Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
385/09.3TBVRL.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: HERANÇA
TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO DO TESTAMENTO
DESPESAS DE FUNERAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/29/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - O testamento é um negócio jurídico unilateral pelo qual uma pessoa (o seu autor) dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles.
II – Posto que só produz efeitos post mortem, o respeito pela última vontade do testador é uma exigência do próprio direito natural, o que implica, na interpretação do testamento, o respeito escrupuloso pela vontade real do testador em tudo aquilo que não seja contrário à lei imperativa e à moral ou que não seja impossível.
III – A herança responde pelas despesas com o funeral do de cujus, que deve ser conforme com a sua condição e o costume da terra, e responde ainda pelas despesas com os sufrágios, umas e outras a pagar em primeiro lugar em relação às demais dívidas da herança.
Decisão Texto Integral: - ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES -

A) RELATÓRIO
I.- M… requereu Inventário Judicial para partilha da herança deixada por sua mãe S… e, tendo sido investida nas funções de cabeça-de-casal, foi-lhe deferido o compromisso de honra após o que prestou declarações identificando os herdeiros e apresentou um testamento deixado pela Inventariada.
Mais tarde apresentou a relação de bens que foi objecto de reclamação por um dos herdeiros.
Decidida a reclamação (por acordo), teve lugar a conferência de interessados tendo-se procedido a licitações relativamente a dois dos bens da herança, sendo os demais adjudicados por acordo.
Foi dada a forma à partilha e organizado o mapa de partilha, seguindo-se-lhe a prolação da sentença homologatória da partilha.
Inconformada, a Cabeça-de-Casal impugna o despacho determinativo da partilha, a partilha que se lhe seguiu, e a sentença que a homologou por, invocadamente, não terem considerado o testamento deixado pela Inventariada do qual ela própria era a beneficiária por ter cuidado da sua mãe nos três últimos anos de vida, pretendendo ver contempladas as reclamações que, em tempo próprio, apresentou nos autos.
Contra-alegou apenas o Interessado A… pronunciando-se pela improcedência da pretensão da Cabeça-de-Casal.
O recurso foi recebido como de apelação com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II.- A Cabeça-de-casal/Apelante funda o recurso nas seguintes conclusões:
1º - Vem o presente recurso interposto da douta sentença de 1ª instância, e o mesmo apresentado na firme convicção de que o despacho determinativo da forma à partilha estava errado, pois foram partilhados bens que não pertencem à sucessão legitimária, e não foram partilhadas as despesas efetuadas pela Apelante, com o funeral da inventariada.
2º - Salvo o devido respeito, a Apelante entende que o Tribunal a quo partilhou pelos interessados A…, M… e A…, bens que não pertenciam à herança que lhes era lícito partilhar, enquanto não beneficiários da disposição testamentária da inventariada, por pertencerem à Apelante, e, não partilharam os mesmos interessados, as despesas efetuadas com o funeral da inventariada, partilha que é nula nessas partes, nos termos do disposto no art.º 2123.º n. 1, do Código Civil.
3º - O presente recurso tem como objeto a correta aplicação do Direito aos factos, ou seja, o despacho determinativo da forma à partilha, não teve em consideração os bens relacionados pela cabeça de casal, aqui Apelante, relativamente:
a) Ao testamento que a inventariada instituiu como herdeira da quota disponível da sua herança a Apelante;
b) Às despesas com o funeral da inventariada que foram relacionadas, como dívida passiva da herança.
4º - Na medida em que o mapa informativo da partilha não reflete aqueles bens e valores, violando o disposto nos artigos 2265.º, 2027.º, 2131.º, 2156º, 2162.º, 2123.º e 2068.º do Código Civil.
5º - O Tribunal a quo elaborou erradamente despacho determinativo da forma à partilha.
6º - Com relevância para esta questão, cita-se a Relação de Bens apresentada, em 27/04/2009, pela Apelante:
7º - “A inventariada faleceu com testamento, celebrado no Cartório Notarial da Dr.ª Maximino em Vila Real, pelo qual instituiu herdeiro da sua quota disponível, quem a partir de 08/01/2009, a tratasse na saúde e na doença (Doc.1), pelo que, atento ao exposto, foi instituída da sua quota disponível a cabeça-de-casal, M….
