Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5578/16.4T8VNF.G1
Relator: ANTÓNIO BARROCA PENHA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ANÁLISE CRÍTICA DA PROVA
ÓNUS DA PROVA DO SINISTRO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Quando um Tribunal de 2ª instância, ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que também está sujeito, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, afirmando os reconhecidos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição.

II- Assim, chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo.
Cabe ao segurado o ónus de provar (art. 342º, n.º 1, do C. Civil) que ocorreu o sinistro coberto pelo respetivo contrato de seguro, sendo que, em caso de dúvida da ocorrência do mesmo, a mesma deverá ser resolvida contra o segurado, porque não cumpriu o mencionado ónus (art. 414º, do C. P. Civil).
Decisão Texto Integral:
Recorrente: Seguradoras X, S.A.
Recorrido: Rui

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Rui interpôs a presente ação declarativa com processo comum contra Companhia de Seguros Y, S.A. (agora Seguradoras X, S.A.).
Alegou, em síntese, que celebrou com a R. um contrato de seguro cujo objeto incluía a cobertura, entre outros, dos danos próprios verificados em viatura automóvel sua propriedade decorrentes de furto.

Mais refere que a referida viatura veio a ser furtada.

Pede, assim, a condenação da R. a pagar-lhe a quantia contratualmente prevista por força da ocorrência desse evento, no montante de € 10.000,00, acrescido de juros contados desde a data da citação.

Deduziu a R. contestação, confirmando a celebração do contrato de seguro em causa; impugnando, no entanto, os restantes factos alegados, designadamente, a ocorrência do furto.
Alegou, ainda, a título subsidiário, que o valor seguro se encontra sujeito a um coeficiente de desvalorização, nos moldes contratualmente previstos.

Terminou, pugnando pela improcedência da ação.

Proferiu-se despacho saneador (cfr. fls. 65), tendo sido dispensada a indicação do objeto do litígio e a seleção dos temas de prova.
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento.

Na sequência, por sentença de 11.04.2017, veio a julgar-se parcialmente procedente a ação e, em consequência, foi a ré condenada a pagar ao autor a quantia de € 9.955,00, acrescida de juros, à taxa legal civil, contados desde a citação até integral pagamento.

Inconformada com o assim decidido, veio a ré Seguradores Unidas, S.A. interpor recurso de apelação, nele formulando as seguintes

CONCLUSÕES

I. Vem o presente recurso interposto da douta sentença dos autos em referência e é o mesmo apresentado na firme convicção de que a prova produzida, a matéria de facto e a matéria de Direito sujeitas à apreciação do douto Tribunal a quo mereciam outra apreciação.
II. O presente recurso tem por objeto a totalidade da sentença que condenou a Recorrente no pagamento de uma indemnização ao Recorrido.
III. A Recorrente impugna a decisão da matéria de facto, com recurso a prova gravada (testemunhal), pelo que especificou, nas alegações, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, a resposta que, no seu entender, lhes deveria ser dada e as concretas passagens dos depoimentos gravados em que se funda o seu entendimento.
IV. A Recorrente considera incorretamente julgados os factos provados na sentença sob os nºs: 9, 10 e 11 (que deveriam ter sido julgados não provados), 12 e 13 (que mereciam redação distinta, mais restritiva) e, ainda, o facto não provado sob o n.º 1 (que deveria ter sido julgado provado).
V. Os meios de prova que que impõem decisão diversa da recorrida são: o Ofício da F. – Feira de Carros, Lda. de 16.05.2016, com data de entrada na Unidade Central de Vila Nova de Famalicão em 20.12.2016, com o n.º ..., e documentos anexos; o depoimento de Pedro, registado no sistema de gravação do Tribunal, no dia 08/03/2017, com início de gravação às 14:33:52 e fim de gravação às 14:43:04, no ficheiro áudio 20170308143351_5298914_2870593.wma; o depoimento de Filipe, registado no sistema de gravação do Tribunal, no dia 08/03/2017, com início de gravação às 14:43:05 e fim de gravação às 15:10:57, no ficheiro áudio 20170308144305_5298914_2870593.wma; o depoimento de Maria, registado no sistema de gravação do Tribunal, no dia 08/03/2017, com início de gravação às 15:10:58 e fim de gravação às 15:22:10, no ficheiro áudio 20170308151058_5298914_2870593.wma; o depoimento de Manuel, registado no sistema de gravação do Tribunal, no dia 08/03/2017, com início de gravação às 15:22:11 e fim de gravação às 15:35:52, no ficheiro áudio 20170308152210_ 5298914_2870593.wma; o depoimento de Sérgio, registado no sistema de gravação do Tribunal, no dia 08/03/2017, com início de gravação às 15:35:54 e fim de gravação às 15:47:45, no ficheiro áudio 20170308153553_ 5298914_2870593.wma; o depoimento de José, registado no sistema de gravação do Tribunal, no dia 08/03/2017, com início de gravação às 15:47:46 e fim de gravação às 15:59:56, no ficheiro áudio 20170308154745_ 5298914_2870593.wma; o depoimento de Ernesto, registado no sistema de gravação do Tribunal, no dia 08/03/2017, com início de gravação às 15:59:57 e fim de gravação às 15:59:59, no ficheiro áudio 20170308160415_ 5298914_2870593.wma.
VI. Dos minutos 00:00:37 a 00:06:26 do depoimento (registado no ficheiro áudio 20170308143351_5298914_2870593.wma da testemunha) da testemunha Pedro e dos minutos 00:04:39 a 00:06:14 e 00:10:19 a 00:10:31 do depoimento (gravado no ficheiro áudio 20170308151058_ 5298914_2870593.wma) da mulher do Recorrido, a testemunha Maria, resulta que a versão destas testemunhas não pode ser tida por credível e isenta: não é plausível que conhecido/vizinho do Recorrido, quando fechava o seu café e conversava com outras pessoas, tivesse reparado especificamente no veículo do Recorrido estacionado na rua e, ainda, que a mulher do Recorrido tenha ido à janela precisamente no momento em que lá estava a outra testemunha, tendo avistado o veículo e o proprietário do café.
VII. Nos minutos 00:02:56 a 00:04:35 e 00:09:34 a 00:10:18 do depoimento (gravado no ficheiro áudio 20170308151058_5298914_2870593.wma) da mulher do Recorrido, a testemunha Maria, resulta outra circunstância que abala a credibilidade da sua versão e a prova do furto: o veículo estava parqueado na rua, apesar de estar uso da testemunha e de haver um lugar de estacionamento livre na sua garagem, facto para o qual não existe explicação.
VIII. A mesma conclusão de retira dos minutos 00:07:23 a 00:08:48 do depoimento da testemunha Maria, no qual esta refere que o recebeu uma multa por o veículo passar em pórticos de portagem na auto-estrada, supostamente em momento posterior ao furto, mas nunca levou tal facto e o documento comprovativo ao conhecimento das autoridades policiais, da seguradora ou deste processo.
IX. Contrariamente ao que refere o Tribunal a quo, a prática demonstra que a apresentação dissimulada de queixa em casos de furtos de veículos objeto de contratos de seguro não é contrária às regras da normalidade do acontecer, antes é a regra nos casos de furtos simulados, precisamente porque as coberturas “furto ou roubo” dos contratos de seguro, para haver indemnização, exigem a participação às autoridades policiais.
X. A prova demonstra, ainda, um conjunto de circunstâncias instrumentais trazidas aos autos pela Recorrente, que também colocam em crise a prova do furto:

