Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2699/09.3TBBRG.G1
Relator: MANSO RAÍNHO
Descritores: AUTORIDADE DO CASO JULGADO
GRAVAÇÃO DEFICIENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/29/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Quando se consegue perceber o essencial, ou seja, o sentido das declarações da testemunha, a irregularidade decorrente da anomalia de gravação não produz nulidade relevante para efeitos de reapreciação da prova pela Relação, não se justificando por isso a repetição do julgamento nessa parte.
II – Tendo corrido acção entre as partes acção onde, com base em certos factos, se decidiu estar o contrato de arrendamento afectado por erro-vício, não pode, em acção subsequente, discutir-se os mesmos factos, pese embora o pedido nesta acção ser diferente.
III – Tal impossibilidade funda-se, não na excepção do caso julgado, mas sim na autoridade do caso julgado.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 1ª Secção Cível da Relação de Guimarães:

C… demandou, pelo Tribunal Judicial de Braga, S (…), Lda., peticionando a condenação desta no pagamento da quantia de €21.750,00, acrescida de juros de mora desde a citação.
Alegou para o efeito, em síntese, que tomou de arrendamento à Ré a fracção autónoma que identifica. Essa contratação pautou-se, da parte da Autora, pelo convencimento, criado pela Ré, de que no local iria ser realizado, em prazo estabelecido, um empreendimento comercial que daria à fracção arrendada as vantagens que a Autora indica, e sem o que, como a Ré sabia, a Autora não teria contratado. Na sequência, e em vista do cumprimento do contrato de franchising subjacente à feitura do arrendamento, procedeu a Autora no arrendado às obras e instalações que descreve, cujo custo foi de €35.700,00. Sucede porém que a Ré não concretizou o prometido e garantido empreendimento. Entretanto, foi judicialmente anulado o contrato de arrendamento em causa por erro sobre os motivos, tendo o local sido restituído à Ré. Todavia, a Autora deixou no arrendado, que nele ficaram integradas por não poderem ser retiradas, as benfeitorias que descreve, no valor de €16.750,00, com as quais se enriqueceu a Ré, que assim deve restituir tal valor. De outro lado, o comportamento da Ré causou à Autora prejuízos patrimoniais, estes consistentes naquilo que despendeu no locado e que perdeu (€16.750,00), e não patrimoniais, estes consistentes na frustração das expectativas, tristeza e desgosto, que devem ser compensados mediante o pagamento da quantia de €5.000,00.
Contestou a Ré, excepcionando com o caso julgado formado na acção que anulou o contrato de arrendamento. Subsidiariamente, e com as razões de facto e jurídicas que invocou, concluiu pela improcedência da acção.
Mais pediu a condenação da Autora no pagamento da quantia de €5.000,00 pelo prejuízo que diz ter sido causado por efeito do mau estado de conservação em que deixou o local arrendado.
Seguindo o processo seus termos, veio a final a ser proferida sentença que, em procedência parcial da acção, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de €17.750,00, acrescida de juros desde a citação. O pedido da Ré foi julgado improcedente.

Inconformada com o assim decidido, apela a Ré.

Da sua alegação extrai as seguintes conclusões:

(…)

Quanto à matéria das conclusões 1ª a 6ª:

Argúi-se aqui a nulidade processual decorrente da deficiente gravação do depoimento da testemunha Maria… .
Dando de barato que tal suposta nulidade podia ser arguida em sede de alegação de recurso (assunto sobre que tergiversa a jurisprudência), há a dizer que improcede a arguição.
Isto pelo seguinte:
Foi revisitado integralmente o registo do depoimento em causa.
Dessa revisitação resulta que a gravação do depoimento apresenta efectivamente vários cortes ou interrupções.
Simplesmente, visto o depoimento na sua globalidade, consegue-se perceber sem qualquer margem para dúvidas e em todas as suas componentes (temas concretos sobre que incidiu o depoimento) o sentido do depoimento, sendo perfeitamente possível à Apelante identificar as passagens de que se pretendesse prevalecer para efeitos de recurso.
E se assim é, nenhum impedimento verdadeiro tinha a Apelante em ordem a convocar em seu favor o depoimento em causa, nem impedimento algum tem este tribunal em ordem a escrutinar tal depoimento, de sorte que não foi cometida qualquer nulidade relevante.
Neste sentido vai a jurisprudência:
- Acórdão da Relação de Lisboa de 5 de Maio de 2011 (disponível em www.dgsi.pt): para a procedência de nulidade decorrente de deficiente gravação não basta a verificação da deficiência, sendo indispensável que esta possa influir no exame ou decisão da causa. A assim não ser, a irregularidade não implica quaisquer consequências processuais.
- Acórdão da Relação de Lisboa de 9 de Novembro de 2000 (disponível em www.dgsi.pt): a não percepção de partes da gravação da audiência só configura nulidade da mesma nos casos em que se mostre essencial ao apuramento da verdade. Se as anomalias existentes na gravação tiverem um carácter muito pontual e circunscrito, em nada afectando a cabal compreensão do sentido e alcance dos depoimentos, não ocorre qualquer nulidade.
- Acórdão desta Relação de Guimarães de 6 de Maio de 2010, proferido no processo nº 1543/08: quando se consegue perceber o essencial, ou seja, o sentido das declarações da testemunha, a irregularidade decorrente da anomalia de gravação não produz nulidade relevante, não se justificando a repetição do julgamento nessa parte.
Improcedem pois as conclusões em destaque.
(…)
Quanto à matéria das conclusões (…):

