Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3098/12.5TBVCT-A.G1
Relator: RAQUEL REGO
Descritores: PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
PERÍCIA COLEGIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2014
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - Por lei especial relativa a perícias médicas, faz-se vigorar o regime segundo o qual só por falta de alternativa e em casos devidamente fundamentados, a segunda perícia será colegial.
II - Em face da redação dada ao artº 21º, nº4, da Lei 45/2004, no âmbito das perícias médico-legais, não basta que uma das partes requeira a sua realização nesses termos para que a perícia seja efetuada em moldes colegiais.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Companhia de Seguros…, S.A., Ré nos autos de acção declarativa, com processo ordinário, nº3098/12.5TBVCT, do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, em que é Autora M…, veio recorrer do despacho judicial proferido nos autos que indeferiu a realização de perícia colegial.

Nas alegações que apresenta, conclui do seguinte modo:
(…)
XXVIII- A impossibilidade de realização no processo de perícia colegial corresponde, claramente, a uma redução das garantias de defesa das partes. De facto, impede-se dessa forma que as partes tenham uma efectiva interferência no resultado da perícia, mediante a indicação de peritos da sua confiança para nelas intervirem.
XXIX- Entende a Ré que será ser desproporcionada e violadora do direito Constitucional ao “Acesso aos Tribunais e Tutela Jurisdicional Efectiva”, previsto no n.º 4 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, na sua vertente de direito a decisão judicial mediante “processo equitativo”, a interpretação das regras dos artigos 467º n. 3 do NCPC e 21º n.º 1, 3 e 4 da Lei 45/2004 no sentido de que não é admissível o deferimento de perícia médica em moldes colegiais quando requerida pelas partes;
XXX- Com efeito, aplicação dessas normas com base nessa interpretação na apreciação da admissibilidade da primeira perícia, impede (ou pode impedir), desde logo, a possibilidade de ser requerida uma segunda perícia em termos colegiais, com a inerente redução das garantias conferidas às partes na acção judicial.
XXXI- Pelo que a única interpretação de tais normas consentânea com a indicada norma da Constituição da República Portuguesa é a de que, caso as partes o tenham requerido, a perícia, inclusive a primeira, pode ser realizada em moldes colegiais.
XXXII- Devendo, nesse caso, ser conferido às partes, como vem sendo entendido pela jurisprudência já acima citada, a possibilidade de indicarem os seus peritos, em obediência do disposto no artigo 468º n.º 1 alínea b) e nº 2 do NCPC.
XXXIII- A douta decisão sob censura violou as regras dos artigos 569º n.º 2 alínea b) e n.º 2 do Código de Processo Civil (468º n.º 1 alínea b) e nº 2 do NCPC) e 21ºn.º 3 da Lei 45/2004, de 19 de Agosto e fez uma interpretação que não respeita o direito consagrado no n.º 4 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, das regras dos artigos 568º n.º 3 do C.P.C. (actual artigo 467º n.º 3), e artigo 21º n.º 4 da Lei 45/2004, de 19 de Agosto.
***
Não foram proferidas contra-alegações
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Para a decisão do presente recurso, considerar-se-ão os seguintes factos:
1. Companhia de Seguros…, S.A., Ré nos autos de acção declarativa, com processo ordinário em curso, em que é Autora M…, veio recorrer do despacho judicial proferido nos autos que indeferiu a realização de perícia colegial requerida por ambas as partes, pretendendo a revogação do despacho recorrido e a substituição por outro que a admita.
2. No despacho recorrido, proferido em 18/10/2013, para indeferir tal pretensão, fez-se consignar o seguinte: “Uma vez que está em causa a realização de uma perícia médica, não obstante o requerido pelas partes, uma vez que não resultam dos autos - nem nada foi invocado - motivos justificados que imponham uma perícia nos moldes pretendidos (colegial) - a mesma será realizada nos termos do artigo 568°, n" 3, do CPC (actual artigo 467°, n°3), conjugado com o artigo 21° da Lei n°45/2004, ou seja, o exame médico será singular.”
