Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1920/15.3T8VRL.G2
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser concretizado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova).

II. Dependendo a apreciação do recurso pertinente à interpretação e aplicação do Direito ao caso concreto, do prévio sucesso do simultâneo recurso interposto sobre a matéria de facto fixada, o conhecimento daquele primeiro ficará prejudicado na proporção da improcedência deste segundo (arts. 608º, nº 2 e 663º, nº 2, in fine, ambos do C.P.C.).

III. A falta de imediata reacção à violação de um direito próprio não é suficiente para que se possa afirmar que a posterior reacção do seu titular consubstancia abuso de direito, na modalidade de supressio, desde que aquela inicial passividade não ocorra durante um período de tempo significativo, e/ou não seja acompanhada de outras circunstâncias que permitam concluir que o direito não será mais exercido (art. 334º do C.C.C.).

IV. A reacção não imediata do titular do direito de propriedade violado por prévia construção não é suficiente para que se possa afirmar que aquele agirá então em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, já que necessariamente não foi a sua posterior passividade que deu causa à prévia violação perpetrada (art. 334º do C.C.C.).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo
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I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada

1.1.1. José e mulher, Maria, (aqui Recorridos), residentes no Lugar …, em Sabrosa, propuseram a presente acção declarativa, então com processo suM. A., contra Manuel e mulher, Joaquina, (aqui Recorrentes), quando em Portugal residentes no Lugar …, em Sabrosa, pedindo que os Réus fossem condenados

· a reconhecer o seu direito de propriedade sobre um prédio rústico (que identificaram);

· a demolir um pilar que implantaram no muro meeiro, existente entre aquele seu prédio rústico e outro prédio pertencente aos Réus, bem como a reconstruir o anterior muro divisório e delimitador das duas propriedades (respeitando as características e áreas originais);

· a reconhecer como sua uma parcela de terreno abusivamente ocupada pelos Réus com uma vedação em madeira;

· a retirar a vedação em madeira abusivamente colocada na sua propriedade;

· a fechar uma passagem aberta para a sua propriedade;

· a pagar-lhes uma sanção pecuniária diária compulsória, de valor não inferior a € 10,00, por cada dia - a contar da respectiva citação - em que não promovessem o cumprimento das acções pretendidas obter deles (nomeadamente, a demolição do pilar, o retirar da vedação em madeira, e o fechar da passagem).

Alegaram para o efeito, em síntese, que, sendo donos e legítimos proprietários de um prédio rústico sito no Lugar do …, denominado «Quintal», e confrontando o mesmo de norte com o logradouro da habitação dos Réus, sendo ambas as propriedades separadas por um muro meeiro divisório e delimitador, ali existente desde tampos imemoriais, viram aqueles desfazê-lo; e implantar no local um pilar, na parte da propriedade que pertence a eles próprios (aqui Autores).
Mais alegaram que os Réus vedaram ainda a sua própria propriedade, por meio de uma vedação em madeira, colocada porém numa parcela que é deles próprios (aqui Autores), com cerca de 5 m por 20 m, abrindo nela uma passagem - até então inexistente - de acesso à sua própria habitação.
Por fim, os Autores alegaram recusarem-se os Réus a repor a propriedade deles próprios no estado anterior, o que lhes seria devido.

1.1.2. Regularmente citados, os Réus (aqui Recorrentes) contestaram, pedindo que a acção fosse julgada improcedente; e deduziram reconvenção (prevenindo a hipótese de se vir a reconhecer o carácter meeiro do muro em causa), pedindo que

· lhes fosse reconhecido o direito de adquirem aos Autores a respectiva meação no dito muro, na área ocupada pelo pilar que nele implantaram, mediante o pagamento aos mesmos do respectivo valor.

Alegaram para o efeito, em síntese, não ser verdadeira grande parte da factualidade alegada pelos Autores, nomeadamente por o muro em causa fazer apenas parte do seu próprio prédio, não sendo divisório mas sim servindo exclusivamente de suporte de terras; e terem os Autores consciência desse facto, o que explica que não se tenham oposto à construção do pilar que agora pretendem ver derrubado, tendo a mesma ocorrido há três anos (agindo por isso, nos autos, em abuso de direito).
Mais alegaram que a vedação de madeira aqui igualmente em causa delimita exclusivamente um outro prédio, pertença deles próprios.
Já em sede de reconvenção, os Réus alegaram que do pilar referido não adviria para os Autores qualquer prejuízo, ou ser o mesmo insignificante, quando comparado com o prejuízo ou desvantagem económica que a respectiva demolição implicaria para eles próprios.
Defenderam, por isso, terem o direito de adquirir a propriedade do terreno ocupado por ele (caso se concluísse pela natureza meeira do muro onde se encontra implantado), equiparando-se para este efeito o pilar a parte de uma construção, que teria ocupado cerca de 0,15 m2 (0,50 cm x 0,30 cm), sendo apenas metade correspondente à meação dos Autores.

1.1.3. Os Autores replicaram, reiterando o bem fundado do seu pedido inicial; e pedindo que a reconvenção fosse considerada totalmente improcedente, sendo eles próprios absolvidos do respectivo pedido.
Alegaram para o efeito, em síntese, não ser o muro em causa de suporte de terras, já que o chão das casas ali existente sempre ficou à superfície; e nunca se ter acedido às mesmas pela sua própria casa, já que o prédio dos Réus sempre confrontou com caminho público.
Mais alegram terem-se, de facto, oposto à construção do pilar que pretendem ver demolido, estando a sua denúncia na base do embargo levantado pela Câmara Municipal à respectiva edificação.
Por fim, alegaram ser inaplicável à hipótese dos autos o disposto no art. 1343º do C.C., não tendo os Réus o direito a adquirir a propriedade do muro onde implantaram o seu pilar, por o mesmo não consubstanciar construção implantada em terreno próprio com uma pequena parte ocupando terreno alheio, e não se verificar ainda a boa fé exigida pelo preceito em causa.

1.1.4. Em sede de audiência preliminar, foi proferido despacho: admitindo a reconvenção deduzida; fixando o valor da acção em € 16.000,00; saneador (certificando a validade e a regularidade da instância); definindo o objecto do litígio («reivindicação de uma parcela de terreno com cera de 5 m por 20 m») e enunciando os temas da prova (07, tendo por objecto factos controvertido necessários à decisão do objecto do litígio); e apreciando os requerimentos probatórios das partes, bem como designando dia para realização da audiência final.

1.1.5. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente, e julgando a reconvenção totalmente improcedente, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Julgo a acção parcialmente procedente e em consequência condeno os RR. a:

a) reconhecerem o direito de propriedade dos AA., relativamente ao prédio rústico sito no lugar ..., denominado “Quintal”, composto de vinha, inscrito na matriz sob o art. 1197º e omisso na competente conservatória do registo predial;
b) a demolirem o pilar implantado no muro meeiro e a reconstruirem o muro divisório e delimitador das duas propriedades que respeite as características e áreas originais;
c) a reconhecerem que a parcela de terreno com cerca de 5m por 20m pertence aos autores;
d) a retirarem a vedação em madeira que abusivamente colocaram na propriedade dos AA.;
e) a fecharem a passagem aberta para a propriedade dos AA.
Absolvo os RR da condenação no pagamento de sanção pecuniária compulsória, de valor não inferior a € 10,00 por cada dia a contar da citação, em que os RR. não promovam o cumprimento do peticionado em b), d) e e) do pedido.
Condeno AA. e RR. nas custas do pedido principal na proporção de 1/6 para os AA. e 5/6 para os RR.
Julgo o pedido reconvencional totalmente improcedente e em consequência absolvo os AA. do mesmo.
Condeno os RR. nas custas do pedido reconvencional.
(…)»

1.1.6. Os Réus (Manuel e mulher, Joaquina) interpuseram recurso de apelação da dita sentença, pedindo nomeadamente que se decretasse a sua nulidade, para posterior decisão de matéria de facto alegada por eles próprios, relevante para a decisão da acção e da reconvenção (e ali ignorada).
Alegaram para o efeito, em síntese, ter o Tribunal a quo deixado de se pronunciar sobre questões que devia ter apreciado, nomeadamente sobre o abuso de direito por eles invocado (sendo, por isso, a sentença recorrida nula, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), I parte, do C.P.C.).

1.1.7. Não tendo os Autores apresentado contra-alegações, foi proferido acórdão em 20 de Abril de 2017, julgando procedente o recurso de apelação interposto, e anulando a sentença recorrida, por forma a que na mesma fosse ampliada a matéria de facto (tendo como objecto os artigos 13º, 14º, 18º, 19º, 21º, 22º, 25º, 27º, 28º, 30º, 31º e 35º da contestação).
Considerou-se para o efeito, em síntese: inexistir a alegada violação da al. d), I parte (não ter se juiz pronunciado sobre questões que devesse apreciar), do nº 1, do art. 615º do C.P.C., tendo sido apreciadas todas as questões suscitadas pelas partes, nomeadamente o abuso de direito invocado pelos Réus; mas tê-lo o Tribunal a quo feito sem elaborar qualquer Tema da Prova que tivesse por objecto a dita excepção de abuso de direito, decidida sem que se haja pronunciado, em sede de fundamentação de facto da sua sentença, sobre aqueles que os Réus tinham alegado para consubstanciarem a referida excepção.

1.1.8. Devolvidos os autos à 1ª instância, foi proferida nova sentença, julgando a acção parcialmente procedente, e julgando a reconvenção totalmente improcedente, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Julgo a acção parcialmente procedente e em consequência condeno os RR. a:

a) reconhecerem o direito de propriedade dos AA., relativamente ao prédio rústico sito no lugar ..., denominado “Quintal”, composto de vinha, inscrito na matriz sob o art. 1197º e omisso na competente conservatória do registo predial;
b) a demolirem o pilar implantado no muro meeiro e a reconstruirem o muro divisório e delimitador das duas propriedades que respeite as características e áreas originais;
c) a reconhecerem que a parcela de terreno com cerca de 5m por 20m pertence aos autores;
d) a retirarem a vedação em madeira que abusivamente colocaram na propriedade dos AA.;
e) a fecharem a passagem aberta para a propriedade dos AA.
Absolvo os RR da condenação no pagamento de sanção pecuniária compulsória, de valor não inferior a € 10,00 por cada dia a contar da citação, em que os RR. não promovam o cumprimento do peticionado em b), d) e e) do pedido.
Condeno AA. e RR. nas custas do pedido principal na proporção de 1/6 para os AA. e 5/6 para os RR.
Julgo o pedido reconvencional totalmente improcedente e em consequência absolvo os AA. do mesmo.
Condeno os RR. nas custas do pedido reconvencional.
(…)»
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1.2. Recurso (fundamentos)

Inconformados com esta decisão, os Réus (Manuel e mulher, Joaquina) interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo que o mesmo fosse julgado provido: revogando-se a sentença recorrida (sendo substituída por outra que julgasse a acção improcedente); ou decretando-se a sua nulidade, para análise e valoração de meios de prova não considerados, bem como para decisão de matéria de facto alegada por eles próprios, nos artigos 19º, 25º, 27º e 28º da contestação, e novamente omitida (não obstante o determinado no primeiro acórdão).

Concluíram as suas alegações da seguinte forma (inicialmente sintetizadas - sem repetições do processado, ou reproduções de textos legais ou jurisprudenciais -, e depois com a reprodução das suas conclusões):

1ª - Ser a sentença recorrida nula, por ter deixado de se pronunciar sobre questões que devia ter apreciado (art. 615º, nº 1, al. d), I parte, do C.P.C.), nomeadamente continuando a omitir factos cujo conhecimento lhe foi imposto pelo primeiro acórdão proferido nos autos.

1 - O anterior acórdão proferido sobre o primeiro recurso interposto decretou a nulidade da sentença determinando que nela fosse ampliada a matéria de facto dos artigos 13, 14, 18, 19, 21, 22, 25, 27, 28, 30, 31 e 35 da contestação.

2 - Sucede porém que a nova sentença proferida e da qual ora também se recorre não incluiu a matéria dos artigos 19, 25, 27 e 28, tanto bastando para que, embora com menor amplitude, se mantenha o vício de que enfermava a primeira sentença implicando que também esta deva ser declarada nula e determinar-se que nela seja ampliada a matéria de facto de forma a ser decidida a factualidade dos indicados artigos omitidos.

