Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
204/14.9TTVRL.G1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: ISENÇÃO DE CUSTAS
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PRIVADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário: 1 - Estão isentas de custas as pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos, quando atuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto.
2 - A questão deve ser analisada tal como resulta da posição de ambas as partes.
3 - Se não foi celebrado um contrato de trabalho, mas sim um compromisso desportivo sem direito a remuneração, haverá isenção, uma vez que a requerente se dedica a promover e fomentar a prática de futebol não profissional.
4 - Se o jogador foi contratado mediante retribuição, já se extravasam aqueles fins, motivo pelo qual não deev haver isenção de custas.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães.

João… moveu processo comum contra Sport Clube …, invocando a existência de um contrato de trabalho a termo resolutivo, para representar aquela como jogador de futebol e mediante retribuição.
Invoca retribuições não pagas, e outros direitos.
A ré contestou invocando que o autor é jogador amador, nunca tendo sido acordada retribuição. Foi celebrado um compromisso desportivo. Subsidiariamente invoca a nulidade do contrato celebrado, por não reduzido a escrito.
A ré invocou isenção de custas, por ter a qualidade de instituição de utilidade pública sem fins lucrativos.
O Mmº juiz proferiu despacho indeferindo a pretensão, com os seguintes fundamentos:
Nos presentes autos o aqui demandado veio pugnar pela aplicabilidade da al. f) do nº 1 do art. 4º do RCP, no sentido de que se encontra isento do pagamento de custas judiciais, invocando para o efeito que é uma pessoa coletiva de utilidade pública sem fins lucrativos e que a jurisprudência tem vindo a entender que a defesa dos interesses deste tipo de pessoa coletiva numa situação em que se discute a validade ou as consequências de contratos de trabalho celebrados entre a mesma e os seus colaboradores se insere na referida previsão legal, no sentido de que atua no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender interesses que lhe estão especialmente conferidos.
Em sentido contrário se pronunciou o Digno Magistrado do Min. Púb. na douta promoção que antecede na qual pugna pela exclusão dos presentes autos do âmbito da referida norma legal e, como tal, na inexistência de isenção subjetiva aplicável ao demandado.
Ao analisarmos o texto legal correspondente ao art. 4º nº 1 al. f) do regulamento das custas e ao confrontarmos este texto com o objecto dos presentes autos não podemos deixar de concordar com a conclusão exarada pelo Min. Púb. e isto atentos os motivos que passamos a explanar.
A isenção subjetiva em apreço visa isentar as pessoas coletivas de utilidade pública do pagamento de custas não em todas as ações judiciais, senão o seu teor não conteria a expressão delimitadora desta isenção “…quando atuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhes estão especialmente conferidos pelos respetivos estatutos ou nos termos da legislação que lhe seja aplicável.”.
Ainda que concedendo a existência de alguma disparidade entre as decisões dos Tribunais de 2ª Instância no que à interpretação desta norma concerne, sempre se constatará que o preceito em questão visa limitar a isenção das pessoas coletivas de utilidade pública às situações em que estas actuam em juízo precisamente por o serem, ou seja, nas ações judiciais em que o seu escopo é de algum modo relevante para a sua intervenção na demanda, seja como autora, seja como ré.
Ora, no caso dos autos o R. intervém por ser a entidade empregadora do A. sendo a sua utilidade pública de nenhum relevo nos presentes autos, os quais foram intentados pelo trabalhador como forma de reclamar créditos laborais, ou seja, a sua utilidade pública é totalmente despicienda para a apreciação do mérito da presente lide que apenas aprecia uma determinada relação laboral e o cumprimento das obrigações que da mesma decorrem.
Pelo exposto, conclui-se, salvo melhor entendimento, que não tem aplicação ao caso concreto o preceituado no art. 4º nº 1 al. f) do RCP, indeferindo-se o pedido de isenção de custas formulado pelo R.”
Inconformada a ré interpôs recurso, concluindo em síntese:
- A recorrente Sport Clube … é uma instituição de utilidade pública: sem fins lucrativos que, estatutariamente, se dedica a: a) Promover, fomentar, incentivar, dirigir e regulamentar a prática do futebol não profissional, em todas as suas especialidades, na área da sua jurisdição; b)…; c) Cuidar e defender os direitos dos seus Associados e os seus legítimos interesses, representando-os perante a Administração Pública; …
- No caso dos autos, embora o objeto do processo não corresponda imediatamente à prossecução dos fins institucionais, encontra-se com estes numa relação de instrumentalidade, uma vez que a eventual responsabilidade do aqui requerente advirá do desenvolvimento do seu escopo social, como seja, o fomento e a prática do desporto, que, por estatuto lhes incumbe.
