Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6704/12.8TBBRG.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: INTERVENÇÃO ESPONTÂNEA
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
LEGITIMIDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
SEGURO FACULTATIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - Com o objectivo primordial de evitar o julgamento formal e privilegiar o apuramento da verdade material dos factos, o art.º 662º. do C.P.C. regula a reapreciação da decisão da matéria de facto dando-lhe a configuração de um novo julgamento, devendo a Relação avaliar livremente todas as provas carreadas para os autos e valorá-las e ponderá-las, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, para formar a sua própria convicção.
II – Actualmente, face ao regime jurídico do contrato de seguro aprovado pelo Dec.-Lei 72/2008, de 16 de Abril (art.º 140.º), nos seguros facultativos é reconhecido à seguradora o direito a intervir (intervenção espontânea) em qualquer processo em que se discuta a obrigação de indemnizar cujo risco ela tenha assumido.
III – O lesado deve demandar o responsável pela indemnização. No entanto, se houver um seguro facultativo, ele poderá demandar exclusivamente a seguradora se o contrato o previr ou se, informado da existência do seguro, tiver encetado negociações directas com a seguradora, sem embargo de, prevendo-o o contrato de seguro, poder ainda demandar, em conjunto, a seguradora e o segurado.
IV - O art.º 1305.º do C.C. atribui ao proprietário o gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, impondo-lhe, porém, os limites derivados da lei e as restrições por ela impostas.
V – Sem embargo, o proprietário tem ainda a obrigação de adoptar as medidas adequadas (dever de conteúdo positivo) a evitar o perigo criado pela sua própria actuação, ou decorrente, por outros motivos, das coisas que lhe pertencem (dever de prevenção do perigo).
Decisão Texto Integral: - ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES –

A) RELATÓRIO
I.- A.. intentou a presente acção de condenação, sob a forma sumária, contra B.., pedindo que esta seja condenada a:
- executar na fracção de que é proprietária as obras necessárias à reparação da infraestrutura de águas residuais/saponáceas e impermeabilização da varanda;
- pagar-lhe, a ela Autora, a quantia de € 3.750,00 de indemnização pelos danos patrimoniais que sofreu, acrescida dos juros de mora, calculados à taxa legal supletiva desde a data da citação até integral pagamento;
- pagar-lhe, a ela Autora, a quantia de € 500,00 de indemnização pelos danos não patrimoniais que sofreu, acrescida dos juros de mora, calculados à taxa legal supletiva desde a data da citação até integral pagamento;
- pagar-lhe, a ela Autora, a quantia necessária para proceder à substituição da instalação eléctrica do seu estabelecimento comercial, caso essa obra tenha de ser realizada, a liquidar posteriormente.
Fundamenta alegando, em síntese, que é dona da fracção “A” do prédio em regime de propriedade horizontal que descreve e a Ré é dona do 1.º andar, que fica sobre a fracção, na qual se verificaram infiltrações de água provindas desta fracção da Ré, causadas pela deficiência de drenagem das águas residuais, e por defeituosa impermeabilização da varanda, tendo-lhe causado danos em cuja reparação gastou a importância que peticiona.
Alega ainda que a situação a deixou nervosa e ansiosa, causando-lhe perturbação e cansaço.
A Ré contestou excepcionando a sua ilegitimidade por ter transferido a responsabilidade civil para a “O.. – Companhia de Seguros, S.A.” por contrato de seguro que celebraram, o qual abrange episódios de infiltrações/inundações.
Os autos prosseguiram os seus termos vindo a ser proferido despacho saneador que, considerando a Ré parte legítima, julgou improcedente a excepção arguida.
Esta decisão não foi impugnada.
Designada a data para o julgamento a ele se veio a proceder, o qual culminou com a prolação de douta sentença que, julgando a acção parcialmente procedente condenou a Ré:
i) a executar, na fracção de que é proprietária, as obras necessárias à reparação da infraestrutura das águas residuais e à impermeabilização da varanda;
ii) a pagar à Autora a quantia de € 3.750,00 (três mil setecentos e cinquenta euros) , acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor, contados desde a citação até integral pagamento, de indemnização de danos patrimoniais;
iii) a pagar à Autora a quantia necessária para proceder à substituição da instalação eléctrica da fracção desta, caso a obra tenha que ser realizada, quantia a liquidar em execução de sentença.
Absolveu a Ré do demais peticionado.
Inconformada, traz a Ré o presente recurso pretendendo que se julgue nula a sentença proferida, invocadamente, por padecer de omissão de pronúncia, ou seja a mesma revogada e substituída por acórdão que dê como provados os factos referidos nas conclusões, absolvendo-a, como pedira na contestação.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi recebido como de apelação, e porque a Ré/recorrente prestou caução, foi-lhe atribuído efeito suspensivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II.- A Ré/recorrente funda o seu recurso nas seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da douta decisão que julga a acção parcialmente procedente e, consequentemente, condena a Ré, ora Recorrente.