Impugna-se aqui, directa e indirectamente, o julgamento dos factos (…)
Vejamos:
No que tange à matéria dos quesitos 2º, 3º, 4º, 9º e 12º, importa dizer que a sua quesitação, submissão a prova e resposta não têm razão de ser. Como razão de ser não tinha a sentença ora recorrida aí onde incidiu sobre a verificação de erro e consequente anulação do contrato. E daí que também a impugnação das respostas não tem razão de ser.
E porquê?
Porque se trata de matéria que se traduz no substrato factual do erro (erro-vício) que a Autora alegou ter estado na base da sua contratação do arrendamento que fez com a Ré. Ora, acontece que em acção anteriormente travada entre as partes (processo nº 3516/06, da Vara de Competência Mista de Braga) foi já definitivamente decidido, com fundamento precisamente nessa factualidade, que tal erro se verificava, e daí que foi anulado o contrato de arrendamento. Isto está muito claro na sentença retratada a fls. 25 e sgts (embora no respectivo dispositivo se faça alusão, por lapso evidente, à resolução do contrato) e nas demais peças processuais constantes de fls. 69 e sgts.).
Portanto, formou-se caso julgado quanto à questão do erro e da anulação do contrato, e daqui que não podia o assunto ser repisado entre as partes, mesmo numa situação como a vertente em que o objecto do pedido não é em si mesmo o reconhecimento do erro e a anulação do contrato mas apenas assenta na pressuposição do erro e da anulação (convém ter presente, como aliás se apontou acertadamente no despacho saneador, que o caso julgado deve ser visto como integrando os pressupostos em que assenta a decisão, ou seja, o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão; não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo).
Sucede que a supra aludida quesitação colocou o tribunal ora recorrido na indesejável situação de correr o risco (que acabou por não se concretizar, porque as respostas foram coincidentes com as que se deram na acção precedente) de se contradizer, ou seja, de ter de assumir uma realidade jurídica (erro/não erro, contrato inválido/contrato não inválido) divergente daquela que já fora anteriormente assumida por decisão transitada em julgado.
Para se entender bem o que acabamos de dizer, é necessário ter presente que o caso julgado tem duas facetas, uma negativa (que se traduz na excepção do caso julgado), outra positiva (que se traduz na autoridade do caso julgado). E é esta última faceta que impede aqui a reponderação do assunto sobre que versam os quesitos em causa. Já a excepção do caso julgado, que aliás foi suscitada na contestação e desatendida (e bem) no despacho saneador, não está em causa, e não é disto que se trata aqui.
Expende-se, a propósito, no acórdão desta Relação de Guimarães de 12 de Julho de 2011 (disponível em www.dgsi.pt), e trata-se de entendimento que subscrevemos inteiramente e que está sufragado na doutrina e na jurisprudência, que os efeitos do caso julgado material desdobram-se em duas vertentes: efeito negativo da inadmissibilidade de uma segunda acção (proibição de repetição: excepção do caso julgado) e efeito positivo da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade do caso julgado). Deste modo, o já decidido não pode ser contraditado ou afrontado por alguma das partes em acção posterior. A delimitação entre as duas figuras (autoridade do caso julgado e excepção de caso julgado), observa-se no citado acórdão, pode estabelecer-se da seguinte forma: se no processo subsequente, nada de novo há a decidir relativamente ao decidido no processo precedente (os objectos de ambos os processos coincidem integralmente, nenhuma franja tendo deixado de ser jurisdicionalmente valorada), verifica-se a excepção de caso julgado; se, pelo contrário, o objecto do processo precedente não abarca esgotantemente o objecto do processo subsequente, e neste existe extensão não abrangida no objecto do processo precedente (e por isso não jurisdicionalmente valorada e, logo, não decidida), ocorrendo porém uma relação de dependência ou prejudicialidade entre os dois distintos objectos, verifica-se a autoridade do caso julgado. A excepção do caso julgado não se confunde assim com a autoridade do caso julgado, pois enquanto naquela se visa o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito, nesta tem-se em vista o efeito positivo de impor a primeira decisão transitada em julgado, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito, assentando, portanto, a autoridade do caso julgado numa relação de prejudicialidade, por o objecto da primeira decisão constituir pressuposto necessário da decisão de mérito a proferir na segunda acção. Nesta base, não pode a decisão de determinada questão voltar a ser discutida. Tanto na excepção do caso julgado como na autoridade do caso julgado, isto quanto à determinação dos seus limites e eficácia, deve atender-se não só à parte decisória mas também aos respectivos fundamentos. Assim, acrescenta o acórdão que estamos a citar, ao intérprete caberá verificar que comando ficou a constar da sentença ou despacho judicial, reconstituindo, se necessário, os diversos elementos do silogismo judiciário plasmados na decisão, não podendo, contudo, ir além disto sob pena de violar os limites objectivos do caso julgado legalmente consagrados e frustrar, por essa via, o objectivo fulcral que preside a este instituto jurídico, ou seja, a salvaguarda da segurança e certeza do direito. A extensão do caso julgado, mais se diz no citado acórdão, abrange não só os fundamentos invocados pelo autor, mas também os meios de defesa invocados pelo réu, as excepções invocadas e até as que poderia ter invocado e não invocou, pois toda a defesa deve ser deduzida na contestação, contra o pedido deduzido, desde que relativos à relação controvertida, tal como ela existia à data da sentença.
Ora, assim sendo, como é, é inadmissível escrutinar a matéria que enforma os quesitos acima isolados. O caso julgado formado na anterior acção, fundado nessa estrita matéria, obriga a dar por adquirida e indiscutível tal realidade, na certeza (repete-se) que o caso julgado abrange os pressupostos de facto em que assenta a decisão (é nisto que se traduz o dito silogismo judiciário, e é este que na verdade adquire o valor de caso julgado). Por isso, nem os quesitos deviam ter sido formulados nem respondidos. As repostas dadas não podem deixar de se terem como inócuas. E isto leva a desconsiderar, por carência de objecto jurídico, a impugnação que vem apresentada contra tais respostas.
(…)

