Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
802/11.2TBVCT-E.G1
Relator: CONCEIÇÃO BUCHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
CIRE
EXONERAÇÃO DO PASSIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. O artigo 235º do CIRE introduziu uma medida de protecção do devedor, permitindo que este, caso não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, venha a ser exonerado desses mesmos créditos.
II. A exiguidade ou mesmo inexistência de rendimento disponível no momento em que é proferido o despacho liminar de indeferimento ou o despacho inicial, previstos nos artigos 238º e 239º do CIRE, não constitui fundamento, só por si, para se indeferir o pedido de exoneração do passivo restante.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do tribunal da Relação de Guimarães.

Proc. n.º 802/11.2TBVCT-E.G1


I – A… veio requerer a declaração da sua insolvência e a exoneração do passivo restante, nos termos do artigo 235v, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Para o efeito, declarou expressamente que preenche todo os requisitos dos quais a lei faz depender a exoneração do passivo restante, nos termos do n 3, do artigo 236º, do C.I.R.E. e que se obriga a observar todas as condições que a exoneração do passivo restante envolve e as quais estão estabelecidas nos artigos 237º seguintes do CIRE.

Na assembleia de apreciação do relatório, e relativamente ao pedido de exoneração do passivo restante, dos credores presentes absteve-se a “Caixa… , S.A.”e votaram contra o “Banco… , S.A”, o “B… ”, a “Caixa… ”, o “Banco… , S.A.”, o “Banco… ”, o “T… , LLC”, o “B… ”, a “Caixa… ” e o Banco… , S A.
Apenas este último credor fundamentou a sua posição, alegando que o pedido de exoneração do passivo restante deve ser liminarmente indeferido, porquanto o insolvente, apesar de se ter apresentado à insolvência, não o fez nos seis meses seguintes à verificação da sua situação de insolvência.
Conforme os factos constantes da própria petição inicial de insolvência apresentada pelo devedor, e conforme consta do relatório da sentença da sua declaração de insolvência, a situação de insolvência da insolvente era já conhecida há vários anos, uma vez que a mesma decorreu de avales prestados pelo próprio a várias instituições bancárias, na qualidade de gerente da sociedade comercial I… , Lda. e outras, sociedade que apesar de somente ter sido declarada insolvente em Dezembro de 2010, há muito que deixara de cumprir com as suas responsabilidades de pagamento junto das mais diversas instituições bancárias, entre elas o aqui credor B…
Acresce que o insolvente não alegou, conforme deveria, uma vez que lhe cabia o ónus da prova, que a falta de apresentação nos seis meses seguintes à verificação da sua situação de insolvência não provocou prejuízos sérios aos credores.
O Sr Administrador da Insolvência emitiu parecer, pugnando pela aceitação da exoneração do passivo restante e juntou aos autos cópia das reclamações de créditos apresentadas pelos credores do insolvente.
Foi junto aos autos o certificado do registo criminal do insolvente.
Foi proferida decisão nos seguintes termos:
Por tudo o exposto, por falta de fundamento da oposição, e verificando-se inexistir qualquer motivo de indeferimento liminar, nos termos do disposto no artigo 239º, n 1, do CIRE, determina-se que durante os cinco anos do período de cessão ali previsto, o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir se considere cedido ao fiduciário, cabendo-lhe, ainda, cumprir as obrigações previstas no n 4, do artigo 239, do CIRE, sob pena de cessação antecipada do respectivo procedimento.
Nomeia-se como fiduciário o Sr Administrador da Insolvência – artigo 239º, n.º 2 do CIRE.
Tenha-se em consideração o disposto no artigo 240º, do CIRE.
Inconformado o Monte… - Sucursal em Portugal, interpôs recurso cujas alegações terminam com as seguintes conclusões :
A exoneração do passivo restante apenas deverá ser concedida a quem se comprometa nos cinco anos posteriores ao encerramento da insolvência a compensar os credores na máxima parte do seu rendimento disponível .
É que a correspondência da benesse concedida da exoneração do passivo restante é o esforço que o insolvente faz no sentido de pagar aos credores, durante o período da cessão do rendimento, o máximo dos prejuízos por si causados.
In casu, a cessão não é possível porque o devedor não aufere qualquer rendimento susceptível de cessão, nem tanto se vislumbra dos elementos carreados nos autos qualquer perspectiva séria do insolvente poder vir a obter rendimentos que lhe permitam fazer a cessão do rendimento disponível – cfr. arts. 5º, 7º, 12º, 13º, 19º, 22º e 24º do requerimento de apresentação à insolvência.
Por este motivo, os créditos da insolvência não serão pagos, sequer parcialmente, nem o serão nos cinco anos posteriores ao encerramento da insolvência.