· a compra do veículo em conjunto pelo Recorrido e por Filipe, sendo que o primeiro investiu 9.000,00 €, o segundo apenas investiu 300,00 € e a intenção era repartir o lucro de uma futura venda pelos dois, de forma equitativa, não se compreendendo a desproporção entre o investimento e o lucro de cada um (vide, minutos 00:01:47 a 00:06:57 e 00:19:46 a 00:26:38 do depoimento da testemunha Filipe, registado no ficheiro áudio 20170308144305_5298914_2870593.wma);
· as incongruências na razão de ser do registo da propriedade do veículo a favor do Recorrido passados quatro anos da sua compra: desistência da venda, exigência da Leilão C. ou o veículo destinava-se a ser usado a título pessoal pelo Recorrido ou sua mulher (vide, os minutos mencionados do depoimento de Filipe; os minutos 00:07:11 a 00:07:22 do depoimento da testemunha Sérgio, registado no ficheiro áudio 20170308153553 _5298914_2870593.wma; e os minutos 00:11:49 a 00:13:07 do depoimento da testemunha Manuel, gravado no ficheiro áudio 20170308152210_5298914_2870593.wma);
· o facto de o veículo ter sido adquirido em 2011 com o intuito de ser revendido; de ter estado quatro anos segurado em nome de Filipe sem qualquer cobertura de danos próprios; de, volvidos quatro anos sem que o conseguissem vender, a sua propriedade ter sido registada a favor do Recorrido e de nessa altura ter sido celebrado o seguro em seu nome com cobertura de “furto ou roubo” (mas mais nenhuma de danos próprios, o que não é habitual), vindo o veículo a ser alegadamente furtado apenas dois meses depois (vide, o Ofício da F. – Feira de Carros, Lda. de 16.05.2016, com data de entrada na Unidade Central de Vila Nova de Famalicão em 20.12.2016, com o n.º ...; o Doc.1 junto com a Contestação; o Doc. 1 junto com a P.I.; o depoimento do averiguador Sérgio, registado no ficheiro áudio 20170308153553_5298914_2870593.wma, nos minutos 00:05:30 a 00:09:14; e o depoimento do averiguador registado no ficheiro áudio 20170308154745_ 5298914_2870593.wma, nos minutos 00:03:22 a 00:06:07);
· a sobrevalorização do veículo em cerca de 4.000,00 € (vide, o depoimento do averiguador José, registado no ficheiro áudio 20170308154745_ 5298914_2870593.wma, nos minutos 00:07:27 a 00:09:07);
· a circunstância de, contrariamente ao entendimento do Tribunal a no facto não provado n.º 1, terem sido entregues duas chaves do veículo, pela Leilão C., no momento da venda, mas na averiguação da Recorrente ter sido comunicado que o veículo apenas possuía uma chave (vide, o Ofício da F. – Feira de Carros, Lda. de 16.05.2016, com data de entrada na Unidade Central de Vila Nova de Famalicão em 20.12.2016, com o n.º ...; o documento de fls. 67, assinado pela testemunha Filipe; o documento de fls. 68; o depoimento da testemunha Sérgio, registado no ficheiro áudio 20170308153553_ 5298914_2870593.wma, nos minutos 00:04:52 a 00:05:30; o depoimento da testemunha Manuel, registado no ficheiro áudio 20170308152210_5298914_2870593.wma, nos minutos 00:04:35 a 00:09:15);
· a relevância da combinação de todos estes elementos para se entender provado ou não o sinistro (veja-se o que referiu, no seu depoimento gravado no ficheiro áudio 20170308160415_5298914_2870593.wma, o supervisor de averiguações da aqui Recorrente, a testemunha Ernesto, especialmente no minutos 00:02:01 a 00:10:43).
XI. A ocorrência de todo o conjunto de circunstâncias acima identificadas não pode ser considerado como uma mera coincidência, sem consequências para a credibilidade da prova e da versão dos factos trazidos pelo Recorrido aos autos.
XII. Cada um daqueles factos, quando analisados isoladamente, poderia ser desvalorizado mas quando se associam um tamanho conjunto de circunstâncias desse tipo as conclusões tem que ser distintas.
XIII. Ao Tribunal pede-se que analise a prova na sua totalidade, de forma integrada e crítica, confrontando-a, alias, com as regras da experiência comum e não se bastando com a existência de determinados elementos de prova que se limitam a afirmar a ocorrência de um sinistro.
XIV. Em face de todos os elementos de prova acima identificados, conclui-se que o Tribunal a quo, finda a instrução da causa, à luz das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, deveria ter julgado não provados os seguintes factos:

“9 – Em 21-9-2015, ao final da tarde, o A. estacionou o veículo “EL” na Rua da …e, VN de Famalicão, onde reside, em local destinado ao estacionamento de veículos automóveis.
10 – A cerca de 150 metros da sua casa.
11 No dia seguinte, por volta das 8:00 horas, Maria, cônjuge do A., verificou que o veículo não se encontrava no sitio onde havia sido estacionado no dia anterior, tendo o mesmo sido furtado por pessoa cuja identidade não se apurou, não mais tendo aparecido”.
XV. Consequentemente, não se tendo provado o furto, os factos 12 e 13 mereceriam resposta restritiva, julgando-se provado apenas que:

“12 – O A., no dia 22-9-2015, pelas 9:25 horas, elaborou uma denúncia, contra desconhecidos, no Posto Territorial de Riba de Ave da Guarda Nacional Republicana, na qual alegava que o veículo EL tinha sido furtado.
13 – No dia 22-9-2015, o A. entregou ao seu mediador de seguros uma declaração dirigida à R. na qual alegava que o veículo EL tinha sido furtado”.
XVI. Por outro lado, o Tribunal a quo deveria ter julgado provado o seguinte facto:

“1 – Aquando da venda do veículo, a “Leilão C.” entregou ao A. duas chaves do veículo”.
XVII. A sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue a matéria de facto nos termos descritos nas conclusões que antecedem.

