tratou como filha, permitindo-lhe que o chamasse de pai, presenteando-a nos aniversários e festas de ano, preocupando-se com o seu estado de saúde e com tudo o que se relacionasse com a sua vida, e dedicando-lhe grande afeto e amor; que contribuída com dinheiro para os alimentos da Autora; que, não fora o seu prematuro falecimento, teria perfilhado a Autora; que todos quanto conheciam o falecido J. S. e a mãe da Autora, bem sabem que aquele é o pai da Autora e que a Autora é sua filha; que a mãe da Autora era uma senhora séria e honesta, com elevada reputação pública de integridade moral, tendo mantido relações de sexo exclusivamente com J. S. nos primeiros 180 dias dos 300 que antecederam o nascimento da Autora e ao longo de toda a sua vida, tendo-se mantido e falecido no estado de solteira, só tendo como filha a Autora; e que só neste momento, já após o falecimento da sua mãe, instaurou a presente ação, para não a incomodar, pois sofria com este assunto.
Concluiu pedindo que a presente ação seja julgada procedente, por provada, e que, em consequência, seja a Autora reconhecida como filha de J. S., ordenando-se o respectivo averbamento de tal paternidade no assento de nascimento daquela.
Juntou três certidões de nascimento, dois assentos de óbito, comprovativo de liquidação da taxa de justiça e procuração forense.
Arrolou testemunhas.

A Ré M. S., regularmente citada, não apresentou contestação.
Foi proferido despacho saneador, o qual fixou o objeto do litígio e os temas de prova.
Mais foram admitidos os meios de prova e designada data para a realização da audiência de julgamento.
*
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e a final foi proferida sentença que julgou procedente a exceção da caducidade e absolveu a R. do pedido.
A A. não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo concluído as suas alegações da seguinte forma:

I– A problemática da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da fixação de prazos legais para a propositura das acções de investigação da maternidade ou paternidade estabelecidas nos arts. 1817e 1873 do CC não acabou com o surgimento da lei nº 14/2009, de 01/04, depois da força obrigatória da inconstitucionalidade declarada sobre o prazo anterior estabelecido do referido art. 1817, pelo acordão do Tribunal Constitucional nº 23/2006 de 10/01, publicado em D. R. em 08 de Fevereiro de 2006.
II – Continuando a ter de se entender que também os prazos novos estabelecidos no art. 1817 do CC não são prazos cegos e ininterruptos, conforme doutrina do acordão do STJ de 02 de Fevereiro de 2017, proferido no proc. 200/11.8TBFVN.C2.S1;
III – Sendo que os prazos do nº 3 do art. 1817, de três anos, é cumulativo com o prazo estabelecido de dez anos estabelecido no nº 1.
IV – Ou seja, o prazo da circunstância superveniente, nunca se esgota nem começa sem ter decorrido o prazo de dez anos.
V – Mas, e independentemente da circunstância superveniente, o prazo estabelecido na nova lei, de dez anos posteriores à maioridade, impede o exercício do direito de personalidade, de constituir família e a identidade genética, a todas as pessoas que nascem antes de 1979;
VI – Porque não podem propôr a acção por virtude de uma lei que era inconstitucional, e não poderem usar o prazo da nova lei, por já serem maiores há dez anos, à data da entrada em vigor da nova lei.
VII – A norma nº 1 do art. 1817 aplicável ao presente caso por força do art. 1873 do CC, na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade da A. recorrente, enquanto filha, propor a presente acção de investigação de paternidade, com fundamento no facto biológico da filiação, é inconstitucional, uma vez que o direito a conhecer a ascendência biológica constitui dimensão essencial do direito à identidade pessoal previsto no art. 26 nº 1 da Constituição da República Portuguesa, e o direito a estabelecer os concomitantes vínculos jurídicos traduz uma dimensão do direito de constituir família previsto no art. 36 nº 1 do CRP, consubstanciando tal prazo limitador uma restrição excessiva e desproporcionada ao assinalado direito fundamental à identidade pessoal e direito de constituir família, bem como ao próprio direito geral de personalidade dos investigantes defendido pelo art. 70 do Código Civil;
VIII – Conforme decisão proferida pelo acórdão do STJ de 31 de Janeiro de 2017 proferida no proc. 440/12.2TBBCL.G1.S1.
IX – Acresce que, mesmo que os prazos previstos no art. 1817 pudessem ser considerados “aceitável restrição” ao exercício do direito fundamental da personalidade, no seu núcleo essencial do direito à identidade genética e à constituição de vínculos familiares, para futuro da entrada em vigor da lei 14/2009;
X – Nunca tal limitação poderia ser imposta retroactivamente, a quem nunca teve tal prazo para exercer a defesa do seu direito fundamental e inviolável.
XI – No caso concreto, a A. esteve impedida de propôr acção de investigação de paternidade até 2009 por virtude de uma lei inconstitucional;
XII – E estaria impedida pela própria lei de 2009 por já ter mais de 28 anos, há mais de 10 anos, quando aquela lei entrou em vigor;
XIII – É que, contrariamente ao comum da jurisprudência limitadora do direito de intentar acção, que entende que as decisões judiciais não originam novo direito (geral e abstrato) nem expectativas jurídicas, que tornam inconstitucional o novo prazo estabelecido no art. 1817;
XIV – A recorrente entende que o novo prazo que foi estabelecido, mesmo que fosse constitucional, teria que decorrer por inteiro, a partir da sua entrada em vigor, porque não tinha existido outro prazo, constitucionalmente aceitável, para o exercício do direito.
XV – Assim, o novo prazo de dez anos estabelecido no nº 1 do art. 1817, acrescido o prazo de três anos, da circunstância fundada para a acção não ter caducado, teriam que ser sempre contados a partir da entrada em vigor da nova lei.
XVI – A interpretação da fixação retroativa da caducidade do direito de interpôr acção de investigação de paternidade, viola o princípio da defesa e protecção do direito de personalidade estabelecido no art. 70 do CC e os arts. 26 nº 1 e 36 nº 1 da CRP.
XVII – A A. intentou a acção em 2016, pelo que não tinham decorrido os dez anos estabelecidos no art. 1817 nº 1, depois da maioridade, e dos 28 anos, com possibilidade prática de intentar a acção, por virtude da anterior lei restritiva julgada inconstitucional.
XVIII – A sentença recorrida, violou os arts. 1817 nº 1 e 3 e 1873 e 70 do C Civil, e os arts. 26 nº 1 e 36 nº 1 da CRP.
XIX – A norma retirada dos arts. 1817 (1873) e art. 70 do C Civil, no entendimento de que o prazo estabelecido no art. 1817, na redação dada pela lei 14/2009 se aplica ao prazo já decorrido antes da entrada em vigor desta lei, é materialmente inconstitucional, por violação frontal dos arts 26 nº 1 e 36 nº 1 da CRP;
XX – Devendo tal prazo ser entendido como não absoluto, nem imperativo, e apenas uma referência para quem atinge a maioridade depois da vigência desta lei 14/2009.
XXI – E a única consequência resultante do não respeito, sem fundamento válido, da ultrapassagem daqueles prazos de dez anos acrescidos dos três anos dados pela circunstância superveniente, apenas pode ter uma consequência, em respeito dos princípios da estabilidade das relações jurídicas (de terceiro) qual seja, a defesa das relações obrigacionais e patrimoniais estabelecidas, ou seja, a sua não eficácia relativamente às obrigações e ao património que fazem parte do acervo da herança do investigado.
XXII – De qualquer forma, e no caso concreto, o Tribunal deve julgar procedente a acção, pois nem sequer foi contestada, em nenhuma das suas consequências, pela única Ré.
Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e declarando-se que a recorrente é filha do investigado, e ordenando-se o averbamento no Registo Civil

II – Objecto do recurso

Considerando que:

. o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,
a questão a decidir é a seguinte:
. se caducou o direito da A. de investigar a sua paternidade..