2ª - Dever ser anulada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, por terem sido totalmente ignorados os depoimentos de duas testemunhas arroladas por eles próprios (M. M. e António), nomeadamente na fundamentação dos factos provados enunciados sob os números 10 e 11 (art. 662º, nº 2, al. d) do C.P.C.).

11 - Para o caso de não ser adoptada a análise e valoração dessa prova que ora se propugna, então sempre se imporia a anulação do julgamento quanto aos mesmos pedidos uma vez que foram totalmente ignorados (não mereceram qualquer referência na sentença) os depoimentos de outras duas testemunhas dos RR. que versaram a mesma factualidade.
Referimo-nos às testemunhas M. M. e António.
Como facilmente se pode confirmar, ambas essas testemunhas depuseram sobre essa matéria, com base em consistente razão de ciência em termos de os seus depoimentos não poderem ser ignorados, como foram na sentença recorrida.
A primeira (D. M. M.) assegurou que a referida parcela de terreno era do lagar o que justificou, além do mais, por nunca lá terem feito nada os anteriores donos do terreno dos AA. assim como pela separação estJoséecida pelo pequeno muro lá existente (v.min. 25) .
Acrescentou ainda que a única coisa que viu os AA. fazerem nessa parcela de terreno foi o A. marido lá ter deitado lixo ( v. min. 25), do que ela própria (testemunha) o advertiu para não voltar a fazer, advertência essa que o A. marido acatou.
Acrescentou ainda, assim confirmando o depoimento da testemunha H. P., que os antigos donos do lagar utilizavam a dita parcela para lá deitar o bagaço quando faziam o vinho, para o que utilizavam a tal entrada que assegurou ser antiga e ainda lá se poder ver o "chumbadoiro" (ferro) da respectiva porta.
No mesmo sentido foi o depoimento da testemunha António que disse sempre conhecer o lagar e até ter estado para o comprar, assegurando também que a parcela de terreno existente sempre pertenceu a esse lagar, o que justificou pelas mesmas razões da testemunha anterior (v. min. 20).
Em abono da credibilidade destas duas testemunhas, apesar de ser respectivamente mãe da R. mulher e pai do R. marido, cumpre também salientar que ambos, para além de deporem de forma clara, segura e coerente não hesitaram em reconhecer factos desfavoráveis à posição dos RR., apesar de também nada os impedir de os terem omitido.
Disso sendo exemplo, quanto à primeira dessas testemunhas, ter reconhecido que quando o pilar estava a ser construído ter ouvido dizer "que o José falou qualquer coisa" (v.min. 23.35) significando que mostrou discordância quanto a isso.
Relativamente à segunda, é exemplo do que acaba de se referir ter afirmado desconhecer o que se tinha passado com a porta antes do lagar ser vendido aos RR. respondendo a tais questões que lhe foram colocadas pela Sra. Juiz "não sei, não posso cortar a direito por ninguém" "e não sei " (v.min. 25.45).
Para o caso de, já em sede do presente recurso a acção não ser julgada improcedente, sempre se imporá determinar a repetição do julgamento com vista à devida fundamentação e valoração dos referidos depoimentos.

3ª - Ter o Tribunal a quo feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma não permitia dar como provados os factos enunciados sob o número 2 («O referido prédio veio à posse dos AA. há mais de 30 anos, e é o quintal/logradouro de sua casa, sendo que continuada e ininterruptamente vêm possuindo o identificado prédio, nele, cultivando aquilo que entendem, pagando as respectivas contribuições e impostos, dele fruindo e dispondo como seus únicos donos, como tal se afirmando e sendo reconhecidos por toda a gente, sem oposição ou contestação de quem quer que seja»), sob o número 5, 1ª parte («O muro foi construído há mais de 50 anos por antepassados do A., e é a única divisão entre os dois prédios»), sob o número 10 («Sempre foram os AA. que procederam à limpeza e conservação de todo o seu logradouro até ao limite da parede da casa referida em 9. (improcede em consequência a impugnação motivada do artigo 19 da contestação)»), sob o número 11 («Os RR. colocaram uma vedação em madeira dentro do terreno dos AA. pretendendo ocupar uma parcela de terreno com cerca de 5m por 20m encostada à habitação referida em 9»), sob o número 12 («Sem autorização de quem quer que seja, aproveitando a ausência dos AA, procederam os RR a abertura de uma “porta” no limite esquerdo dessa casa, onde a casa adquirida em ruínas, extrema com a casa de habitação dos RR., para poderem aceder do seu logradouro à tal casa em ruínas que recentemente adquiriram»), e sob o número 13 («Nunca, aquela casa teve qualquer abertura para a parte de trás da casa »); e impunha que se dessem como demonstrados os factos não provados enunciados sob a alínea B) («O pilar referido em 8. foi construído pelos Réus com a convicção de que o muro lhes pertencia em exclusivo. (facto 14 da contestação)»), sob a alínea C) («A separar o prédio dos Réus do prédio dos Autores, no local visível na fotografia 6 junta com a petição inicial, existe um murete de tijolo, construído pelos anteriores donos do prédio dos Réus. (facto 18 da contestação)»), sob a alínea D) («O pilar construído, não acarreta qualquer prejuízo ou inconveniente para os Autores. (facto 30 da contestação)»), e sob a alínea E) («E se algum prejuízo ou inconveniente lhes importasse, sempre seria, senão insignificante, pelo menos muito menor que o prejuízo ou desvantagem económica que a pretendida demolição implicaria para os Réus»).

3 - O inconformismo dos RR. com a sentença recorrida baseia-se, em primeira linha, na decisão da matéria de facto quanto a matéria dos pontos 2, 5 (na parte "construído há mais de 50 anos pelos antepassados dos AA"), 10, 12 e 13 dos factos provados.

4 - O incorrecto julgamento e decisão da indicada matéria de facto decorre de uma também incorrecta e, quanto a nós, tão desajustada e parcial (no sentido de ter sido ignorada alguma prova relevante) que só o conseguimos entender por uma inversão do iter decisório da Mma Juiz a quo que, em vez de, em primeiro lugar, analisar e valorar a prova e decidir de acordo e em função das respectivas conclusões, embora, decerto que, involuntariamente, terá procedido precisamente ao inverso: primeiro adoptou um sentido de decisão (no caso, de julgar a acção procedente) analisando e valorando a prova para justificar essa sua decisão prévia.

5 - Quanto ao ponto 2 dos Factos provados a respectiva decisão mostrasse motivada pela inspecção ao local e pelas testemunhas.
No que respeita à inspecção ao local, aceita-se que permita verificar a ligação de um terreno a uma casa em termos de se poder concluir ser o seu logradouro ou quintal.
Mas a restante factualidade integrante do indicado ponto 2 (posse pelo tempo e nas demais condições exigidas para conduzir à aquisição por usucapião) só podia ser provada por testemunhas.
Só que, ao contrário do constante da motivação, nenhuma das testemunhas referiu o que quer que fosse sobre essa factualidade; nem sequer os próprios AA. nem o irmão do A. marido, a testemunha, M. A. disseram que tudo tivesse sido da mãe deles.
Aliás, o mencionado irmão do A. marido disse que antigamente era tudo ("todo o condomínio") de uma tal R. F., que não era mãe, deles (v. parte inicial/introdução do respectivo depoimento) Além disso, nenhuma das outras testemunhas referiu o que quer que fosse quanto a tal factualidade. Aliás, nem sobre a mesma foram inquiridas.
Tanto bastava para que não pudesse dar-se como provada a factualidade em apreço sem a qual também não poderia dar-se como provada a propriedade dos AA. sobre o prédio rústico identificado no art. 1º da p.i..
E porque todas as pretensões dos AA. correspondentes a todos os pedidos formulados se reportam e têm como pressuposto essa propriedade, tanto bastava para que a acção tivesse que ser julgada totalmente improcedente.

6 - No tocante à indicada parte do ponto 5 (muro construído pelos antepassados do A.) basta percorrer os depoimentos de todas as testemunhas, para imediatamente se verificar que ninguém mostrou conhecimento sobre a construção do muro, nem quanto ao tempo, nem quanto à autoria dessa construção.

7 - Com base na análise conjugada da factualidade constante dos pontos 6, 14 e 15, permitindo concluir que o muro em questão servia de suporte de terras do prédio dos RR. (ponto 6), delimitava um caminho de acesso a casa antiga dos RR. (ponto 14) e apenas se prolongava precisamente até essa casa ficando aquém do limite do terreno que os AA. alegam pertencer-lhe, devia considerar-se ser um muro não meeiro, como alegado e pretendido pelos AA., mas pertencente ao prédio dos RR. implicando a improcedência do pedido formulado sob a al. B) - demolição do pilar construído pelos RR. e construção do muro.

8 - Mas se assim também não se entender e se considerar correcta a decisão de considerar o muro meeiro, sempre quanto à demolição do pilar nele construído pelos RR. devia ser julgada procedente a arguida excepção de abuso de direito por parte dos AA. quanto a esse pedido, igualmente implicando a respectiva improcedência.
Para tanto entendemos ser suficiente a matéria constante dos pontos 17 a 20 dos factos provados, uma vez que dela resulta ser mais que legitima e merecedora de protecção legal a expectativa dos RR. de nunca virem a ser confrontados por qualquer pretensão dessa natureza por parte dos RR.
Por maioria de razão, no mesmo sentido se impondo decidir dando-se como provada a matéria das als. D) e E) dos factos não provados, uma vez que tendo sido alegada pelos RR. competia aos AA. alegar e provar o contrário, o que de todo não aconteceu.

9 - Mas se também assim não se entender, com base na matéria constante dos pontos 16 e 20 dos factos provados e da al. B) dos factos não provados que deve passar a ter-se como provada, devia ser julgada procedente a reconvenção deduzida pelos RR., igualmente implicando a improcedência do mesmo pedido de demolição do pilar.
E a alteração da decisão da matéria de facto constante da al.B) dos factos não provados impõe-se pela devida consideração da prova produzida quanto à mesma.
Só por mera distracção se entende que a Mma Juiz recorrida tenha considerado não ter sido feita qualquer prova quanto à factualidade em referência
Com efeito, sobre essa matéria depuseram três testemunhas arroladas pelos RR.; M. M., H. P. e António. Tanto pela forma coerente e segura com que foram prestadas como pela mais sólida razão de ciência aos mesmos subjacente, os depoimentos dessas três testemunhas apresentam-se merecedoras de toda a credibilidade.
Ora, as mencionadas testemunhas confirmaram plenamente a matéria em questão (v. depoimento, M. M. ao min.24.19 - depoimento de H. P. ao min. 3.40 e de António, ao min. 21.20.

10 - A matéria dos pontos 10, 11, 12 e 13 devia igualmente ser dada como não provada tanto por insuficiência da prova dos AA. como pela prova em contrário feita pelas testemunhas arroladas pelos RR. e ainda por uma testemunha dos próprios AA., por sinal a que, pela sua razão de ciência (como antigo dono do prédio/lagar e parcela em questão), devia ser mais valorizada em termos probatórios.
Ora, essa testemunha M. J., sempre de forma clara e assertiva, afirmou que a parcela em questão (ao fundo do logradouro da casa dos AA.) pertencia ao lagar (pertencente aos RR.) (v.mins. 34.29, 35.46 e 3.05).
Enquanto que as outras duas testemunhas dos AA. (o irmão do A. marido, o mencionado M. A. e a Sra. V. F.) praticamente se limitaram a afirmar, sem qualquer fundamentação válida que a parcela em questão "é nossa" (testemunha M. A.) e "é do José" (testemunha V. F.).
Além disso, bem mais consistentes e credíveis em sentido contrário, tanto quanto à pertinência da parcela ao lagar (casa referida no ponto 9, recentemente adquirida pelos RR.) como à existência da porta nas suas traseiras para acesso a essa mesma parcela foi o depoimento da testemunha arrolada pelos RR. e mencionada na motivação.

Referimo-nos ao depoimento da testemunha H. P..
A Sra. Juiz limitou-se a desconsiderar completamente o seu depoimento referindo, sem o justificar minimamente, "ter mentido ao Tribunal".