Matéria de direito

XVIII. Na procedência da impugnação da matéria de facto, o Recorrido falhou a prova, que lhe competia, dos pressupostos que, nos termos do contrato, acionariam responsabilidade contratual da Recorrente, pelo que, é inequívoco que esta nada tem pagar ao Recorrido.
XIX. Assim sendo, à luz do disposto nos artigos 405.º, n.º 1 do Código Civil e 1.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro e do contrato celebrado entre as partes, a douta sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue ação integralmente improcedente, absolvendo a Recorrente do pedido.
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O autor apresentou contra-alegações nas quais formulou as seguintes

CONCLUSÕES

a) A decisão recorrida não merece qualquer reparo, na medida em que a mesma resultou de uma exaustiva produção de prova, incluindo documental e testemunhal, tendo o Mmo. Juiz a quo feito uma valoração criteriosa e prudente das provas produzidas.
b) As conclusões em que a Recorrente alicerça as suas alegações de recurso não têm qualquer cabimento, quer de facto, quer de direito, e não poderão necessariamente conduzir à alteração da matéria de facto no sentido pretendido.
c) Na verdade, não se verifica, no caso concreto, qualquer circunstância que justifique a alteração da matéria dada como provada e não provada, desde logo, porque a convicção do tribunal a quo não se fundamentou, apenas e tão só, nas expressões e trechos que a Recorrente alude, mas antes em toda a prova produzida, vista como um todo e que lhe permitiu constatar, in loco, o conhecimento que as testemunhas demonstraram ter sobre os factos.
d) O ónus da prova impunha à Recorrente que demonstrasse, de forma clara e indubitável, os factos alegados, o que a Recorrente não logrou fazer.
e) Isto posto, é, pois, evidente que a Recorrente não logrou provar os factos alegados;
f) Pelo que, não podia o tribunal a quo senão decidir pela improcedência dos pedidos formulados pelos Recorrentes.
g) Ademais, a Recorrente cinge-se a discordar da decisão ora recorrida, ignorando aqueles que constituem princípios fundamentais, esteios e suportes do ordenamento jurídico: são os denominados princípios da imediação, oralidade, concentração e livre apreciação da prova – artigos 607.º, n.º 4 e 5 do C.P.C. e 396.º, 391º e 389º do C.C.
h) A sentença recorrida não merece reparo, resultando da livre apreciação e valoração da prova, segundo critérios práticos e lógico-intuitivos colhidos da prova produzida.
i) Não resulta dos autos qualquer elemento idóneo que possa abalar a convicção do julgador, convicção essa que é, também, produto da experiência, prudência e saber daquele, sendo certo que é no contato pessoal e direto com as provas, designadamente, com a prova testemunhal, que aquelas qualidades mais são necessárias.
j) Pelo exposto, não merece a decisão recorrida qualquer censura,
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2 e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil).

No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objeto do presente recurso.

Neste âmbito, as questões decidendas traduzem-se nas seguintes:

- Saber se cumpre proceder à alteração da factualidade dada como provada e não provada pelo tribunal a quo nos moldes preconizados pela recorrente.
- Na sequência, saber se deverá ser realizada outra nova interpretação e aplicação do Direito à nova factualidade apurada, devendo ser alterada a decisão de mérito proferida.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A) Factos Provados

O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1. Encontra-se registada a favor do A., desde 1-7-2015, a propriedade do veículo “EL”.
2. O A. celebrou com a R., em 17-7-2015, um contrato de seguro, titulado pela apólice nº ..., pelo qual esta se obrigou, além do mais, a pagar àquele indemnização em caso de ocorrência de furto ou roubo do veículo de marca “Opel”, modelo “Astra H Caravan Diesel”, com matricula “EL”.
3. Conforme acordado entre A. e R., consta das condições particulares do referido contrato de seguro que o capital seguro, em caso de furto ou roubo, ascendia a € 10.000,00.
4. Consta das condições particulares da apólice que “O valor do veículo indicado nas condições particulares corresponde ao do início do período de vigência do contrato e sofrerá, até ao termo do mesmo período, a desvalorização mensal prevista na tabela”, tabela essa constante dessas mesmas condições particulares a fls. 7-verso.
5. Consta da cláusula 42ª das Condições Gerais do contrato que:
“1 – (…)
2 - (…) O valor seguro para as coberturas previstas nas alíneas b), c), d) [esta, referente a “furto ou roubo”], g) e h) do n.º 1 da cláusula 39.ª corresponde ao valor actual do veículo no momento do início da produção de efeitos do contrato, ou das suas alterações, podendo ser determinado de acordo com uma das seguintes formas:

a) Por indicação do respectivo valor em novo, tal como definido na cláusula 38ª, deduzido, se o veiculo for usado, do coeficiente de desvalorização constante da tabela de desvalorização aplicável ao veículo e prevista nas Condições Particulares;
b) Por estipulação entre as partes de outro critério de determinação do valor seguro
3 - Salvo estipulação em contrário prevista nas Condições Particulares, o valor dos extras seguros indicado pelo Segurado no momento da celebração do contrato, deverá corresponder ao respectivo valor em novo”.
6. Consta da cláusula 43ª, n.º 1 das Condições Gerais do contrato que “Após determinação do valor seguro nos termos da cláusula anterior, (…), o valor do veículo seguro para efeitos de determinação do montante a indemnizar em caso de perda total, será, nos meses e anuidades seguintes aos da celebração do contrato, automática e sucessivamente alterado de acordo com a tabela de desvalorização aplicável”.
7. O contrato de seguro começou a produzir efeitos em 17-07-2015.
8. O veículo teve a primeira matrícula em Outubro de 2007.
9. Em 21-9-2015, ao final da tarde, o A. estacionou o veículo “EL” na Rua …, VN de Famalicão, onde reside, em local destinado ao estacionamento de veículos automóveis.
10. A cerca de 150 metros da sua casa.
11. No dia seguinte, por volta das 8:00 horas, Maria, cônjuge do A., verificou que o veículo não se encontrava no sitio onde havia sido estacionado no dia anterior, tendo o mesmo sido furtado por pessoa cuja identidade não se apurou, não mais tendo aparecido.
12. Nessa sequência, o A., no referido dia 22-9-2015, pelas 9:25 horas, denunciou tal facto, contra desconhecidos, no Posto Territorial de Riba de Ave da Guarda Nacional Republicana.
13. No dia 22-09-2015, o A. entregou ao seu mediador de seguros declaração dirigida à R. dando a conhecer tal facto.
14. O processo de inquérito relativo a tais factos, com o nº 348/15.0 GCVNF, que correu termos nos serviços do Ministério Público de VN de Famalicão, foi arquivado, em 27-10-2015, com a seguinte fundamentação: “os elementos disponíveis não permitem imputar a quem quer que seja a factualidade vinda de investigar”.
15. O A. comunicou à R., de imediato, a decisão de arquivamento proferida naquele inquérito.
16. Em 4-1-2016, a R. comunicou ao A. a recusa em indemnizá-lo pelo furto do referido veículo, alegando, para o efeito, que “o sinistro não ocorreu da forma que nos foi participada”.
17. Por carta datada de 12-1-2016, o A. solicitou esclarecimentos à R. quanto ao motivo de tal recusa, tendo esta mantido a sua posição.
18. O A. e Filipe adquiriram o veículo “EL” à “Leilão C.” em 22-7-2011.
19. O veículo destinava-se a ser vendido posteriormente.
20. Uma vez que o A. não logrou vender o referido veículo, registou a seu favor a sua propriedade em 1-7-2015.
21. O A. comunicou à R. que tinha na sua posse uma chave do veículo.