III – Fundamentação

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

- A Autora L. N. nasceu a 30 de Abril de 1948, na freguesia e concelho de Fafe.
- O assento de nascimento da Autora foi lavrado nele se omitindo a paternidade e mencionando apenas que a Autora é filha de A. N., solteira.
- J. S. nasceu a 18 de Janeiro de 1918, na freguesia de …, concelho de Fafe, e faleceu a 07 de Janeiro de 1963, no estado de casado com a Ré M. S., e sem deixar descendentes ou ascendentes vivos.
- A. N., registada como A. R., faleceu a 22 de Dezembro de 2012, com 93 anos de idade.
- Os presentes autos de ação de investigação de paternidade foram instaurados a 26 de Agosto de 2016.

B) Com relevo para a decisão de mérito a proferir nestes autos, resultaram provados os seguintes factos:

- A. N. e J. S. mantiveram, durante vários anos, uma relação de namoro, tendo mantido entre si relações sexuais de cópula completa, pelo menos entre 30 de Junho e 30 de Setembro de 1947.
- Foi em consequência das relações sexuais de cópula completa mantidas entre A. N. e J. S. que foi gerada a Autora. - Pelo menos entre 30 de Junho e 30 de Setembro de 1947, A. N. apenas com J. S. manteve relações sexuais.
- Todas as pessoas que conheceram J. S. atribuem a este a paternidade da Autora.
10º- Todas as pessoas que conheceram A. N. atribuem a J. S. a paternidade da Autora.
11º- Todas as pessoas que conhecem a Autora atribuem a sua paternidade a J. S..
12º- J. S., desde o nascimento da Autora e até ao seu falecimento, tratou a Autora por filha e permitiu que a Autora o tratasse por pai perante toda a gente.
13º- J. S., desde o nascimento da Autora e até ao seu falecimento, manifestou preocupação pelo estado de saúde da Autora e por tudo o que se relacionasse com a sua vida, ofereceu-lhe presentes no aniversário e por festas de ano, contribuiu para os seus alimentos e dedicou-lhe grande afeto e amor.
14º- A Autora, durante a vida de J. S., sempre lhe dedicou grande afeto e amor e tratou-o como pai.
Não foram dados como não provados quaisquer factos.

Da exceção de caducidade

A questão colocada em recurso não é nova e já muito se escreveu sobre ela. A actual redacção do nº 1 do artº 1817º do CC foi introduzida pelo artº 1º da Lei n.º 14/2009, de 1.04.

No regime consagrado antes de 1966, no CC de 1867, previa-se uma possibilidade ampla de investigação nos casos em que a investigação da paternidade era permitida, mas estava limitada aos casos de escrito de pai em que expressamente declarasse a paternidade, de posse de estado pelo filho, de estupro violento e de rapto (artº 130º do CC). Já a acção de investigação da maternidade não sofria estas limitações.

O Código Civil de 1966, inicialmente no artº 1854 º nº 1, veio estabelecer um prazo geral para a ação de investigação de maternidade e paternidade curto, estatuindo que estas ações só podiam ser propostas durante a menoridade do investigante ou nos dois anos posteriores à sua menoridade ou emancipação. Este prazo manteve-se até à alteração introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 1.04, passando, a partir das alterações introduzidas ao Código Civil pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 25/11, o prazo geral a constar do nº 1 do artº 1817º relativamente à ação de investigação da maternidade e também de paternidade, esta por remissão do artº 1873º do CC .

Várias foram as decisões sujeitas à apreciação do Tribunal Constitucional ao longo dos anos, visando a declaração de inconstitucionalidade dos prazos previstos no artigo 1817º do CC, na redacção do Decreto-Lei nº 496/77.

Finalmente, no acórdão do TC n.º 23/2006, de 10.01, veio a ser declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do CC, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que previa para a caducidade do direito de investigar a paternidade um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP.