Ora, tanto pela forma como foi prestado como pelo seu teor e razão de ciência, o depoimento dessa testemunha devia ter merecido todo o crédito.
Na verdade, disse sem que ninguém o contraditasse, que trabalhou naquela casa desde os 12 anos e que várias vezes saiu e entrou pela porta em questão de e para a parcela a que dava acesso (v.min.4.20), sendo esta utilizada para lá ser colocado o vinhaço depois de fazer o vinho no lagar.
Além disso, referiu os elementos integradores da porta antiga, bem como os degraus pelos quais ao mesmo acedia.
Com o devido respeito, não se consegue entender a razão de esse depoimento não ser valorado positivamente e, por maioria de razão, se ter considerado ser um depoimento mentiroso.
Para além do já contraposto a esse propósito, esta testemunha mostrou-se verdadeira e merecedora de todo o crédito, também por reconhecer factos desfavoráveis aos RR., apesar de nada o impedir de os omitir, designadamente ter sido advertido pelo irmão do A. marido quando andava a construir o pilar e que numa segunda fase dessa construção o A. marido não se encontrava na localidade.

Portanto, ao contrário do entendido e decidido pela Mma Juiz recorrida, a correcta análise e valoração da indicada prova que foi considerada na motivação da decisão da matéria de facto em apreço impunha dar-se como não provada a factualidade constante dos indicados pontos 10, 11, 12 e 13, implicando a improcedência dos pedidos das als. c), d) e e) dos quais se apresenta como fundamento.
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1.3. Contra-alegações

Os Autores não apresentaram contra-alegações.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2, ambos do C.P.C.), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, nº 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, in fine, ambos do C.P.C.).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, 04 questões foram submetidas à apreciação deste Tribunal:

- É a sentença em recurso nula, por ter deixado de se pronunciar sobre questões que devia ter apreciado (art. 615º, nº 1, al. d), I parte, do C.P.C.), nomeadamente continuando a omitir factos cujo conhecimento lhe foi imposto pelo primeiro acórdão proferido nos autos ?

- Deve ser anulada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, por terem sido totalmente ignorados os depoimentos de duas testemunhas arroladas pelos Réus (M. M. e António), nomeadamente na fundamentação dos factos provados enunciados sob os números 10 e 11 (art. 662º, nº 2, al. d) do C.P.C.) ?

- Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma

. não permitia dar como provados os factos enunciados sob o número 2 («O referido prédio veio à posse dos AA. há mais de 30 anos, e é o quintal/logradouro de sua casa, sendo que continuada e ininterruptamente vêm possuindo o identificado prédio, nele, cultivando aquilo que entendem, pagando as respectivas contribuições e impostos, dele fruindo e dispondo como seus únicos donos, como tal se afirmando e sendo reconhecidos por toda a gente, sem oposição ou contestação de quem quer que seja»), sob o número 5, 1ª parte («O muro foi construído há mais de 50 anos por antepassados do A., e é a única divisão entre os dois prédios»), sob o número 10 («Sempre foram os AA. que procederam à limpeza e conservação de todo o seu logradouro até ao limite da parede da casa referida em 9. (improcede em consequência a impugnação motivada do artigo 19 da contestação)»), sob o número 11 («Os RR. colocaram uma vedação em madeira dentro do terreno dos AA. pretendendo ocupar uma parcela de terreno com cerca de 5m por 20m encostada à habitação referida em 9»), sob o número 12 («Sem autorização de quem quer que seja, aproveitando a ausência dos AA, procederam os RR a abertura de uma “porta” no limite esquerdo dessa casa, onde a casa adquirida em ruínas, extrema com a casa de habitação dos RR., para poderem aceder do seu logradouro à tal casa em ruínas que recentemente adquiriram»), e sob o número 13 («Nunca, aquela casa teve qualquer abertura para a parte de trás da casa »);

. e impunha que se dessem como demonstrados os factos não provados enunciados sob a alínea B) («O pilar referido em 8. foi construído pelos Réus com a convicção de que o muro lhes pertencia em exclusivo. (facto 14 da contestação)»), sob a alínea C) («A separar o prédio dos Réus do prédio dos Autores, no local visível na fotografia 6 junta com a petição inicial, existe um murete de tijolo, construído pelos anteriores donos do prédio dos Réus. (facto 18 da contestação)»), sob a alínea D) («O pilar construído, não acarreta qualquer prejuízo ou inconveniente para os Autores. (facto 30 da contestação)»), e sob a alínea E) («E se algum prejuízo ou inconveniente lhes importasse, sempre seria, senão insignificante, pelo menos muito menor que o prejuízo ou desvantagem económica que a pretendida demolição implicaria para os Réus») ?

- Deverá ser alterada a decisão de mérito proferida, face à nova decisão de facto a proferir, por forma a que se reconheça a improcedência total da acção ?
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III - QUESTÃO PRÉVIA - Invalidades da sentença

3.1. Conhecimento de nulidades da sentença – Momento

3.1.1. Lê-se no art. 663º, nº 2 do C.P.C. que o «acórdão principia pelo relatório, em que se enunciam sucintamente as questões a decidir no recurso, expõe de seguida os fundamentos e concluiu pela decisão, observando-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607º a 612º».
Mais se lê, no art. 608º, nº 2 do C.P.C. que o «juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».
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3.1.2. Concretizando, tendo sido invocada pelos Réus recorrentes (Manuel e Joaquina) a nulidade, e/ou a necessária anulação, da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, deverá ser a mesma conhecida de imediato, e de forma prévia às restantes objecto da sua sindicância, já que, sendo reconhecida, poderá impedir o conhecimento das demais (neste sentido, Ac. da RL, de 29.10.2015, Olindo Geraldes, Processo nº 161/09.3TCSNT.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, como todos os outros citados sem indicação de origem).
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3.2. Nulidade da sentença (art. 615º, nº 1, al. d), I parte, do C.P.C.) - Anulação da sentença (art. 662º, nº 2, als. c) e d) do C.P.C.)

3.2.1.1. Nulidades da sentença versus erro de julgamento

As decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas distintas causas (qualquer uma delas obstando à sua eficácia ou validade): por se ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respectiva consequência a sua revogação; e, como actos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do C.P.C. (neste sentido, Ac. do STA, de 09.07.2014, Carlos Carvalho, Processo nº 00858/14).
Precisando, «os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença», já que «a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de dar lugar à actuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (artº 662º, nº 2, c) e d) do nCPC)» (Ac. da RC, de 20.01.2015, Henrique Antunes, Processo nº 2996/12.0TBFIG.C1, com bold apócrifo).
Não obstante se estar perante realidades bem distintas, é «frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou e que a racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objecto do recurso que deve ser centrado nos aspectos de ordem substancial. Com não menos frequência a arguição de nulidades da sentença acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades».
Sem prejuízo do exposto, e «ainda que nem sempre se consiga descortinar que interesses presidem à estratégia comum de introduzir as alegações de recurso com um rol de pretensas “nulidades” da sentença, sem qualquer consistência, quando tal ocorra (…), cumpre ao juiz pronunciar-se sobre tais questões (…)» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 132 e 133, com bold apócrifo).
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3.2.1.2. Omissão de pronúncia - Art. 615º, nº 1, al. d), I parte, do C.P.C.
3.2.1.2.1. Lê-se, a propósito, no art. 615º, nº 1, al. d), I parte, do C.P.C. (como já antes se lia no art. 668º, nº 1, al. d) do anterior C.P.C.), e no que ora nos interessa, que «é nula a sentença quando»:

. omissão de pronúncia - «O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar».

Em coerência, e de forma prévia, lê-se no art. 608º, nº 2 do C.P.C. (art. 660º, nº 2 do anterior C.P.C.), que «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».

Há, porém, que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes (para sustentar a solução que defendem a propósito de cada questão a resolver): «São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão» (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p.143, com bold apócrifo).

Ora, as questões postas, a resolver, «suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objecto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado (causa de pedir)» (Alberto dos Reis, op. cit., p. 54). Logo, «as “questões” a apreciar reportam-se aos assuntos juridicamente relevantes, pontos essenciais de facto ou direito em que as partes fundamentam as suas pretensões» (Ac. do STJ, de 16.04.2013, António Joaquim Piçarra, Processo nº 2449/08.1TBFAF.G1.S1); e não se confundem com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes (a estes não tem o Tribunal que dar resposta especificada ou individualizada, mas apenas aos que directamente contendam com a substanciação da causa de pedir e do pedido).
Por outras palavras, as «partes, quando se apresentam a demandar ou a contradizer, invocam direitos ou reclamam a verificação de certos deveres jurídicos, uns e outros com influência na decisão do litígio; isto quer dizer que a «questão» da procedência ou improcedência do pedido não é geralmente uma questão singular, no sentido de que possa ser decidida pela formulação de um único juízo, estando normalmente condicionada à apreciação e julgamento de outras situações jurídicas, de cuja decisão resultará o reconhecimento do mérito ou do demérito da causa. Se se exige, por exemplo, o cumprimento de uma obrigação, e o devedor invoca a nulidade do título, ou a prescrição da dívida, ou o pagamento, qualquer destas questões tem necessariamente de ser apreciada e decidida porque a procedência do pedido dependa da solução que lhes for dada; mas já não terá o juiz de, em relação a cada uma delas, apreciar todos os argumentos ou razões aduzidas pelos litigantes, na defesa dos seus pontos de vista, embora seja conveniente que o faça, para que a sentença vença e convença as partes, como se dizia na antiga prática forense» (Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, Lisboa, pág. 228, com bold apócrifo).
Logo, a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado (cfr. Ac. do STJ, de 07.07.1994, Miranda Gusmão, BMJ nº 439, pg. 526, Ac. do STJ, de 22.06.1999, Ferreira Ramos, CJ, 1999, Tomo II, p. 161, Ac. da RL, de 10.02.2004, Ana Grácio, CJ, 2004, Tomo I, p. 105, e Ac. da RL, de 04.10.2007, Fernanda IsJosé Pereira).

Esta nulidade só ocorrerá, então, quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, o pedido e as excepções, e não quando tão só ocorre mera ausência de discussão das «razões» ou dos «argumentos» invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas, deixando o juiz de os apreciar, conhecendo contudo da questão (Ac. do STJ, de 21.12.2005, Pereira da Silva, Processo nº 05B2287, com bold apócrifo).
Já, porém, não ocorrerá a dita nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra (Ac. do STJ, de 03.10.2002, Araújo de Barros, Processo nº 02B1844). Compreende-se que assim seja, uma vez que o conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição directa sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui (Ac. do STJ, de 08.03.2001, Ferreira Ramos, Processo nº 00A3277).
Igualmente «não se verifica a nulidade de uma decisão judicial – que se afere pelo disposto nos arts. 615.º (sentença) e 666.º (acórdãos) – quando esta não aprecia uma questão de conhecimento oficioso que lhe não foi colocada e que o tribunal, por sua iniciativa, não suscitou» (Ac. do STJ, de 20.03.2014, M. M. Beleza, Processo nº 1052/08.0TVPRT.P1.S1).
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3.2.1.2.2. Concretizando, e relativamente à alegada violação da al. d), I parte (não ter se juiz pronunciado sobre questões que devesse apreciar), do nº 1, do art. 615º do C.P.C., radicam-na os Recorrentes no facto de, tendo em prévio acórdão sido determinado ao Tribunal a quo que proferisse nova sentença, onde «fosse ampliada a matéria de facto, tendo por objecto os artigos 13º, 14º, 18º, 19º, 21º, 22º, 25º, 27º, 28º, 30º, 31º e 35º da contestação», o mesmo não o teria feito: «a matéria dos artigos 19, 25, 27 e 28 foi pura e simplesmente, de novo, totalmente omitida, tanto que, estando indicados os demais (nos pontos 16 a 20 dos factos provados e nas als. A) a E) dos factos não provados), esses nem sequer são mencionados nem há qualquer decisão correspondente à respectiva factualidade» (com bold apócrifo).
Contudo, e tal como já antes sustentado (no primeiro acórdão proferido nos autos), o Tribunal a quo conheceu na sentença proferida (antes e agora) todas as questões suscitadas pelas partes, nomeadamente o instituto do abuso de direito invocado pelos Réus recorrentes, radicado factualmente nos artigos da contestação referidos.
A eventual omissão, na fundamentação de facto da sentença agora sindicada, de factos necessários para o efeito, consubstancia vício diferente (tal como já antes explicitado e decidido), isto é, de eventual insuficiência da matéria de facto para a decisão proferida, previsto no art. 662º, nº 2, al. c), do C.P.C...