2. Face à factualidade assente nos autos por acordo, à prova documental e aos depoimentos de parte e das testemunhas, não pode a Recorrente, conformar-se com a douta decisão recorrida, por entender que se fundamenta em premissas incorrectas, julgando incorrectamente a matéria de facto e fazendo errada aplicação do direito, pelo que, a bem da justiça, terá de ser revogada, sendo certo que mesmo que apenas nos ativéssemos à factualidade assente, face à divergência entre a factualidade dada como provada e a decisão proferida, não poderão os Recorridos deixar de ser condenados na totalidade do pedido e substituída a sentença em crise por douto acórdão que conclua como requerido na contestação.
3. O presente recurso versa, além do mais, sobre a reapreciação de testemunhos prestados em audiência de julgamento, os quais se encontram gravados, donde ressalta que parte da matéria factual assente não está conforme com tais revelações.
4. Na sua contestação, mais propriamente nos artigos 5º e 6º, a Recorrente alegou e peticionou que a sua fracção em causa nos autos se encontrava segurada pela apólice MR79076176, então e ainda vigente, na O.. – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A., e que, à data do pretenso, havia transferido, para a mencionada seguradora, a responsabilidade civil por danos ocorridos naquela fracção.
5. Com o devido respeito, assinala-se que apesar de a referida O.. ter feito juntar aos autos, em 18/10/2013, a fls. …, a correspondente apólice, a Meritíssima Juiz a quo não o fez repercutir na matéria de facto, particularidade que configura omissão de pronúncia que aqui, expressamente, se invoca para que desta se extraiam os necessários efeitos legais, por violação dos termos conjugados dos artigos 615º, nº 1, d), e 613º do C.P.C. vigente, e determina, inevitavelmente, a nulidade da sentença, com as inerentes consequências legais.
6. A Recorrente não aceita que não tivesse feito prova da integralidade dos factos alegados na sua contestação com relevância para a boa e justa decisão da causa e, menos ainda, que a Recorrida tivesse logrado, mesmo que parcialmente, a inversa.
7. Também não aceita a Recorrente que se tenham considerado provados os factos constantes das alíneas A), B) e E).
8. Impõe-se, face ao depoimento das testemunhas e dos demais elementos constantes dos autos, por ter sido incorrectamente julgada, a alteração da matéria de facto de forma a se conformar com o aduzido pela Recorrente na sua contestação,
9. Ampliando-a para que passe a constar que a sua fracção em causa nos autos se encontrava segurada pela apólice MR79076176, então e ainda vigente, na O.. – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A., e que, à data do pretenso, havia transferido, para a mencionada seguradora, a responsabilidade civil por danos ocorridos naquela fracção,
10. E restringindo a matéria de facto provada, para que passe a constar que que não se demonstrou que a A. é dona e legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés do chão do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua.., Braga, que tal fracção se encontra arrendada à sociedade comercial S.., L.da, e que esta fracção, desde o ano de 2010, tem vindo a sofrer infiltrações e inundações com origem em deficiências de drenagem de águas residuais da fracção da R. e deficiências de impermeabilização da varanda da mesma fracção.
11. Com efeito, na alínea a) dos factos considerados provados na douta sentença em apreço, apesar de se tratar de um facto impugnado pela Recorrente, que não pode se demonstrado pela mera prova testemunhal, e sem que exista nos autos qualquer alegação ou documento, autêntico ou outro, que o comprove, considera-se demonstrado que a A., ora Recorrida, é dona e legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés do chão do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua .., Braga.
12. Como não demostrou ser proprietária da fracção pretensamente afectada pelas putativas infiltrações, a Recorrida carecia, pois, de legitimidade activa para propor esta acção, circunstância que a Recorrente desde já, invoca a seu favor e configura uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que obsta ao conhecimento do mérito da questão e teria – terá, aduz-se – de determinar a absolvição da instância – cfr. arts. 278º, n.º 1, al. d), 576º, n.º 2, e 577º, al. e) do C.P.C..
13. Por maioria de razão, na ausência de demonstração de relação material de propriedade da A./Recorrida com a fracção pretensamente afectada pelas infiltrações de água, carece de sentido que lhe seja atribuída qualquer compensação ou o mais peticionado por eventuais danos provocados em coisa que apenas se pode configurar como lhe sendo alheia, pelo que, também por esta razão, teria sempre a Recorrente de ser absolvida do pedido.
14. Face à linha genérica dos depoimentos prestados em sede de audiência, que nunca identificam o ponto de origem das pretensas infiltrações ao nível do tecto do referido Supermercado (e apenas tecto, sendo certo que as paredes são em mosaico branco e, por isso, imunes às mesmas), resta à Recorrida um insuficiente relatório camarário, efectuado à revelia Recorrente e que nem sequer pôde avaliar as circunstâncias da fracção desta por a ela não ter acedido, que não é, nem deve ser considerado suficiente para se concluir que as pretensas infiltrações promanam da fracção da Recorrente e, sobretudo, para fundar uma decisão condenatória.
15. Tendo-se por assente até face ao referido documento junto pela Seguradora, a existência do contrato de seguro e o seu âmbito – extensível nos moldes aduzidos quanto à responsabilidade civil extracontratual – é forçoso que se considere que a Recorrente, como suscitou na sua contestação era parte ilegítima, não podendo ser demandada nos presentes autos, pelo menos desacompanhada da O.. – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A...