8º - Porquanto, foi esta que a levou para sua casa a inventariada, onde durante cerca de dois anos, e até a data do seu falecimento, a tratou com carácter de habitualidade na saúde e na doença, prestando-lhe todos os cuidados com a alimentação, higiene e alojamento”.
9.º - Ora, desta Relação de Bens apenas reclamou o interessado A…, acusando a falta de bens, mas sempre concordou com a disposição testamentária em beneficiava da sua irmã cabeça-de-casal, aqui Apelante, por ser ela que olhou pela sua mãe inventariada.
10.º - O Tribunal a quo não considerou a Apelante como beneficiária do testamento, quando nos autos (relação de bens), se relacionou e indicou que foi a cabeça-de-casal aqui Apelante, que tratou a inventariada com caráter de habitualidade na saúde e na doença prestando-lhe todo o cuidado com a alimentação, higiene e alojamento.
11º - O Tribunal a quo não procedeu a averiguações no sentido de apurar com todo o rigor e ponderação quais os exatos bens a partilhar por óbito da inventariada.
12º - O Tribunal a quo ao decidir definitivamente deve fazê-lo com um grau de elevada certeza sobre quais os bens que integram a partilha, ou seja, deve estar em posse de todos os elementos disponíveis de modo a poder aferir quais os bens afetados pelo testamento efetuado pela inventariada S….
13º - Cremos que esta é uma questão de fulcral importância, porque a partilha deve proceder-se da seguinte forma:
14º - Somam-se os valores dos bens descritos com os aumentos provenientes das licitações e divide-se a totalidade obtida em três pates iguais, representando um terço a quota disponível que, por força do testamento, se adjudica à cabeça de casal aqui Apelante.
15º- Os dois terços restantes constituem a quota legitimária.
16º - Desta (legitima global 2/3), dividem-se em quatro quinhões iguais, cabendo a cada filho da inventariada um desses quinhões.
17º - É que, tendo em conta que a quota disponível da inventariada deve ser afetada pela disposição testamentária que beneficia a Apelante, não foi considerada no mapa de partilha, pelo que, reflete a mesma uma situação incorreta por indevida, já que aumenta o quinhão dos três interessados que não são herdeiros testamentários da inventariada
18º - De referir que, os interessados reconhecerem por unanimidade que a Apelante é a única benificiária do testamento.
19º - E, a ser assim, a partilha efetuada nessa parte, terá de se considerar incorreta e nula, porque foram partilhados pelos interessados bens que não pertenciam à herança que lhes era lícito partilhar, enquanto beneficiários da disposição testamentária da inventariada que lhes não pertencia.
20º - Não sendo justa a partilha efetuada por dela saírem beneficiados os interessados A…, M… e A…, em detrimento da cabeça de casal, aqui Apelante.
21º - Impõe-se a retificação do despacho determinativo da forma à partilha, a fim de se dissiparem as dúvidas e as eventuais irregularidades/incorreções resultantes desse despacho.
22º - No tocante à dívida passiva, pese embora ter sido acordado, por unanimidade, em conferência de interessados, o despacho determinativo da forma à partilha não considerou as despesas com o funeral da inventariada, e como tal mais uma irregularidade que, se refletiu no mapa informativo da partilha.
23º - Pelo que, em face do exposto, o Tribunal a quo violou o preceituado nos artigos 2068.º do Código Civil.
24º - Mais uma vez, a partilha efetuada, nessa parte, terá de se considerar incorreta e nula, porque não foram calculadas as dívidas da herança, nos termos do artigo 2162.º do código civil.
25º - Não sendo justa, nesta parte, a partilha efetuada por dela saírem beneficiados os herdeiros A…, M… e A…, em detrimento da cabeça de casal, que pagou as despesas com o funeral da inventariada, S….
26º - Tais irregularidades foram reclamadas pela Apelante, em 03/03/2014, alegando no ponto 5, da reclamação que o mapa da partilha não refletia essas despesas, efetuadas pela Apelante, no montante de 1.189,00 euros, pelo que, este montante deve ser levado à partilha por força do disposto no art.º 2068.º do Código Civil.