Logo, inexiste a nulidade arguida pelos Recorrentes, com base na alegada violação da al. d), I parte, do nº 1, do art. 615º do C.P.C..
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3.2.1.3. Anulação da sentença - Art. 662º, nº 2, al. c), do C.P.C.

3.2.1.3.1. Lê-se no art. 662º, nº 2, al. c) do C.P.C. que a «Relação deve (…), mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância, quando (…) considere indispensável a ampliação» da matéria de facto.
Com efeito, a «decisão da matéria de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento», resultando nomeadamente, «da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares», exigindo a ampliação da matéria de facto.
Por outras palavras, «pode revelar-se uma situação que exija a ampliação da matéria de facto, por terem sido omitidos dos temas da prova factos alegados pelas partes que se revelem essenciais para a resolução do litígio, na media em que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo. Trata-se de uma faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma objectiva omissão de factos relevantes».
«Quando seja decretada, deve incidir sobre pontos determinados que sejam identificados na decisão, ainda que o tribunal a quo, na ocasião em que proceder à repetição parcial do julgamento, possa interferir noutros pontos de facto cujo conteúdo se revele afectado pelas respostas que forem dadas às questões referenciadas pela Relação» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Julho de 2013, p. 237 s 241).

Importa igualmente, ter presente que «os Recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram ainda submetidas ao contraditório e decididas pelo Tribunal Recorrido, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Julho de 2013, 98 e 99).

Por outras palavras, «o regime consagrado entre nós para os recursos ordinários é de (…) reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a acção e a julgá-la como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último» (Ac. da RC, de 27.05.2015, IsJosé Silva, Processo nº 416/13.2TBCBR.C1).
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3.2.1.3.2. Concretizando, e tal como se referiu supra, em prévio acórdão proferido nos autos foi anulada a primeira sentença neles proferida, por se entender que, tendo sido invocado e conhecido o instituto do abuso de direito, não constava da mesma (quer no elenco dos factos provados, quer no elenco dos factos não provados) a matéria que o consubstanciaria, vertida nos artigos 13º, 14º, 18º, 19º, 21º, 22º, 25º, 27º, 28º, 30º, 31º e 35º da contestação.
Proferida nova sentença, e salvo o devido respeito por opinião contrária, verifica-se que o vício apontado foi sanado, uma vez que: o artigo 19º da contestação mostra-se expressamente referido no facto provado enunciado sob o número 10 (afirmando-se, no final do mesmo, que «improcede em consequência a impugnação motivada do artigo 19 da contestação»); o artigo 27º da contestação mostra-se expressamente referido no facto provado enunciado sob o número 17 (afirmando-se, no final do mesmo, «artigos 21 e 27 da contestação»); e quer o artigo 25º («Portanto, quanto a essa situação, nunca os RR. contaram vir a ser confrontados com qualquer pretensão desta natureza por parte dos AA.»), quer o artigo 28º («Tempo mais que suficiente para os RR. terem como certo e confiarem que os AA., mesmo que tal direito lhes assistisse, nunca viriam exigir-lhes a demolição do pilar») da contestação são eminentemente conclusivos, isto é, consubstanciam meros juízos, a retirar dos demais factos alegados e provados, perante a correcta interpretação do instituto do abuso de direito, nomeadamente na modalidade de venire contra factum proprium» (tudo conforme devidamente explicitado na sentença agora recorrida).

Logo, inexiste a insuficiência da matéria de facto arguida pelos Recorrentes, susceptível de justificar nova anulação da nova sentença, com base na alegada violação da al. c), do nº 2, do art. 615º do C.P.C..
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3.2.1.4. Reenvio para que se fundamente devidamente a sentença - Art. 662º, nº 2, al. d), do C.P.C.

3.2.1.4.1. Lê-se no art. 662º, nº 2, al. d), do C.P.C. que a «Relação deve (…), mesmo oficiosamente, determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta dos depoimentos gravados ou registados».
O que seja esta «devida fundamentação» colhe-se do art. 607º, nº 4 do C.P.C., isto é, a sentença terá de indicar: simultaneamente, os factos provados e os factos não provados; e especificar, quanto a ambos, quais os meios de prova que utilizou que justificam o respectivo juízo probatório, e de que forma o fez, necessariamente por meio da análise crítica que deles realize.
Compreende-se, por isso, que se afirme que a «exigência legal de motivação da decisão sobre a matéria de facto não se satisfaz com a simples referência aos meios de prova que o julgador considerou decisivos para a formação da sua convicção, devendo indicar as razões que, na sua análise crítica, relevaram para a formação da sua convicção, expondo o processo lógico e racional que seguiu, por ser esta a única forma de tornar possível o controlo da razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento de facto, e de convencer os destinatários sobre a sua correcção» (Ac. da RC, de 07.05.2013, Albertina Pedroso, Processo nº 1259/08.0TBGRD.C1).

Mais se compreende que a lei determine que, se «decisão proferida sobre algum facto essencial não estiver devidamente fundamentada a Relação deve determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância, a fim de preencher essa falha com base nas gravações efectuadas ou através da repetição da produção da prova, para efeitos de inserção da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Julho de 2013, p. 242 e 244).
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3.2.1.4.2. Concretizando, vieram os Réus recorrentes defender que «sempre se imporia a anulação do julgamento (…) uma vez que foram totalmente ignorados (não mereceram qualquer referência na sentença) os depoimentos de outras duas testemunhas dos RR. que versaram sobre a mesma factualidade» (isto é, os factos previamente referidos, enunciados na sentença recorrida sob os números 10, 11, 12 e 13), que seriam as «testemunhas M. M. e António».
Contudo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, não é isso que resulta da sentença recorrida.
Com efeito, não só o depoimento da testemunha M. M. foi expressamente referido na fundamentação do facto provado enunciado sob o número 10, como o «depoimento de todas as testemunhas com excepção de A. A.» foi considerado na prova dos factos provados enunciados sob os números 12 e 13.
Acresce que a análise crítica da prova produzida a respeito de todos eles (10, 11, 12 e 13) permite, não só que as partes conhecessem e sindicassem o iter decisório do Tribunal a quo (como os Réus recorrentes vieram efectivamente a fazer), como este Tribunal de recurso o verifique agora.
Com efeito, o mesmo deixou expresso, a propósito:
«(…)
O facto 10 foi referido por M. A. e por V. F.. Ambas as testemunhas disseram que a parcela de terreno que hoje se encontra inacessível pelo terreno dos AA. em virtude de aí ter sido colocada uma vedação de madeira pelos RR., sempre foi utilizada pela mãe do autor e pelo autor, designadamente para apanha de figos que existiam numa figueira que aí crescia.
Também a testemunha M. M. referiu que vive no local há cerca de 7-8 anos e que viu o Autor deitar lixo para a parcela.
Por outro lado M. J., anterior proprietário da casa recentemente vendida aos RR. que lhe adveio por herança de sua mãe, disse que lhe parecia que aquele bocado de terreno pertencia à casa, mas que da documentação não consta a existência de qualquer superfície descoberta, para além do que a parcela nunca foi utilizada pelos proprietários da habitação, até porque a casa nunca teve acesso àquela parcela de terreno. Referiu ainda que tinha ideia de que quem usava aquele bocado era o Autor e a família dele.
Em momento algum foi referido por qualquer testemunha a utilização da referida parcela de terreno por outras pessoas que não os autores e seus antepassados, tendo a testemunha M. J. dito de forma peremptória que nunca a casa teve acesso àquela parcela de terreno, pelo que assentando a tese dos RR. no facto da parcela pertencer à casa que adquiriram, para sustentar que agora lhes pertence tem a mesma que improceder, tendo o Tribunal ficado convencido de que os AA. e seus antepassados sempre se comportaram como donos do trato de terreno em causa.
O facto 11 foi constatado pelo Tribunal no local, sem que os RR. tivessem contestado a colocação da vedação em madeira.
Os factos 12 e 13 resultaram do depoimento de todas as testemunhas com excepção de A. A., que nada sabia sobre os factos a apurar e H. P. que mentiu ao Tribunal afirmando que que quando tinha 12 anos a porta da casa que hoje foi aberta, já estava aberta.
Na verdade todas as testemunhas referiram que apesar de se ver a moldura de uma porta nas traseiras da casa referida em 7, nunca a porta esteve aberta, apresentando a configuração que se vê na fotografia 6 junta a fls. 30, ou seja, a moldura que se avista estava preenchida com a mesma pedra que a restante construção. Daqui resulta que nunca em momento algum a testemunha H. P. pudesse ter visto a porta aberta.
Apurou-se ainda do depoimento das testemunhas que foram os RR. que após adquirirem a casa retiraram as pedras que preenchiam a moldura para aí abrirem uma porta com acesso ao seu logradouro.
(…)»
Reconhece-se, sem embargo, que a dita fundamentação poderia ser mais exaustiva. Mas a exigência legal de «devidamente fundamentada» não corresponde à pretensão das partes de «exaustivamente fundamentada», muito provavelmente por o legislador ter intuído, não só que essa pretensão seria incompatível com a celeridade processual (que as mesmas partes justamente reclamam), como por se mostrar quase sempre inalcançável (face ao individual e subjectivo juízo de cada reclamante).

Logo, inexiste a falta de devida fundamentação arguida pelos Recorrentes, susceptível de justificar a devolução dos autos à 1ª instância, por forma a que o Tribunal a quo a suprimisse na sentença recorrida, atento o disposto na al. d), do nº 2, do art. 662º do C.P.C..
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
4.1. Decisão de Facto do Tribunal de 1ª Instância
4.1.1. Factos Provados

Realizada a audiência de julgamento no Tribunal de 1ª Instância, resultaram provados os seguintes factos:

1 - O prédio rústico sito no lugar ..., denominado «Quintal», composto de vinha, está inscrito a favor de Maria e José (aqui Autores) na matriz predial rústica sob o art. 1197º, e omisso na competente conservatória do registo predial.

2 - O referido prédio veio à posse dos Autores (Maria e José) há mais de 30 anos, e é o quintal / logradouro de sua casa, sendo que continuada e ininterruptamente vêm possuindo o identificado prédio, nele, cultivando aquilo que entendem, pagando as respectivas contribuições e impostos, dele fruindo e dispondo como seus únicos donos, como tal se afirmando e sendo reconhecidos por toda a gente, sem oposição ou contestação de quem quer que seja.

3 - Este prédio dos Autores (Maria e José) confronta pelo seu lado norte com Manuel e Joaquina (aqui Réus).

4 - Entre os prédios dos Autores (Maria e José) e o dos Réus (Manuel e Joaquina) existe um muro desde tempos imemoriais, com cerca de 62 cm de largura.

5 - O muro foi construído há mais de 50 anos por antepassados do Autor (José), e é a única divisão entre os dois prédios.

6 - O muro pelo lado dos Autores (Maria e José) tem uma altura de 1,50 cm, e pelo lado dos Réus (Manuel e Joaquina) apresenta 90 cm de altura.

7 - O muro sempre foi respeitado, cuidado e conservado por ambos os proprietários dos prédios confinantes.

8 - Após 20 de Maio de 2011, data em que foi homologada por sentença a transacção efectuada no processo 38/10.0TBSBR (que opôs os aqui Réus a M. A. e M. G.), sem autorização de quem quer que seja, os Réus (Manuel e Joaquina) desfizeram uma parte do muro e aí implantarem um pilar, encostado ao lado direito para quem está de frente para a casa dos Réus, que se desenvolve à esquerda do muro.

9 - Recentemente, os Réus (Manuel e Joaquina) adquiriram um prédio urbano, a nascente do prédio dos Autores (Maria e José).

10 - Sempre foram os Autores (Maria e José) que procederam à limpeza e conservação de todo o seu logradouro até ao limite da parede da casa referida no facto provado enunciado sob o número 9.
(improcede em consequência a impugnação motivada do artigo 19º da contestação)

11 - Os Réus (Manuel e Joaquina) colocaram uma vedação em madeira dentro do terreno dos Autores (Maria e José), pretendendo ocupar uma parcela de terreno com cerca de 5m por 20m encostada à habitação referida no facto provado enunciado sob o número 9.