16. O contrato de seguro facultativo de responsabilidade civil em causa nos autos, enquanto contrato a favor de terceiro, obriga a que se demande directamente a seguradora, acompanhada do responsável civil, em litisconsórcio necessário, a menos que o contrato admita a possibilidade de ser demandada apenas a seguradora – cfr. o douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, de 31-01-2012, doc. n.º RP201201318728/09.3TBVNG.P1, também in www.dgsi.pt..
17. Assim, como ao contrário do que a Lei admite, a Ré foi isoladamente, tida como sujeito passivo da relação material controvertida nestes autos, de harmonia com o preceituado nos arts. 28º e 28º-A, nº 1, do C.P.C.. é forçoso que agora seja considerada como parte ilegítima nesta acção, devendo, por isso, ser absolvida da instância, de harmonia com o disposto nos arts. 278º, n.º 1, al. d), 576º, n.º 2, e 577º, al. e) do C.P.C..
18. Reconhecido o ora expendido nas presentes alegações, como parece imperioso, teria o Tribunal a quo de conhecer devidamente do aduzido pela Recorrente na sua contestação, absolvendo-a nos precisos termos do aí pedido
19. Ao decidir pela procedência parcial da acção, com os fundamentos supra expendidos e vertidos nos autos, a Meritíssima Juiz a quo não fez, salvo melhor opinião, uma interpretação correcta do alegado nos articulados, matéria probatória e do então aduzido nos arts. 33º, nº 2, 278º, n.º 1, al. d), 576º, n.º 2, 577º, al. e), 615º, nº 1, d), e 613º do C.P.C. vigente, que violou, pelo que deve ser revogada.
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III.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
De acordo com as conclusões acima transcritas, cumpre:
- conhecer da nulidade invocada;
- conhecer das excepções dilatórias de ilegitimidade arguidas;
- reapreciar a decisão da matéria de facto quanto aos pontos impugnados;
- reapreciar o pedido.
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B) FUNDAMENTAÇÃO
IV.- Fundamentando que na sua contestação alegara que havia transferido a sua responsabilidade civil por danos ocorridos na sua fracção autónoma para a “O.. – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A.” por contrato de seguro que celebraram, e que esta Seguradora juntou aos autos a apólice respectiva, porque “a Meritíssima Juiz não o fez repercutir na matéria de facto” entende a Apelante que a sentença incorre em nulidade por omissão de pronúncia, nos termos previstos na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º, do C.P.C..
Um dos vícios de que pode enfermar a sentença, taxativamente enumerados no n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C. é o da omissão de pronúncia, que traduz a inobservância do dever imposto pelo n.º 2 do art.º 608.º - o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, quer as formais quer as que respeitam ao mérito da causa, devendo ainda conhecer de todos os pedidos formulados e de todas as excepções invocadas, sem embargo de dever conhecer ainda das questões susceptíveis do conhecimento oficioso.
Já não tem de conhecer, porém, das questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução que deu às outras de que conheceu anteriormente.
Ora, com o respeito devido, para além de se não vislumbrar que questão é essa a que o Tribunal a quo deixou de dar resposta, também não deixa de ser menos certo que a não inclusão na matéria de facto da facticidade atinente ao contrato de seguro nem sequer constitui deficiência que se imponha colmatar.
Com efeito, a Ré invoca o contrato de seguro mas não tirou daí a consequência que se impunha em termos de direito adjectivo, ou seja, não requereu a intervenção da Seguradora.
Se pelo aludido contrato de seguro transferiu validamente para esta Seguradora a sua responsabilidade civil pelos danos de terceiros decorrentes da ruptura de canos da instalação da água e de tubos da rede de esgoto, da sua fracção autónoma, sendo condenada, ficaria com um direito de regresso contra aquela Seguradora do que tiver sido obrigada a pagar.
Deveria então lançar mão do incidente de intervenção provocada, chamando a intervir, como auxiliar da sua defesa, aquela Companhia de Seguros, nos termos regulados nos art.os 330.º a 333.º do anterior C.P.C. (ainda aplicável na fase do processo em que o chamamento teria tido lugar).
Não assiste razão à Apelante quando pretende que a presente acção devia ter sido intentada contra aquela Seguradora - daqui partindo para arguição da sua própria ilegitimidade.
Com efeito, atenta a data do primeiro dos episódios de inundação invocados nos autos como factos geradores da responsabilidade de indemnizar, já estava em vigor o actual regime jurídico do contrato de seguro, consagrado no Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril (que entrou em vigor em 01/01/2009 - cfr. art.º 7.º), cumprindo, por isso, atentar no que dispõe o art.º 140.º que, como veremos, não contém uma disposição de teor idêntico ao art.º 64.º do Dec.-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, (que estabelece o regime de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) o qual atribui legitimidade passiva apenas à seguradora quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro, e consagra o litisconsórcio necessário passivo – exigindo a intervenção da seguradora e do civilmente responsável – quando o montante do pedido ultrapassar aquele limite.
Nos seguros facultativos a seguradora pode intervir (intervenção espontânea) em qualquer processo em que se discuta a obrigação de indemnizar cujo risco ela tenha assumido – n.º 1 do referido art.º 140.º -, e o lesado pode demandar directamente a seguradora em duas situações: i) se o contrato de seguro o previr, caso em que ele tanto poderá dirigir o pedido exclusivamente contra a seguradora como conjuntamente contra esta e o segurado, nos termos do n.º 2; e ii) quando o segurado tenha informado o lesado da existência do contrato de seguro e o lesado tenha iniciado negociações directas com a seguradora – cfr. n.º 3.