27º - Em 05/05/2014, o Tribunal a quo proferiu despacho de indeferimento sobre a tal reclamação.
28º - O Tribunal a quo na douta sentença e despachos que a antecede, violou, entre outros, o preceituado nos artigos1373.º, 1375º e 1379.º do Código de Processo Civil, e artigos 2027.º, 2068º, 2123.º, 2131.º, 2156º e 2162.º do Código Civil, respetivamente, o despacho determinativo da foram à partilha, da formação do mapa, as reclamações contra o mapa, a herança que responde pelas despesas do funeral do seu autor, a partilha de bens não pertencentes à herança, a sucessão legitimária e cálculo da legítima, no sentido em que não teve em consideração os procedimentos e os critérios ali previstos.
29º - Deve, por isso, ser revogado o despacho determinativo da forma à partilha, de modo a corrigir-se e a retificar-se o mapa da partilha, em conformidade com as presentes conclusões.
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III.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do C.P.C., sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
De acordo com as conclusões formuladas pela Apelante as questões a apreciar são:
- da consideração do testamento deixado pela Inventariada;
- da consideração das despesas do funeral como dívida da herança e se devem ou não fazerem-se reflectir na partilha.
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B) FUNDAMENTAÇÃO
IV.- Com interesse para a decisão cumpre ter presentes estas incidências processuais:
1.- No requerimento que deu início ao Inventário Judicial a ora Apelante propôs a sua própria nomeação para o cargo de cabeça-de-casal alegando que “viveu os últimos dois anos com a falecida”.
2.- Nas declarações de cabeça-de-casal, para além de identificar os (quatro) “herdeiros legitimários”, a Apelante declarou ainda que a Inventariada “fez testamento”, juntando-o aos autos.
2.- No referido testamento, celebrado em 08/01/2009, a Inventariada “Institui herdeiro da quota disponível da sua herança, quem a partir desta data a tratar com carácter de habitualidade na saúde e na doença, prestando-lhe todos os cuidados com a alimentação, higiene e alojamento, até à data do seu falecimento.”.
3.- Na relação de bens da herança a Apelante identifica um imóvel urbano e acrescenta “A inventariada faleceu com testamento, celebrado no Cartório Notarial da Dr.ª Maximino em Vila Real, pelo qual instituiu herdeiro da sua quota disponível, quem a partir de 08/01/2009, a tratasse na saúde e na doença, pelo que, Atento o exposto, foi instituída herdeira da sua quota disponível a cabeça-de-casal, M…. Porquanto foi esta que levou para sua casa a inventariada, onde durante cerca de dois anos, e até à data do seu falecimento, a tratou com carácter de habitualidade na saúde e na doença, prestando-lhe todos os cuidados com a alimentação, higiene, e alojamento.”, juntando (outra) certidão do testamento.
4.- Ainda na mesma relação identificou diversas dívidas dentre as quais as “Despesas com o funeral” no valor de € 1.189,00 e apresentou um recibo emitido pela Diocese de Vila Real, do valor de € 350, “para a celebração de um trintário gregoriano (trinta missas seguidas)” pela alma da Inventariada.
5.- O co-herdeiro A… reclamou contra a relação de bens, acusando a falta de relacionação de bens móveis e dinheiro, e opô-se à relacionação de diversas despesas referindo, relativamente a uma delas, “não acreditar” que a mesma não tenha sido paga “atento o valor e o facto da falecida viver com a cabeça-de-casal, tendo ficado mais de um ano por pagar”.
6.- Respondeu à reclamação a ora Apelante, cabeça-de-casal, e os co-herdeiros A… e M… fizeram juntar declaração na qual afirmam concordarem “com a relação de bens adicional apresentada pela cabeça de casal”, não aceitarem “o teor da reclamação” apresentada pelo interessado A…, concordando com a resposta daquela.
7.- Seguidamente foi proferido despacho que ordenou a eliminação do passivo por se entender que as dívidas descritas não constituíam “encargos da herança”, deixando-se a possibilidade de os herdeiros acordarem, em sede de conferência de interessados, na relacionação das despesas de funeral.
8.- Numa diligência à qual não compareceu o reclamante A… acordaram os demais co-herdeiros na descrição dos bens que compunham a herança a partilhar, nada se dispondo quanto às despesas acima referidas em 4..