Esta declaração veio pôr fim à controvérsia sobre a constitucionalidade do nº 1 do artº 1817º do CC, na redacção do DL 496/77, de 25.11, se bem que na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça há muito que se vinha defendendo a inconstitucionalidade desta norma.

O estabelecimento desse prazo de dois anos foi considerado violar a exigência de proporcionalidade consagrada no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, entendendo-se haver uma apreciação incorreta dos valores em presença: o direito a saber quem é o pai e as desvantagens eventualmente resultantes, para o investigado e sua família, da ação de investigação, em que o primeiro sai claramente prejudicado.

É certo que o referido acórdão do TC apenas se pronunciou sobre a conformidade com a Constituição do prazo de dois anos para investigar a paternidade, e não também sobre a questão mais geral da constitucionalidade da existência de prazos para efeitos de investigação da filiação biológica. O Tribunal Constitucional nunca referiu que era inconstitucional o estabelecimento de qualquer limite a este tipo de acções, assim como também não o considera proibido o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

A A. fundamenta a sua pretensão em dois argumentos:

. o prazo de 10 anos só começou a correr a partir da data da entrada em vigor da nova lei que ainda não decorreu, sendo inconstitucional a interpretação da fixação retroactiva do direito de interpor ação de investigação de paternidade, por violação do disposto nos artigos 26º, nº 1 e 36º, nº 1, da CRP;
. ainda que assim não se entenda, a norma do nº 1 do artº 1817º do CC é inconstitucional por violar o disposto nos artigos 26º, nº 1 e 36º, nº 1 da CRP.
Não se entende a alusão feita pela apelante ao prazo de três anos a que se refere o artº 1817º, nº 3 do CC, pois que a A. não fundamentou o seu direito em qualquer das situações ali contempladas.

Da retroactividade do prazo previsto no nº 1 do artº 1817º do CC:

No caso afigura-se-nos não estamos perante verdadeira retroactividade na aplicação da lei, mas sim perante aquilo a que já se tem chamado retrospectividade ou retroacção inautêntica (v. Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, p. 818: a retroactividade inautêntica verifica-se “quando a lei nova só reclama uma vigência ex nunc, ainda que com a virtualidade de afetar direitos que, embora constituídos no passado por força da lei anterior, prolongam os seus efeitos no presente”). Ou seja, estamos perante uma norma legal que está a vigorar para o futuro, apenas acontecendo que tem influência numa relação jurídica iniciada no passado e mantida no presente. Sucede que o que atenta contra o nº 3 do art. 18º da CRP é aquela norma legal que implica uma verdadeira ou autêntica retroactividade (v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, vol. I, 2007, p. 394: “a proibição incide sobre a chamada retroatividade autêntica, em que as leis restritivas de direitos afetam posições jusfundamentais já estabelecidas no passado ou, mesmo, já esgotadas”) – cfr. se defende no Ac. do TRG, de 12.02.2015, proferido no processo nº 1292/09.5TBVVG.G1 não publicado, relatado pelo então sr. desembargador, José Rainho, actualmente ilustre juiz conselheiro do STJ).
Defende a apelante que antes da actual lei estava impedida de propor ação porque a lei era inconstitucional e quando a nova lei entrou em vigor, em 2 de Abril de 2009, já tinha ultrapassado os 28 anos, pelo que continuou impedida de propor ação de investigação.
Diga-se desde logo que a apelante não estava impedida de propor a ação desde que o tivesse feito dentro do prazo de dois anos, após atingir a maioridade .
Só se a lei nova tivesse vindo estabelecer um prazo mais curto é que o novo prazo só se contaria a partir da data da entrada em vigor (artº 297º, nº 1 do CC). No caso a situação é precisamente a inversa. O novo prazo – de 10 anos – é superior ao constante da lei antiga – de 2 anos.
A questão só se colocaria, partindo de um pressuposto diferente, o de que antes da nova lei a ação era imprescritível, por força do Ac. do TC de 2006 que julgou o prazo de dois anos inconstitucional e assim, porque a actual lei impôs um prazo, o qual teria sempre que ser considerado mais curto porque antes não haveria prazo, então sim haveria que contar o novo prazo a partir da data da entrada em vigor da nova lei, por força do disposto no artº 297º, nº 1 do CC.
Só que não é assim. A anterior lei estabelecia um prazo.
E relativamente à inconstitucionalidade do prazo de 10 anos:
Com a alteração legislativa de 2009, que alargou os prazos não findou a controvérsia que até então se fazia sentir.
E, no acórdão do TC nº 401/2011, de 22.09, foi decidido em plenário - por sete votos a favor e seis contra - que o prazo de 10 anos após a maioridade ou emancipação, constante do artigo 1817.º, n.º 1, do CC, se revelava suficiente para assegurar a não aplicação de qualquer prazo de caducidade para a instauração pelo filho duma ação de investigação de paternidade, durante a fase da vida deste em que ele poderá ainda não ter a maturidade, a experiência de vida e a autonomia suficientes para sobre esse assunto tomar uma decisão suficientemente consolidada.
Na se desconhece que na jurisprudência do TC está, pois, atualmente assente uma corrente de entendimento de que os prazos para investigar a maternidade e a paternidade e para impugnar a paternidade presumida estabelecidos pela Lei n.º 14/2009 não são inconstitucionais.