Do exposto resulta que, numa situação como a dos autos o pedido de indemnização deve ser dirigido directamente contra o civilmente responsável, ficando garantida a legitimidade passiva somente com a intervenção deste na acção – atente-se que mesmo no caso de a responsabilidade ser solidária, por serem várias as pessoas responsáveis, nos termos do disposto no art.º 497.º do Código Civil (C.C.), o lesado pode demandar apenas um deles, como claramente se prevê no art.º 519.º do mesmo Cód..
Se o civilmente responsável transferiu a sua responsabilidade de indemnizar para uma seguradora, visto que o contrato de seguro lhe confere o direito de regresso do que haja sido obrigado a pagar, pode fazê-la intervir na acção (sem embargo de também esta o poder fazer espontaneamente), através da intervenção acessória – cfr. art.º 321.º do actual C.P.C. (330.º do anterior).
Com efeito, esta espécie de intervenção tem como pressuposto a ausência de legitimidade, seja activa, seja passiva, para a acção – parte final do nº. 1 do artº. 321º., do C.P.C.-, e destina-se às situações em que ocorra a existência de uma relação jurídica material conexa com a controvertida, da qual resulta a responsabilidade do chamado para com o réu pelo dano que a perda da demanda consubstancia, tendo por isso interesse (ainda que indirecto) na improcedência da pretensão do autor.
Porque a relação jurídica entre o demandado e o chamado (em que se funda o direito de regresso) é apenas conexa com a relação jurídica material controvertida, a intervenção deste último circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento – cfr. n.º 2 do referido art.º 321.º, do C.P.C..
Ficando, deste modo, esclarecida a posição na acção do civilmente responsável e da seguradora, no confronto com a pretensão indemnizatória da Autora, cremos restar claro que se a Apelante (civilmente responsável) não fez intervir a “O..” é inócuo para a apreciação jurídica da causa o facto consubstanciado pelo contrato de seguro, não tendo, por isso, qualquer interesse inclui-lo na decisão da matéria de facto.
Pelo exposto, tendo, no despacho saneador que não foi impugnado, sido julgada a Apelante parte legítima, não tinha a sentença que reapreciar novamente a questão, mesmo à luz do contrato de seguro, já que não foi requerida a intervenção da Seguradora.
Quando muito poder-se-ia colocar a questão de saber se o Tribunal, face à arguição da ilegitimidade, não deveria, à luz do princípio da cooperação, convidar a arguente (ora Apelada) a requerer a intervenção processual da Seguradora. Contudo, também se compreende que o não tenha feito atenta a posição que veio a assumir no despacho saneador, e ao facto de os interesses em confronto caberem no âmbito da total disponibilidade das partes, competindo, neste caso à Apelante, delinear a sua estratégia de defesa, sem que o tribunal possa nela interferir.
Daqui se conclui pela improcedência da arguida nulidade da sentença.
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V.- Como já foi referido, tendo a Apelante arguido a sua ilegitimidade, foi proferido despacho saneador que, conhecendo-a, julgou a excepção improcedente, considerando-a parte legítima.
Vindo agora defender que a situação configura um caso de litisconsórcio necessário, a Apelante retoma a invocação da sua ilegitimidade, pedindo a absolvição da instância.
Da verificação da legitimidade, enquanto pressuposto processual, depende o conhecimento do mérito da causa (cfr. art. 278.º, n.º 1, alínea d) do C.P.C.).
Havendo vingado a tese de Barbosa de Magalhães, consideram-se partes legítimas quem tem interesse directo em demandar e quem tem interesse directo em contradizer, exprimindo-se este interesse, para o autor, pela utilidade derivada da procedência da acção, e para o réu, pelo prejuízo que dessa procedência advenha, se não houver disposição legal em contrário, ter-se-á apenas em consideração o pedido e a causa de pedir.
E perante aquele e esta, a Apelante é, indubitavelmente, parte legítima, como foi, bem, decidido no despacho saneador.
Só há litisconsórcio necessário quando a lei ou o contrato exigir a intervenção de todos os interessados, seja para o exercício do direito, seja para a reclamação do dever correlativo – cfr. art.º 33.º, n.º 1 do actual C.P.C. e 28.º, n.º 1 do anterior Cód..
Ora, como já acima se deixou demonstrado, na situação sub judicio nem a lei nem o contrato (de seguro) exigem a intervenção conjunta do civilmente responsável e da seguradora.
A questão que se discutia no Ac. da Relação do Porto de 31/01/2012, a que se arrima a Apelante, é a da admissibilidade de o autor demandar directamente a seguradora num contrato de seguro facultativo, havendo-se decidido que, por se tratar de um contrato a favor de terceiro, podia o lesado demandar directamente a seguradora “em princípio, acompanhada do responsável civil, em litisconsórcio necessário, a não ser que o próprio contrato admita a possibilidade de ser demandada apenas a seguradora”. No entanto, e como aí se reconhece, a questão ficou agora decidida com os n.os 2 e 3 do art.º 140.º, do actual regime jurídico do contrato de seguro (Processo n.º 8728/09.3 TBVNG.P1, Desemb. M. Pinto dos Santos, in www.dgsi.pt).