12 - Sem autorização de quem quer que seja, aproveitando a ausência dos Autores (Maria e José), procederam os Réus (Manuel e Joaquina) à abertura de uma «porta» no limite esquerdo dessa casa, onde a casa adquirida em ruínas extrema com a casa de habitação dos Réus, para poderem aceder do seu logradouro à tal casa em ruínas (que recentemente adquiriram).

13 - Nunca aquela casa teve qualquer abertura para a parte de trás da casa.

14 - No tempo da casa antiga que existia no prédio dos Réus (Manuel e Joaquina) (antes de estes terem efectuado a sua reconstrução) o muro referido no facto provado enunciado sob o número 4 delimitava, pelo seu lado direito, em relação a quem seguisse para a casa, o caminho que lhe servia de acesso, com cerca de 2m de largura.

15 - O muro referido no facto provado enunciado sob o número 4 prolongava-se até à parede da casa antiga do prédio dos Réus (Manuel e Joaquina).

16 - O pilar referido no facto provado enunciado sob o número 8 foi implantado no muro, no limite do prédio dos Réus (Manuel e Joaquina), junto ao início do caminho que serve de acesso ao prédio dos Réus, dos Autores (Maria e José) e do Irmão do Autor marido, com vista à construção de um portal.
(artigo 13º da contestação)

17 - O pilar referido no facto provado enunciado sob o número 8 foi construído há mais de 3 anos, e situa-se em frente da casa dos Autores (Maria e José).
(artigos 22º e 27º da contestação)

18 - Os Autores (Maria e José) nunca manifestaram qualquer oposição ou discordância à construção.
(artigos 21º e 27 da contestação)

19 - Quem reagiu foram o Irmão do Autor marido e a sua Mulher, interpondo uma providência cautelar de embargo.
(artigo 23º da contestação)

20 - O pilar referido no facto provado enunciado sob o número 8 ocupa uma área de 30cm x 30cm do muro.
(artigo 35º da contestação)
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4.1.2. Factos não provados
Na mesma decisão do Tribunal de 1ª Instância, foram considerados não provados os seguintes factos:

A - Os Réus (Manuel e Joaquina) adquiriram no decurso do ano de 2000 uma habitação, que foram reconstruindo; e em 2011, por acordo judicial efectuado com um Irmão do Autor, adquiriram uma pequena de parcela de terreno, passando a confrontar com os Autores (Maria e José) em mais área.

B - O pilar referido no facto provado enunciado sob o número 8 foi construído pelos Réus (Manuel e Joaquina) com a convicção de que o muro lhes pertencia em exclusivo.
(artigo 14º da contestação)

C - A separar o prédio dos Réus (Manuel e Joaquina) do prédio dos Autores (Maria e José), no local visível na fotografia 6 junta com a petição inicial, existe um murete de tijolo, construído pelos anteriores donos do prédio dos Réus.
(artigo 18º da contestação)

D - O pilar construído não acarreta qualquer prejuízo ou inconveniente para os Autores (Maria e José).
(artigo 30º da contestação)

E - Se algum prejuízo ou inconveniente o pilar construído importasse para os Autores (Maria e José), sempre seria, senão insignificante, pelo menos muito menor que o prejuízo ou desvantagem económica que a pretendida demolição implicaria para os Réus (Manuel e Joaquina).
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4.2. Modificabilidade da decisão de facto
4.2.1.1. Erro de julgamento - Incorrecta apreciação da prova legal

Lê-se no art. 607º, nº 5 do C.P.C. que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», de forma consentânea com o disposto no C.C., nos seus art. 389º do C.C. (para a prova pericial), art. 391º do C.C. (para a prova por inspecção) e art. 396º (para a prova testemunhal).
Contudo, a «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (II parte, do nº 5, do art. 607º do C.P.C. citado, com bold apócrifo).

Mais se lê, no art. 662º, nº 1 do C.P.C., que a «Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art. 607º, nº 4 do C.P.C., aqui aplicável ex vi do art. 663º, nº 2 do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (arts. 371º, nº 1e 376º, nº 1, ambos do C.P.C.), ou quando exista acordo das partes (art. 574º, nº 2 do C.P.C.), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art. 358º do C.C., e arts. 484º, nº 1 e 463º, ambos do C.P.C.), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos arts. 351º e 393º, ambos do C.P.C.).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).
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4.2.1.2. Erro de julgamento - Incorrecta livre apreciação da prova
4.2.1.2.1. Âmbito da sindicância (provocada) do Tribunal da Relação

Lê-se no nº 2, als. a) e b), do art. 662º citado, que a «Relação deve ainda, mesmo oficiosamente»: «Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoente ou sobre o sentido do seu depoimento» (al. a); «Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova» (al. b)».
«O actual art. 662º representa uma clara evolução [face ao art. 712º do anterior C.P.C.] no sentido que já antes se anunciava. Através dos nºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.
(…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua actuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos factores de imediação e da oralidade. Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607º, nº 5) ou da aquisição processual (art. 413º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 225-227).
É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efectiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, nº 44, p. 29 e ss.).
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4.2.1.2.2. Modo de operar o duplo grau de jurisdição - Ónus de impugnação

Contudo, reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto «nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência», mas, tão-somente, «detectar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento» (preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.
Com efeito, e desta feita, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como de se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recuso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 228, com bold apócrifo).
Lê-se, assim, no art. 640º, n 1 do C.P.C. que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».
Precisa-se ainda que, quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (art. 640º, nº 2, al. a) citado).
Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c) do nº 1 do art. 640º citado), «vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente», devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto «decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes», «impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 129, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efectividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
Por outras palavras, se o dever - constitucional e processual civil - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, in www.dgsi.pt, como todos os demais sem indicação de origem).

Com efeito, «livre apreciação da prova» não corresponde a «arbitrária apreciação da prova». Deste modo, o Juiz deverá objectivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a «identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador», e ainda «a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 655).
«É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325).
«Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 591, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que, este esforço exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional» (José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, p. 281).
É, pois, irrecusável e imperativo que, «tal como se impõe que o tribunal faça a análise critica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia», não bastando nomeadamente para o efeito «reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, p. 595, com bold apócrifo).

De todo o exposto resulta que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Importa, porém, não esquecer - porque (como se referiu supra) se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 609).
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4.2.1.2.3. Carácter instrumental da impugnação da decisão de facto

Veio, porém, a jurisprudência precisar ainda que a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma.
Com efeito, a «impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior C.P.C.], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efectivo objectivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo nº 219/10.6T2VGS.C1, com bold apócrifo).
Logo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto «quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente», convertendo-a numa «pura actividade gratuita ou diletante» (conforme Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12.0T2AVR.C1).
Por outras palavras, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo nº 219/10.6T2VGS.C1, com bold apócrifo. No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10.3TBLRA.C1, onde se lê que, de «harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 137 do CPC de 1961, e 130 do NCPC)», pelo que se «o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância»; e isso «sucederá sempre que, mesmo com a substituição, a solução o enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a acção, ou pelo réu, com a contestação»).
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4.2.2. Concretizando, considera-se que os Réus recorrentes (Manuel e Joaquina) cumpriram o ónus de impugnação que lhes estava cometido pelo art. 640º, nº 1 do C.P.C. (conclusão distinta de saber se, tendo-o feito, existe fundamento para a pretendida alteração dos factos julgados como provados, e como não provados).
Com efeito, indicaram nas suas conclusões de recurso: os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados (os factos provados enunciados sob os números 2, 5 - I parte -, 10, 11, 12 e 13, e os factos não provados enunciados sob as alíneas B), C), D) e E), na sentença recorrida); os concretos meios probatórios que imporiam decisão diferente (no caso, os depoimentos prestados em audiência de julgamento pelos Autores, e pelas testemunhas M. J., V. F., M. M., H. P. e António); e a decisão que, no seu entender, se impunha (o darem-se como não provados os factos enunciados sob os números 2, 5 - I parte -, 10, 11, 12 e 13, e o darem-se como provados os factos enunciados sob as alíneas B), C), D) e E)).

Prosseguindo - na verificação do cumprimento do ónus de impugnação a cargo dos Réus recorrentes -, e relativamente ao juízo crítico próprio, assentou o mesmo numa diferente valoração feita dos depoimentos prestados pelos Autores e pelas testemunhas referidas (M. J., V. F., M. M., H. P. e António).
Por outras palavras, admitindo-se necessariamente que o Tribunal a quo ouviu integralmente os depoimentos que os Recorrentes seleccionaram na sua impugnação, certo é que fez dos mesmos uma outra valoração, ajuizando todo o seu conjunto face às regras da experiência.
Assim, pretendendo os Recorrentes sindicar este juízo, importaria que indicassem as razões pelas quais entendem que àqueles depoimentos deveria ter sido dada outra relevância, o que fizeram.
Está, assim, este Tribunal da Relação em condições de poder proceder (nos limites autorizados pelo art. 640º do C.P.C.) à reapreciação da matéria de facto pretendida pelos Réus recorrentes (Manuel e Joaquina).
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4.3. Modificabilidade da decisão de facto - Caso concreto

4.3.1. Posse sobre o prédio rústico invocado pelos Autores (facto provado enunciado sob o número 2)

Vieram os Réus recorrentes (Manuel e Joaquina) defender a alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entenderem que o Tribunal a quo teria feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma não permitia que se desse como provada «a posse pelo tempo e nas demais condições exigidas para conduzir à aquisição por usucapião» do prédio rústico dos Autores, vertida no facto enunciado sob o número 2 («O referido prédio veio à posse dos Autores há mais de 30 anos, e é o quintal/logradouro de sua casa, sendo que continuada e ininterruptamente vêm possuindo o identificado prédio, nele, cultivando aquilo que entendem, pagando as respectivas contribuições e impostos, dele fruindo e dispondo como seus únicos donos, como tal se afirmando e sendo reconhecidos por toda a gente, sem oposição ou contestação de quem quer que seja»).
Invocaram para o efeito a total ausência de prova sobre esta factualidade, tanto mais que as testemunhas «nem sobre a mesma foram inquiridas».
Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pelos Réus recorrentes.
Assim, ponderou a mesma para este efeito (limitando-se a reprodução às partes relevantes e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais relevantes, atento o objecto da sindicância):
«(…)
O facto 2 resultou da inspecção ao local e do depoimento das testemunhas M. A. e V. F.. No local o Tribunal viu que o prédio em causa é o logradouro da casa dos autores, tendo as testemunhas referido que inicialmente tudo pertencia à mãe do autor e depois em partilhas ficou para o Autor, sendo que sempre foram a mãe e o filho quem tomaram conta do terreno.
(…)»

Logo, uma primeira conclusão se pode desde já enunciar: ao contrário do sustentado pelos Réus recorrentes, o Tribunal a quo, no juízo de prova de demonstração do facto provado enunciado sob o número 2, ponderou efectiva prova produzida, no caso os depoimentos das testemunhas M. A. (irmão do Autor, e que ali tem também uma casa), e V. F. (vizinha das partes).
Ouvidos integralmente os seus depoimentos, bem como todos os demais produzidos (com reconhecida dificuldade, por serem quase todos provenientes de gente de muita idade, e o julgamento ter sido realizado no local), verifica-se que as testemunhas produziram as afirmações que lhes foram imputadas pelo Tribunal a quo, precisando-se que: a testemunha M. A. declarou que o terreno em causa começou por ser de um Tio dele, que o deu depois à sua Mãe, a qual agiu desde então como sua proprietária (pelo que a imputada afirmação de que antes era tudo de uma R. F. se reportará, ou a momento anterior à aquisição do terreno pelo seu Tio, ou apenas aos prédios que hoje são pertença dos Réus, tal como foi igualmente referido pela testemunha António); e a testemunha V. F. declarou que que a família dos Autores «cultivava, apanhava figos, criava galinhas» no prédio rústico em causa.
Acresce que também o Autor (José), ouvido em audiência de julgamento, afirmou que a sua Mãe «deixou encostar uma casa à extrema do seu terreno», pelo que necessariamente se comportava como sua proprietária.
Ora, se é certo que as declarações de parte não confessórias são livremente apreciadas pelo Tribunal, e tendem apenas a ser consideradas como um princípio ou complemento de prova - por então beneficiarem o próprio declarante -, certo é que no caso concreto foram dotadas de adicional e acrescido reforço probatório.
(No sentido exposto, ainda dominante na doutrina e na jurisprudência, José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, p. 278, ou Paulo Pimenta, Processo Declarativo, Almedina, Julho de 2014, p. 357; e, entre vários, Ac. da RP, de 20.11.2014, Pedro Martins, Processo nº 1878/11).