Quanto à matéria das demais conclusões:

Pretende a Apelante nestas conclusões que a causa deveria ter merecido outro tratamento jurídico.
Para vermos se assim é, importa recuperar aqui a factualidade que a sentença recorrida elenca como provada, e que é a seguinte:

1. Por acordo escrito datado de 1 de Julho de 2005, designado como contrato de arrendamento comercial, em que se identifica como primeiro outorgante a ora ré e como segunda outorgante a ora autora, consta que a segunda é dona de uma fracção autónoma designada pela letra “L”, com entrada pelo nº 58 da Alameda D. António Ribeiro, do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua dos Capelistas, com os números 53 a 59 de polícia, freguesia de S. João do Souto, concelho de Braga, inscrito na matriz urbana sob o art. P1041; mais se consignou que o contrato é celebrado pelo prazo de um ano, prorrogável pelos prazos sucessivos de um ano, obrigando-se a aqui ré a proporcionar à autora, com efeitos desde 01.07.2005, o gozo do referido prédio, mediante a contrapartida mensal de €1.530, 81, actualizável anualmente, com vencimento no 1º dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que respeitasse; o objecto deste acordo foi estipulado como actividade de comércio de vestuário, tudo conforme documento de fls. 48 a 51, aqui dado por reproduzido.
2. A autora aplicou, na fracção, pavimento em lousa 60x60, com remate de rodapé em toda a área envolvente, instalou iluminação decorativa com projectores encastráveis de HQI de 70W nas montras e de lâmpadas compactas florescentes de 2x26w no tecto geral, 4 colunas de som encastráveis, cablagem para sistema de segurança, sinalética de emergência, caixa térmica de pavimento, mobilou a loja com mobília construída em aço inox e lousa, instalou condutas e difusores para distribuição de ar quente e frio, aplicou duas portas com respectivas guarnições para acesso ao armazém e montra.
3. A autora entregou a fracção identificada em 1º à ré no final do mês de Abril de 2006, tendo esta recebido a chave por via postal; nessa ocasião, a autora retirou do arrendado a iluminação, o mobiliário e o sistema hi-fi, que haviam custado a quantia de €18.950.
4. Por sentença transitada em julgado e proferida no âmbito do processo nº 3516/06.1TBBRG, desta Vara de Competência Mista, em que era autora a aqui ré e ré a aqui autora, decidiu-se, além do mais, “declarar resolvido o contrato de arrendamento (…) por erro sobre os motivos, com as legais consequências, nomeadamente condenando-se a ré C… a pagar à autora um quantitativo, a fixar em execução de sentença, pela ocupação do locado nos meses de Novembro de 2005 a Abril de 2006, o qual não pode igualar ou ultrapassar o valor das rendas em causa nestes autos”, tudo conforme resulta do documento de fls. 24 a 34, aqui dado por reproduzido.
5. A autora pretendia comercializar, na fracção identificada em 1º, peças da marca Fátima Lopes.
6. Realizou o acordo em causa por a ré lhe ter dito e convencido de que seria ali realizado um empreendimento comercial com quatro entradas, uma pela Rua dos Capelistas, outra pelo Largo de S. Francisco, outra pela Rua dos Chãos e outra pela Rua do Carvalhal, que a fracção se situaria no centro do empreendimento a construir ficando diante da praça da alimentação, que as obras se iniciariam no prazo máximo de quatro meses a contar da data do acordo referido em 1º e que demorariam dois anos.
7. A autora procedeu à aplicação do referido em 2º para satisfazer as exigências da marca “Fátima Lopes”, tendo aqueles trabalhos ascendido ao montante de €35.700,00.
8. Cerca de três meses depois do acordo descrito em 1º, a autora ficou a saber que as obras que a ré disse que iriam realizar-se no local não iam ser efectuadas, não tendo o projecto relativo a tal empreendimento dado entrada na Câmara Municipal de Braga, obras essas que não se iniciaram até à presente.
9. A autora não teria feito o acordo descrito em 1º se soubesse que o empreendimento comercial aludido em 6º não iria ser construído, o que era do conhecimento da ré.
10. Em consequência do referido em 8º, a autora ficou triste, deprimida, desgostosa e com insónias.