Do exposto podemos concluir que, em princípio, o lesado deve demandar o responsável pela indemnização, podendo, porém, demandar directamente apenas a seguradora ou, em conjunto, esta e o segurado (situação de litisconsórcio), se o contrato de seguro o previr ou se o lesado, informado da existência do contrato de seguro, tenha encetado negociações directas com a seguradora.
Considerado o exposto, improcedem as conclusões 15 a 17.
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VI.- Como acima se deixou referido os Apelantes impugnam a decisão de facto quanto à facticidade transcrita sob as alíneas A); B); e F), que, tendo sido julgada provada, pretende seja agora considerada não provada, defendendo ter sido incorrectamente apreciada a prova produzida.
O recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto tem de, obrigatoriamente, sob pena de rejeição do recurso quanto a esta parte, cumprir com o disposto em cada uma das alíneas do n.º 1 do art.º 640.º, do C.P.C.: indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida.
Têm-se por cumpridas as imposições constantes das alíneas a); b) e c) do n.º 1 do art.º 640.º do C.P.C., assim como foi cumprida, no corpo das alegações, a indicação a que alude a alínea a) do n.º 2.
Nada obsta, pois, à pretendida reapreciação da matéria de facto.
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VII.- O art.º 662º. do C.P.C. regula a reapreciação da decisão da matéria de facto dando-lhe a configuração de um novo julgamento.
Assim, a alteração daquela decisão que, se estiverem em causa direitos de natureza disponível, se restringirá à parte que foi delimitada pelo recurso, é agora um poder vinculado da Relação, desde que se verifiquem os pressupostos referidos no n.º 1, ou seja, quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A intenção do legislador foi, como consta da “Exposição de Motivos”, a de reforçar os poderes da Relação no que toca à reapreciação da matéria de facto.
Deste modo, mantendo-se os poderes cassatórios que permitem à Relação anular a decisão recorrida, nos termos que vêm referidos na alínea c) do nº. 2, e sem prejuízo da possibilidade de ser ordenada a devolução dos autos ao tribunal da 1ª. Instância, reconheceu-se agora à Relação o poder/dever de investigação oficiosa.
Não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, na reapreciação da matéria de facto a Relação avalia livremente todas as provas carreadas para os autos e valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se delas para formar a sua própria convicção.
Constitui ainda poder vinculado da Relação realizar as diligências de renovação da prova quando houver dúvidas sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento, e de produção de novos meios de prova se houver dúvida fundada sobre a prova realizada, ou seja, sobre o sentido da decisão de facto tomada pelo Tribunal a quo.
O objectivo primordial é o de evitar o julgamento formal, apenas baseado no ónus da prova, privilegiando o apuramento da verdade material dos factos, que é pressuposto de uma decisão justa.
As regras de julgamento a observar pela Relação são as mesmas por que se rege o tribunal da 1ª. Instância: tomar-se-ão em consideração os factos admitidos por acordo, os que estiverem provados por documentos (que tenham força probatória plena) ou por confissão, desde que tenha sido reduzida a escrito, extraindo-se dos factos que forem apurados as presunções legais e as presunções naturais, advindas das regras da experiência, sendo que o princípio basilar continua a ser o da livre apreciação das provas, relativamente aos documentos sem valor probatório pleno, aos relatórios periciais, aos depoimentos das testemunhas, e agora inequivocamente, às declarações da parte – cfr. art.os 466º., nº. 3 e 607º., n.os 4 e 5 do C.P.C., que não contrariam o que acerca dos meios de prova se dispõe nos art.os 341º. a 396º. do Código Civil (C.C.).
Como refere o art.º 341.º, as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.
Sem embargo, não se exige que a demonstração conduza a uma verdade absoluta (objectivo que seria impossível de atingir) mas tão-só a um elevado grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (cfr. Manuel de Andrade in “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 191 e 192).
Quem tem o ónus da prova de um facto tem de conseguir “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como referem Antunes Varela et Al. (in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 420).
Na situação sub judicio, na medida em que os factos em reapreciação admitam a prova testemunhal, cujo valor probatório está sujeito à livre (pressuposto que seja conscienciosa) apreciação do julgador – cfr. art.º 396.º do C.C. -, é igualmente permitido o recurso às presunções judiciais, de acordo com o disposto no art.º 351.º, do C.C., que são ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido – cfr. art.º 349.º, ainda do mesmo Cód..
Como explicita o Prof. Vaz Serra “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência, ou de uma prova de primeira aparência” (in B.M.J. nº. 112º., pág. 190).
O julgador, usando as regras da experiência comum, do que, em circunstâncias idênticas, normalmente acontece, interpreta os factos provados e conclui que, tal como naquelas, também na situação aprecianda as coisas se passaram do mesmo modo, ou seja, perante um facto instrumental que tenha sido provado, conclui que ele revela a existência de outro facto, essencial à decisão.
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VI.- No que se refere à matéria de facto, o Tribunal a quo julgou:
a) provados os seguintes factos:
A) A A. é dona e legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés do chão do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua.., Braga.
B) A fracção encontra-se arrendada à sociedade comercial S.., L.da, com sede na Rua.., rés do chão, freguesia de S. Vítor, Braga que aí explora um estabelecimento comercial de supermercado.