9.- Na conferência de interessados os herdeiros acordaram na adjudicação dos bens móveis tendo-se procedido a licitações do único bem imóvel, urbano, e de um jazigo.
10.- Na forma à partilha o Meritíssimo Juiz desconsiderou o testamento deixado pela Inventariada porque nele “não foi indicado o concreto beneficiário do testamento nem nos autos”.
11.- Notificados os herdeiros do mapa informativo, o Interessado A… declarou não prescindir do depósito das tornas e a Cabeça-de-Casal requereu a rectificação da acta da conferência de interessados por forma a que aí fique a constar ter ela sido “instituída herdeira da quota disponível da inventariada, por força do testamento”, e que “as verbas nºs 1 e 2 não sejam computadas no mapa de partilha para efeitos de pagamento das tornas”, e ainda “adjudicando-se a verba n.º 11 ao interessado A…, pelos valores da licitação”, procedendo-se à rectificação “do mapa de partilha em conformidade”.
Respondeu a este requerimento o Interessado A… pronunciando- se pelo indeferimento do requerido, com a alegação de que a Requerente nas declarações que prestou “Não declarou ser ela (ou outra pessoa) a herdeira”, e quanto aos demais pedidos de correcção dizendo “estarem precludidos os prazos de reclamar”.
12.- Apreciando o requerimento apresentado pela Cabeça-de-Casal o Meritíssimo Juiz indeferiu-o dizendo que já se havia antes pronunciado quanto ao testamento e porque se não “mostra possível concluir estarmos perante um simples erro material ou de escrita e inexistindo acordo de todos os interessados”.
13.- Por requerimento conjunto apresentado pela Cabeça-de-Casal e pelos Interessados A… e M… reafirmaram os três que: a) “resulta, inequivocamente, da análise cuidada e ponderada da relação de bens que foi instituída herdeira da quota disponível a cabeça-de-casal, M… …”, e, tendo estes dois co-Herdeiros manifestado o seu pleno acordo com a relação de bens, o interessado A… “no tocante ao testamento verba nº 1, esta não foi contestada”. Acrescentam ainda que “consta do livro de notas dos três signatários” que a verba n.º 11 foi licitada pelo Interessado A… “pelo valor de 1.950 euros” e constar ainda “dos ditos livros de notas” que “não se procedeu à inquirição de testemunhas por todos os interessados terem acordado em adjudicar o montante de 213,16 euros, a título de subsídio de funeral e o montante de 562,89 euros saldo bancário da CGD … à cabeça de casal para compensação das despesas com o funeral da inventariada no montante de 1.189,00 euros suportado pelo cabeça de casal”, sugerindo a convocação de uma conferência de interessados.
Respondeu a este requerimento o Interessado A… opondo-se ao requerido, retomando os argumentos acima referidos em 11.
14.- Tendo o Sr. Escrivão de Direito admitido um lapso na acta de conferência de interessados por, segundo os seus apontamentos, a verba n.º 11 ter, de facto, sido adjudicada ao Interessado A…, o Meritíssimo Juiz veio a ordenar se procedesse à correcção, no mais mantendo o já decidido.
15.- Foi depois elaborado o mapa de partilha contemplando (apenas) esta correcção.
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V.- O processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária quando duas ou mais pessoas sejam chamadas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que pertenciam a esta, de acordo com o que dispõem os art.os 2024.º do Código Civil (C.C.) e 1326.º, n.º 1 do C.P.C.V. (Código de Processo Civil anterior).
Sendo de natureza autocompositiva, os herdeiros, desde que não ofendam normas imperativas, podem livremente acordar sobre a partilha assim como sobre as dívidas e os créditos da herança.
A partilha, a que se procede no processo de inventário, visa atribuir a cada um dos herdeiros o que lhe cabe, jure hereditatis, do património deixado pelo autor da herança na parte em que este, enquanto vivo, não dispôs válida e eficazmente.
Na situação sub judicio dos quatro herdeiros legitimários (apenas) um deles se mostra discordante opondo-se a que seja tido em consideração o testamento deixado pela autora da herança, sua mãe, e a que se dê pagamento, no mapa de partilha, dos custos das exéquias desta.
a) Passemos então à abordagem da 1.ª questão.