- estão em causa nos autos contratos de trabalho ou compromissos desportivos celebrados entre a pessoa coletiva sem fins lucrativos e os seus colaboradores. A contratação de colaboradores é indispensável à prossecução do escopo social, por estar correlacionado com os fins institucionais da pessoa coletiva.
Colhidos os vistos dos Ex.mos Srs. Adjuntos há que conhecer do recurso.
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A factualidade com interesse é a que resulta do precedente relatório.
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Conhecendo do recurso:
Nos termos dos artigos 635º, 4 e 639º do CPC, o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.
Importa saber se a ré pode como pretende beneficiar da isenção de custas.
Invoca a ré o comando da al. f) nº 1 do artigo 4 do RCP.
Refere o normativo.
Artigo 4.º
Isenções
1 - Estão isentos de custas:

f) As pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos, quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável;

5 - Nos casos previstos nas alíneas b), f) e x) do n.º 1 e na alínea b) do n.º 2, a parte isenta é responsável pelo pagamento das custas, nos termos gerais, quando se conclua pela manifesta improcedência do pedido.
6 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, nos casos previstos nas alíneas b), f), g), h), s), t) e x) do n.º 1 e na alínea b) do n.º 2, a parte isenta é responsável, a final, pelos encargos a que deu origem no processo, quando a respetiva pretensão for totalmente vencida.

O disposto nos números 5 e 6, não só pelos motivos que os informam, mas também por uma questão de harmonia do sistema, deve ser entendido para ambas as posições processuais.
Na jurisprudência têm ocorrido várias sensibilidades. A título de exemplo vejamos alguns:
No Ac. TCAS, no acórdão de 11/12/2012, processo nº 05814/12, defende-se que a isenção não abrange, nomeadamente, as ações que tenham por objeto obrigações ou litígios derivados de contratos que estas entidades celebrem com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições.
O Ac. RL de 14/1/2014, processo nº 1026/12.7TVPRT.P1, tratando ação em que se visa a anulação de deliberações sociais de uma associação desportiva, com idêntico fim, em que se encontra filiada a requerente, refere que a isenção apenas deverá ser reconhecida quando concretamente estejam em causa a defesa ou o reconhecimento de direitos e obrigações necessários, nestes se incluindo os indispensáveis e os instrumentais à prossecução dos seus fins e já não os convenientes.
Salvador da Costa, no Regulamento das Custas Processuais. Anotado, em nota ao artigo, defende a abrangência das ações instrumentais em relação aos fins estatutários.
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Com a isenção pretende-se o estímulo e facilitação na prossecução de fins de interesse público, de tarefas que interessam à comunidade em geral, por entes privados e de forma desinteressada.
Como resulta do normativo esta isenção subjetiva apresenta duas caraterísticas peculiares, é limitada e condicionada.
Limitada porque não depende apenas da qualidade do sujeito, dependendo ainda dos concretos contornos da ação para a qual se pretende a mesma.
Estão abrangidas as ações em que a pessoa coletiva defenda interesses relacionados exclusivamente com as suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável. Estaremos a falar de direitos e/ou obrigações necessárias e decorrentes ao normal atuar da pessoa, tendo em vista alcançar os fins de interesse público em razão dos quais foi erigida.
Condicionada, porque pode a final vir a suportar custas, nos termos do nº 5 e 6 do normativo.
Uma interpretação estritamente literal, admitindo a inserção apenas quando as ações tenham a ver diretamente com as especiais atribuições ou sejam para defender os interesses especialmente conferidos à pessoa coletiva, não nos parece a mais conforme com os objetivos da concessão da isenção, com a ratio da norma.
Contudo, falar-se simplesmente de uma “instrumentalidade”, como bastante, implicará colocar na norma aquilo que o legislador não pretendeu aí colocar. Tratando-se de pessoa coletiva que não distribui lucros, facilmente se encaixaria todo o tipo de ações nos pressupostos necessários à isenção, inutilizando o caráter limitado prescrito na norma. Se o legislador assim o tivesse pretendido, bastaria conceder a isenção subjetiva tout court.