3. Nos autos, e por meio de requerimentos probatórios apresentados por cada uma das partes, respectivamente, nos termos e para os efeitos do artº 512º do Código de Processo Civil, vieram as partes, Autora e Ré/recorrente requerer a sujeição da Autora a exame médico, a realizar em moldes colegiais, indicando cada uma das partes o seu perito, dando cumprimento ao disposto no artº 577º-nº1 do citado código.
4. O requerimento probatório da recorrente foi apresentado em 01 de Julho de 2013.

Decidindo:
A questão que se nos depara traduz-se em saber se, no que concerne a exames médicos, é admissível a realização de perícia médica em moldes colegiais, requerida pela parte.
Como se consignou, o requerimento probatório foi apresentado em 01 de Julho de 2013.
De acordo com o estatuído no artº 388º do Código Civil, a prova pericial destina-se à percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas não devam ser objecto de inspecção judicial.
Seguindo Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pag. 262, ela “Traduz-se na percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, (…), que não fazem parte da cultura geral ou da experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas».
Estipula o - ao tempo vigente - artº 568º, nº1, do Código de Processo Civil, que a perícia é realizada por um único perito, remetendo depois, no que respeita à realização das perícias médico-legais, para o que se dispõe em diploma regulamentar avulso ao dizer, no nº3, que as perícias médico-legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta.
Ora, tal diploma é precisamente a Lei 45/2004 que, no artº 21º, nº1, consagra que as perícias de clínica médico-legal e forense são realizadas por um perito médico.
Já preceitua, porém, o seu nº3 que isso não é aplicável aos exames em que outros normativos legais determinem disposição diferente.
Com base na articulação das disposições contidas no artº 590º do Código de Processo Civil e 21º, nº3, da aludida lei, defender-se-á que esta já prevê a perícia médica colegial e, portanto, impõe-se, tão só, aplicar a regra da colegialidade daquele primeiro normativo, ainda assim, confinada à segunda perícia, que aqui não se configura.
No que concerne à segunda perícia, estipulava o artigo 589º do citado Código de Processo Civil que qualquer das partes pode requerer que a ela se proceda, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
Assim, sem mais, seríamos levados a pensar que, também no âmbito das perícias médicas, haveria lugar, por via de regra, a perícias colegiais, se requeridas como segundas.
Acontece, todavia, que esta posição não confere qualquer sentido útil à norma do nº4, ainda do artº 21º, da dita Lei, nos termos da qual as perícias médicas colegais previstas no Código de Processo Civil devem ficar reservadas para os casos em que o juiz, na falta de alternativa, o determine de forma fundamentada.
Temos, assim, que, por lei especial relativa a perícias médicas, é afastada a regra geral contida no Código de Processo Civil (ao tempo vigente) segundo a qual a primeira perícia é singular e a segunda, por regra, colegial, fazendo vigorar exactamente o regime inverso, isto é, só por falta de alternativa e em casos devidamente fundamentados, a perícia será colegial.
Em face da redacção dada ao artº 21º, nº4, da Lei 45/2004, no âmbito das perícias médico-legais, não basta que uma das partes requeira a sua realização nesses termos para que a perícia seja efectuada em moldes colegiais – cf. no mesmo sentido, o acórdão desta Relação, datado de 08.05.2012 (itij).
E, «mesmo quando admissíveis, as perícias colegiais, no âmbito da clínica médico-legal e forense, nunca serão efectuadas por peritos indicados ou nomeados, nos termos do artº 569º do C.P.C., já que tais perícias são efectuadas por médicos do quadro do Instituto ou contratados nos termos da referida lei (artº 27º, nº 1) ou, eventualmente, por docentes ou investigadores do ensino superior no âmbito de protocolos para o efeito celebrados pelo Instituto com instituições de ensino públicas ou privadas (nº2 do artº 27º)». – acórdão da Relação do Porto de 13.12.2012 (itij).