O testamento é um negócio jurídico unilateral pelo qual uma pessoa (o seu autor) dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles – cfr. art.º 2179.º do C.C..
Sendo para produzir efeitos apenas post mortem, como refere o Prof. Pedro Pais de Vasconcelos, “O respeito pela última vontade das pessoas é uma exigência de Direito Natural que implica, na interpretação do testamento, o respeito escrupuloso pela vontade real do testador em tudo aquilo que não seja contrário à Lei imperativa e à Moral ou que não seja impossível” (in “Teoria Geral do Direito Civil”, 5ª. ed., pág. 559).
Nos termos do disposto no art.º 2187.º., do C. C., na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.
Ora, do testamento junto aos autos resulta inequívoco que a Inventariada quis compensar a pessoa, fosse familiar ou não, que dela cuidasse (“com carácter de habitualidade na saúde e na doença, prestando-lhe todos os cuidados com a alimentação, higiene e alojamento”) nos últimos tempos da sua vida (“até à data do seu falecimento”).
Tendo o testamento sido feito a favor de pessoa incerta, ficou ali definido o modo de a tornar certa.
Nas declarações, o cabeça-de-casal deve identificar os interessados directos na partilha, bem como os legatários, os credores da herança e, havendo herdeiros legitimários, deve ainda identificar os donatários.
Mais deve o cabeça-de-casal juntar aos autos, no acto das declarações, os testamentos, convenções antenupciais, assim como a relação de todos os bens que integram o acervo hereditário – cfr. alínea a) do n.º 2 e n.º 3 do art.º 1340.º do C.P.C.V. (a alínea b) do n.º 2 do art.º 24.º do actual processo de inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013 de 5/03, limita-se a referir a “identificação dos interessados directos na partilha”).
Na situação sub judicio a cabeça-de-casal, ora Apelante, juntou o testamento deixado pela Inventariada e identificou os herdeiros legitimários, não constando do auto respectivo (fls. 15 e 16) a identificação da pessoa beneficiária da deixa testamentária.
Contudo, sendo ela a terceira dos quatro filhos da Inventariada, alegou, logo no requerimento que deu início ao processo, que “viveu os últimos dois anos com a falecida”, para fundamentar caber-lhe a si o cabeçalato, o que nenhum dos herdeiros contestou.
É certo que a relação de bens se destina a dar a conhecer aos herdeiros o objecto da sucessão, ou seja, o conjunto de bens que integravam o património do de cujus, não servindo para habilitar um herdeiro à partilha, mas também não é menos certo que nenhum dos co-herdeiros discordou da afirmação da Apelante, cabeça de casal, constante de fls. 18 dos autos, de que “foi instituída herdeira” da quota disponível da Inventariada porquanto a “levou para sua casa, onde durante cerca de dois anos, e até à data do seu falecimento, a tratou com carácter de habitualidade na saúde e na doença, prestando-lhe todos os cuidados com a alimentação, higiene e alojamento”.
O próprio co-herdeiro A…, ainda que servindo-se deste facto para impugnar uma das verbas do passivo, reconhece que a Inventariada viveu com a cabeça de casal (cfr. alínea b) de fls. 64), e, não contrariando a verdade do afirmado pela sua irmã, que foi “quem” cuidou e assistiu à mãe de ambos até ao seu decesso, escuda-se numa questão que é meramente formal para defender a desconsideração do testamento.
Contudo, e como se referiu, o respeito pela última vontade das pessoas é uma exigência do Direito Natural, constituindo uma grave ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante que o referido co-herdeiro tenha beneficiado da tranquilidade de saber que tinha uma irmã a cuidar da sua mãe, aliviando-o do cumprimento do seu dever natural, e não acolha a última vontade desta de beneficiar quem, com sacrifício próprio, a assistiu até que se finou, como foi reconhecido pelos outros dois irmãos e ele próprio, pelo menos, admite.
O respeito pela última vontade da testadora impõe, pois, que se reconheça ser a Cabeça-de-Casal, ora Apelante, a beneficiário do testamento, cabendo-lhe, consequentemente, a quota disponível daquela.
b) Relativamente às despesas com o funeral da Inventariada, dispõe o art.º 2068.º do C.C. que a herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor.