Importará caso a caso verificar se o assunto sub judice é “decorrência natural” do atuar da pessoa na prossecução daquelas atribuições e/ou interesses, quer porque, a jusante, decorrentes dessa prossecução; quer porque, a montante, necessário à mesma.
Assim, uma festa tendo em vista angariar fundos, para usar o exemplo dado no Ac. RP de 14/1/2014, processo nº 1026/12.7TVPRT.P1, não se encaixará nos pressupostos, conquanto seja instrumental, não é necessária ao objetivo nem decorre da prossecução do mesmo.
Uma demanda laboral poderá ou não encaixar-se. Encaixar-se-á uma demanda por exemplo de uma cozinheira de uma instituição que serve refeições gratuitas – a demanda é decorrência da prossecução do objetivo, a cozinheira foi contratada para o efeito de prosseguir naquele. O caso concretamente analisado no acórdão acima referido, conquanto não decorra da prossecução do objetivo, encaixar-se-á como demanda necessária à prossecução daquele.
Não se encaixarão aquelas que não decorrem da prossecução daquelas atribuições, nem são necessárias à mesma.
A recorrente estatutariamente, dedica-se a a) Promover, fomentar, incentivar, dirigir e regulamentar a prática do futebol não profissional, em todas as suas especialidades, na área da sua jurisdição; …
O “contrato em apreço” preencherá as condições para a recorrente poder ser considerada entidade isenta nos termos do artigo supra referido?
A fim de evitar a fraude à lei, importa ter em atenção a realidade social em que nos movemos. Nos tempos atuais, uma parte considerável dos “clubes” que se dizem amadores, comportam-se como clube profissionais, adotando métodos, estratégias próprias dos destes – contratando jogadores e técnicos, mediante retribuição, com obrigação de comparência aos treinos, com sujeição aqueles às determinações de treinador, e ambos com sujeição às ordens e diretivas do clube etc… Tais contratos são muitas vezes verbais, e a própria remuneração é escondida debaixo de falsos subsídios e prémios. Trata-se do fenómeno já denominado de ”falso amadorismo” - João Leal Amado (Contrato de Trabalho Desportivo, Anotado, Coimbra Editora, 1995, pág.19).
Podemos então adiantar já, que se a realidade for esta não se justifica a isenção, não foi para tais casos que ela foi prevista.
E pouco importa a eventual nulidade do contrato por falta de forma. É que em tais casos deve concluir-se que a pessoa coletiva se moveu de forma estranha à prossecução dos objetivos que justificavam a isenção.
A contratação de um jogador (independentemente da qualidade formal de profissional o amador), mediante retribuição (encapotada ou não sobre outras formas), não se afigura como necessária à prossecução dos fins da recorrente, nem é decorrência dessa prossecução.
Contudo, tratando-se de uma isenção em favor de uma pessoa coletiva, a concessão não pode depender dos termos em que a ação é proposta pelo autor. Deve analisar-se a questão tal como resulta da posição de ambas as partes. Só assim se garantem efetivamente os objetivos da lei. No caso presente, se a recorrente demonstrar que não foi celebrado contrato de trabalho (ainda que verbal), mas sim um compromisso desportivo sem direito a qualquer remuneração (nem de forma que encapotada), terá inteira razão. Quer dizer, a “prestação” invocada pelo autor enquadra-se nos fins da ré, de fomento e promoção do futebol não profissional.
Se ao invés o autor demonstrar a sua tese, a prestação extravasa daqueles fins. O legislador ao estabelecer a isenção, não teve em vista o benefício do futebol enquanto atividade económica, mas apenas enquanto prática desportiva generalizada, benéfica para a saúde e equilíbrio dos praticantes.
Assim, nesta fase e em face dos termos da demanda tal como resulta da posição das partes, deve ser concedida a isenção, sem prejuízo da aplicação a final do disposto no nº 5 do normativo, entendendo-se que não demonstrando de todo a sua versão a mesma é manifestamente improcedente.
Assim e com esta ressalva, procede a apelação, devendo a ré beneficiar da isenção por ora, sem prejuízo da aplicação dos nºs 5 e 6 do artigo, a final.
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DECISÃO:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação revogando-se a decisão e deferindo-se por ora o pedido de isenção.
Sem custas.
Guimarães, 30/04/2015
Antero Veiga
Manuela Fialho
Moisés Silva