C) Factos Não Provados

1) Aquando da venda do veículo, a “Leilão C.” entregou ao A. duas chaves do veículo.

A) Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

A primeira questão que importa dirimir refere-se à impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da decisão recorrida.
Ora, a possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está, como é consabido, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjetiva impõe ao recorrente.
Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com, toda a precisão, dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, os meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objeto da impugnação.

Neste sentido, preceitua, sob a epígrafe «Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto», dispõe o n.º 1 do art. 640º do C. P. Civil, que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Por seu turno, ainda, em conformidade com o n.º 2 do mesmo normativo, sempre que “ (…) os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.” (sublinhado nosso).

Deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar ainda o seu recurso através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão diversa da que foi proferida sobre a matéria de facto.
Os aspetos fundamentais que o recorrente deve assegurar neste particular prendem-se com a definição clara do objeto da impugnação (clara enunciação dos pontos de facto em causa); com a seriedade da impugnação (meios de prova indicados ou meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido (indicação da decisão da matéria de facto diversa da decisão recorrida).

Porém, importa que não se sobrevalorizem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com a invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.

Assim, como salienta Abrantes Geraldes (1), o Supremo Tribunal de Justiça “vem batalhando precisamente no sentido de evitar os efeitos de um excessivo formalismo que ainda marca alguns acórdãos das Relações, promovendo que o esforço que é aplicável na justificação de soluções que exponenciam aspectos de natureza meramente formal sem suficiente tradução na letra da lei, nem no espírito do sistema, seja canalizado para a efectiva apreciação das impugnações de matéria de facto”. (2)

Por outro lado, na fase da admissão formal do recurso de apelação em que é impugnada a decisão da matéria de facto, importa que se estabeleça uma clara separação entre os requisitos formais e os ligados ao mérito ou demérito da pretensão que será avaliado em momento posterior.
Deste modo, havendo “sérios motivos para a rejeição do recurso sobre a matéria de facto (maxime quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto, quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos segmentos afectados, não colidindo com a admissibilidade do recurso quanto aos demais aspectos. (3)

Tendo, assim, presente este enquadramento legal, cumpre decidir.

No caso em apreço, a recorrente, cumprindo os apontados requisitos formais, considera incorretamente julgados os factos provados na decisão recorrida sob os nºs 9, 10 e 11 (que deveria ter sido julgados como não provados), 12 e 13 (que mereciam redação distinta, mais restritiva) e, ainda, o facto não provado sob o n.º 1) (que deveria ter sido julgado provado).
Neste âmbito, a recorrente defende, no essencial, que existe um conjunto de meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida, no sentido que pugna a final, mormente a prova documental resultante do ofício da “F.” de 16.05.2016 e documentos anexos juntos aos autos e os próprios depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, indicando as respetivas passagens dos seus depoimentos que considera relevantes em face da impugnação da decisão da matéria de facto que formula nos moldes acima referenciados.

Refere ainda um conjunto de circunstâncias instrumentais trazidas aos autos pela recorrente que também colocam em crise a prova do furto (cfr. ponto X. das conclusões das alegações de recurso).

Tendo presente, assim, a fundamentação convocada pelo tribunal recorrido e a impugnação deduzida pela recorrente, importa saber se, procedendo este tribunal superior à reanálise dos meios probatórios convocados, a sua própria e autónoma convicção é coincidente ou não com a convicção evidenciada, em sede de fundamentação, pelo tribunal recorrido e, por inerência, se se impõe uma decisão de facto diversa da proferida por este último, nos concretos pontos de facto postos em crise.
Com efeito, em sede de reapreciação da prova gravada no âmbito do recurso da decisão sobre a matéria de facto, haverá que ter em consideração, como sublinha Abrantes Geraldes (4), que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa sua reapreciação tem ele autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.

Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar de forma crítica as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, sujeito às mesmas regras de direito probatório a que se encontrava sujeito o tribunal recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos, incluindo, naturalmente, os que tenham servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

De facto, o acesso direto do Tribunal da Relação à gravação integral do julgamento antes efetuado, terá de permitir-lhe, na formação da sua própria e autónoma convicção, sustentada numa análise crítica da prova, para além da apreciação dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente, a ponderação e a reanálise de todos os meios probatórios produzidos, sujeitos às mesmas regras de direito probatório material a que se encontra sujeito o tribunal de 1ª instância, enquanto forma, por um lado, de atenuar a inevitável quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, e, por outro, ainda, de evitar julgamentos descontextualizados ou parciais, submetidos apenas à leitura dos meios probatórios convocados pelo recorrente.
Pretende-se, pois, uma visão global, integrada e contextualizada de todos os meios probatórios produzidos, como garantia de uma decisão de facto o mais próxima possível da realidade, sem que tal implique a procura de uma verdade ou de uma certeza naturalística ou absoluta, que é, por princípio, insuscetível de ser alcançada.
Por outro lado, ainda, no que se refere à reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos/declarações prestados pelas partes ou por testemunhas ou, ainda, a reapreciação da prova pericial, é de recordar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova (5), princípio que expressamente se consagra no art. 607º, n.º 5, do C. P. Civil. (6)
De facto, ao contrário do que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, sem pré-fixação legal do mérito de tal julgamento, mas sempre sendo de exigir que esse mérito decorra de uma apreciação crítica e integrada de todo o acervo probatório produzido, ou seja, de uma ponderação da prova produzida à luz das regras da experiência humana, da lógica e, se for esse o caso, das regras da ciência convocáveis ao caso, ponderação essa que deverá ficar plasmada na fundamentação do decidido (art. 607º, n.º 4, do C. P. Civil).
Como refere Miguel Teixeira de Sousa (7), a propósito do sistema de prova livre, o que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique “os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. A exigência de motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão.”
Nesta perspetiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência ou da experiência, à partida, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Todavia, face aos atuais poderes da Relação ao nível da reapreciação da decisão de facto, daí não decorre que não possa e não deva o tribunal ad quem analisar, também ele, criticamente, e sujeito às mesmas regras da experiência, da lógica e da ciência, a prova produzida, formando ele próprio, uma nova e autónoma convicção, caso em que, constatando, que ela não é coincidente com a convicção formada pelo Sr. Juiz de 1ª instância, deverá efetuar as correções na matéria de facto que aquela sua convicção lhe imponha.
Quando um Tribunal de 2ª instância, ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que também está sujeito, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, afirmando os reconhecidos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição.