C) A R. é dona e legítima possuidora da fracção “C”, habitação sita no primeiro andar esquerdo (lado sul) com uma garagem na cave, a segunda a contar da rampa de acesso, com entrada pelo n.º 95.
D) A aludida fracção constitui habitação própria e permanente da R.
E) Desde o ano de 2010, a fracção da A. tem vindo a sofrer infiltrações e inundações com origem em deficiências de drenagem de águas residuais da fracção da R. e deficiências de impermeabilização da varanda da mesma fracção.
F) Tais inundações e infiltrações forçaram o encerramento do estabelecimento comercial referido em B), pelo período de cinco dias no ano de 2010.
G) Em Novembro de 2011, ocorreu nova inundação na fracção da A., tendo o marido da sócia gerente da sociedade referida em B) solicitado a intervenção dos serviços camarários, que teve lugar em 21/11/2011.
H) No dia 10 de Setembro de 2012 a fracção da A. sofreu nova inundação, com água a pingar do tecto, tendo o estabelecimento comercial da sua inquilina estado encerrado por dois dias.
I) Na sequência da vistoria efectuada a 21/11/2011, foi elaborado pelos Senhores peritos o auto junto com a petição inicial como doc. n.º 3, onde se diz – “verifica-se a existência de humidades no tecto do estabelecimento comercial em causa e na face inferior da varanda privativa do andar superior. Presume-se que as anomalias verificadas no respeitante ao estabelecimento comercial resultam de eventual infiltração de águas residuais (saponáceas), com origem em deficiências na infraestrutura privativa de drenagem de águas residuais do andar superior (1º andar) e no caso da varanda resultam de infiltrações de águas pluviais devido a deficiências na sua impermeabilização. As deficiências em causa serão corrigíveis com obras de conservação no andar superior (reparação da infraestrutura de águas residuais e da impermeabilização da varanda) e obras de reparação dos revestimentos afectados da fracção do rés do chão”.
J) Em resultado das inundações ocorridas nos anos de 2010 e 2011, a A. procedeu à reparação dos tectos do estabelecimento, que estão novamente com manchas de humidade e tinta a descascar.
L) Torna-se necessário raspar o salitre do tecto e paredes, arear as partes raspadas, aplicar isolante e pintar com tinta adequada, o que importa em 3.000,00 €, mais IVA.
M) A iluminação da fracção precisa de ser parcialmente substituída, o que importa, pelo menos 750,00 €.
N) A continuarem as infiltrações poderá ser necessário substituir toda a instalação eléctrica da fracção.
O) Sempre que há uma inundação a sócia gerente da inquilina contacta a A. e esta vê-se forçada a deslocar-se ao local.
P) A R. não responde ao toque da campainha, nunca abrindo a porta.
b) não provados os seguintes factos:
1 – O referido em O) causa à A. perturbação e cansaço.
2 – A conduta reiterada da R. deixa-a nervosa e ansiosa.
3 – A R. não recebe o correio.
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VII.- A facticidade que a Apelante impugna é: o direito de propriedade da Autora sobre a fracção autónoma designada pela letra “A” (alínea A)); a situação de arrendamento desta fracção à sociedade comercial “S.., Ld.ª” (alínea B)); e que desde o ano de 2010 aquela fracção tenha vindo a sofrer infiltrações e inundações com origem em deficiências de drenagem de águas residuais da fracção da Apelante e deficiências de impermeabilização da varanda da mesma fracção (alínea E)).
Quanto a esta última alínea, cumpre referir que a Apelante não impugna os dois episódios de inundações da fracção, que a Autora alega ser dela, referidos sob as alíneas G) – em Novembro de 2011; e H) – em 10/09/20012, os quais, só por si, suportam os danos referidos nas alíneas L) e M), como foi julgado e não foi posto em causa.
Deste modo, pode dizer-se de importância relativa aquele episódio de 2010.
Na fundamentação da decisão de facto o Tribunal a quo faz referência ao “auto de vistoria à fracção da A., realizada por técnicos da Câmara Municipal de Braga, às fotografias ao local, ao orçamento para trabalhos e pintura” e “ao contrato de seguro junto aos autos”, sem que, a bem da verdade, se perceba qual o contributo deste documento para a formação da convicção relativamente à facticidade julgada provada, sendo certo que o considerando que lhe tece de ele não cobrir “os danos causados noutras fracções por infiltrações e inundações” surge isolado, carecendo de mais desenvolvimentos que permitissem definir o contexto em que tal afirmação ganha propósito.
Mais se referiu o Tribunal a quo aos depoimentos testemunhais, que valorou, expondo os motivos porque cada uma das testemunhas lhe mereceu (ou não) credibilidade.
Foram revisitados os depoimentos prestados nos autos e o que ressalta do depoimento de parte da Apelante é que ela própria reconheceu a Autora como «dona» do “S..”, e questionada disse ainda saber que o supermercado «é arrendado». Todas as pessoas que foram inquiridas se pronunciaram nos mesmos termos.