O recorrido apresentou contra-alegações, nas quais pugna pela manutenção do decidido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – É pelas conclusões do recurso que se refere e delimita o objecto do mesmo, ressalvadas aquelas questões que sejam do conhecimento oficioso – artigos 684º e 685-A Código de Processo Civil -.

Em 1ª instância foi dada como provada a seguinte matéria de facto:

a) O requerente foi sócio-gerente da sociedade “I… , Lda.”, que foi julgada insolvente por decisão, transitada em julgado em 02-12-2010, do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia.
b) O requerente está, desde 1 de Março de 2011, empregue na firma “A… , Lda”, auferindo o vencimento mensal de €500,00, acrescido do subsídio de alimentação de €4,49, o que constitui o seu único rendimento, que é totalmente absorvido com as suas despesas de habitação, alimentação, vestuário, transporte e saúde;
c) Embora seja administrador das sociedades “A… , S.A.”, com sede na Rua Particular da Comital, Armazém A, Formiga, freguesia de Ermesinde, concelho de Valongo, registada e com o NIPC 506871495 e “A… ,S..A.”, com sede na Rua Pedro Homem de Meio, n 555Q, Sala 501, freguesia de Aldoar, concelho do Porto, registada e com o NIPC 508837766, e, ainda, sócio-gerente de “W… , Lda”, sociedade comercial por quotas com sede na Praça de Camões, lote 305/306, r/c Esq, freguesia de Chafé, concelho de Viana do Castelo, registada e com o NIPC 509015115, o certo é que se tratam de sociedades sem actividade e das quais não aufere qualquer rendimento;
d) Tem como únicos bens as participações sociais de tais sociedades e um imóvel.
e) Sobretudo a partir da data da declaração de insolvência da referida sociedade de que era sócio-gerente que o Requerente tem vindo a acumular dívidas, grande e significativa parte delas, relativas aos avais que prestou a esta sociedade;
f) Esse acumular de dívidas, acrescido de falta de rendimentos, levou a que não tivesse qualquer possibilidade de cumprir as suas obrigações, nem mesmo as relativas à sua subsistência.
g) Foi e é com a ajuda de amigos e familiares que sobrevive e satisfaz as suas necessidades básicas, sobretudo até ter conseguido arranjar um emprego.
h) De acordo com a lista provisória de credores apresentada pelo Administrador da Insolvência, as dívidas do requerente ascendem ao montante de € 7.551.412,38 (sete milhões quinhentos e cinquenta e um mil quatrocentos e doze euros e trinta e oito cêntimos).
i) As responsabilidades da sociedade I… da qual o insolvente era gerente, para com o credor “Banco… , S.A.”, relativamente às quais aquele deu o seu aval, foram incumpridas no decorrer dos meses de Janeiro, Fevereiro e Agosto de 2010.
j) Consta da lista provisória de credores apresentada pelo Administrador da Insolvência que o crédito reclamado pelo “Banco… , S.A.” ascende a €1.050.064,42.
l) O requerente apresentou-se à insolvência no dia 4 de Março de 2011.
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Dispõe o artigo 235º do CIRE que, «se o insolvente for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste…».
Como se refere no ponto 45 do preâmbulo do DL 53/2004, de 18 de Março, «o Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos – designado período de cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como vem definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica».
O citado artigo 235º introduziu, assim, uma medida de protecção do devedor, permitindo que este, caso não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, venha a ser exonerado desses mesmos créditos. Ou seja, apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que se tenha conseguido satisfazer a totalidade dos credores, o devedor fica vinculado ao pagamento a estes durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente. A finalidade é que o devedor não fique amarrado a essas obrigações.
«Trata-se de uma solução inspirada no chamado modelo de fresh start: o devedor pessoa singular liberta-se daquele peso e pode recomeçar, de novo, a sua vida. Os cinco anos assemelhar-se-ão, pois, a um purgatório: durante esse período, o devedor vai pagando as suas dívidas, adoptando um comportamento adequado, mas esse período é considerado por lei o suficiente para que venha o perdão e com ele lhe seja dada uma nova oportunidade». Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Revista da Faculdade de Direito da UNL, pág. 167.