No entanto alguma doutrina e vários arestos continuam a entender que o nº 1 do artº 1817º do CC padece de inconstitucionalidade. Entre outros, o acórdão do STJ de 14.01.2014, num caso em que o A. tinha 68 anos à data da interposição da acção, em que foi considerado que o prazo de 10 anos cerceava de forma injustificada um direito individual, qual seja o direito à história pessoal, nunca devendo a investigação de paternidade ser considerada tardia, retirando-se o pouco fundamento do prazo de 10 anos até do facto do mesmo ser inferior ao prazo geral da prescrição de 20 anos, previsto no art. 309.º do CC. Mais se referiu que, por outro lado, a estipulação de um prazo de caducidade mais alargado, constante do artigo 1817.º, n.º 1, na redacção da Lei n.º 14/2009, não deixa de constituir uma restrição do direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade, enquanto direito fundamental, sendo que as restrições a esses direitos, por imperativo do art. 18.º, n.º 2, da CRP, só são admissíveis quando necessárias para salvaguardar direitos e interesses constitucionalmente protegidos, têm de revestir carácter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo, nem diminuir a extensão e o conteúdo essencial dos preceitos constitucionais, como acontece na norma em causa.
Também no acórdão de 16.09.2014 - proc. nº 973/11- o STJ considerou ser inconstitucional o prazo de três anos previsto na segunda parte da alínea c) do nº 1 do artº 1842º do CC, em sede de impugnação de paternidade, para o filho impugnar a paternidade depois de ter tido conhecimento de que não era filho do marido da mãe, entendendo que na ação de impugnação de paternidade proposta pelo filho do marido da mãe o autor defende um direito próprio à verdade biológica, com vista a ilidir a presunção de paternidade atentatória da mesma.

Muito recentemente, no acórdão do STJ de 31.01.2017 (maioria com voto de vencido), proferido no proc. 440/12 igualmente se entendeu ser inconstitucional o disposto no nº 1 do artº 1817º do CC “na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade do pretenso filho propor ação de investigação de paternidade, com fundamento no facto biológico da filiação, uma vez que o direito a conhecer a ascendência biológica constitui dimensão essencial do direito à identidade pessoal previsto no artº 26º, nº 1 da CRP e o direito a estabelecer os concomitantes vínculos jurídicos traduz uma dimensão do direito a constituir família previsto no artº 36º, nº 1 da CRP, consubstanciando tal prazo limitador uma restrição excessiva ou desproporcionada aos assinalados direito fundamental à identidade pessoal e direito de constituir família, bem como ao próprio direito geral de personalidade dos investigantes (cfr. artº 70º do CC)” e, consequentemente se decidiu pela revogação do acórdão recorrido no segmento em que, quanto ao fundamento da filiação biológica, julgou procedente a exceção da caducidade da ação e se ordenou que os autos baixassem ao Tribunal da Relação para que fosse apreciado o fundamento da filiação biológica, no contexto da invocada violação da inversão do ónus da prova determinada por despacho de fls. 225/229. No caso dos autos apreciados pelo STJ a A. tinha 63 anos à data da instauração da ação (no presente caso tinha 68).