Deste modo, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo. (8)

Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Feitas estas considerações prévias, cumpre-nos, pois, conhecer da factualidade impugnada pela recorrente.
O tribunal a quo considerou como provado a apontada factualidade ora impugnada [nºs 9 a 13], salientando para, o efeito, designadamente o seguinte:

(…) Quanto à ocorrência do furto em causa, bem como às circunstâncias que o rodearam, tudo melhor descrito nos factos provados nºs 9 a 11, atendeu o Tribunal ao declarado pela testemunha Pedro, proprietário de estabelecimento de cafetaria sito nas imediações da residência do A.. Esta testemunha deu conta que, pelas 3:00 horas da manhã do dia 22-9-2015, quando encerrou o seu estabelecimento, vislumbrou o veículo “EL” aparcado, na rua. Referiu ainda que, na manhã desse mesmo dia, quando regressou ao estabelecimento, a sua funcionária lhe deu conta que o veículo havia sido furtado, tendo o A. a questionado, nessa mesma manhã, sobre se teria alguma informação sobre o sucedido. Mais deu conta esta testemunha que, desde esse dia, não mais viu a viatura.
No mesmo sentido seguiu o depoimento de Maria, cônjuge do A.. Referiu que no mencionado dia 22-9-2015, pelas 3:00 horas da manhã, viu, desde a janela de sua casa, o mencionado veículo estacionado na rua, tendo igualmente constatado, nessa ocasião, que a testemunha Pedro se encontrava junto ao carro, em conversa com outra pessoa. Mais deu conta que quando se aprestava a utilizar o veículo, no dia seguinte, o mesmo já não se encontrava nesse local, nunca mais o tendo visto.
O depoimento das referidas testemunhas afigurou-se isento e credível, não advindo motivos para duvidar da sua sinceridade. Especificamente, no que se refere à testemunha Maria, o facto de ser cônjuge do A. impunha maiores cautelas na ponderação do seu depoimento, atento o interesse directo na prova dessa matéria. Porém, o seu depoimento revelou-se ponderado, sereno e pormenorizado, nada indiciando que estivesse a faltar à verdade.
Tendo isto em conta, entendemos que os elementos disponíveis nos autos permitem afirmar, com a certeza legalmente exigida, a versão dos factos adiantada na petição inicial: designadamente, que a viatura em causa desapareceu, tendo sido alvo de furto por pessoa(s) não concretamente identificada(s).
Neste âmbito, importa sublinhar que, conforme resulta do despacho de fls. 10, o processo de inquérito referente a tal factualidade veio a ser arquivado por não terem sido conhecidos os autores da conduta em causa.
Além disso, como vimos, nenhuma das testemunhas inquiridas presenciou directamente a prática de tal acto.
Porém, conforme acima se referiu, nada nos permite afirmar que as mencionadas testemunhas Pedro e Maria tenham faltado à verdade quando referiram que a viatura não se encontrava no local onde havia sido parqueada no dia anterior.
Por outro lado, a ocorrência do furto surge igualmente suportado na circunstância de o A. ter apresentado denúncia junto das autoridades policias relativamente a esse facto, tal como decorre do documento de fls. 8. Ora, segundo as regras da normalidade do acontecer, a apresentação simulada dessa queixa constituirá um facto anómalo. Em regra, quem denuncia a prática de crime não o faz simuladamente, pois ficará sujeito às sanções – inclusivamente penais – decorrentes da falsidade dessa denúncia.
No mais, importa ponderar a dificuldade da demonstração, em termos precisos e completos, do invocado furto, atenta a sua natureza dissimulada. Na verdade, o autor dessa conduta não a terá praticado à luz do dia, de forma pública e ostensiva, de forma a ser percepcionada pela generalidade das pessoas. Pelo contrário: tal acto terá sido praticado de forma encoberta e fugaz. Tal circunstância implicará uma atenuação do grau de exigência probatória. Note-se, como vimos, que nem a autoridade judiciária logrou descortinar o concretamente sucedido, dada a ausência de elementos probatórios.
Pelo exposto, face aos elementos constantes dos autos, entendemos que o A. logrou demonstrar, com a certeza legalmente exigida, a verificação daquele evento de subtracção do veículo, conforme imposto pelo art. 342º do CC. Perante isto, caberia à R., nos termos do art. 346º do CC, a contraprova desse facto, tornando-o duvidoso.
Porém, a R. não o logrou fazer: considerou-se, desde logo e conforme acima exposto, o carácter anómalo e extraordinário, face às regras da normalidade, da alegada simulação desse evento.
Além disso, as razões invocadas pelas testemunhas Sérgio, José e Ernesto não lograram abalar aquela convicção quanto à efectiva ocorrência do furto.”

Como é fácil de ver, a exposição dos motivos que levaram o tribunal a quo a decidir pela verificação do furto alegado pelo autor e, consequentemente, da factualidade contida nos nºs 9 a 13 dos factos provados revela-se completa, designadamente sopesando os meios de prova produzidos, dando especial relevo, mormente no que se refere à prova do furto do identificado veículo EL, aos depoimentos das testemunhas Pedro (proprietário do estabelecimento de café sito nas imediações da residência do autor) e Maria (cônjuge do autor), os quais, na convicção do tribunal a quo, se lhe afiguraram isentos e credíveis.
Todavia, este tribunal ad quem não partilha da mesma posição.
Entende antes que os mesmos depoimentos contêm incongruências insuperáveis que afetam a sua credibilidade e objetividade.
Vejamos.

O autor alega na sua petição inicial que, na noite anterior ao desaparecimento do veículo, o carro ficou estacionado a uma distância de cerca de 150 metros da sua casa.

A testemunha Maria (apesar daquela considerável distância da sua casa) afirmou que visualizou perfeitamente a mesma viatura, através de uma janela da casa de banho da sua casa, por volta das 3 horas da manha (do dia 22.09.2015).

Não se compreende, desde logo, segundo as regras da experiência comum, a sua preocupação em, por volta das 3 horas da manhã, espreitar de uma janela de casa de banho à noite para, de acordo com o que afirmou, “… ver se estão muitos carros, senão estão…”.

Do mesmo modo, a mesma testemunha veio afirmar que, à referida distância e naquela exata ocasião, logrou visualizar a testemunha Pedro, dono de um café situado na mesma Rua onde reside, a conversar perto da viatura com mais duas pessoas.