Vejamos:
Por força do caso julgado formado na acção nº 3516/06, está adquirida a anulação do contrato de arrendamento celebrado entre as partes. Isto significa que as elucubrações constantes da sentença recorrida aí onde se reporta à invalidade do contrato por erro-vício não têm razão de ser. O mesmo se diga das elucubrações tecidas pela Apelante a esse estrito propósito. Damos aqui como reproduzido o que acima dissemos relativamente à imposição (vinculação) nesta matéria do caso julgado, no figurino da autoridade do caso julgado (e não da excepção do caso julgado, excepção esta que, repete-se, foi rejeitada, e bem aliás, no despacho saneador).
O contrato anulado não produz efeitos como contrato, é um não contrato.
Donde, a decisão de direito a tomar no presente processo tem que levar apodicticamente em linha de conta esse pressuposto.
Isto significa que grande parte da argumentação jurídica da Apelante carece de qualquer sentido, pois que enfrenta o thema decidendum como se estivéssemos perante um contrato válido e operante, e não perante um contrato que já foi judicialmente invalidado. E dizer isto é o mesmo que dizer que a jurisprudência que a Apelante cita, sendo embora em si mesma exacta, não vem nada ao caso, justamente porque se reporta às consequências de contratos juridicamente existentes, e não é o que acontece aqui.
Isto posto:
Pretende a Apelante que deveria proceder o seu pedido reconvencional (vamos dar de barato que foi efectivamente deduzido um pedido reconvencional, ainda que, e contrariamente ao estabelecido no nº 1 do art. 501º do CPC, nenhuma reconvenção vem expressamente identificada na contestação). Tal pretensão, tal como identificada no ponto c) da parte final da contestação, objectiva-se apenas na condenação no pagamento de indemnização por danos materiais provocados no locado (e não também pela ocupação do local sem pagar, assunto que foi alegado no artigo 57º da contestação, mas não objecto do petitório).
Nada está provado factualmente que sustente tal pretensão, isto é, que a Autora tenha provocado danos no locado.
Donde, improcede necessariamente tal pedido. Assunto arrumado.
Foi assim que decidiu a sentença recorrida, e bem pois.
Passemos agora à pretensão da Autora:
Esta quer-se ver reintegrada a título patrimonial e a título não patrimonial.
Depreende-se da petição inicial que a visada reintegração é reclamada quer a título de responsabilidade civil quer a título de enriquecimento sem causa.
Em qualquer uma das perspectivas, julgamos que a pretensão procede.
Vejamos a questão na perspectiva da responsabilidade civil:
Desde logo, importa observar que a anulação do contrato de arrendamento não tem que ter por efeitos apenas aqueles que vêm referidos no art. 289º do CC. Na realidade, e como diz Castro Mendes (Direito Civil, Teoria Geral, III [1973], p. 562), a anulação pode ser acompanhada de dever de indemnizar por parte de um dos intervenientes do negócio jurídico, designadamente quando se registe uma situação de responsabilidade pré-contratual (art. 227º do CC).
Estabelece-se precisamente no art. 227º do CC, que quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato deve proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelo dano que causar à outra parte. Através da responsabilidade pré-contratual, diz-nos Almeida e Costa (Direito das Obrigações, 9ª ed., p. 271), tutela-se directamente a confiança fundada de cada uma das partes em que a outra conduza as negociações segundo a boa fé e, por conseguinte, as expectativas legítimas que a mesma lhe crie, designadamente quanto à validade e eficácia do negócio. Nesta base, e como ainda menciona o mesmo autor (ob. cit., p. 272), a responsabilidade pré-negocial sem dúvida que engloba no seu conceito as hipóteses de negócio inválido e ineficaz. Concordantemente, dizem Pires de Lima /Antunes Varela (Código Civil Anotado, I, anotação ao 227º), que a anulação do contrato não afasta a aplicação do art. 227º.