Igualmente no sentido da inconstitucionalidade do prazo constante do artº 1817º nº 1 do CC, o acórdão deste Tribunal da Relação 06.11.2014, do qual é relator o sr. Desembargador Dr. Jorge Teixeira, no qual a relatora interveio como adjunta e Ac. deste Tribunal da Relação de 02.02.2017, proferido no processo 1660/166T8VCT.G1, do qual também fomos relatora (tirado por unanimidade).
Não tendo o legislador limitado temporalmente a impugnação da maternidade (artº 1807º do CC) e a impugnação de perfilhação (artº 1859º nº 2 do CC), não se entende a limitação do direito à investigação da maternidade/paternidade e à impugnação da paternidade presumida.
Como salienta o citado acórdão do STJ de 16.09.2014, o prazo para interpor a ação é inferior ao prazo geral de 20 anos, previsto no artº 309º do CC, sendo mais fácil reclamar um direito patrimonial que um direito de personalidade.
Demonstrativo do reconhecimento cada vez maior do direito ao conhecimento das origens na construção e desenvolvimento da personalidade humana, proporcionando ao indivíduo o acesso a relevantes factores no complexo processo de identificação e afirmação individual, é a possibilidade consagrada no actual Regime Jurídico do Processo de Adopção que vem permitir ao adotado o direito de aceder ao conhecimento das suas origens, nos termos e com os limites definidos no diploma que regula o processo de adoção (artº 6º do RJPA, aprovado pela Lei 143/2015, de 8 de Setembro).
Não obstante os doutos argumentos expandidos na sentença recorrida que refere de modo pormenorizado a controvérsia presente, com recurso a jurisprudência pertinente, e nos acórdãos que ao longo dos anos, após a introdução da actual redacção do artº 1817º, nº 1, têm vindo a defender a conformidade com a constituição da norma do nº 1 do artº 1817º do CC, afigura-se-nos que tendo presente os meios científicos hoje ao nosso alcance que permitem o estabelecimento da paternidade/maternidade com um elevadíssimo grau de certeza (de 99,99%), e pelas demais razões supra expostas, o prazo de 10 anos previsto no nº 1 do artº 1817º do CC é inconstitucional por constituir uma restrição injustificada do direito ao conhecimento das origens genéticas (artºs 18.º, n.ºs 2 e 3, 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, da CRP).

Consequentemente, deve ser revogada a decisão.

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar procedente o recurso e consequentemente revogam a decisão recorrida, julgam improcedente a excepção de caducidade e declaram que a Autora L. N. é filha de J. S., filho de D. S., nascido em 18.01.1918 e falecido em 07.01.1963.
Transitada em julgado, ordena-se o averbamento do ora declarado no assento de nascimento da A, assim como da avoenga paterna.
Custas pela apelada.

Guimarães, 16 de Novembro de 2017

Relatora:
(Helena Gomes de Melo)

1º Adjunto:
(João Peres Coelho)

2º Adjunto:
(Pedro Damião e Cunha)