Como escreve o Prof. Rabindranath Capelo de Sousa “nas despesas com o funeral abrangem-se, v.g., as que ocorrem com a conservação, preparação e transporte do cadáver antes da sepultura, as dos ritos funerários, participações e agradecimentos, as do enterramento e as de trasladação, em conformidade com a condição do defunto ou o costume da terra” (as despesas com o funeral do devedor, conforme a sua condição e costume da terra, gozam de privilégio mobiliário geral, de acordo com a alínea a) do n.º 1 do art.º 737.º do C.C.).
E, segundo o mesmo Autor, “as despesas com os sufrágios respeitam, tomando o seu significado teológico-cristão, às piedosas intervenções dos fiéis vivos (v.g. missas, preces, esmolas e outras obras de caridade) em favor do fiel defunto autor da sucessão, na altura e na sequência do funeral e segundo a condição do falecido ou os costumes da terra” (in “Lições de Direito das Sucessões”, vol. II, ed. da “Coimbra Editora” 1980, págs. 103-105).
Por força do disposto no art.º 2070.º do C.C., aqueles encargos deverão ser satisfeitos antes mesmo dos encargos “com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido e pelo cumprimento dos legados” (ordem por que vêm enumeradas no art.º 2068.º, referido).
Cabia nesta conceito de “despesa com os sufrágios” a importância de € 350 a que se refere o documento de fls. 50 (cfr. supra n.º 4 de IV.).
A Apelante, porém, só se refere às despesas com o funeral as quais, como se referiu, são dívida da herança e devem ser pagas em primeiro lugar.
Sem embargo, o Tribunal a quo remeteu a consideração destas despesas para o processo de prestação de contas, visto terem sido liquidadas pela Cabeça- de-Casal, seguindo a posição defendida por Lopes Cardoso (in “Partilhas Judiciais”, vol. I, Almedina, 1979, pág. 468), deixando, porém, aberta a hipótese de os Herdeiros deliberarem considerá-las.
Ora, na relação de bens definitiva, estas despesas não vêm contempladas e nem na acta onde consta aquela relação nem na acta da conferência de interessados há qualquer referência a elas.
Resta, pois, à Cabeça-de-Casal, ora Apelante, o recurso ao incidente de prestação de contas se quiser reaver o que pagou, posto que a decisão judicial a que acima se alude transitou em julgado.
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VI.- Atento quanto acima vem de expor-se resulta a procedência parcial da pretensão formulada neste recurso pela Apelante, impondo-se revogar o despacho determinativo da partilha, anular a partilha constante do respectivo mapa e revogar a sentença que a homologou, determinando-se que se proceda à partilha nos termos seguintes: Somam-se os bens descritos pelos valores constantes da descrição, com o aumento resultante das licitações, correspondendo o produto obtido ao valor da herança a partilhar.
Sendo quatro os herdeiros legitimários, a quota disponível da Inventariada é de um terço (1/3) do valor da herança (cfr. n.º 2 do art.º 2159.º do C.C.).
Assim, o resultado da soma supra referida divider-se-á por três, sendo o valor obtido o correspondente à quota disponível que se adjudica à Cabeça-de-Casal, por beneficiar do testamento deixado pela Inventariada.
Os restantes dois terços (2/3) é equidividido pelos quatro Herdeiros, ficando a constituir o seu quinhão hereditário.
Aos licitantes adjudicam-se os bens em que licitaram e o quinhão dos demais será integrado por tornas a pagar por quem licitou em excesso.
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C) DECISÃO
Em face de quanto acima fica exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação e, consequentemente, revogando o despacho determinativo da partilha, anulando o mapa de partilha e revogando a sentença que a homologou, determinam que se proceda à partilha em conformidade com o que supra se deixou referido.
Custas da apelação pela Apelante e pelo Interessado A…, na proporção de 1/6 (um sexto) para a primeira e 5/6 (cinco sextos) para o segundo.
Guimarães, 29/10/2015
Fernando Fernandes Freitas
António Figueiredo de Almeida
Maria Purificação Carvalho