Posto que não estamos perante uma acção de reivindicação, e sim de indemnização, mostra-se suficiente a relação de posse da Autora relativamente à dita fracção autónoma, que a prova produzida nos autos confirma, para além de que as testemunhas M.. e A.. foram credíveis quando afirmaram que era à Autora que exigiam a reparação das anomalias ocorridas no estabelecimento, porque é ela a senhoria (locadora) e porque sabem que o imóvel lhe pertence.
Não estando em causa nos autos a validade formal do contrato de arrendamento mas tão-somente a sua existência, a prova desta realidade fáctica resulta dos depoimentos daquelas testemunhas e do depoimento de parte da Apelante, que foram credíveis.
Relativamente ao facto constante da alínea E), em face das hesitações patenteadas pela testemunha M.. quanto ao ano em que se começaram a verificar as inundações, e na ausência de outro elemento probatório que o confirme, fica-se sem a certeza, em grau suficiente para fundamentar a convicção, da conformação com a realidade daquele facto. Já, porém, foi perfeitamente credível quanto à ocorrência das infiltrações e inundações e sua origem, atendendo à sua razão de ciência – o aspecto das águas que identificou como “águas do banho”, e a correspondência entre o ponto onde elas surgiam no tecto e a localização das casas de banho, descrevendo tudo com realismo e pormenor, sendo que o prédio em causa é constituído apenas pelo rés-do-chão, onde se situa o supermercado, e o 1.º andar, que é o da Apelante.
Cumprirá, assim, alterar a redacção daquela alínea apenas quanto à localização temporal de tais infiltrações e inundações, afeiçoando-a à prova produzida.
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VIII.- Nos termos que acima se deixam expostos, decide-se alterar a decisão de facto quanto à facticidade constante das alíneas A) e E), que ficam com a seguinte redacção:
A) A A. é dona da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua .., em Braga.
E) Desde data não apurada, anterior a Novembro de 2011, a fracção referida em A) tem vindo a sofrer inundações com origem em deficiências de drenagem de águas residuais da fracção da Ré e deficiências de impermeabilização da varanda da mesma fracção.
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IX.- Estabelecida a facticidade provada, cumpre, muito rapidamente, passar à apreciação jurídica da causa.
O art.º 1305.º do C.C. atribui ao proprietário o gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem.
Impõe-lhe, porém, os limites derivados da lei e as restrições por ela impostas.
As restrições podem ser de direito público ou de direito privado, resultando estas últimas das relações de vizinhança, e “têm em vista regular os conflitos de interesses que surgem entre vizinhos, em consequência da solidariedade dos seus direitos, ou seja, em virtude da impossibilidade de os direitos do proprietário serem exercidos plenamente sem afectação dos direitos dos vizinhos”, como referem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, 2.ª ed., vol. II, pág. 95)
Acrescentam ainda os mesmos Mestres dever entender-se que “além de estar sujeito às restrições ou limitações que a lei lhe impõe (dever de abstenção), o proprietário tem a obrigação de adoptar as medidas adequadas (dever de conteúdo positivo) a evitar o perigo criado pela sua própria actuação, ou decorrente, por outros motivos, das coisas que lhe pertencem (dever de prevenção do perigo)” (ob. e loc. cit.).
Quando o dever de prevenir o perigo resulte da lei ou de um contrato de assistência ou de vigilância, ou ainda quando o perigo de dano resulte de um facto praticado ou de uma situação mantida, como afirma o Prof. Antunes Varela, “o criador ou o mantenedor da situação especial de perigo tem o dever jurídico de o remover” (in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 114, n.º 3684, págs. 77-78).
Deste modo, a obrigação de indemnizar pode fundar-se no incumprimento de deveres destinados a prevenir determinados perigos, ou seja, numa terminologia mais moderna, no incumprimento de deveres do tráfego.
Observa o Prof. Menezes Cordeiro que estes deveres do tráfego surgem quando alguém crie ou controle uma fonte de perigo: cabe-lhe então tomar as medidas adequadas a prevenir ou evitar os danos, referindo ainda, além de outras situações a daquele que tem a responsabilidade pelo espaço: “quem controle um espaço deve prevenir os perigos que lá ocorram ou possam ocorrer: quem tem a vantagem do lugar deve assumir os deveres que daí decorram”, dependendo o conteúdo destes deveres do caso concreto.
Relativamente aos deveres de tráfego que constam dos art.os 491.º, 492.º e 493.º do C.C., defende o Prof. Menezes Cordeiro que subjacentes a eles está a ideia de “incentivar a que no momento próprio sejam tomadas as devidas precauções e a de fazer correr, pelos beneficiários do perigo, o risco dos danos”, acrescentando que “numa larga margem e pelas dificuldades da prova, eles acabaram por suportar danos que, em rigor, não lhes respeitariam” havendo-se-lhes conferido, como contrapeso “a hipótese de se prevalecerem da relevância negativa de causas virtuais” (in “Tratado de Direito Civil” volume VIII, págs. 571-589).
O incumprimento dos referidos deveres impõe ao incumpridor a obrigação de reparar os danos causados a terceiros, obrigação que radica no instituto da responsabilidade civil extracontratual pelo que hão-de, no caso concreto, se mostrarem preenchidos os pressupostos referidos no art.º 483.º do referido C.C.: o facto (voluntário do agente); a ilicitude desse facto; a imputação do facto ao lesante; o dano; um nexo de causalidade entre aquele facto e este dano.
