Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
253/11.9TBGMR.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DO TRABALHO
EXECUÇÃO
CRÉDITO LABORAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: O Juízo de Execução de Guimarães não é materialmente competente para uma execução em que o título executivo consiste num "contrato de confissão e regularização de dívida com fiança", no qual a dívida reconhecida, e que se quer executar, se refere ao "pagamento dos créditos laborais devidos [à exequente] pela cessação do contrato de trabalho".
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
M… instaurou, no Juízo de Execução de Guimarães, contra M…, L.da, a presente execução para pagamento da quantia de € 2 191,28, acrescida de juros no valor de € 440,00.
Alega, em síntese, que por documento particular, denominado "Contrato de confissão e regularização de dívida com fiança", a executada declarou dever-lhe a quantia global de € 2.491,28, dos quais apenas lhe pagou € 300,00.
A Meritíssima Juiz proferiu despacho em que decidiu:
"Nessa conformidade e em face de tudo o exposto, julgo este Juízo de Execução incompetente, em razão da matéria, e, em consequência, indefiro liminarmente o requerimento executivo, ao abrigo das disposições conjugadas dos art.ºs 101.º, 102.º, n.º 1, 105.º, n.º 1, 494.º, alínea a) e 812.º-E, n.º 1, alínea b), todos do C. P. Civil."
Inconformada com esta decisão, a exequente dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1 - Ao decidir pela incompetência em razão da matéria dos Juízos de Execução para julgar a presente acção sem indicar qual é o Tribunal competente, o Tribunal "a quo" não se pronunciou sobre questão a qual se deveria ter pronunciado, pelo que, nos termos do preceituado no artigo 668º, nº 1, al. D) do C.P.C., a sentença padece de nulidade.
2 - A execução funda-se não na violação de uma obrigação laboral, mas no incumprimento por parte da executada da obrigação de pagamento de uma dívida que surgiu após a extinção da relação laboral – resultante de um documento particular, assinado pela recorrida, denominado "Contrato de confissão e regularização de dívida com fiança", com assinatura da recorrida/devedora, datado de 10 de Julho de 2009, cuja junção ora se procedeu nos autos, sob o doc. n.º 1.
3 - Para garantia das obrigações resultantes do presente contrato de confissão e regularização de dívida, o denominado interveniente associado nos presentes autos, responsabilizou-se solidariamente com a executada como seu fiador e principal pagador de tudo o que vier a ser devido à exequente em consequência do aludido contrato.
4 - Estamos perante um documento particular assinado pela executada e pelo interveniente associado, a qual contém, desde logo e antes de mais, a obrigação de pagamento de uma quantia determinada de € 2.631,28.
5 - O documento particular é título executivo que serve de base a execução, em conformidade com o dimanado pelos artigos 45º e 46º nº 1, da alínea c) do C.P.C..
6 - Pelo que, a execução funda-se no incumprimento, por parte da recorrida, da divida assim assumida, no dia 10 de Julho de 2009, a qual surgiu após a extinção da relação laboral.
7 - Efectivamente, a recorrente e a recorrida extinguiram a relação jurídico-laboral entre elas existentes em 10 de Junho de 2009.
8 - Está em causa, na acção instaurada, apenas e só o incumprimento de um compromisso assumido, de uma obrigação de pagamento a recorrente, da quantia global € 2.631,28.
9 - Esta obrigação consubstancia uma declaração negocial que foi aceite pela ora recorrente, e no qual a recorrida assume a responsabilidade, elaborada e assinada pela recorrida.
10 - Existe, de facto, uma relação laboral concomitante à assunção desta obrigação, mas a acção não se funda no incumprimento de qualquer relação laboral, até porque já não existia qualquer relação laboral entre as partes quando a declaração de responsabilidade se tornou eficaz.
11 - O facto de ter existido um contrato de trabalho é um mero elemento histórico de enquadramento e, no máximo, sem admitir nem conceder, meramente acessório em relação à divida em causa nos autos.
12 - Na determinação do sentido e alcance da primeira parte da alínea b) do referido 85º, o que verdadeiramente releva, para a determinação da razão de ser da norma, é que o direito que se pretenda ver tutelado através do exercício do direito de acção judicial provenha da violação de obrigações que para a recorrida resultem de uma relação jurídico-laboral, mormente do contrato de trabalho.
13 - Mas é manifesto não ser isso o que acontece no caso sub júdice. Com efeito, no caso dos presentes autos, a recorrente fundamenta a sua pretensão, não na violação de uma obrigação laboral da recorrida, mas sim no não cumprimento, por esta, da obrigação de pagamento de uma dívida.
14 - Trata-se de vicissitudes completamente à margem de qualquer relação de trabalho subordinado, posto que relacionadas com a execução de um contrato de confissão e regularização de dívida com fiança.