Volvendo ao caso em apreço, nada é invocado de exclusivamente a ele atinente que justifique o afastamento da enunciada regra de perícia singular, que sempre seria por mera aplicação do regime do Código de Processo Civil.
De resto, os argumentos ora aduzidos em sede de recurso não foram considerados relevantes pelo legislador; ao invés, entendeu o mesmo que os peritos do IML estão especialmente vocacionados e detêm formação e conhecimentos superiores neste domínio, por forma a dispensar essa colegialidade.
Também não é de molde a considerar-se beliscada a sua imparcialidade, atenta a natureza pública do organismo em que tais peritos se integram, como, do mesmo modo, não se conclui por diminuição de garantias das partes, uma vez que podem reclamar do laudo e pedir a presença daqueles em julgamento ou requerer o segundo exame.
Nesta medida, não se descortina em que fica beliscado o direito a um processo equitativo nem, consequentemente, onde se colhe a invocada inconstitucionalidade.

III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar totalmente improcedente a apelação e confirmar o despacho recorrido.
Custas pela recorrente.
Guimarães, 20 de fevereiro de 2014
Raquel Rego
António Sobrinho
Luísa Duarte (com voto de vencido)
Voto vencido, nos termos do projecto de Acórdão que elaborei, e pelos fundamentos aí expressos, nos termos que se transcrevem:
(…)
B. Decidindo
Nos termos conjugados do art.º 568º- nº 1 e 3 e 569º do Código de Processo Civil (correspondente ao artºs 467º e 468º do NCódigo de Processo Civil), e, artº 21º- nº 1, 3 e 4 da Lei nº 45/2004, de 19/Agosto, que estabelece o regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses, a perícia é requisitada pelo Tribunal a estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado, ou, quando tal não seja possível ou conveniente, realizada por um único perito, nomeado pelo juiz de entre as pessoas de reconhecida idoneidade e competência na matéria em causa, e, tratando-se de perícia médico-legal será realizada pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta;
tudo sem prejuízo do disposto no artº 569º do Código de Processo Civil, que regulamenta a realização de perícia colegial, - (conforme expressamente decorre do nº 1, parte final do citado artº 568º) - ,
dispondo, ainda, os citados nº 1, 3 e 4 do artº 21º da Lei nº 45/2004 –
“ 1- Os exames e perícias de clínica médico-legal e forense são realizados por um médico perito ; 3 - O disposto no nº1 não se aplica aos exames em que outros normativos legais determinem disposição diferente; 4 –Dado o grau de especialização dos médicos peritos e a organização das delegações e gabinetes médico-legais do Instituto, deverá ser dada primazia, nestes serviços, aos exames singulares, ficando as perícias colegiais previstas no Código de Processo Civil reservadas para os casos em que o juiz, na falta de alternativa, o determine de forma fundamentada.”
Relativamente à realização de Perícia Colegial determina o artº 569º do Código de Processo Civil “1. A perícia é realizada por mais de um perito, até ao número de três, funcionando em moldes colegiais ou interdisciplinares: a) Quando o juiz oficiosamente o determine, por entender que a perícia reveste especial complexidade ou exige conhecimento de matérias distintas; b) Quando alguma das partes, nos requerimentos previstos nos artº 577 e 578º-nº1 (artº 475º e 476º do NCPC), requerer a realização de perícia colegial, devendo as partes indicar os respectivos peritos nos termos dos nº 2 e 3 do citado preceito legal;
dispondo o nº2 do citado artº 569º do Código de Processo Civil que no caso previsto na alínea.b) do número anterior, se as partes acordarem logo na nomeação de peritos, é aplicável o disposto na segunda parte do nº2 do artigo 568º do Código de Processo Civil- designadamente, havendo acordo das partes sobre a identidade dos peritos a designar, deve o juiz nomeá-los, salvo se fundamentadamente tiver razões para pôr em causa a sua idoneidade ou competência;
não havendo acordo, cada parte escolhe um dos peritos e o juiz nomeia o terceiro;
em qualquer dos casos, tratando-se da nomeação de peritos pelas próprias partes, não está em causa a nomeação por estas dos serviços médico-legais ou peritos médicos contratados nos termos previstos na Lei nº 45/2004, de 19/Agosto, que estabelece o regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses,
regime este de que fazem uso os Tribunais nos casos de nomeação de peritos médicos pelo Juiz da causa ( v. artº 5º, 18º, 19º, 20º, 22º, 24º da citada Lei nº 45/2004, de 19/Agosto, e que se encontra sujeito à obrigação de primazia dos exames singulares, só devendo o juiz optar pela realização das perícias colegiais previstas no Código de Processo Civil, nos casos em que, na falta de alternativa, o determine de forma fundamentada, nos termos prescritos no nº4 do artº 21º da citada Lei nº 45/2004,
sendo, assim, tal regime inaplicável no caso dos autos, em que está em causa a nomeação de peritos pelas próprias partes e que obedecerá à regulamentação determinada no nº2 do artº 569º do Código de Processo Civil, acima indicada ( salvo, relativamente ao Tribunal caso haja de nomear um terceiro perito nos termos do nº2, parte final do artº 569º do Código de Processo Civil).