Também se nos afigura inverosímil que, tal como afirmou, a testemunha Maria tenha logo tido a preocupação, noutro dia de manhã, acabada de acordar, de abrir a mesma janela da casa de banho para ver se a dita viatura estava ou não estacionada no mesmo sítio.

Não se compreende, também, se o seu marido estava em casa, qual foi a sua preocupação em ver onde estava a carrinha (porque não se recordaria do sítio onde estava a carrinha na noite anterior, se tinha como ponto de referência o dito café?), pondo agora a hipótese de a mesma estar antes estacionada “… em frente do prédio”.

No que se refere ao depoimento da testemunha Pedro, o mesmo começou logo por afirmar que o carro do autor havia sido roubado à porta do seu café – “sei que o carro foi roubado lá, à porta do meu café”.

O mesmo afirma que viu o carro nessa noite (“vi mesmo o carro, lembro-me que fosse hoje …”), pois que fechou o café por volta das 3 horas da manhã e ficou a conversar com 2 clientes ao lado do carro.

No outro dia de manhã, a sua funcionária disse-lhe: “olha roubaram o carro da D. Maria”.

Depois, resulta do seu depoimento que não atribuiu qualquer importância ao sucedido “… eu também, depois, não me preocupei mais, não tinha nada a ver com isso”; o que, aliás, aconteceu também com o próprio autor. Perguntado se chegou a falar depois disso com o autor ou com a esposa, respondeu: “Com o Sr. Rui não, mas com a D. Maria não sei dizer a verdade, mas provavelmente falei; que ela vai lá ao café todos os dias…”.

Este depoimento afigura-se-nos claramente incoerente e afastado das mais elementares regras de experiência comum.
Como é bom de ver, tão ciente que estava de, na noite anterior, ter visto o carro do autor estacionado junto ao seu café, porque não confirmou tal facto ao autor ou mesmo até à D. Maria? Porque se desinteressou por completo do assunto, como se não tivesse visto o carro na noite anterior?

Por outro lado, também se nos afigura incompreensível e incongruente como é que, verbalizando a testemunha Maria que havia avistado o dono do café com mais dois senhores, nessa noite, junto ao carro, por que motivo o aqui autor, e mesmo até a sua esposa Maria, não se preocuparam minimamente em ir falar com o Sr. Pedro, para se inteirar sobre o sucedido nessa noite?
Note-se ainda que a testemunha Pedro – contrariamente ao que alegou o próprio autor – disse que a viatura estaria estacionada a cerca de 20 metros (e não 150 metros) da casa do autor.


Por último, sempre se dirá que, de acordo com as regras da experiência comum, também não é normal que um café, numa zona habitacional (conforme alega o próprio autor – art. 6º da p.i.), feche por volta das 3 horas da manhã e o dono do café se ponha ainda à conversa com 2 clientes à porta do mesmo café, sendo certo ainda que não estaríamos no fim de semana – o dia 22 de Setembro de 2015 tratou-se de uma terça-feira de dia de semana.
Estas manifestas incongruências e incoerências apresentadas pelos depoimentos das indicadas testemunhas Maria e Pedro, leva-nos assim a concluir por uma manifesta e fundada dúvida quanto à ocorrência do alegado furto do veículo do autor, nas circunstâncias fácticas por si enunciadas.

De igual modo, importará ainda retirar que existe, de facto, um conjunto de circunstâncias instrumentais apuradas nos autos que também colocam em crise a prova do furto.
Uma delas já enunciámos e que se prende com o completo desinteresse do autor em indagar junto do dono do café sobre os acontecimentos referentes à noite em que a viatura alegadamente foi furtada.
Outra delas, também tem a ver com uma situação que se nos afigurou totalmente inexplicável para o normal cidadão que se queixa do furto de um veículo.
Na verdade, a própria testemunha Maria (esposa do autor) afirmou, na parte final do seu depoimento, que, passados cerca de 3 meses após o alegado furto, lhe apareceu uma multa em casa da “Brisa” (ao que pensamos por falta de pagamento de alguma portagem), por uma infração cometida em data posterior ao alegado furto, e, não obstante, o autor pagou essa multa – quando lhe seria fácil demonstrar que o veículo já não estaria na sua posse, até porque já havia participado às autoridades policiais (GNR) o indicado furto do mesmo veículo.
E mais ainda, apesar de possuir essa informação com relevância para o inquérito criminal em curso, estranhamente o autor não cuidou sequer de disso dar conhecimento às próprias autoridades policiais, tal como resulta do depoimento da sua esposa Maria.
Ademais, tal como resulta do depoimento das testemunhas José e Ernesto, que, neste particular se nos afigurou coerente e objetivo, e igualmente também resulta de juízos de verosimilhança dos factos, é patente que o valor do veículo em causa à data da celebração do contrato de seguro automóvel entre o autor e a ré não possuía o valor de € 10.000,00 pelo qual foi segurado.
Pelo teor do documento de fls. 70, o veículo em causa foi comprado em nome de Carlos David Rodrigues Faria em 22.07.2011, pelo preço de € 7.560,98, mais IVA a 23%, num total de € 9.300,00.
Tal como resulta do depoimento da testemunha Filipe, esse mesmo veículo era para ser revendido e, decorridos cerca de 4 anos, os mesmos não lograram arranjar comprador para o mesmo, tendo aquela testemunha ainda referido que, em de 2015, a “Leilão C.” “… já tinha dado baixa das matrículas …

Assim, o seu valor comercial, como é evidente, em 2015, teria necessariamente que ser bem mais baixo do que aquele valor pelo qual foi segurado (€ 10,000,00), sendo certo que aquelas testemunhas José e Ernesto, que analisaram o valor de mercado do veículo, assumiram que o mesmo não teria um valor superior a € 7.000,00.

Não obstante, mesmo a entender-se que o valor do veículo seria, na ocasião, de cerca de € 10.000,00, sabendo que o carro era para ser vendido pelo autor (isso foi confirmado pela esposa do autor e pela testemunha Filipe), não resulta das regras de experiência comum que o comum vendedor de veículos automóveis se preocupe em fazer um seguro de valor equivalente (senão superior) ao preço de mercado do veículo e, sobretudo, com a cobertura facultativa de danos próprios, entre os quais “furto ou roubo” (sem qualquer franquia – cfr. doc. de fls. 6), bem sabendo que isso faria aumentar significativamente o valor do prémio de seguro a pagar.