15 - Assim, não compete aos Tribunais de Trabalho o julgamento de litígios como o presente.
16 - Estamos, isso sim, perante uma acção, cujo conhecimento cabe, ao Juízos de Execução.
17 - Na verdade, a competência dos Tribunais em razão da matéria, afere-se em função da configuração da relação material controvertida, ou seja em função dos termos em que é formulada a pretensão do Autor, incluindo os seus fundamentos (cfr., neste sentido, por todos, os acórdãos do STA de 27/901, 28/11/02 e 19/2/03, proferidos nos recursos nºs. 47 633, 1674/02 e 47636, respectivamente , e do Tribunal de Conflitos de 2/702 e de 5/2/03, proferidos nos conflitos nºs. 1 e 6/02, respectivamente).
18 - Assim, o Tribunal materialmente competente para julgar os presentes autos será o Tribunal "a quo" e não qualquer instância especializada laboral.
19 - Tanto mais que a instância especializada laboral, com o devido respeito, deve reservar-se para aquelas questões que são de conteúdo essencial dessa relação, ou seja, aquelas que respeitam a direitos e deveres recíprocos, a ela inerentes, daqueles que aí são partes. Direitos e deveres laborais, no quais não se inserem, o direito reclamado pela recorrente, nem a obrigação a recorrida configuradas nestes autos.
20 - Com o devido respeito, o douto Tribunal "a quo" não teve em conta que a recorrente fundamentou a sua pretensão, no incumprimento dos recorridos, da obrigação de pagamento de uma dívida, não estando correctos alguns dos fundamentos da sentença, nem podendo, outros dos fundamentos, produzir a conclusão subscrita pelo douto Tribunal a quo. Pelo que, o douto Tribunal a quo violou a alínea b) do artigo 85º da LOFTJ e o nº 1do artigo 105º do Código de Processo Civil.
A executada não contra-alegou.
As conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:
a) "nos termos do preceituado no artigo 668.º, n.º 1, al. D) do C.P.C., a sentença padece de nulidade"; [1]
b) o Juízo de Execução de Guimarães é materialmente competente para tramitar os presentes autos.
II
1.º
Os factos a considerar são os que já se expuseram no relatório e ainda que no citado "Contrato de confissão e regularização de dívida com fiança" as 1.ª e 2.ª cláusulas têm o seguinte conteúdo:
"PRIMEIRA
Por carta datada de 11 de Maio de 2009, a segunda outorgante [2] denunciou o contrato de trabalho sem termo celebrado com a segunda outorgante a 1 de Abril de 2008, com efeitos a partir de 10 de Junho de 2009, cumprindo o prazo de aviso prévio estipulado no artigo 400.º, n.º 1 do Código do Trabalho (Lei n.º 7/2009, de 12/02).
SEGUNDA
1. A título de pagamento dos créditos laborais devidos pela cessação do contrato de trabalho nos termos supra, a primeira outorgante [a executada] paga à segunda outorgante [a exequente] a quantia total líquida de € 2.491,28 (dois mil, quatrocentos e noventa e um euros e vinte e oito cêntimos).
2. A primeira outorgante obriga-se a pagar a referida importância em 16 prestações mensais e sucessivas, sendo que as primeiras 15 prestações serão do montante de € 150,00 (cento e cinquenta euros) e última no valor de € 241,28 (duzentos e quarenta e um euros e vinte e oito cêntimos), vencendo-se a primeira no dia 15 de Julho de 2009 e as seguintes em igual dia dos meses subsequentes."
2.º
A exequente sustenta que a decisão recorrida está ferida da nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do anterior Código de Processo Civil, a qual ocorre "quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento", o mesmo é dizer que lhe cabe "conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções que oficiosamente lhe cabe conhecer". [3]
No caso dos autos, se o tribunal a quo se considera "incompetente, em razão da matéria" para esta acção, está, naturalmente, impedido de conhecer das questões que nela se suscitam. Esse impedimento significa que não lhe é permitido pronunciar-se acerca do que lhe é pedido, o que implica, evidentemente, que esse silêncio sobre tais questões não se traduz na apontada nulidade. Com efeito, a omissão a que se reporta aquele preceito pressupõe que o tribunal podia e devia conhecer de uma questão quanto à qual, em violação dessa sua obrigação, acaba por não se pronunciar.
Inexiste, pois, a mencionada nulidade.
3.º
A Meritíssima Juiz funda a sua decisão afirmando, essencialmente, que:
"No regime actual, a competência dos juízos de execução mostra-se pois definida nos seguintes termos:
- execuções de natureza cível, com excepção das atribuídas aos tribunais de família e menores, trabalho, comércio e marítimos [art.º 102.º-A, n.ºs 1 e 2, 1.ª parte];
- execuções de sentenças dos tribunais criminais que condenem em indemnização a liquidar em execução de sentença [art.º 102.º-A, n.ºs 1 e 2, 2.ª parte];
- execuções de custas cíveis e multas aplicadas em processo cível, com excepção das atribuídas aos tribunais de família e menores, trabalho, comércio e marítimo [art.º 102.º-A, n.º 3].