O artigo 239º, nº 2, estabelece: “ despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhido pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência…”.
O nº 3 do mesmo preceito refere que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão, na parte que aqui importa, do que seja razoavelmente necessário para «o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional» (alínea b), subalínea i)).
A razão da exclusão de certos rendimentos «radica na chamada função interna do património – base ou suporte de vida do seu titular – e na sua prevalência sobre a função externa – garantia geral dos credores.
Assim, não integra o rendimento disponível o valor que seja necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, em termos minimamente dignos. No sentido de assegurar um critério objectivo quanto ao montante desta exclusão, a norma em causa estabelece um valor máximo, referindo-o a três vezes o salário mínimo nacional. Este limite só pode ser excedido mediante decisão do juiz, devidamente fundamentada» - Carvalho Fernandes e João Labareda, Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência, pág. 295.
Mas, estabelecendo este limite, a lei não proíbe, como é lógico, que o sustento minimamente digno do devedor possa ser inferior a três vezes o salário mínimo nacional.
Finalmente, nos termos do nº 4, alíneas a) a e), durante o período de cessão, o devedor fica obrigado a: não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legitimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
Para obter a exoneração pretendida, no final, «o devedor terá de ter mostrado uma conduta exemplar, pautada pela lisura e transparência, durante os cinco anos subsequentes ao fim do processo de insolvência. Tem também de ficar evidente que fez o que estava ao seu alcance para obter ou pelo menos não deixar de obter os rendimentos necessários para satisfazer os credores. Na verdade, nos termos do artigo 239º, o devedor tem não só de transmitir todas as informações relevantes ao tribunal e ao fiduciário (desde as relativas a rendimentos e património às relativas a mudança de domicílio ou de emprego), como demonstrar que tem uma atitude activa na procura de um rendimento estável (não pode abandonar o emprego sem justa causa e tem de provar que procura activamente um novo emprego)». Assunção Cristas, ob. cit., pág. 171 e 172.
Por conseguinte, o devedor pode até não ter emprego, mesmo quando o tribunal se pronuncia sobre a admissão do pedido de exoneração, quer porque ainda o não obteve, quer porque o perdeu e, consequentemente, possa não ter, nesse momento, rendimento disponível. E a lei também não exige existência de rendimentos de proveniências diferentes do trabalho para que o devedor possa beneficiar da medida de protecção em análise.
A lei apenas exige o cumprimento das referidas obrigações previstas nas diversas alíneas do nº 4 do citado artigo 239º e, nomeadamente, as destinadas a garantir que o devedor é diligente na procura da manutenção de um rendimento que possa vir a satisfazer os credores – alíneas b) e d).
Se a lei exigisse a necessidade do insolvente dispor, desde logo, de um rendimento disponível para ser admitido a poder gozar da exoneração, excluía-se deste benefício «os que se encontrassem em situação económica e financeira mais débil, mesmo que sempre se tenham conduzido como pessoas de bem e recorram ao instituto na firme convicção de, no futuro, poderem vir a reiniciar uma nova vida, social e economicamente útil». Acórdão da Relação do Porto, de 18.6.2009, in wwwdgsi.pt.
Por conseguinte, no sentido do que se decidiu, a exiguidade ou mesmo inexistência de rendimento disponível no momento em que é proferido o despacho liminar de indeferimento ou o despacho inicial, previstos nos artigos 238º e 239º do CIRE, não constitui fundamento, só por si, para se indeferir o pedido de exoneração do passivo restante.
Naqueles despachos, liminar ou inicial, compete, respectivamente, aferir do preenchimento pelo devedor dos requisitos de ordem substantiva, previstos no artigo 238º do CIRE, e declarar que, para a exoneração ser concedida, o devedor tem de observar, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, o disposto no artigo 239º, quer quanto à cessão do rendimento disponível, quer quanto às obrigações estabelecidas no seu nº 4.
O indeferimento liminar a que se refere o citado artigo 238º «não corresponde a um verdadeiro e próprio indeferimento liminar, mas a algo mais, uma vez que os requisitos apresentados por lei obrigam à produção de prova e a um juízo de mérito por parte do juiz. O mérito não é sobre a concessão ou não da exoneração, pois essa análise será feita passados cinco anos. Aqui o mérito está em aferir o preenchimento de requisitos substantivos que se destinam a perceber se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada. Ainda não é a oportunidade de iniciar a vida de novo, liberado das dívidas, mas a oportunidade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável. Sendo certo que esse desfecho favorável depende totalmente da sua actuação». Assunção Cristas, ob. cit., pág. 169.
Tal como considerou a decisão recorrida, verificam-se no caso, os pressupostos de que depende o deferimento liminar, pelo que o pedido deveria ter sido deferido.
Não foram violadas as normas que constam dos artigos 235º e 239º do CIRE.
Improcede, pois, o recurso.
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SUMÁRIO:
I. O artigo 235º do CIRE introduziu uma medida de protecção do devedor, permitindo que este, caso não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, venha a ser exonerado desses mesmos créditos.
II. A exiguidade ou mesmo inexistência de rendimento disponível no momento em que é proferido o despacho liminar de indeferimento ou o despacho inicial, previstos nos artigos 238º e 239º do CIRE, não constitui fundamento, só por si, para se indeferir o pedido de exoneração do passivo restante.
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III – Pelo exposto acordam os Juízes desta Secção em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela apelante

Guimarães, 22 de Setembro de 2011.
Conceição Bucho
Antero Veiga
Luísa Duarte