Note-se ainda que, não basta ao autor participar às autoridades policiais a existência de um furto de um veículo a si pertencente, para daí se presumir necessariamente que o mencionado furto ocorreu.
Ao mesmo caberá ainda o ónus da prova da ocorrência desse mesmo furto (art. 342º, n.º 1, do C. Civil), tendo em vista acionar a apólice de seguro que cobre aquele sinistro.
Pelo que fica dito, este tribunal ad quem, fazendo uma reapreciação da prova produzida, e no âmbito da sua própria e autónoma convicção, não logrou ficar convencido que ocorreu o furto em causa e, na sequência, impõe-se alterar a decisão da matéria de facto constante da decisão recorrida no que se refere a ocorrência desse mesmo furto, cujo ónus de prova cabia ao autor.

Por último, no que se refere à entrega ou não entrega de uma 2ª chave do veículo, no momento em que o mesmo foi levantado da “Leilão C.”, consta do documento de fls. 67 a 69, o que também foi confirmado pela testemunha Manuel (coordenador comercial da “Leilão C.”) que o veículo possuía uma segunda chave e a mesma terá sido entregue, de acordo com o que consta do teor dos citados documentos.
Não obstante, a testemunha Filipe, que levantou o carro da “Leilão C.” negou perentoriamente que lhe havia sido entregue essa 2ª chave. O certo, porém, é que também não a reclamou, bem sabendo que a mesma lhe iria certamente ser exigida pelo futuro comprador do veículo; só o tendo feito inexplicavelmente em Novembro de 2015 (cfr. doc. de fls. 66 e depoimento das testemunhas Filipe e Manuel).
De todo o modo, a própria testemunha Manuel verbalizou que, por vezes, poderia acontecer que, não obstante o que consta da documentação dos acessórios entregues (tais como documentos do veículo, livro de revisões, chaves, etc.), ocorrer a falta de algum deles.
Sendo assim, neste particular, concordamos com a fundamentação constante da decisão recorrida, que concluiu pela não verificação de tal factualidade, designadamente no que se refere à circunstância de não ter sido inquirida a pessoa que terá entregado ao Sr. Filipe ou ao A. os referidos acessórios da viatura, o que, em nosso entendimento, se mostrava crucial para o esclarecimento dessa mesma factualidade.
Não sufragamos, porém, é a conclusão do tribunal a quo, quando refere que: “Assim, o facto de o mesmo ser possuidor de apenas uma chave não abala a convicção de que o veículo foi furtado”.
Repare-se que o facto de não se provar que a “Leilão C.” entregou ao autor uma 2ª chave do veículo, não quer dizer necessariamente que se prove o contrário, ou seja, que a não entregou.

Por conseguinte, reponderando todos os elementos probatórios acima mencionados, e concluindo nos termos sobreditos este tribunal ad quem, de acordo com sua própria e autónoma convicção, por uma séria e fundada dúvida sobre a verificação efetiva do alegado furto do veículo do autor, que assim consideramos que não se provou nestes autos, é manifesto que a decisão que incidiu sobre a matéria de facto incluída nos apontados nºs 9 a 13 dos factos dados como provados não é de manter, impondo-se, desde logo, que se responda negativamente aos factos provados sob os nºs 9, 10 e 11.

Concomitantemente, a redação factual emergente dos nºs 12 e 13 dos factos provados deverá ser mais restrita, em conformidade com o pugnado pela recorrente.

Por último, a decisão que incidiu sobre a factualidade constante do ponto 1) dos factos não provados é de manter.

Termos em que, se julga parcialmente procedente, neste segmento, a pretensão recursiva da ré e, em consequência, fazendo uso do disposto no art. 662º, n.º 1, do C. P. Civil, decide-se alterar a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, nos termos sobreditos, passando os factos provados e não provados a ser os seguintes:

A) Factos Provados

1. Encontra-se registada a favor do A., desde 1-7-2015, a propriedade do veículo “EL”.
2. O A. celebrou com a R., em 17-7-2015, um contrato de seguro, titulado pela apólice nº ..., pelo qual esta se obrigou, além do mais, a pagar àquele indemnização em caso de ocorrência de furto ou roubo do veículo de marca “Opel”, modelo “Astra H Caravan Diesel”, com matricula “EL”.
3. Conforme acordado entre A. e R., consta das condições particulares do referido contrato de seguro que o capital seguro, em caso de furto ou roubo, ascendia a € 10.000,00.
4. Consta das condições particulares da apólice que “O valor do veículo indicado nas condições particulares corresponde ao do início do período de vigência do contrato e sofrerá, até ao termo do mesmo período, a desvalorização mensal prevista na tabela”, tabela essa constante dessas mesmas condições particulares a fls. 7-verso.
5. Consta da cláusula 42ª das Condições Gerais do contrato que:
“1 – (…)
2 - (…) O valor seguro para as coberturas previstas nas alíneas b), c), d) [esta, referente a “furto ou roubo”], g) e h) do n.º 1 da cláusula 39.ª corresponde ao valor actual do veículo no momento do início da produção de efeitos do contrato, ou das suas alterações, podendo ser determinado de acordo com uma das seguintes formas:

a) Por indicação do respectivo valor em novo, tal como definido na cláusula 38ª, deduzido, se o veiculo for usado, do coeficiente de desvalorização constante da tabela de desvalorização aplicável ao veículo e prevista nas Condições Particulares;
b) Por estipulação entre as partes de outro critério de determinação do valor seguro
3 - Salvo estipulação em contrário prevista nas Condições Particulares, o valor dos extras seguros indicado pelo Segurado no momento da celebração do contrato, deverá corresponder ao respectivo valor em novo”.
6. Consta da cláusula 43ª, n.º 1 das Condições Gerais do contrato que “Após determinação do valor seguro nos termos da cláusula anterior, (…), o valor do veículo seguro para efeitos de determinação do montante a indemnizar em caso de perda total, será, nos meses e anuidades seguintes aos da celebração do contrato, automática e sucessivamente alterado de acordo com a tabela de desvalorização aplicável”.
7. O contrato de seguro começou a produzir efeitos em 17-07-2015.
8. O veículo teve a primeira matrícula em Outubro de 2007.
9. O A., no dia 22-9-2015, pelas 9:25 horas, elaborou uma denúncia, contra desconhecidos, no Posto Territorial de Riba de Ave da Guarda Nacional Republicana, na qual alegava que o veículo EL tinha sido furtado.
10. No dia 22-9-2015, o A. entregou ao seu mediador de seguros uma declaração dirigida à R., na qual alegava que o veículo EL tinha sido furtado.
11. O processo de inquérito relativo a tais factos, com o nº 348/15.0 GCVNF, que correu termos nos serviços do Ministério Público de VN de Famalicão, foi arquivado, em 27-10-2015, com a seguinte fundamentação: “os elementos disponíveis não permitem imputar a quem quer que seja a factualidade vinda de investigar”.
12. O A. comunicou à R., de imediato, a decisão de arquivamento proferida naquele inquérito.
13. Em 4-1-2016, a R. comunicou ao A. a recusa em indemnizá-lo pelo furto do referido veículo, alegando, para o efeito, que “o sinistro não ocorreu da forma que nos foi participada”.
14. Por carta datada de 12-1-2016, o A. solicitou esclarecimentos à R. quanto ao motivo de tal recusa, tendo esta mantido a sua posição.
15. O A. e Filipe adquiriram o veículo “EL” à “Leilão C.” em 22-7-2011.
16. O veículo destinava-se a ser vendido posteriormente.
17. Uma vez que o A. não logrou vender o referido veículo, registou a seu favor a sua propriedade em 1-7-2015.
18. O A. comunicou à R. que tinha na sua posse uma chave do veículo.