Face a esta conforme prova, e sem que outra tenha sido produzida para a infirmar (nomeadamente, demonstrando que a posse dos familiares dos Autores, e depois destes últimos, era invocada ou exercida sob contestação), compreende-se e ratifica-se o juízo do Tribunal a quo, nomeadamente presumindo que, sendo a sua actuação pública, seria igualmente pacífica e incontestada (já que, de outro modo, não teriam deixado de ser referidos os episódios em contrário).

Exclui-se, porém, deste juízo a referência ao pagamento das «respectivas contribuições e impostos», já que quanto a este aspecto concreto nada foi referido pela prova pessoal produzida em audiência de julgamento, nem foi junta qualquer prova documental que o certificasse.

Assim, procede parcialmente o recurso de impugnação da matéria de facto, interposto pelos Réus (Manuel e Joaquina), relativo à posse do terreno rústico invocada pelos Autores, vertida no facto provado enunciado sob o número 2, que passa a constar da decisão recorrida do seguinte modo:

· «2 - O referido prédio veio à posse dos Autores há mais de 30 anos, e é o quintal/logradouro de sua casa, sendo que continuada e ininterruptamente vêm possuindo o identificado prédio, nele, cultivando aquilo que entendem, dele fruindo e dispondo como seus únicos donos, como tal se afirmando e sendo reconhecidos por toda a gente, sem oposição ou contestação de quem quer que seja».
*
4.3.2. Identidade de quem construiu o muro, e quando o fez (I parte, do facto provado enunciado sob o número 5)

Vieram os Réus recorrentes (Manuel e Joaquina) defender a alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entenderem que o Tribunal a quo teria feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma não permitia que se desse como provado que o «muro foi construído há mais de 50 anos por antepassados do A.», vertida no facto enunciado sob o número 5 (cuja completa redacção é «O muro foi construído há mais de 50 anos por antepassados do A., e é a única divisão entre os dois prédios»).
Invocaram para o efeito a total ausência de prova sobre esta factualidade, já que «nenhuma das testemunhas inquiridas demonstrou conhecimento quanto à construção do referido muro», nem «tal era possível, atenta a sua antiguidade, já que, conforme alegado pelos AA., já existe desde tempos imemoriais (art. 6º da p.i.)».
Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pelos Réus recorrentes.
Assim, ponderou a mesma para este efeito (limitando-se a reprodução às partes relevantes e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais relevantes, atento o objecto da sindicância):
«(…)
O facto 5 no que concerne à data da construção do muro resultou do depoimento das testemunhas M. A., V. F. e António, que referiram que os terrenos pertenciam todos à mãe do Autor e que o muro sempre lá existiu. No que respeita a ser a única divisória entre o prédio dos RR e o dos AA, tal facto foi constatado pelo Tribunal no local.
(…)»

Logo, uma primeira conclusão se pode desde já enunciar: da própria fundamentação de facto do Tribunal a quo resulta que a prova produzida, e que ele próprio seleccionou para este efeito, não permitia afirmar a identidade de quem construiu o muro em causa, ou quando o fez (tanto mais que no facto provado enunciado sob o número 4 se afirma que «Entre os prédios dos AA e dos RR existe um muro desde tempos imemoriais»).
Ouvida integralmente toda a prova pessoal produzida, verifica-se assistir razão aos Réus recorrentes, quando os mesmos defendem que ninguém detalhou a identidade de quem construiu o dito muro, ou de quando o fez, limitando-se apenas a referir que sempre o conheceram no local.

Assim, procede o recurso de impugnação da matéria de facto, interposto pelos Réus (Manuel e Joaquina), relativo à Identidade de quem construiu o muro, e quando o fez, vertida no facto provado enunciado sob o número 5, I parte, que passa a constar da decisão recorrida do seguinte modo:

· «5 - O muro referido no facto provado anterior é a única divisão entre os dois prédios».
*
4.3.3. Propriedade da parcela de terreno revindicada pelos Autores (factos provados enunciados sob os números 10, 11, 12 e 13, e facto não provado enunciado sob alínea C)

Vieram os Réus recorrentes (Manuel e Joaquina) defender a alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entenderem que o Tribunal a quo teria feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma não permitia que se desse como provada a propriedade da parcela de terreno reivindicada pelos Autores, vertida nos factos enunciados sob o número 10 («Sempre foram os Autores que procederam à limpeza e conservação de todo o seu logradouro até ao limite da parede da casa referida em 9. (improcede em consequência a impugnação motivada do artigo 19 da contestação)»), sob o número 11 («Os Réus colocaram uma vedação em madeira dentro do terreno dos Autores, pretendendo ocupar uma parcela de terreno com cerca de 5m por 20m encostada à habitação referida em 9»), sob o número 12 («Sem autorização de quem quer que seja, aproveitando a ausência dos Autores, procederam os Réus à abertura de uma “porta” no limite esquerdo dessa casa, onde a casa adquirida em ruínas, extrema com a casa de habitação dos RR., para poderem aceder do seu logradouro à tal casa em ruínas que recentemente adquiriram»), e sob o número 13 («Nunca aquela casa teve qualquer abertura para a parte de trás da casa»); e impunha que se desse como provado o facto enunciado sob a alínea C) («A separar o prédio dos Réus do prédio dos Autores, no local visível na fotografia 6 junta com a petição inicial existe um murete de tijolo, construído pelos anteriores donos do prédio dos Réus. (facto 18 da contestação)».
Invocaram para o efeito, tanto a «insuficiência/inconsistência da prova dos AA.», (nomeadamente, os depoimentos produzidos pelas testemunhas M. A., V. F. e M. J.), como a «errada análise e valoração da prova que, em sentido contrário, foi produzida pelos RR» (nomeadamente os depoimentos produzidos pelas testemunhas M. M. e António).
Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pelos Réus recorrentes.
Assim, ponderou a mesma para este efeito (limitando-se a reprodução às partes relevantes e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais relevantes, atento o objecto da sindicância):
«(…)
O facto 10 foi referido por M. A. e por V. F.. Ambas as testemunhas disseram que a parcela de terreno que hoje se encontra inacessível pelo terreno dos AA. em virtude de aí ter sido colocada uma vedação de madeira pelos RR., sempre foi utilizada pela mãe do autor e pelo autor, designadamente para apanha de figos que existiam numa figueira que aí crescia.
Também a testemunha M. M. referiu que vive no local há cerca de 7-8 anos e que viu o Autor deitar lixo para a parcela.
Por outro lado M. J., anterior proprietário da casa recentemente vendida aos RR. que lhe adveio por herança de sua mãe, disse que lhe parecia que aquele bocado de terreno pertencia à casa, mas que da documentação não consta a existência de qualquer superfície descoberta, para além do que a parcela nunca foi utilizada pelos proprietários da habitação, até porque a casa nunca teve acesso àquela parcela de terreno. Referiu ainda que tinha ideia de que quem usava aquele bocado era o Autor e a família dele.
Em momento algum foi referido por qualquer testemunha a utilização da referida parcela de terreno por outras pessoas que não os autores e seus antepassados, tendo a testemunha M. J. dito de forma peremptória que nunca a casa teve acesso àquela parcela de terreno, pelo que assentando a tese dos RR. no facto da parcela pertencer à casa que adquiriram, para sustentar que agora lhes pertence tem a mesma que improceder, tendo o Tribunal ficado convencido de que os AA. e seus antepassados sempre se comportaram como donos do trato de terreno em causa.
O facto 11 foi constatado pelo Tribunal no local, sem que os RR. tivessem contestado a colocação da vedação em madeira.
Os factos 12 e 13 resultaram do depoimento de todas as testemunhas com excepção de A. A., que nada sabia sobre os factos a apurar e H. P. que mentiu ao Tribunal afirmando que que quando tinha 12 anos a porta da casa que hoje foi aberta, já estava aberta.
Na verdade todas as testemunhas referiram que apesar de se ver a moldura de uma porta nas traseiras da casa referida em 7, nunca a porta esteve aberta, apresentando a configuração que se vê na fotografia 6 junta a fls. 30, ou seja, a moldura que se avista estava preenchida com a mesma pedra que a restante construção. Daqui resulta que nunca em momento algum a testemunha H. P. pudesse ter visto a porta aberta.
Apurou-se ainda do depoimento das testemunhas que foram os RR. que após adquirirem a casa retiraram as pedras que preenchiam a moldura para aí abrirem uma porta com acesso ao seu logradouro.
(…)
O facto C. foi alegado pelos réus e visava impugnar os factos considerados provados sob os pontos 10 e 11 supra referidos. Ao dar como provados tais factos, o tribunal não podia considerar provado o facto C.
(…)»

Logo, uma primeira conclusão se pode desde já enunciar: o Tribunal a quo, no juízo de prova dos factos provados enunciados sob os números 10, 11, 12 e 13, ponderou efectiva prova produzida, nomeadamente a referida pelos Réus recorrentes.
Ouvidos integralmente os depoimentos seleccionados por estes, bem como todos os demais produzidos, verifica-se que, quer ambos os Autores, quer as testemunhas M. A. (irmão do Autor, e proprietário de uma casa no local) e V. F. (vizinha das partes) confirmaram que a parcela de terreno em causa fazia parte do prédio daqueles primeiros, isto é, que constituía a extrema do mesmo.
Explicaram que os antepossuidores dos Autores sempre assim se comportaram, nomeadamente colhendo figos de uma figueira ali existente; e que a porta que agora foi aberta pelos Réus para a dita parcela - na construção correspondente a antigo lagar, vendida pela testemunha M. J. àqueles -, não existia, estando a abertura que lhe correspondia tapada com revestimento idêntico à demais empena/parede.
Esta última afirmação foi também confirmada no local pelo próprio Tribunal a quo, quer mercê da inspecção feita ao mesmo, quer por ali ter realizado o julgamento.
Reconhece-se, é certo, que as testemunhas M. J. (anterior proprietário da dita construção, tendo-a depois vendido aos Réus), M. M. (mãe da Ré) e António (pai do Réu) afirmaram que a parcela de terreno em causa pertencia aos Réus, por lhes ter sido vendida juntamente com a construção lagar.
Contudo, foi a mesma testemunha M. J. quem, expressamente perguntado para o efeito, referiu que, ao vender o lagar, apenas tinha vendido «área coberta». Ora, se quem transmitiu aos Réus a propriedade onde os mesmos radicam esta sua pretensão, limitou a transmissão feita ao edifico construído, não só o seu depoimento teria de ser desvalorizado para o efeito pretendido pelos Recorrentes, como igualmente o teria de ser o produzido pelas testemunhas M. M. e António, que no facto praticado por aquele assentaram a sua razão de ciência.
Acresce que, a possuir de facto o dito lagar a área descoberta correspondente à parcela reivindicada pelos Autores, ficou por explicar a razão pela qual não foi junta a documentação que facilmente o certificaria (respectiva descrição predial, ou caderneta predial).

Por fim, e tal como de deixou explicitado antes, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova», juízo necessariamente reforçado quando o julgamento se haja realizado no local dos factos, com depoentes a apontarem e a reportarem-se a realidades físicas não inteiramente inteligíveis pela mera prova gravada.
Logo, mostra-se fundado o juízo de prova do Tribula a quo, relativo aos factos provados enunciados sob os números 10 e 11.

Já relativamente à abertura, pelos Réus, de uma porta no edifício em ruínas que adquiriram, a deitar para a parcela reivindicada pelos Autores (vertida no facto provado enunciado sob o número 12), mostrou-se confirmada pela prova pessoal produzida, sendo que os Recorrentes apenas contestariam nos articulados (e no seu recurso) que pela mesma se acedesse a terreno dos Autores.