Vindo esta parte eficientemente exposta na fundamentação de direito da douta sentença em análise, para aí se remete, posto que se não impõem outros desenvolvimentos.
Sem embargo, sempre diremos que o facto tanto pode consistir numa acção como numa omissão, apenas se exigindo que a vontade o domine – na situação sub judicio o facto consubstancia-se na omissão do dever de vigilância.
A ilicitude tanto pode consistir na violação de um direito (absoluto) de outrem, como na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, ou ainda no incumprimento dos chamados deveres de segurança no tráfego, acima referidos, que, como refere o Ac. da Rel. de Coimbra de 14/01/2014, “terão todavia de corresponder a uma norma de conduta cujo desrespeito seja havido como ilícito e cujo conteúdo dependerá da ponderação de diversos factores, como a probabilidade da ocorrência do acidente e efeitos danosos a evitar, das medidas preventivas exigíveis e possibilidade de auto-protecção do lesado, sob pena de uma ampla construção e admissão de deveres de prevenção do perigo equivaler na realidade à consagração de uma verdadeira responsabilidade pelo risco, que apenas formalmente se ampara nos esquemas da responsabilidade por culpa” (in Proc.º 1393/11.0TBVIS.C1, Desembª. Maria Domingas Simões, com texto integral no site da “dgsi”).
Na situação sub judicio a ilicitude consubstancia-se no incumprimento do dever de actuação no sentido de tomar as medidas adequadas prevenir a ocorrência de acidentes.
A culpa tanto pode revestir a forma de dolo, em qualquer uma das suas vertentes – directo, necessário ou eventual – como a de negligência (também dita mera culpa) que consiste, essencialmente, na omissão da diligência exigível ao agente, sendo que in casu a facticidade provada não permite imputar à Apelante uma conduta dolosa, tudo apontando para a negligência.
No que respeita aos danos, na perspectiva da responsabilidade civil, são toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica, e que o lesado não sofreria não fora o evento danoso.
Indemnizáveis são os danos de natureza patrimonial, ou seja aqueles que incidem sobre interesses de natureza material ou económica, reflectem-se no património do lesado, no que se incluem os danos emergentes assim como os lucros cessantes, sendo ainda indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, caracterizando-se estes danos por serem insusceptíveis de avaliação pecuniária, já que atingem bens que não integram o património do lesado e apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, que, diferentemente do fim visado pela indemnização, não pretende repor a situação que existia antes do acto lesivo, mas antes compensar psicologicamente o lesado quer seja pela aquisição de bens materiais quer seja pela realização de algo que lhe traga satisfação.
Finalmente, como último pressuposto a ter de se verificar, é que exista um nexo de causalidade entre o dano e o facto.
Com efeito, dispõe o art.º 563.º do C.C. que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
A causalidade, que funciona como pressuposto de responsabilidade civil e como molde para a fixação da indemnização, comporta as duas formulações da teoria da causalidade adequada – a positiva e a negativa, nos termos da qual o facto que actuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostra indiferente para a verificação do dano, não modificando o “círculo de riscos” da sua verificação.
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X.- Todos os pressupostos referidos se mostram preenchidos, sendo que, como ficou provado, há necessidade de proceder a trabalhos de remoção dos vestígios deixados pelas inundações e infiltrações da água - cfr. a facticidade transcrita sob as alíneas L) e M).
Tendo ficado demonstrado nos autos que a Autora é a dona do prédio - situação de facto que em linguagem jurídica se traduz por possuidora – onde se verificaram tais inundações e infiltrações, podendo ainda invocar-se o fundamento das obrigações contratuais que para si decorrem da sua posição jurídica de locadora, fica inequívoco que os custos da correcção dessas anomalias se repercute directamente na sua esfera patrimonial, o que lhe confere legitimidade substantiva, e, obviamente, também processual, para exigir da Apelante a indemnização correspondente.
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XI.- Sem embargo, temos de reconhecer assistir razão à Apelante no que se refere à condenação em quantia necessária para proceder à substituição da instalação eléctrica.
Trata-se de um dano que ainda se não verificou e também não é previsível – por isso é que a obrigação de indemnização ficou sujeita à condição de “a obra ter de ser realizada”.
Ora, em relação aos danos futuros, o n.º 2, 1ª parte, do art.º 564.º do C.C. apenas permite que sejam considerados aqueles que sejam “previsíveis”.
Na indemnização a pagar pela Apelante já está incluído o custo da substituição parcial da iluminação. É de crer que na execução desta obra se apliquem materiais e técnicas de isolamento, seja por razões de eficácia, seja por razões de prevenção.
Ora este circunstancialismo concorre para afastar a previsibilidade do dano em causa, não podendo, por isso, ser atendido pelo tribunal.
Impõe-se, assim, revogar a sentença quanto a este segmento decisório.
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C) DECISÃO
Considerando tudo quanto acima fica exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação, decidindo: i) absolver a Apelante do pedido de pagamento da quantia necessária à substituição da instalação eléctrica; ii) confirmar na parte restante a decisão impugnada.
Custas da apelação pela Apelante, na proporção de 2/3 do que for devido.
Guimarães, 23/04/2015
Fernando Fernandes Freitas
Purificação Carvalho
Espinheira Baltar