Nos autos, e por meio de requerimentos probatórios apresentados por cada uma das partes, respectivamente, nos termos e para os efeitos do artº 512º do Código de Processo Civil, vieram as partes, a Autora e a Ré/recorrente requerer a sujeição da Autora a exame médico, a realizar em moldes colegiais, indicando cada uma das partes o seu perito, dando cumprimento ao disposto no artº 577º-nº1 do citado código.
Mostra-se, consequentemente, cumprido o legal formalismo á realização da requerida perícia Colegial, não determinando a lei a necessidade de fundamentação do requerimento caso as partes pretendem usar a faculdade prevista na alínea.b) do nº1 do artº 569º do Código de Processo Civil; sendo inaplicável no caso sub judice a norma do nº 4 do artº 21º da Lei nº 45/2004, sendo, ainda, este normativo, bem como o regime jurídico previsto na citada Lei, inaplicável à nomeação de peritos pelas próprias partes nos termos do artº 569º-nº1 alínea.b) e nº2 e 3 do Código de Processo Civil”
Assim, concluindo, nos termos expostos, pela procedência dos fundamentos da apelação, e pela revogação do despacho recorrido o qual determinaria fosse substituído por um outro que deferisse a perícia médica colegial requerida por ambas as partes, Autora e Ré, nos termos legais;
mais salientando, que nenhuma distinção decorre, relativamente à natureza das perícias, do artº 569º do Código de Processo Civil citado, e, o texto actual do indicado artº 569º, correspondente ao artº 468º do NCPC, reproduz e mantém o texto anterior e adita um nº 5 que determina a realização da perícia por um só perito nos termos do artº 467º do NCPC, nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, previsibilidade que não se verifica no caso dos autos.
Formulando as seguintes Conclusões:
I. Haverá lugar à realização de Perícia Colegial, nomeadamente, e como determina o artº 569º -nº1-alínea.b) do Código de Processo Civil ( correspondente ao artº 468º- nº1-alínea.b) do NCódigo de Processo Civil ), quando alguma das partes, nos requerimentos previstos nos artº 577 e 578º-nº1 ( artº 475º e 476º do NCPC), requerer a sua realização de perícia colegial, devendo as partes indicar os respectivos peritos nos termos dos nº 2 e 3 do citado preceito legal, não determinando a lei a necessidade de fundamentação do requerimento caso as partes pretendem usar tal faculdade.
2. O regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses, nos termos previstos na Lei nº 45/2004, de 19/Agosto, destina-se à nomeação de peritos pelos Tribunais nos casos de nomeação de peritos médicos pelo Juiz da causa ( v. artº 5º, 18º, 19º, 20º, 21, 22º, 24º da citada Lei nº 45/2004, de 19/Agosto ), sendo, assim, tal regime inaplicável quando está em causa a nomeação de peritos pelas próprias partes e que obedecerá à regulamentação determinada no nº2 do artº 569º do Código de Processo Civil.