Por fim, e relativamente a nunca ter tido aquela casa em ruínas «qualquer abertura para a parte de trás da casa» (vertida no facto provado enunciado sob o número 13), reconhece-se que as testemunhas M. J., H. P. (que construiu para os Réus o pilar objecto dos autos) e António afirmaram que existia uma porta na parede do dito lagar - conforme se retiraria de elementos físicos ainda existentes (v.g. padieira, chumbadoiro, tranqueiro, degraus) -, há muito tapada, e depois reaberta pelos Réus.
Contudo, nem a existência da dita porta foi confirmada pela demais prova pessoal produzida, inclusive pela testemunha A. A. (que chegou a dizer que «conhecia o lagar de vista, mas não saber de qualquer porta para este lado»), como se considera que, face ao prévio insucesso da impugnação da matéria de facto relativa aos factos provados enunciados sob os números 10, 11 e 12, se tornou supervenientemente inútil a apreciação daquele outro.
Com efeito, se tal porta existiu, certo é que ficou já assente que deitaria para um prédio alheio, podendo por isso dever-se a mera tolerância dos proprietários deste último (se não fossem então comuns, aos da própria construção), por assim serem beneficiados com os restos resultantes da produção de vinho, de reconhecida utilidade para a adubagem das terras.
Ora, se o facto essencial ficou provado (a efectiva propriedade, dos Autores, da dita parcela de terreno), torna-se inútil sindicar a prova do facto instrumental àquele primeiro (relativo a existência, ou inexistência, da dita porta), uma vez que, ainda que resultasse indemonstrado (como pretendido pelos Recorrentes), não teria eficácia para alterar a decisão da causa.

Assim, improcede o recurso de impugnação da matéria de facto, interposto pelos Réus (Manuel e Joaquina), relativo à propriedade da parcela de terreno revindicada pelos Autores, vertida nos factos provados enunciados sob os números 10, 11, 12 e 13, e no facto não provado enunciado sob a alínea C) - que por isso permanecem inalterados.
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4.3.4. Abuso de direito dos Autores (factos não provados enunciados sob as alíneas B), D) e E))

Vieram os Réus recorrentes (Manuel e Joaquina) defender a alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entenderem que o Tribunal a quo teria feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma impunha que se desse como provado actuarem os Autores em manifesto abuso de direito, conforme vertido nos factos enunciados sob a alínea B) («O pilar referido em 8. foi construído pelos Réus com a convicção de que o muro lhes pertencia em exclusivo. (facto 14 da contestação)»), sob a alínea D) («O pilar construído, não acarreta qualquer prejuízo ou inconveniente para os Autores (facto 30 da contestação)»), e sob a alínea E) («E se algum prejuízo ou inconveniente lhes importasse, sempre seria, senão insignificante, pelo menos muito menor que o prejuízo ou desvantagem económica que a pretendida demolição implicaria para os Réus»).
Invocaram para o efeito que, tendo a «matéria das als. D) e E) dos factos não provados (…) sido alegada pelos RR. competia aos AA. alegar e provar o contrário, o que de todo não aconteceu»; e impor-se «a alteração da decisão da matéria de facto constante da al. b) dos factos não provados», «pela devida consideração da prova produzida quanto à mesma» (nomeadamente, os depoimentos das testemunhas M. M., H. P. e António, que a confirmaram).
Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pelos Réus recorrentes.
Assim, ponderou a mesma para este efeito (limitando-se a reprodução às partes relevantes e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais relevantes, atento o objecto da sindicância):
«(…)
Quanto ao facto B. nenhuma prova foi feita da convicção dos réus sobre a propriedade do muro e consequente boa-fé na construção do pilar. Contudo, não se pode deixar de referir que na tese que resulta da sua contestação, os réus acreditam que o muro lhes pertence, mas tal não permite afirmar sem mais, que na data em que construíram o pilar assim fosse.
(…)
O facto D. também não se pode considerar provado, já que na tese dos autores o pilar está construído sobre um muro que lhes pertence, causando-lhes o prejuízo decorrente da violação da sua propriedade. Além deste aspecto, cumpre frisar que o Tribunal esteve no local e avistou a imagem vertida na fotografia junta sob o documento 3 da petição inicial.
Embora de cariz subjectivo, aos olhos do Tribunal a construção levada a cabo pelos réus é desprovida de qualquer enquadramento urbanístico, tendo sido destruído um muro centenário em xisto para implementar um pilar em cimento de suporte a um portão, o que por si só implica também um prejuízo.
Por último facto E. também não pode ser considerado provado, porquanto nenhuma prova foi feita do custo da demolição do pilar, por forma a aferir da proporcionalidade da demolição.
(…)»

Logo, uma primeira conclusão se pode desde já enunciar: da própria fundamentação de facto do Tribunal a quo, e tal como os Réus recorrentes também reconheceram, não foi produzida por estes qualquer prova que confirmasse o vertidos nas alíneas D) e E) dos factos não provados.
Ouvida integralmente toda a prova pessoal produzida, verifica-se que, de facto, assim foi, isto é, ninguém se pronunciou sobre a eventual inexistência de prejuízo ou inconveniente para os Autores da construção do dito pilar, ou sobre a comparação entre ele e o prejuízo ou a desvantagem económica que resultaria para os Réus da sua demolição.
Ora, competindo aos Réus a prova de tais factos, conforme art. 342º, nº 1 e nº 2 do C.C. (assim se explicando que os tenham alegado, e que a respectiva pertinência para fundamentar o instituto do abuso de direito - por eles invocado - haja justificado a anulação da primeira sentença proferida), não a asseguraram; e, do mesmo passo, desoneraram os Autores de demonstrarem o seu contrário, ou de tornarem meramente duvidosa a sua verificação, nos termos do art. 346º do C.C..
Logo, mostra-se fundado o juízo de prova do Tribunal a quo, relativo aos factos não provados enunciados sob as alíneas D) e E).

Já relativamente à convicção que os Réus teriam ao construírem o pilar em causa, nomeadamente de que o teriam feito convictos de que o muro lhes pertencia em exclusivo - vertida no facto não provado enunciado sob a alínea B -, assiste razão aos Recorrentes, quando afirmam que as testemunhas M. M. (mãe da Ré), H. P. (que construiu o dito pilar) e António (pai do Réu) o confirmaram.
Deste modo, e não tendo sido produzida qualquer outra prova que desmentisse esta convicção dos Réus, deverá o facto não provado enunciado sob a alínea B) passar a integrar o elenco dos factos provados.

Assim, procede parcialmente, e improcede parcialmente, o recurso de impugnação da matéria de facto, interposto pelos Réus (Manuel e Joaquina), relativo à factualidade subjacente ao instituto do abuso de direito por eles invocado, vertida nos factos não provados enunciados sob as alíneas B), D) e E), passando o primeiro a integrar o elenco dos fatos provados, e permanecendo inalterados os segundo e terceiro.
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V - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

. Ponto prévio

Dependendo o pedido de alteração do decidido na sentença proferida nos autos, no que à interpretação e aplicação do Direito respeita, do prévio sucesso da impugnação da decisão sobre a matéria de facto ali consubstanciada, e não o tendo os Réus recorrentes logrado em toda a sua exigível extensão, fica proporcionalmente prejudicado parte do seu conhecimento - em tudo o que não contenda com a excepção de abuso de direito -, o que aqui se declara, nos termos do art. 608º, nº 2 do C.P.C., aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, in fine, do mesmo diploma.

Com efeito, a mera supressão, no facto provado enunciado sob o número 2, da expressão «pagando as respectivas contribuições e impostos», não é suficiente para alterar a prova da posse dos Autores sobre o prédio rústico em causa, nem as características da mesma, permitindo-lhes por isso a aquisição por usucapião (conforme deviamente explicitado pelo Tribunal a quo na sentença recorrida, e nessa interpretação e aplicação da lei não objecto de recurso pelos Réus).

Da mesma forma se considera a mera supressão na parte inicial do facto provado enunciado sob o número 5 da expressão «O muro foi construído há mais de 50 anos por antepassados do Autor», insuficiente para alterar os demais factos provados relativos ao dito muro, nomeadamente o enunciado sob o número 7, onde ficou afirmado que o «muro sempre foi respeitado, cuidado e conservado por ambos os proprietários dos prédios confinantes».
Ora, foi precisamente sobre este facto que a sentença dos autos concluiu ser o dito muro comum, sendo que o facto provado enunciado sob o número 7 não foi impugnado pelos Réus.

Resta, assim, apreciar apenas a excepção de abuso de direito invocada pelos Réus, verificando nomeadamente se os demais factos já antes provados (e aqui não sindicados), juntamente com o facto agora provado - «O pilar referido em 8. foi construído pelos réus com a convicção de que o muro lhes pertencia em exclusivo» - são, ou não, suficiente para a sua procedência.
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5.1. Determinação e interpretação da lei

5.1.1. Abuso de direito – Definição

Lê-se no art. 334º do C.C. que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Dir-se-á assim, e antes de mais, que o instituto do abuso de direito assenta na existência de limites indeterminados à actuação jurídica individual, resultantes da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito exercido.
Trata-se de uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais com que o legislador pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que redundaria o exercício de um direito por lei conferido (Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, p. 63. No mesmo sentido, Almeida Costa, Direito das obrigações, 3ª edição, p. 60, e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol, I, 4ª edição, Coimbra Editora, p. 298).
Pretende-se ainda com ele assegurar expectativas e direccionar condutas (uma das funções primárias do Direito): assegurar, por um lado, a confiança fundada nas condutas comunicativas das «pessoas responsáveis», assente na própria credibilidade que estas condutas reivindicam; e, por outro, dirigir e coordenar dinamicamente a interacção social e criar instrumentos aptos a dirigir e coordenar essa interacção, por forma a alterar as possibilidade de certas condutas no futuro. Ambas as funções relacionam-se com aquela «paz jurídica» que, ao lado da «justiça» é referida como uma das expressões da própria «ideia de direito» (Baptista Machado, Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Jurídica, Braga, 1991, p. 346).

A lei utiliza aqui, propositadamente, conceitos indeterminados («boa fé», «bons costumes», «fim social ou económico do direito») como modo privilegiado de atribuir ao aplicador intérprete - maxime ao juiz - instrumentos capazes de promover, no caso concreto, uma busca mais apurada da justiça (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, p. 198).

Contudo, pode dizer-se que:

. boa fé - objectiva-se em regras de actuação (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral, Tomo I, p. 180 e 182): é a consideração razoável e equilibrada dos interesses dos outros, a honestidade e a lealdade nos comportamentos e, designadamente, na celebração e execução dos negócios jurídicos (Ana Prata, Dicionário Jurídico, 2ª edição, Almedina, 1989, p. 78), reporta-se à correcção e lealdade (Fernando Augusto Cunha e Sá, Abuso de Direito, C.E.F.D.G.C.I., Lisboa, 1973, p. 193). Por isso, agir de boa fé é «agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesse da contraparte, e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar» (Ac. do STJ, de 10.12.1991, BMJ nº 412, p. 460).
A este propósito deverá ser tido em consideração o disposto nos arts. 227º e 762º, ambos do C.C., que se referem à exigência da actuação de boa fé nos preliminares e formação do contrato, no cumprimento da obrigação e exercício do direito.

. os bons costumes - é conjunto de regras de comportamento sexual, familiar e deontológico, acolhidas pelo Direito, em cada momento histórico, que, não estando codificadas, provocam consenso em concreto, pelo menos nos casos limite, encontrando-se na sua concretização um grupo que se prende com princípios cogentes da ordem jurídica e outro que se liga à moral social (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, p. 193. No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 10.12.1991, BMJ nº 412, p. 460, onde se lê que os bons costumes são «um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente, contrários a laivos ou conotações, imoralidade ou indecoro social»).
Logo, para se determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, Limitada, p. 299).

. o fim/função social ou económico do direito - tem a ver com a sua configuração real, a apurar através da interpretação; se um direito é atribuído com certo perfil, já não haverá direito quando o titular desrespeite tal norma constitutiva (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, p. 283).