De outro lado, e seguindo ainda a lição de Almeida e Costa (ob. cit., p. 548), bem como a de Pessoa Jorge (Lições de Direito das Obrigações, 1975, p. 490), importa ver que quando se fala de dano conexionado com um contrato, se pode distinguir entre dano positivo ou de cumprimento (“in contractu”) e dano negativo ou de confiança (“in contrahendo”). Enquanto que a indemnização do dano positivo se destina a colocar o lesado na situação em que se encontraria se o contrato fosse exactamente cumprido, a indemnização do dano negativo tende a colocar o lesado na situação em que se encontraria se não houvesse celebrado o contrato, ou mesmo iniciado as negociações com vista à respectiva conclusão. Nesta segunda vertente, encara-se o prejuízo que o lesado evitaria se não tivesse confiado em que, durante as negociações, a outra parte cumpriria os específicos deveres a elas inerentes e derivadas da boa fé, maxime convencendo-se de que a manifestação de vontade deste entraria no mundo jurídico tal como esperava, ou que havia entrado correcta e validamente.
Ora, de acordo com o que já foi decidido na supra aludida acção (e que aliás coincide inteiramente com as respostas que se deram nos presentes autos aos pertinentes quesitos), e cuja autoridade de caso julgado se nos impõe nos termos sobreditos, a Autora agiu sob erro e o contrato foi anulado, na medida em que negociou o arrendamento por a Ré lhe ter dito e criado o convencimento de que seria realizado no local um empreendimento comercial com quatro entradas, que a fracção se situaria no centro do empreendimento a construir e diante da praça da alimentação, que as obras tendentes à concretização destes fins se iniciariam no prazo máximo de quatro meses. A autora não teria feito o arrendamento se soubesse que o aludido empreendimento comercial não iria ser construído, o que era do conhecimento da Ré. Cerca de três meses depois do arrendamento ter sido celebrado, a Autora ficou a saber que as obras que a Ré disse que iriam realizar-se no local não iam ser efectuadas, não tendo o projecto relativo a tal empreendimento dado entrada na Câmara Municipal de Braga, obras essas que não se iniciaram até ao presente.
Assim sendo, tem a Ré de ser vista como responsável pelo dano que esta situação de evidente inconsideração pelos legítimos interesses e expectativas da Autora no âmbito da relação contratual visada, por isso que, agindo na forma descrita, postergou a observância dos deveres inerentes à boa fé (autenticidade e lisura), boa fé esta que é suposto estar omnipresente nas negociações subjacentes à conclusão dos contratos. Deste modo, deve a Ré indemnizar a Autora pelo prejuízo que esta sofreu em decorrência, isto quer: i) segundo o vector da responsabilidade pré-contratual em que aquela se constituiu ao criar a esta o erróneo convencimento que esteve na base da respectiva declaração de vontade em contratar - e cuja essencialidade a Ré conhecia (circunstâncias que levaram depois à anulação do contrato) – e do investimento (rectius, despesas) a que a Autora procedeu no locado; ii) quer segundo o vector do dano contratual negativo, por isso que se o contrato viciado por erro, de que o convencimento formado pelo comportamento da Ré esteve na base, não tivesse sido celebrado, a Autora não teria feito as despesas que fez. Prejuízo todo este que corresponde à diferença entre o que a Autora despendeu em obras na suposição de um contrato operante (mas que afinal era inválido pelo erro causado, e veio a ser anulado) e aquilo que perdeu. Ou seja, o prejuízo da Autora foi o de €16.750,00.