B) Factos não provados

1) Aquando da venda do veículo, a “Leilão C.” entregou ao A. duas chaves do veículo.
2) Em 21-9-2015, ao final da tarde, o A. estacionou o veículo “EL” na Rua da …, VN de Famalicão, onde reside, em local destinado ao estacionamento de veículos automóveis.
3) A cerca de 150 metros da sua casa.
4) No dia seguinte, por volta das 8:00 horas, Maria, cônjuge do A., verificou que o veículo não se encontrava no sitio onde havia sido estacionado no dia anterior, tendo o mesmo sido furtado por pessoa cuja identidade não se apurou, não mais tendo aparecido.
*

B) Da subsunção jurídica em face da nova factualidade apurada

De acordo com o disposto no art. 1º do D.L. n.º 72/2008, de 16.04, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro, vulgarmente designada por “Lei do Contrato de Seguro” (LCS), “por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.
Nas palavras de José Vasques (9), o contrato de seguro é “o contrato pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador do seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto”.
O prémio é, assim, a contrapartida do risco assumido pelo segurador de, verificando-se sinistro coberto, liquidar determinada indemnização ou entregar certa quantia.
Do ponto de vista económico o seguro é uma operação, pela qual uma seguradora, depois de avaliar através de métodos estatísticos a probabilidade de ocorrência futura de determinados eventos, aceita efetuar prestações pré-convencionadas a favor de um conjunto homogeneizado de pessoas, mediante uma retribuição pecuniária.
O “contrato de seguro”, como qualquer outro contrato, comporta elementos essenciais, naturais e acidentais, sendo seus elementos essenciais aqueles de que depende a sua validade, que são imperativamente previstos pela lei e vêm a corresponder aos termos básicos da operação económica subjacente.

Assim, elementos essenciais são os intervenientes – seguradora, tomador de seguro – as obrigações dos intervenientes – pagamento do prémio pelo tomador do seguro, suportação do risco e realização da prestação pela seguradora – e objeto – interesse, risco.
Os elementos naturais não sendo essenciais à validade do contrato, resultam normalmente de normas supletivas, pelo que o “contrato de seguro” regular-se-á pelas estipulações da respetiva apólice não proibidas pela lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do Código Comercial (cfr. art. 427º, do Código Comercial).
Por sua vez, o artigo 426º do C. Comercial estipula que o “contrato de seguro” deve ser reduzido a escrito num instrumento que constituirá a apólice de seguro, tratando-se assim de um contrato solene ou formal.

No caso dos autos o contrato firmado entre o autor e a ré é, indiscutivelmente, um “contrato de seguro”, do ramo automóvel, titulado pela apólice nº ..., pelo qual esta se obrigou, além do mais, a pagar àquele indemnização em caso de ocorrência de “furto ou roubo” do veículo do autor de marca “Opel”, modelo “Astra H Caravan Diesel”, com matricula “EL”.

Assim, no caso em apreço, sendo pacífica a outorga de um “contrato de seguro” entre autor e ré, a questão que, primordialmente, se impõe resolver é a ocorrência ou não do sinistro em causa nos autos.

Com efeito, o autor alicerça a sua pretensão com base na existência de um furto incidente sobre o veículo segurado, o qual terá ocorrido em 22.09.2015, quando esta viatura se encontrava estacionada perto da sua residência.
Sucede, porém, que não resultou provado que tivesse ocorrido o dito furto, conforme melhor resulta da factualidade dada como não provada sob os pontos 2) a 4).
Assim, cabendo ao autor, desde logo, o ónus de provar (art. 342º, n.º 1, do C. Civil) que ocorreu o alegado furto, nas circunstâncias de tempo e local por si invocadas nesta ação, o mesmo não logrou cumprir tal ónus probatório, sendo certo que, em caso de dúvida sobre a ocorrência do mesmo facto (furto), a mesma deverá ser resolvida contra o autor, porque não cumpriu o mencionado ónus (art. 414º, do C. P. Civil). (10)

Por conseguinte, não tendo sido satisfeito tal ónus, não se poderá assacar à ré qualquer responsabilidade contratual no cumprimento do referido “contrato de seguro”, na medida em que não se demonstrou nos autos a ocorrência do alegado sinistro (furto) coberto pela mencionada apólice.
Nestes termos, deverá a ação ser julgada improcedente, absolvendo-se a ré do pedido.

Termos em que, procede, também neste segmento, a apelação em presença, impondo-se a revogação da decisão recorrida.
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V. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação em presença, revogando-se a sentença recorrida e, consequentemente, julga-se a ação totalmente improcedente, deste modo se absolvendo a ré do pedido.

Custas de ambas as instâncias pelo autor (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil).
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Guimarães, 18.12.2017

Relator António José Saúde Barroca Penha
Des. Eugénia Marinho da Cunha
Des. José Manuel Alves Flores

1. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, pág. 164.
2. Cfr. ainda diversos Acs. do STJ, aludidos na ob. citada, págs. 161 a 165.
3. Abrantes Geraldes, ob. citada, págs. 165-166.
4. Ob. citada, págs. 274 e 277.
5. Segundo Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 569, prova livre “quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais pré-estabelecidos, isto é, ditados pela lei.”
6. O princípio da livre apreciação dos meios probatórios resulta, ainda, em sede de direito probatório material, no que se refere à prova por declarações de parte (não confessórias), à prova testemunhal, à prova por inspeção e à prova pericial, do estipulado nos arts. 361º, 389º, 391º e 396º, todos do C. Civil.
7. Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348.
8. Vide, neste sentido, por todos, Acs. do STJ de 03.11.2009, proc. n.º 3931/03.2TVPRT.S1, relator Moreira Alves; e Ac. do STJ de 01.07.2010, proc. n.º 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1, relator Bettencourt de Faria, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
9. In Contrato de Seguro, 1999, pág. 94.
10. Por todos, vide neste sentido sobre o ónus da prova que impende sobre o segurado o Ac. STJ de 07.02.2008, proc. n.º 07B4772, relator salvador da Costa, acessível em www.dgsi.pt.