Com efeito, a Lei 42/05 introduziu alterações significativas na competência material dos juízos de execução, restringindo-a aos processos de execução de natureza cível [art.º 102.º-A, n.º 1]."
A exequente contrapõe dizendo, em suma, que "a execução funda-se não na violação de uma obrigação laboral, mas no incumprimento por parte da executada da obrigação de pagamento de uma dívida que surgiu após a extinção da relação laboral". [4]
O artigo 18.º n.º 2 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) [5] dispõe que esse "diploma determina a competência em razão da matéria entre os tribunais judiciais, estabelecendo as causas que competem aos tribunais de competência específica."
O artigo 85.º n) desse diploma, que se reporta à competência cível dos tribunais do trabalho [6], estabelece que compete aos tribunais do trabalho conhecer "das execuções fundadas nas suas decisões ou noutros títulos executivos, ressalvada a competência atribuída a outros tribunais".
E o artigo 102.º-A n.os 1 e 2 da LOFTJ estatui que:
"1 - Compete aos juízos de execução exercer, no âmbito dos processos de execução de natureza cível, as competências previstas no Código de Processo Civil.
2 - Estão excluídos do número anterior os processos atribuídos aos tribunais de família e menores, aos tribunais do trabalho, aos tribunais de comércio e aos tribunais marítimos e as execuções de sentenças proferidas por tribunal criminal que, nos termos da lei processual penal, não devam correr perante o tribunal civil. "
Neste contexto, tem que se concluir que as "execuções fundadas (…) noutros títulos executivos", mencionadas naquele artigo 85.º n) da LOFTJ, são as execuções em que o título executivo (que não é uma decisão de um tribunal do trabalho) tem por subjacente obrigações de natureza laboral; a origem da obrigação que se executa é uma relação laboral. Esta solução é a que melhor salvaguarda os interesses em litígio uma vez que este tribunal é o que está melhor colocado para apreciar as questões daquela natureza que possam ser suscitadas no decorrer da lide, designadamente em sede de oposição à execução.
Já os "processos de execução de natureza cível" de que fala o artigo 102.º-A n.º 1 da LOFTJ são aqueles que seriam da competência dos juízos e varas cíveis se não houvesse um juízo de execução para "exercer, no âmbito dos processos de execução (…) as competências previstas no Código de Processo Civil". Mas serão unicamente os que caberiam a esses juízos e varas desde que, efectivamente, estejam instalados os tribunais mencionados no n.º 2 desse artigo102.º-A.
Voltando ao caso em apreço, verifica-se que por um lado existe o Tribunal do Trabalho em Guimarães e por outro lado a dívida que se quer executar refere-se ao "pagamento dos créditos laborais devidos pela cessação do contrato de trabalho". É certo que, como salienta a exequente, esse contrato já cessou. Mas não é menos certo que são "créditos laborais" provenientes de um "contrato de trabalho" que se pretende executar. Contrariamente ao que defende a exequente, a execução não se funda numa "obrigação de pagamento de uma dívida que surgiu após [7] a extinção da relação laboral" [8]; ela consiste, sim, numa obrigação que nasceu durante e por causa de uma relação laboral que se veio a extinguir. A circunstância de o acordo em que se reconheceu a dívida ser posterior ao fim do contrato de trabalho não retira a essa obrigação a sua natureza e a sua razão de ser, nem tão pouco isso é suficiente para que se possa afirmar que ela apenas "surgiu após a extinção da relação laboral".
Portanto, o título dado à execução está abrangido pela segunda parte da alínea n) do artigo 85.º da LOFTJ.
Aqui chegados, conclui-se que o juízo de execução é materialmente incompetente para esta acção executiva.
III
Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o recurso e matem-se a decisão recorrida.
Custas pela exequente.
12 de Novembro de 2013
António Beça Pereira
Manuela Fialho
Edgar Gouveia Valente
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[1] Cfr. conclusão 1.ª.
[2] Na redacção desta cláusula há um evidente lapso de escrita, pois refere-se por duas vezes "a segunda outorgante", quando é manifesto que numa delas se queria dizer "a primeira outorgante".
[3] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, pág. 704.
[4] Cfr. conclusão 2.ª. Ideia que depois se repete, designadamente na conclusão 6.ª.
[5] Lei 3/99, de 13 de Janeiro.
[6] Estes têm ainda competência contravencional e competência em matéria de contra-ordenações, cfr. artigos 86.º e 87.º.
[7] Sublinhado nosso.
[8] Deixando implícita a ideia de que a dívida em nada se relaciona com a extinta relação laboral.