Adoptou-se, ainda, uma concepção de abuso de direito «objectiva», isto é, «não é necessária a consciência de se excederem, como seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites.
Isto não significa, no entanto, que ao conceito de abuso de direito consagrado no artigo 334º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido. A consideração destes factores pode interessar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, Limitada, p. 298).
Exige-se, porém, que o excesso cometido seja «manifesto», isto é, que o direito em causa tenha sido exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, por a invocação e aplicação de um preceito concreto da lei, válida para o comum dos casos, resultar na hipótese concreta intoleravelmente ofensiva do sentido ético-jurídico dominante na colectividade (boa fé e bons costumes), ou desvirtuar os juízos de valor positivamente nele consagrados (fim social ou económico).

Concluindo, o abuso do direito pressupõe, logicamente, a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), e que o titular respectivo se exceda no exercício dos seus poderes. «A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deva ser exercido» (Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., p. 300).
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5.1.2. Figuras típicas

Encontram-se já identificadas pela doutrina e pela jurisprudência as figuras mais típicas de manifestação de abuso de direito, contando-se entre elas (e no que ora nos interessa): o venire contra factum proprium; a supressio e a surrectio; e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.
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5.1.2.1. A «locução venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente», pelo que «se está perante dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos entre si e diferidos no tempo. O primeiro - factum proprium - é, porém, contrariado pelo segundo» (António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da Boa Fé No Direito Civil, Colecção Teses, Almedina, Vol. II, p. 742 e 745, com bold apócrifo).
Com efeito, a todos os negócios jurídicos deve presidir um princípio de confiança que, levando à expectativa de certa conduta futura, implica uma auto vinculação. Logo, «a confiança permite um critério de decisão: um comportamento não pode ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confiança das pessoas. (...). Basta que o confiante ignore a instabilidade do factum proprium, sem ter desacatado os deveres de indagação que ao caso caibam» (ibidem, p. 756 e 758).
A proibição de venire contra factum proprium representa, por isso, «um modo de exprimir a reprovação por exercícios inadmissíveis de direitos e posições jurídicas. Perante comportamentos contraditórios, a ordem jurídica não visa a manutenção do status gerado pela primeira actuação, que o Direito não reconheceu, mas antes a protecção da pessoa que teve por boa, com justificação, a actuação em causa. O factum proprium impõe-se não como expressão da regra pacta sunt servanda, mas por exprimir, na sua continuidade, um factor acautelado pela concretização da boa fé» (ibidem, p. 769 e 770).

São, porém, pressupostos exigíveis de aplicação da modalidade venire contra factum proprium do instituto em causa (condicionantes da sua actuação como instrumento de realização da justiça, e impeditivos da sua indevida banalização, por caucionadora de pretensões juridicamente infundamentadas):

. uma situação objectiva de confiança - uma conduta de alguém que, de facto, possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada situação futura (v.g. mera conduta de facto - nalguns casos mesmo simples passividade -, ou declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz, mas que revele directa ou indirectamente a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro);

. um investimento na confiança criada, de carácter irreversível - o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando uma contraparte, com base na situação criada, toma disposição ou organiza planos de vida de que lhe advirão danos, se a sua confiança vier a ser frustrada.
Torna-se, assim, necessário, não só uma relação de causalidade entre o facto gerador da confiança e o investimento da contraparte (o investimento foi feito apenas com base na dita confiança), como ainda que o dano que provocaria a conduta violadora da fides não seja removível através de outro meio jurídico capaz de conduzir a uma solução satisfatória (v.g. ou porque não existe, ou porque o investimento feito não é economicamente recuperável, ou porque a situação criada não pode ser removida, ou só pode sê-lo em condições muito onerosas).

. boa fé da contraparte que confiou - nos casos em que a base da confiança é uma aparência (porque a intenção real do responsável pela aparência diverge da sua intenção aparente), a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando esteja de boa fé (por desconhecer aquela divergência), e tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico.
Logo, o cuidado e as precauções exigíveis da contraparte que reivindica a protecção da sua boa-fé serão tanto maiores quanto mais vultuosos forem os «investimentos» (iniciativas, actos de disposição, decisões) feitos com base na confiança; e sê-lo-ão sobretudo quando circunstâncias particulares suscitem dúvidas sobre a verdade da situação aparente (v.g. nos negócios de grande vulto, que exigem uma actividade preparatória rodeada de muitas precauções, será menos desculpável a crença nos poderes de um procurador aparente do que nos negócios correntes da vida» (tudo apud Baptista Machado, op. cit., p. 415 a 418).
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5.1.2.2. Já a locução dupla supressio e surrectio traduz «a situação do direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar o princípio da boa fé» consagrado no art. 762º do C.C.; ou o inverso do mesmo fenómeno, isto é, uma pessoa veria, por força da boa fé, surgir na sua esfera uma possibilidade que, de outro modo, não lhe assistiria (sendo a surrectio a contraface da supressio).
Contudo, exige-se um decurso significativo de tempo, acompanhado de várias circunstâncias (v.g. o conhecimento do direito e da possibilidade de o exercer), sem exercício do direito, acompanhado de indícios de que tal direito não mais será exercido, sendo desnecessária culpa ou qualquer outro elemento subjectivo por parte do não exercente (António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da Boa Fé No Direito Civil, Colecção Teses, Almedina, Vol. II, op. cit., p. 797).
Por outras palavras, «a realidade social da supressio, que o Direito procura orientar, está na ruptura das expectativas de continuidade da auto-apresentação praticada pela pessoa que, tendo criado, no espaço jurídico, uma imagem de não-exercício, rompe, de súbito, o estado gerado.
(…) A supressio pode, pois, considerar-se uma forma de proscrever os comportamentos contraditórios», estando a sua chave «na alteração registada na esfera da contraparte, perante o não exercício. Protege-se a confiança desta, em que não haverá mais exercícios; a bitola pode ser procurada no sentido que o destinatário normal daria ao não exercício - Art. 236º, nº 1 do Código Civil» (op. cit., p. 813).
*
5.1.2.3. Por fim, o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas desdobra-se em três hipóteses:

. o exercício danoso inútil - «é contrário à boa fé - e, como tal, abusivo - exercer os direitos de modo inútil, com o objectivo de provoca danos na esfera alheia; o exemplo académico é, hoje ainda, o da chaminé falsa de Colmar»;
. o dolo agit qui petit quod statim redditurus est - «é contrário à boa fé exigir o que de seguida se deva restituir; recorde-se que a compensação teve origem na Bona fides precisamente em correspondência com as valorações subjacentes a este brocardo; outras aplicações similares, não cobertas pela faculdade de compensar seriam, hoje, requeridas pela boa fé, sob pena de abuso»;
. a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem - «tal desproporcionalidade, ultrapassados certos limites, é abusiva, defrontando a boa fé» (António Menezes Cordeiro, ibidem).
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5.2. Caso Concreto (subsunção ao direito aplicável)

Concretizando, verifica-se que, com interesse para a decisão da questão enunciada, ficou provado que: o pilar em causa nos autos foi construído pelos Réus com a convicção de que o muro lhes pertencia; o pilar em causa foi construído há mais de 3 anos, e situa-se em frente da casa dos Autores; os Autores nunca manifestaram qualquer oposição ou discordância à construção, tendo porém o Irmão do Autor marido e a respectiva Mulher reagido, interpondo uma providência cautelar de embargo; o pilar ocupa uma área de 30cm x 30cm do muro.
Verifica-se ainda que, tendo-o os Réus alegado, não lograram provar que: o dito pilar não acarreta qualquer prejuízo ou inconveniente para os Autores; e se algum prejuízo ou inconveniente lhes importasse, sempre seria, senão insignificante, pelo menos muito menor do que o prejuízo ou a desvantagem económica que a sua demolição implicaria para os Réus.

Face a esta não prova, desde logo fica afastada a possibilidade de enquadrar a situação dos autos na figura do desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, na sua modalidade de desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem.

Considera-se ainda que a passividade dos Autores nos três anos subsequentes à construção do dito pilar não pode ser feita equivaler à figura da supressio, não só por não se considerar aquele período de tempo de inacção como «significativo», como ainda porque não foi acompanhado de qualquer outra circunstância que permitisse inequivocamente afirmar que o direito de ser oporem não seria mais exercido.
Com efeito, tendo o Irmão do Autor marido reagido à dita construção, determinando o seu embargo, compreende-se que este o não fizesse, confiando antes na eficácia daquela prévia reacção, que tornaria a sua inútil.

Esta mesma circunstância impede ainda a subsunção dos factos apurados à figura do venire contra factum proprium, já que, neste contexto, a actuação dos Autores não pode ser visa como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada situação futura.
Acresce que os Réus primeiro construíram o pilar, e só depois se pretenderam aproveitar da alegada situação de confiança dita como criada pelos Autores. Ora, o abuso de direito em causa exige precisamente o contrário, isto é, que a posterior construção do pilar se devesse à prévia actuação dos Autores, reveladora de que no futuro não reagiram a ela, vinculando-se à respectiva inacção (o que, de todo em todo, não se mostra verificado nos autos).

Compreende-se, por isso, que se afirme, na sentença recorrida, não ser bastante para este efeito, «o simples facto de o autor ter assistido à realização da obra no muro, sem a ela se ter oposto, facto que não foi alegado e também não foi provado, já que a pessoa que construiu o pilar (H. P.), nenhuma certeza avançou sobre a presença do autor marido em Parada do Pinhão, referindo outrossim que o mesmo permanecia diversas vezes em Setúbal.
Por outro lado não se verifica por parte dos AA., uma conduta positiva que permitisse criar nos RR. uma expectativa, séria, sólida e fundada, de que teriam renunciado ao direito de propriedade sobre o questionado muro, tanto mais que sabiam que a obra fora embargada, como referem os RR., pelo irmão do autor. Ora considerando as relações familiares, não estranha que os autores, face ao embargo da obra pelo irmão do autor marido, se convencessem que a mesma viria a ser demolida, não vendo necessidade no recurso aos Tribunais para fazerem valer o seu direito.
Tanto basta para que seja rejeitada a tese do abuso do direito».
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Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela parcial procedência, e pela parcial improcedência, do recurso de apelação interposto pelos Réus (Manuel e Joaquina).
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VI – DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente, e parcialmente improcedente, o recurso de apelação interposto por Manuel e mulher, Joaquina, e, em consequência, em

A. Alterar parcialmente a sentença recorrida, nomeadamente

· suprimindo na redacção do facto provado enunciado sob o número 2 a expressão «pagando as respectivas contribuições e impostos», e suprimindo na redacção do facto provado enunciado sob o número 5 a expressão «foi construído há mais de 50 anos por antepassados do Autor»;

· suprimindo o facto não provado enunciado sob a alínea B) do elenco dos factos não provados, e inserindo-o no elenco dos factos provados, com a mesma exacta redacção («O pilar referido em 8. foi construído pelos Réus com a convicção de que o muro lhes pertencia em exclusivo»);

B. Manter inalterado o remanescente da sentença recorrida, confirmando-o.
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Custas da apelação Réus (art. 527º, nº 1 do CPC).
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Guimarães, 01 de Março de 2018.

Maria João Marques Pinto de Matos
José Alberto Martins Moreira Dias
António José Saúde Barroca Penha

SUMÁRIO
(da responsabilidade da Relatora - art. 663º, n 7 do C.P.C.)


I. O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova).

II. Dependendo a apreciação do recurso pertinente à interpretação e aplicação do Direito ao caso concreto, do prévio sucesso do simultâneo recurso interposto sobre a matéria de facto fixada, o conhecimento daquele primeiro ficará prejudicado na proporção da improcedência deste segundo (arts. 608º, nº 2 e 663º, nº 2, in fine, ambos do C.P.C.).

III. A falta de imediata reacção à violação de um direito próprio não é suficiente para que se possa afirmar que a posterior reacção do seu titular consubstancia abuso de direito, na modalidade de supressio, desde que aquela inicial passividade não ocorra durante um período de tempo significativo, e/ou não seja acompanhada de outras circunstâncias que permitam concluir que o direito não será mais exercido (art. 334º do C.C.C.).

IV. A reacção não imediata do titular do direito de propriedade violado por prévia construção não é suficiente para que se possa afirmar que aquele agirá então em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, já que necessariamente não foi a sua posterior passividade que deu causa à prévia violação perpetrada (art. 334º do C.C.C.).


(Maria João Marques Pinto de Matos)