(Declaração de Voto de vencido do Juiz Desembargador Adjunto, Pedro Damião e Cunha):
Quanto à questão da “inconstitucionalidade do prazo de dez anos” (para utilizar a frase com que se inicia a fundamentação desta questão no presente Acórdão).
Quanto a esta questão, o problema que se colocava era a de saber se, contrariamente ao decidido pelo Tribunal Recorrido, a imposição de prazos de caducidade nas acções de investigação da paternidade é inconstitucional, como pretende a Recorrente.
Trata-se de questão, como, aliás, bem refere a fundamentação do presente Acórdão, que tem os seus contornos perfeitamente definidos, e consubstancia-se em saber se o nº 1 do artigo 1817º do CC (por remissão do art. 1873º do CC), na redacção conferida pela Lei n.º 14/2009, ao estabelecer que a acção de investigação de paternidade deve ser intentada durante a menoridade do investigante, ou nos 10 anos posteriores à sua maioridade ou emancipação, padece de inconstitucionalidade.
A inconstitucionalidade do anterior prazo de dois anos a contar da maioridade ou emancipação previsto no n.º 1 do artigo 1817.º CC foi declarada, com força obrigatória e geral pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006 (1).
A consequência da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória e geral consta do artigo 282.º, n.º 1, CRP: o efeito da declaração de inconstitucionalidade de uma norma com força obrigatória e geral é a repristinação da norma que ela tenha revogado.
No entanto, face às questões de ordem constitucional que suscitava a repristinação da norma revogada, como refere o acórdão do STJ, de 15.11.2011 (2), a jurisprudência dos tribunais superiores, designadamente o STJ, inclinou-se no sentido de que a acção de investigação de paternidade é imprescritível, não sendo aplicável o prazo de prescrição ordinária (3).
Entretanto, foi publicada a Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, que estabeleceu, como decorre da fundamentação do presente Acórdão, novos prazos para a investigação de paternidade: dez anos posteriores à maioridade ou emancipação (n.º 1), três anos a contar de diversas situações enunciadas nos n.ºs 2 e 3.
O Tribunal Constitucional esteve dividido nesta matéria até à prolação do acórdão do Plenário n.º 401/2011 (4), nos termos do artigo 79.º D da Lei 28/82, que, por uma maioria de 7 contra 6, decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, CC, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante.
Trata-se de um acórdão do Plenário, com intervenção de todos os juízes, portanto, em que a questão foi amplamente debatida, tendo sido ponderados os diversos argumentos, com a profundidade habitual deste Tribunal.
Nessa medida, pelo seu especial valor, esta decisão deve ser acatada até que seja apresentada razão que justifique a sua revisão.
Aliás, posteriores decisões deste Tribunal acerca desta questão foram decididas em conformidade com este acórdão, como sucedeu, por exemplo, nos acórdãos 446/2011 (relator: Carlos Pamplona de Oliveira), de 476/2011 (relator: Ana Maria Guerra Martins), e 545/2011 (relator: Maria Lúcia Amaral), acórdãos que contaram com o voto de Conselheiros outrora vencidos.
Por todo o exposto, tem que se concluir que não padece de inconstitucionalidade a norma do artigo 1817º, nº 1 do CC, na redacção da Lei 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que estabelece um prazo de dez anos para a propositura da acção de investigação de paternidade, contado da maioridade ou da emancipação do investigante, pelos fundamentos constantes do acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 401/2011 (Cura Mariano), para que se remete (5).
Nesta conformidade, sem necessidade de mais alongadas considerações (até porque o voto de vencido deve fazer apenas sucinta menção das razões da discordância -art. 663º, nº1 do CPC, parte final), porque concordo com o que vem sendo decidido pela máxima Instância Judicial nesta matéria constitucional, consideraria ser de julgar constitucional o preceito legal em aplicação e, em consequência, manteria a decisão proferida quanto a esta questão.
(Pedro Alexandre Damião e Cunha)

1. Disponível in Dgsi.pt (relator: Paulo Mota Pinto).
2. (relator: Martins de Sousa), in dgsi.pt.
3. V, por exemplo, os acs. do Stj de.20.09.2012, (relator: Serra Batista) e de 24.05.2012 (relator: Granja da Fonseca), in dgsi.pt;
4. (relator: Cura Mariano), in dgsi.pt
5. Seguiu-se, também, de perto, o ac. da RP 15.9.2015 (relator: Márcia Portela), in dgsi.pt