E o que acaba de dizer-se, vale obviamente para a indemnização pelo dano não patrimonial reclamada pela Autora. Também aqui o comportamento da Ré esteve na base de uma série de malefícios - tristeza, desgosto, depressão, insónia - que a Autora não teria tido sofrido se acaso a Ré tivesse procedido com a lisura devida.
Deste modo, tendo a sentença recorrida condenado naquela quantia, bem como fixado uma indemnização de €1.000,00 pelo dano não patrimonial, nenhuma censura pode merecer.
Vejamos agora o assunto na perspectiva do enriquecimento sem causa:
Ainda aqui convém ter presente que o contrato de arrendamento foi anulado, pelo que, contra o suposto pela Apelante, não interessa para o caso o clausulado (cláusula oitava) nesse contrato quanto ao destino das benfeitorias, clausulado esse cuja atendibilidade pressuporia a existência de um contrato válido.
Ora, está provado que a Autora, que esteve legitimamente na posse do local ao abrigo do contrato entretanto anulado, aplicou no arrendado (e sabe-se que o fez para satisfazer as exigências da marca “Fátima Lopes”, tudo em cumprimento das obrigações inerentes à relação de franchising subjacente ao arrendamento, sendo certo - e isto decorre de toda a prova testemunhal produzida - que tal aplicação era do inteiro conhecimento e aceitação da Ré) pavimento em lousa 60x60, com remate de rodapé em toda a área envolvente, instalou iluminação decorativa com projectores encastráveis de HQI de 70W nas montras e de lâmpadas compactas florescentes de 2x26w no tecto geral, 4 colunas de som encastráveis, cablagem para sistema de segurança, sinalética de emergência, caixa térmica de pavimento, mobilou a loja com mobília construída em aço inox e lousa, instalou condutas e difusores para distribuição de ar quente e frio, aplicou duas portas com respectivas guarnições para acesso ao armazém e montra.
Destas aplicações, levantou depois a Autora parte delas - iluminação, mobiliário e sistema de hi-fi.
O restante da aplicação representa sem dúvida um conjunto de despesas feitas para melhorar a coisa, e vale, dentro da tipologia fixada no art. 216º do CC, como benfeitorização útil (cabe aqui repetir o que já acima, em sede da impugnação de facto, se observou: que de acordo com a prova testemunhal oferecida por ambas as partes, o local arrendado havia sido entregue à Autora “em grosso”). Trata-se obviamente de aplicação que não pode ser levantada sem detrimento do imóvel, competindo por isso à Ré prestar à possuidora o valor da benfeitorização, nos termos dos art.s 1273º e 473º e sgts. do CC. Nada estando provado que sugira o contrário, não podemos senão presumir que aquilo que a Autora deixou incorporado no locado reverteu em igual medida para o património da Ré, e daqui que esta sempre deva prestar o valor pecuniário dessa incorporação, ou seja, o valor de €16.750,00.
Ora, assim sendo, como é, não encontramos razão para censurar a sentença recorrida ao ter condenado a Ré no pagamento da quantia de €17.750,00, acrescendo os juros de mora (assunto sobre que a Apelante não tergiversa especificamente).
Consequentemente, improcedem as conclusões em destaque.

Do que fica dito resulta que deve ser confirmada a sentença recorrida (ainda que por razões não inteiramente coincidentes), improcedendo a apelação.

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Decisão:

Pelo exposto acordam os juízes nesta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

Regime de custas:

A Apelante é condenada nas custas da apelação.

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Guimarães, 29 de Novembro de 2011
José Rainho
Carlos Guerra
Conceição Bucho